Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
“Crises
de ontem e de hoje
Muitas coisas mudaram desde a época de Marx:
técnicas de produção, fontes de energia, organização do trabalho, grande
distribuição, formas de crédito, globalização do mercado. No entanto, a lógica
da crise que ele analisou está no cenário da crise atual. Ela não explode no
comércio varejista, mas “no comércio atacadista e nos bancos”. Começa na esfera
financeira pela “insolvência que interrompe bruscamente a aparente
prosperidade”, para depois atingir o que a vulgata jornalística chama de
“economia real”. O capital comercial e bancário que inicialmente contribuiu
para mascarar a crescente desproporção entre produção e consumo torna-se o elo
mais fraco:
Apesar do caráter autônomo que possui, o movimento do capital mercantil
nada mais é que o movimento do capital industrial na esfera da circulação. Mas,
em virtude dessa autonomia, o capital mercantil move-se até certo ponto sem
depender dos limites do processo de reprodução e por isso leva este a transpor
os próprios limites. A dependência interna e a autonomia externa fazem o
capital mercantil chegar a um ponto em que surge uma crise para restaurar a
coesão interior.[7]
Nos anos 1970, a taxa de lucro
estava corroída pelos ganhos sociais obtidos no período de crescimento do
pós-guerra. A contrarreforma liberal, iniciada por Margaret Thatcher e Ronald
Reagan, visava a destruir esses ganhos (indexação relativa dos salários aos
ganhos de produtividade, sistemas de proteção social, taxa de desemprego
moderada) para impor o que Frédéric Lordon chamou de “capitalismo com baixa
pressão salarial”. Visava sobretudo a modificar a divisão do valor agregado em
detrimento dos salários, a aumentar a produtividade pela diminuição do custo do
trabalho, a reduzir a proteção social, a melhorar a política fiscal vigente
para empresas e altos salários.
Entre 1980 e 2006, a parte dos salários
no valor agregado das empresas efetivamente diminuiu de 67% para 57% nos quinze
países mais ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Disso decorreu uma redução relativa da demanda solvente, compensada por
um incremento de crédito e de despesas militares, além do crescimento
espetacular da desigualdade de rendimentos. O “salário” dos nababos e de outros
paraquedas dourados são a demonstração mais ostensiva. Por mais chocante que
possa parecer, essa desigualdade também é funcional: estimula o consumismo de
luxo de uma casta que compensa em parte a restrição do consumo de massa,
entretanto sem poder substituí-lo. A redução relativa das transações,
consequência da ruptura do “círculo virtuoso” que liga a evolução dos salários
aos ganhos de produtividade, traduziu-se por uma desaceleração dos
investimentos produtivos, ao mesmo tempo que o capital disponível acumulado, em
busca de ganho rápido e fácil, inflou a bolha dos investimentos financeiros.
Comparado a um coeficiente 20 em 1960, o lucro das sociedades financeiras
atinge 160 em 2006. Entusiasmados, os bancos chegaram a emprestar quarenta
vezes mais do que seus fundos próprios poderiam garantir.
Nos anos 2000, nos Estados Unidos (mas também
em países como a Espanha), o crescimento foi sustentado por um boom imobiliário, estimulado pelo
crédito a uma clientela pouco ou nada solvente. Durante o verão de 2007, esses
créditos com juros inicialmente baixos mas variáveis, sem tributos nem
garantias, exceto uma hipoteca sobre o bem comprado, atingiram a massa crítica
de 1,3 trilhão de dólares nos Estados Unidos. Entre 1975 e 2006, o índice de
endividamento das famílias dobrou e atingiu 127% da renda disponível. Em tal
patamar, os credores não são apenas incompetentes ou irresponsáveis, mas
escroques e criminosos que encorajam deliberadamente o endividamento de pobres
inadimplentes, na tentativa de encobrir dívidas duvidosas e apagar seus traços
na opacidade da securitização. No fim da estrada, há milhões de famílias
sem-teto.
