Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-598-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 266
Sinopse: Ver Parte
I
“O desastre do sistema de saúde americano e a
atual batalha para reformá-lo contêm valiosas lições para se levar em conta no
debate sobre a privatização na saúde. Optar por satisfazer as necessidades de
saúde no âmbito privado levou ao estabelecimento de um poderoso complexo
médico-industrial que saiu caro e ineficiente para os EUA. Nenhum outro país
gasta tanto em saúde — 13% do PIB — com resultados tão ruins na cobertura dos
serviços — 15% da população não tem acesso a eles e outros 10% têm uma cobertura
incompleta — e com tão baixo impacto sobre os indicadores de saúde — os EUA
ocupam o segundo lugar em renda per capita, mas o décimo oitavo em indicadores
de saúde. A deficiente cobertura deve-se ao fato de que a forma principal de
acesso aos serviços médicos (58% da população) ocorre mediante um seguro
coletivo privado concedido como vantagem trabalhista e cujas características
dependem da capacidade de negociação em cada caso. Existem seguros públicos
paralelos, “Medicare” e “Medicaid”, que dão certa cobertura à outra parte (20%)
da população: os velhos e famílias pobres que reúnem certos requisitos.
Os altos custos do sistema e o aumento
implacável de preços são explicados essencialmente por dois elementos. Um deles
é que o financiamento mediante seguros privados encarece de múltiplas maneiras
o sistema (altos custos de administração 35,5% contra 2,3% no seguro público —
obtenção de lucro, impossibilidade de controlar os preços e tendência ao
crescimento irracional da indústria hospitalar). Foi estimado que a introdução
de um seguro nacional público significaria uma economia de 69 bilhões de
dólares por ano.
Existe uma vasta literatura sobre a
influência determinante do complexo médico-industrial privado na fixação de
políticas de saúde nos EUA por meio de um intenso lobby. Seu sucesso em impedir a socialização do setor de saúde
explica-se pelo poder econômico de seus integrantes, principalmente das
companhias de seguro e das corporações hospitalares. Desse modo, as companhias
de seguro concentram ativos que superam os ativos mundiais das cinquenta
maiores corporações industriais americanas. As quatro maiores corporações
hospitalares, por seu lado, cresceram sem interrupção nos últimos quinze anos e
controlam 70% dos hospitais privados. Elas detêm ativos de cerca de 19 bilhões,
vendas de 17 bilhões e lucros de 610 milhões de dólares. Seu afã de ampliar os
próprios lucros levou-as a afinar os mecanismos para transferir os pacientes de
alto custo e de baixo rendimento para os hospitais públicos, provocando assim
uma crônica descapitalização destes últimos.
Em suma, a produção e o financiamento dos
serviços de saúde é uma das atividades econômicas mais importantes nos EUA e a
existência do complexo “médico-industrial” é a causa fundamental da crise de
custos e de cobertura, e, ao mesmo tempo, o principal obstáculo para a
racionalização do setor. Os enormes custos em saúde precária, as mortes
prematuras e vontade de dezenas de milhões de americanos parecem ser pouco
importantes diante da defesa inescrupulosa das seguradoras das corporações
hospitalares, que estão canalizando milhões de dólares por meio do sistema
legal de corrupção, o lobby, impedir
a reforma sanitária e para proteger seus lucros.”
(Asa Cristina Laurell)
“Não existe projeto nacional viável em face
do neoliberalismo caso não se reformule um projeto alternativo para o espaço
público. Pode-se até dizer que não existe utopia social possível dentro dos
limites do que conhecemos no mundo moderno se ela for concebida à margem do
espaço público. A existência de tal suposição e sua vitalidade, como condição
de toda sociedade moderna humanamente civilizada, depende em boa medida de que
o espaço público seja altamente valorizado pela comunidade em seu conteúdo
ético, político, democrático e funcional, inclusive no campo econômico e,
portanto, de que as forças políticas fomentem e façam sua essa valorização até
o ponto de incluí-la em seu itinerário programático.”
(Adrián
Gurza Lavalle)
“O espaço público é uma dimensão imposta ao
Estado pela sociedade sob determinada correlação de forças, por meio da qual
esta consegue colocar à margem da lógica do mercado um complexo de tarefas
socialmente necessárias à reprodução e ao desenvolvimento da sociedade como um
todo”4. Ao considerar como um dever a proteção de certas atividades,
funções ou espaços considerados como socialmente valiosos, a comunidade decide
financiá-los coletivamente. O considerado valioso, como produto direto de uma
ética social sob determinada correlação de forças entre possuidores e
despossuídos, implica geralmente a defesa de certos fatores nacionais
necessários para um melhor destino comum,
ou a universalização de certas possibilidades de progresso que igualam um
padrão comum para todos como membros
de uma mesma pátria. Claro está que o consenso sobre esses “comuns”, em um
primeiro momento, não é senão o produto de um conflito social e das lutas em
que este se manifesta; mas, com o passar do tempo, alguns desses consensos
impregnam-se de tal maneira no tecido social que terminam por perder seu
caráter político, transformando-se em normas culturais de convivência
civilizada. (...)