Concedamos generosamente o benefício da
dúvida. Suponhamos que não tenham sido meramente cínicos, mas ofuscados pelos
sortilégios do fetichismo monetário, e que tenham acreditado no inacreditável,
no milagre do dinheiro que se autoengendra sem passar pela fecundação da
produção. A hipótese é plausível, pois Jean-Claude Trichet[x] em pessoa se
deslumbrava no Financial Times de 29
de janeiro de 2007: “Existe atualmente tanta criatividade em matéria de novos
instrumentos financeiros sofisticados que não sabemos mais onde estão os
riscos”. Caríssima criatividade! O guru dos anos loucos, Alan Greenspan,
submetido a um duro interrogatório por uma comissão da Câmara dos
Representantes dos Estados Unidos, confessou, com ar contrito, ter pensado que
o egoísmo dos banqueiros seria um regulador suficiente: “Cometi um erro ao
presumir que o interesse pessoal fosse tamanho que se empenhariam em proteger
os acionistas”. E o oráculo deposto concluiu: “É um pilar essencial da economia
de mercado que acaba de ruir. Estou pasmo, ainda não entendi como isso pôde
acontecer”[8]. Se é o que ele diz...
“Em forte contradição com esse refinamento
[...], a especulação inglesa voltou para sua forma mais primitiva de fraude”,
escreveu Marx em 26 de setembro de 1856. Na Grande Exposição de Londres, a
construção do Crystal Palace contemplou, com efeito, a circulação de 4 mil
falsas ações. A especulação liberal das últimas décadas conduziu a “pura
escroqueria” a píncaros jamais galgados. O escândalo Madoff é apenas o mais
visível. Ao exigir retorno sobre investimento na faixa de 15% ou mais, para um
crescimento em média três vezes inferior, subjugados pelo “fetiche capitalista”
do “valor criador de valor” e pelo mistério do “dividendo cuja fonte é o
próprio capital”, os acionistas foram tão cegos quanto os banqueiros.
Entretanto, o prodígio era mais assombroso do que a multiplicação bíblica dos
pães. A cavalgada desse crescimento a crédito não poderia durar
indefinidamente. Estouro da bolha financeira, queda das Bolsas, restrição ao
crédito: o estrondo põe brutalmente fim à alucinação. Ao chamar o virtual à
ordem, o real confirma o aviso de Marx: “o movimento do capital financeiro nada
mais é do que o movimento do capital industrial na esfera da circulação”.
Contrariamente à fórmula de que a crise
financeira se propagaria e contaminaria a indevidamente chamada “economia real”
(como se a esfera financeira fosse irreal!), ela revela principalmente uma
crise latente de sobreprodução, há muito (excessivamente) adiada pelo incentivo
ao crédito e que irrompe agora à luz do dia nos setores da construção e
automobilístico. Os vendedores, apavorados com a possibilidade de ficar com a
mercadoria parada, reduzem preços, liquidam, vendem abaixo do custo. Mas isso
não basta. Antes vilipendiado, o Estado é chamado ao socorro, como última
garantia e derradeiro recurso. O mito liberal de uma regulação mercantil pura e
de uma expansão ilimitada da esfera financeira desaba, em conjunto com seu
corolário, a utopia de uma “empresa sem indústria”, propagada outrora pelo
presidente da Alcatel, Serge Tchuruk. Ele sonhava com firmas que
subcontratassem ou terceirizassem todas as atividades de produção, para
conservarem apenas as atividades financeiras. Nessa “nova economia” virtual, o
capital manteria a ilusão de prosperar sem intervenção do trabalho[9]. Mas a
realidade vingou-se. O sonho absurdo do capital sem trabalho, do
“enriquecimento sem causa” e da globalização beatificada (cara a Alain Minc)
“despedaçou-se”, confessou Nicolas Sarkozy em seu discurso de 25 de setembro de
2008, em Toulon. Virou ,
inclusive, um pesadelo.
No momento de pagar a conta do desastre
financeiro, as responsabilidades esvaem-se no anonimato do “se” misterioso, de
um social killer tão anônimo quanto
as sociedades de mesmo nome: “esconderam-se riscos cada vez maiores...;
fingia-se acreditar que a gestão global de riscos os anulasse...; permitiu-se
aos bancos especularem no mercado, em vez de cumprirem sua função...;
financiaram-se especuladores em vez de empreendedores...; deixaram-se agências
de classificação de risco e fundos especulativos sem nenhum controle...;
submeteram-se os bancos a normas contábeis sem qualquer garantia de gestão de
riscos...”, invectivou Nicolas Sarkozy. E seu primeiro-ministro repetiu como um
eco: “O mundo está à beira do abismo por culpa de um sistema irresponsável”
(François Fillon, 3 de outubro de 2008). Como se os partidos políticos, de
direita e de esquerda, não tivessem despendido muita força e resolução, durante
um quarto de século, para largar as rédeas desse capitalismo financeiro, que
não é uma forma velada de capitalismo, mas sua própria essência. “Todos querem
a concorrência sem as consequências funestas da concorrência. Todos querem o
impossível, quer dizer, as condições de vida burguesa sem as consequências
necessárias dessas condições...”, escreveu Marx a seu correspondente Annenkov.
A crise é, dessa forma, “o estabelecimento
pela força da unidade entre momentos (produção e consumo) levados à autonomia”,
mas que são “essencialmente um só”. Essa violência é, antes de tudo, a
violência social das famílias jogadas na rua pelo não pagamento de dívidas, das
demissões em massa, do fechamento de empresas e deslocalizações, das filas
diante dos restaurantes populares, dos sem-teto que morrem de frio, das míseras
economias em detrimento da saúde. É também a criminalização da resistência
social, o aumento do poder do Estado penal em proporção inversa ao do Estado
social, a instauração de um estado de exceção irrestrito sob pretexto de
antiterrorismo. É, enfim, a guerra pelo acesso aos recursos energéticos, pela
segurança das vias de abastecimento de gás e petróleo, por uma nova
distribuição de territórios e zonas de influência.
A crise atual, a crise do presente, não é uma
crise a mais que se acrescentaria à dos mercados asiáticos ou à da bolha da
internet. É uma crise histórica – econômica, social, ecológica – da lei do
valor. A medida de tudo pelo tempo de trabalho abstrato tornou-se, como Marx
anunciara em seus manuscritos de 1857, uma medida “miserável” das relações
sociais. Além da crise de confiança evocada pela vulgata jornalística, a fé no todo-poderoso
mercado foi mortalmente abalada. Quando se deixa de acreditar no inacreditável,
agrega-se à crise social uma crise de legitimidade ideológica e moral, que
acaba por atingir a ordem política: “Um estado político em que alguns
indivíduos ganham milhões enquanto outros morrem de fome poderá subsistir se a
religião não estiver mais lá, com suas esperanças fora deste mundo, para
explicar o sacrifício?”, perguntava Chateaubriand às vésperas das revoluções de
1848. Ele mesmo respondeu profeticamente:
Tente persuadir o pobre quando ele souber ler
e não tiver mais crença, quando ele possuir a mesma instrução que você. Tente
persuadi-lo de que deve se submeter a todas as privações enquanto seu vizinho
possui mil vezes o supérfluo: como último recurso, terá de matá-lo.
Sob a luz ofuscante da crise, milhões de
oprimidos terão de aprender a ler.”
[7] Ibidem, cap. 18.
[x] Alto funcionário francês, ex-presidente
do Banco Central europeu. (N. T.)
[8] Le Monde, 25 out. 2008.
[9] Ver Jean-Marie Harribey, “L’entreprise
sans usines ou la captation de la valeur”, Le Monde, 3 jul. 2001; La
démence sénile du capital: fragments d’économie critique (Bègles, Éditions
du Passant, 2002).
“Nos manuscritos de 1857-1858 surge um esboço
de crítica do que se chamaria hoje de produtivismo, com a noção de fuga para a
frente da produção pela produção e de um desenvolvimento do consumo que não é
mais função de novas necessidades sociais, mas de uma lógica autômata do
mercado. A produção dominada pela busca do lucro máximo, e não pela satisfação
de necessidades, conduz a um “círculo sempre ampliado de circulação”. A
tendência à criação de um mercado mundial é, assim, “imediatamente dada no
próprio conceito do capital”. Porém, a “produção do mais-valor baseada no
crescimento e no desenvolvimento das forças produtivas” exige também a
“produção de novo consumo”. Exige que:
o círculo de consumo no interior da circulação se amplie tanto quanto
antes se ampliou o círculo produtivo. Primeiro, ampliação quantitativa do
consumo existente; segundo, criação de novas necessidades pela propagação das
existentes em um círculo mais amplo; terceiro, produção de novas
necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso. [...].[d]
Em uma época em que o enorme “acúmulo de
mercadoria” está bem longe da dimensão de nossos shopping centers e outros hipermercados, Marx, em antecipação aos
críticos da sociedade de consumo, compreende que a lógica do lucro e da
produção pela produção gera inevitavelmente um consumo quantitativamente
ampliado, que diverge do desenvolvimento das necessidades humanas. A busca
legítima de “novas qualidades úteis das coisas” ocorre sob forma de exploração
– a palavra é cuidadosamente escolhida – desenfreada da terra, como se fosse
uma oferta grátis a apetites desmedidos e passível de trabalho sem fim.
Apoiado em uma pesquisa teórica de grande
fôlego, o discurso de Marx no aniversário do People’s Paper, em 1856, não é uma incursão fortuita na preocupação
que seria hoje chamada de ecologista:
Hoje, tudo parece carregar em si a própria contradição. Máquinas dotadas
da capacidade maravilhosa de encurtar e tornar mais fecundo o trabalho humano
provocam a fome e a fadiga do trabalhador. As fontes de riqueza
recém-descobertas transformam-se por estranho malefício em fontes de privação.
Os triunfos da arte parecem obtidos às custas de qualidades morais. Ao mesmo
tempo que o domínio da natureza se torna cada vez maior, o homem se transforma
em escravo de outros homens e de sua própria infâmia. Mesmo a límpida luz da
ciência não pode brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossas
invenções e progressos parecem dotar as forças materiais de vida intelectual,
ao mesmo tempo que reduzem a vida humana a uma força material bruta.[e]”
[d] Idem, Grundrisse,
cit., p. 332-3. (N. T.)
[e] Idem, “Discours à l’occasion de
l’anniversaire du People’s Paper”, 14
abr. 1856. (N. T.)
E como pensa? Como bom especialista em perfil criminal, invade o disco
rígido desse social killer para
reverter contra ele sua própria lógica e exterminá-lo. Desconcertante tal
estratagema para um espírito francês acostumado a perambular pelos jardins geométricos
de Le Nôtre. A considerar, desde Descartes, que o homem é “mestre e dono” da
natureza. A celebrar, com Auguste Comte, a superioridade do positivo sobre o
negativo. A só admitir alternativas simples, o princípio da não contradição, a
lógica binária do terceiro excluído. A repetir, com qualquer jornalista ou
ministro do Interior, que fatos são fatos, são obstinados e falam por si.
Eis que um indivíduo lhes diz que os fatos nunca falam por si. Que tudo
depende do olhar, da luz que os ilumina, do contexto, da perspectiva do todo.
Que as aparências não são o reflexo fiel da essência, tampouco um simples véu,
porque são o parecer do ser. Que não há o acaso de um lado e a necessidade do
outro, separados comportadamente, mas que a necessidade tem seus acasos e o
acaso, sua necessidade. Que o produtor também é um consumidor, que o salário,
que parece ao capitalista individual um puro custo de produção, também é, para
o capital em geral, uma demanda solvente. Que não existe oposição irredutível
entre grevista e usuário, porque o usuário de hoje é o grevista de amanhã e
vice-versa.
Enfim, é exasperante esse barbudo que, quando tudo parece simples,
afirma ser mais complicado. E que, como nos contos da tradição judaica,
responde às perguntas com outras perguntas.”
“Por ocasião da crise econômica estadunidense
de 1857, o reencontro “acidental” de Marx com a lógica hegeliana o incita à
elaboração de “uma concepção científica própria”. À escuta dos espasmos e
lapsos do capital, essa concepção não tem a missão de dizer a verdade
derradeira, mas de empreender um trabalho incansável de desmistificação – do
Estado, do Direito, da História, da Economia. E da própria Ciência! A crítica é
esse trabalho reflexivo incessante da consciência contra suas próprias
representações religiosas, suas próprias ilusões e seus próprios erros.
Na superfície enganosa do processo de
circulação, na praça movimentada do mercado, onde tudo se troca e se equivale,
o capital aparece como Kapitalfetisch
– o fetiche capitalista do capital fetichizado. Como capital portador de juros,
em que dinheiro parece fazer dinheiro, ele assume sua forma mais característica
e “mais alienada”. Resulta uma mistificação levada ao extremo, uma coisificação
generalizada das relações sociais. Um mundo encantado onde os seres andam de
ponta-cabeça, onde o senhor Capital e a senhora Terra dançam fantasticamente em
sua ronda macabra. Esse mundo, em que os agentes da produção se sentem em casa
em suas “formas ilusórias” de todos os dias, é o reino da personalização das coisas
e da coisificação das pessoas, o da religiosidade diabólica da vida cotidiana
moderna.
Esse fetichismo não é um simples travestismo
da realidade. Se fosse esse o caso, seria simplesmente uma imagem malfeita do
real, e um bom par de óculos bastaria para corrigir a vista e desvendar o
objeto tal como é. A ciência comum bastaria para perscrutar a verdade oculta.
Mas a representação fetichizada entretém em permanência, no espelho deformante
de sua relação, a ilusão recíproca do sujeito e do objeto. Não é mais questão
de se contentar com uma ciência que dissipe de uma vez por todas a falsa
consciência e garanta a soberania lúcida do indivíduo racional, mestre e
possuidor da natureza tanto quanto de si mesmo. Porque essa ilusão não nasce
apenas na mente. Ela resulta de relações sociais reais. Enquanto estas
perdurarem, a alienação poderá ser combatida na prática, mas não vencida. Em um
mundo atormentado pelo fetichismo mercantil generalizado, não há saída da
ideologia dominante pelo arco triunfal da Ciência. A crítica reconhece a
própria incapacidade de possuir a verdade e declarar, de uma vez por todas, a
verdade derradeira. Seu combate sempre reiniciado contra as ervas daninhas da
loucura e do mito conduz unicamente a clareiras, onde o evento rasga temporariamente
o véu da obscuridade.
Para a crítica, portanto, nenhum repouso. Ela
nunca está quite com a ideologia. O melhor que pode fazer é resistir, afrontar,
zombar e ironizar, criando condições para um desencanto e uma desilusão. A
sequência não mais se desenrola na mente, mas na luta. Lá onde a crítica das
armas substitui as armas da crítica. Onde a teoria se torna prática. E a razão,
estratégica.”
“Para Marx, suas descobertas “científicas”
originais residem:
·
na demonstração das formas gerais ainda indiferenciadas
do mais-valor e do duplo caráter do trabalho;
·
na compreensão do capital como relação
social;
·
na compreensão de que o valor de uso não se
anula no valor de troca, mas conserva sua importância específica.
Essas descobertas desnudam a importância:
·
da forma geral (da estrutura) em relação ao
caos da “macedônia” empírica;
·
da relação social inscrita na totalidade do
movimento.
Sua “crítica da economia política” inaugura,
assim, outra maneira de “fazer ciência”, irredutível tanto à fundação de uma
nova ciência positiva da economia quanto ao retorno a uma filosofia
especulativa. Teoria revolucionária do fetichismo, enfrenta miragens para
vencer sortilégios.
Marx pratica uma lógica dinâmica das
determinações, e não uma lógica estática e classificatória das definições. Não
procura colar etiquetas sobre as coisas para arrumá-las em um dicionário, e sim
captar as relações entre os fenômenos sociais inscritos em uma totalidade em movimento. Ele é
bem claro sobre este ponto: “não são definições em que se classificariam as
coisas, mas funções determinadas que se exprimem em categorias determinadas”.
Para descartar qualquer equívoco, Engels explica insistentemente aos leitores
que procurariam a qualquer preço, nos textos de Marx, definições simples e
tranquilizadoras, “lá onde, na realidade, ele desenvolve”:
De uma maneira geral, tem-se o direito de procurar em seus escritos
definições claras, válidas e conclusivas. É evidente que, no momento em que as
coisas e suas influências recíprocas são concebidas não como fixas, mas como
variáveis, os próprios conceitos também estão sujeitos a variações e mudanças.
Nessas condições, não estarão contidos em uma definição, mas desenvolvidos
conforme o processo histórico de sua formação.[h]
Advertência àqueles que tentam questionar
Marx para que reconheça uma definição atemporal de classes ou de trabalho, e
que se prendem eles próprios nos grilhões de definições rígidas. ”
[h] Friedrich Engels, “Prefácio”, em O
capital, Livro III. (N. T.)
“Apesar da função social da fotografia e da mise-en-scène, a iconografia de Marx em
vida mantém certo grau de familiaridade e intimidade, revestido ulteriormente
de uma espécie de crosta pela grosseira iconografia e fanática hagiografia
stalinistas, que orquestraram a difusão internacional de um novo culto. No universo
“politicamente correto” da burocracia vitoriosa, a santa imagem do pai fundador
deveria ser ao mesmo tempo tranquilizadora, ameaçadora e imaculada. Por esse
motivo, as biografias purificadas de qualquer alusão a um provável filho
bastardo não reconhecido, a discrição pudica a respeito dos gracejos machistas
de Marx ou o silêncio sobre os deslizes homofóbicos de Engels[2]: apesar de
inovadores e audaciosos teórica e politicamente, eram homens de seu tempo e de
seus preconceitos, porque a verdade é que mentalidades não mudam no mesmo ritmo
que leis e técnicas.
A sacralização burocrática de indivíduos
humanamente falíveis produziu a estatuária e as imagens pitorescas de um Marx
Júpiter olímpico, autoritário, dominador, portador de novas Tábuas da Lei, imitando
o ar severo e a barba emaranhada do Moisés de Michelangelo, cujo olhar de pedra
aterrorizou Freud em pessoa. Quantos cartazes e vinhetas, panos de fundo
dominando as tribunas de congressos pletóricos, peitos cobertos de
condecorações, desfiles comemorativos e berloques kitsch ornaram a sacrossanta procissão dinástica –
Marx-Engels-Lenin-Stalin! Esses perfis sobrepostos conferiam uma legitimidade
genealógica inspirada no Gênesis bíblico de Adão a Noé: Marx teria gerado
Lenin, que teria gerado Stalin, tal como Adão gerou Seth, que gerou Enoch, que
gerou Kenan. E assim por diante, sem ruptura nem descontinuidade, até o paraíso
reconquistado ou o fim dos tempos.
A destruição dos ícones burocráticos e a
derrubada dos ídolos de gesso são uma redenção: uma maneira de libertar Marx
dos dogmas que o mantiveram acorrentado durante quase um século.
Sua obra aberta, sem limites, revolve em
profundidade o espírito de uma época. Crítica em movimento de um sistema
dinâmico, O capital, apesar das
múltiplas remodelagens de seu plano inicial, era inacabável. Não porque a vida
de seu autor tenha sido demasiadamente curta, mas porque era uma vida humana, e
o objeto de sua crítica, em perpétuo movimento, sempre o conduzia mais longe.
(...)
A atualidade de Marx é a do próprio capital.
Porque, se ele foi um excepcional pensador de sua época, se pensou com seu
tempo, também pensou contra seu tempo e além dele, de maneira intempestiva. Seu
corpo a corpo, teórico e prático, com o inimigo irredutível, o poder impessoal
do capital, transporta-o até nosso presente. Sua inatualidade de ontem faz sua
atualidade de hoje.
A (re)descoberta de um Marx desvencilhado de
seu culto e seus fetiches é ainda mais necessária porque uma parte essencial de
sua obra (nada menos que os manuscritos parisienses de 1848, A
ideologia alemã, os manuscritos de 1857-1858, as Teorias da
mais-valia, os Livros II e III de O capital e uma abundante
correspondência) foi publicada a título póstumo. A recepção estende-se por
décadas, na cadência de traduções frequentemente tardias e imperfeitas. Desse
modo, desconhecida pelo movimento trabalhista francês renascente sob o Segundo
Império, a primeira tradução francesa do Manifesto
Comunista só foi divulgada em 1872, em O Socialista, jornal de
língua francesa publicado... nos Estados Unidos [3]!
Ora, a herança de uma obra, principalmente se
for dirigida à ação prática, é irredutível a seu texto. É a história de suas
interpretações e recepções, inclusive das infidelidades, que por vezes são a
melhor maneira de lhe permanecer fiel. Como também escreve Derrida: “A herança
não é um bem, uma riqueza que se recebe e se guarda no banco; a herança é a
afirmação ativa, seletiva, que pode ser às vezes reanimada e reafirmada mais
por seus herdeiros ilegítimos do que pelos legítimos”[4].
É, de certo modo, uma herança sem
proprietários nem manual de instruções.
Uma herança à procura de autores.”
[2] Ver principalmente a carta de Engels de
22 de junho de 1869: “Os pederastas começam a se contar e pensam que formam um
poder dentro do Estado. Só falta a organização, mas parece que ela já existe
secretamente. E, como eles têm homens importantes em todos os velhos partidos,
sua vitória é inevitável. Guerre aux cons, paix aux trous-du-cul [Guerra
aos imbecis, paz aos bundões], diz-se agora [...]. Para os que tomam a
dianteira, como nós, com nossa atração ingênua pelas mulheres, as coisas não
correrão bem”.
[3] Ver Philippe Videlier, La proclamation
du Nouveau Monde, seguida do Manifeste du Parti Communiste
(Vénissieux, Paroles d’Aube, 1995).
[4] Jacques Derrida, Marx en jeu
(Paris, Descartes & Cie., 1997).
“O florescimento desses “mil marxismos”
aparece como um momento de liberação, em que o pensamento se evade de seus
grilhões doutrinários. Significa a possibilidade de recomeçar, após as
experiências traumáticas de um século trágico, mas sem fazer do passado uma
tábula rasa. Plurais e atuais, esses marxismos comprovam uma viva curiosidade.
Porém, sua expansão interroga se, apesar das diferenças e fragmentações
disciplinares, podem constituir um programa de pesquisas que compartilhe o
mesmo nome. Em outras palavras, pode-se ainda falar de marxismo no singular ou
é melhor se contentar, conforme a fórmula do filósofo catalão Fernández Buey,
com um Marx sem “ismos” ou um marxismo desconstruído? “Qual é o consenso
mínimo”, pergunta André Tosel, “para que se possa chamar uma interpretação de
legitimamente marxista?” A pluralidade dos “mil marxismos”, presentes e
futuros, coloca a “questão do acordo teórico mínimo em um campo de desacordos legítimos”,
para que essa generosa multiplicação não conduza a um esmigalhamento do núcleo
teórico e à sua dissolução no caldo de cultura pós-moderno.
O longo jejum teórico do período stalinista
aguçou apetites legítimos de descoberta e invenção. As amarras do marxismo de
Estado e as excomunhões inquisitoriais também alimentaram uma aspiração
legítima à liberdade de pensamento, de que foram precursores os “grandes
hereges” do período precedente (Ernst Bloch, o Lukács tardio, Jean-Paul Sartre,
Louis Althusser, Henri Lefebvre e Ernest Mandel). O risco agora parece inverso:
que mil marxismos coexistam polida e consensualmente em uma paisagem
pacificada. Esse perigo de ecletismo caminha junto com a reabilitação
institucional de um Marx conivente com as civilidades de uma marxologia
acadêmica sem alcance subversivo. Em Espectros
de Marx, Derrida alertou contra essa tentação de “jogar Marx contra o
marxismo, a fim de neutralizar e ensurdecer o imperativo político na exegese
tranquila de uma obra catalogada”.
O fundamento dessa ameaça reside na
discordância entre o ritmo do renascimento intelectual e a lentidão da
remobilização social, na cisão perpetuada entre teoria e prática, que há muito
tempo caracteriza o marxismo ocidental[5]. Consequentemente, ao reivindicar sua
unidade, o marxismo se submete a um duplo critério de julgamento. Se não foi
seriamente refutado no plano teórico, foi incontestavelmente desgastado por
graves derrotas políticas do movimento trabalhador e das políticas de
emancipação do século passado. Seu programa de pesquisas continua sólido. Mas
só haverá futuro se, em vez de se refugiar na clausura universitária, puder
estabelecer uma estreita ligação com a prática renovada dos movimentos sociais
e com a resistência à globalização imperialista.
Aí efetivamente se exprime, com grande
impacto, a atualidade de Marx: sua crítica da privatização do mundo, do
fetichismo da mercadoria como espetáculo, da fuga mortífera na aceleração da
corrida pelo lucro, da conquista insaciável de espaços submetidos à lei
impessoal do mercado. A obra teórica e militante de Marx nasceu na época da
globalização vitoriana. O progresso dos transportes foi, à época, o equivalente
da internet: o crédito e a especulação tiveram um desenvolvimento impetuoso;
foram celebradas as bodas bárbaras do mercado e da tecnologia; surgiu uma
“indústria do massacre”... Mas, dessa grande transformação, nasceu também o
movimento trabalhador da Primeira Internacional. A “crítica da economia
política” é o deciframento indispensável dos hieróglifos da modernidade e o ato
inaugural de um programa de pesquisas sempre fecundo.
A crise agora exposta da globalização
capitalista e a derrocada de seu discurso apologético constituem o fundamento
da renascença dos marxismos[6]. Esse florescimento responde frequentemente às
exigências de uma pesquisa livre e rigorosa, mesmo que se acautele contra as
armadilhas da exegese acadêmica. Mostra a que ponto os espectros de Marx rondam
nosso presente e como seria errôneo contrapor uma idade de ouro imaginária nos
anos 1960 à esterilidade dos marxistas contemporâneos. O trabalho molecular da
teoria é provavelmente menos visível do que antes. Não traz aos mestres
pensadores de hoje a mesma notoriedade dos antigos. É certamente mais denso,
mais coletivo, mais livre e mais secular. Se os anos 1980 foram razoavelmente
desérticos, o novo século promete ser bem mais do que um oásis.
Fernand Braudel disse que, para acabar com o
marxismo, seria necessário um incrível policiamento do vocabulário. Queiramos
ou não, o pensamento de Marx agora pertence à prosa da nossa era – por mais que
desagrade àqueles que, como o célebre burguês, fazem prosa sem saber[a]. Ser
fiel a essa mensagem crítica é sustentar que nosso mundo da concorrência e da
guerra de todos contra todos não pode ser reformado somente com alguns
retoques, que é necessário subvertê-lo, e com mais urgência do que nunca. Para
compreendê-lo a fim de mudá-lo, em vez de simplesmente comentá-lo ou
denunciá-lo, o pensamento de Marx e o “trovão” de O capital, pouco audível em sua época, são não um ponto de chegada,
mas um ponto de partida e de passagem obrigatório à espera de ser transposto.”
[5] Ver Perry Anderson, Considerações
sobre o marxismo ocidental/Nas trilhas do materialismo histórico (São
Paulo, Boitempo, 2004).
[6] Dão testemunho os trabalhos de Robert
Brenner e Mike Davis nos Estados Unidos, uma intensa atividade editorial na
Ásia e na América Latina, uma rica produção na própria França, com pesquisas
militantes sobre a lógica da globalização. Sob o impulso de David Harvey, a
exploração de um “materialismo histórico-geográfico” retoma as pistas abertas
por Henri Lefebvre sobre a produção do espaço. Estudos feministas alimentam a
reativação da reflexão sobre relação de classes sociais, gênero e identidade
comunitária. Os trabalhos de John Bellamy Foster, Mike Davis, Paul Burkett
conferem fundamento teórico ao ecossocialismo. Estudos culturais, ilustrados
principalmente pelos trabalhos de Fredric Jameson nos Estados Unidos e Terry
Eagleton na Grã-Bretanha, abrem novas perspectivas para a crítica das
representações, ideologias e formas estéticas. A crítica da filosofia política
recupera o fôlego com os estudos de Domenico Losurdo e Ellen Wood sobre o
liberalismo e o colonialismo, com a redescoberta de grandes personagens como
György Lukács e Walter Benjamin; com a investigação de uma historiografia
crítica sobre a Revolução Francesa; com as leituras renovadas do corpus
marxista de jovens filósofos; com as interrogações de juristas práticos e
universitários sobre as metamorfoses e incertezas do direito; com as
controvérsias, inspiradas principalmente pela ecologia social, sobre o papel
das ciências e das técnicas e sobre seu controle democrático; com uma
interpretação original da psicanálise lacaniana; com a confrontação da herança
marxista com obras como as de Hannah Arendt, Habermas e Bourdieu.
[a] Alusão a Molière, O burguês fidalgo.
(N. T.)
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