O espaço público como dimensão social
torna-se impotente se não conta com uma sólida esfera pública que o acompanhe e
torne-o possível. Dependendo das diferenças históricas, cada sociedade que
estruturou sua reprodução com a ajuda do espaço público como “princípio
civilizado de convivência”7, desenvolveu ao mesmo tempo uma esfera
pública que organiza o conjunto das atividades e processos por meio dos quais determina-se
o que deve ser considerado como interesse público e a maneira de satisfazê-lo.
Por seu lado, a esfera pública é um espaço vazio se não se assegura que a
sociedade a inunde, enchendo-a de vida; esse objetivo participativo, que deve
ser fomentado na medida em que constitui em si mesmo uma necessidade pública,
tem sido chamado de vida pública. O espaço público perde seu conteúdo essencial
sem a efetiva existência de uma esfera pública e de uma intensa vida pública;
em outras palavras, essa dimensão erigida pela sociedade como autoproteção
escapa-lhe das mãos, aliena-se.”
4:
Adrián Gurza Lavalle, La
Reestrutucturacion de lo Público y el Caso Conasupo. México, Ed. UNAM/ENEP
Acatlán, 1994, pp. 62-69.
7:
Aguilar Villanueva, op. cit., p. 130.
(Adrián
Gurza Lavalle)
“Não é um excesso retórico afirmar que no
espaço público, por meio de inúmeras batalhas, sedimentou-se a ética da
humanidade em sua larguíssima evolução. País por país, o espaço público recolhe
a eticidade ancestral de seus primeiros povos e ao mesmo tempo vai se
modificando para incorporar as peculiaridades dos diferentes desenvolvimentos
históricos nacionais. A presença do espaço público se faz mais necessária se
contemplamos que o mundo moderno privatizou uma parte medular da sociedade, a
economia, e ao fazê-lo erradicou seu caráter comunitário e excluiu
definitivamente dela o relativo ao bem comum. Como nem tudo de que a sociedade
necessitava para reproduzir a si mesma podia ser livremente convertido à
economia moderna, o relativo ao interesse geral, que a partir desse momento
começaria a opor-se ao interesse privado, seria excluído da privatização
mediante sua inscrição no espaço público. Assim, o espaço público, ao contrário
do mercado e do capital que se regem pelas leis do lucro, é socialmente
sustentado por princípios deontológicos, isto é, do dever-ser: a educação deve
ser pública porque as sociedades, ao desejarem que sua descendência tenha uma
vida melhor e com maiores oportunidades igualmente distribuídas, elevaram-na à categoria
de direito universal (dever ser universal); também a saúde tornou-se direito
universal, não só por razões médicas ou técnicas, mas fundamentalmente por
razões humanas. Falamos novamente de um dever ser histórico, conquistado e
defendido, respeitado e normativo. A ruptura de certos conteúdos desse pacto
ético, tal como sucede atualmente no México graças à ofensiva neoliberal,
decorre do rompimento do pacto político que os sustentava e de um profundo
desgarramento do tecido e da estrutura sociais. (...)
O espaço público tem mais virtudes do que seu
conteúdo ético-político e do que sua funcionalidade político-ética; é também um
espaço de democracia no amplo sentido da palavra, de democracia social, daquela
que o artigo terceiro da Constituição mexicana denomina uma forma de vida e da
qual a democracia política é só uma parte. O espaço público, nos mais diversos
terrenos, é um espaço de reconhecimento dos direitos à igualdade entre
desiguais: no educativo, no cultural, no recreativo, no alimentício, no econômico
e, obviamente, no político. Adicionalmente, o espaço público é uma dimensão na
qual a pluralidade social é reconhecida e permitida. Em um mundo em que a
mercantilização absorve tudo e só se aceitam as diferenças toleradas pelo
mercado, não existe lugar para o diferente, para o que pertence a outra
natureza, a outro passado. Algumas das grandes modernizações que pretenderam
mudar o velho mundo com que se enfrentaram, uma vez triunfantes tiveram de
reconhecer a inconveniência ou impossibilidade de aniquilar o derrotado; algo
dos restos de sua cultura devia ser respeitado, e para tal efeito, protegido e
remetido ao espaço público. Assim o espaço público converteu-se em garantia do
direito à sobrevivência do diferente, acolhendo certa pluralidade. Tal é o
caso, por exemplo, do índio nas sociedades surgidas sob o estigma da
colonização.
Isso não quer dizer que o espaço público seja
a panaceia moderna e que elimine a exploração e a dominação; em boa medida,
mantém-se graças a elas e aos conflitos que delas surgem. Mas sem o espaço
público inexistiria toda a possibilidade de convivência civilizada e a
sociedade ficaria submersa em um perpétuo desgarramento em que a violência
seria convertida em regra e motor da vida social. Entre a indiferença ou o
cinismo e a paciência milenária exigida pelos reinos imaginados, o de Deus, por
um lado, e o da abolição da propriedade privada e com ele da luta de classes, o
outro, o espaço público é a única utopia ao alcance dos que querem desenvolver
com seriedade um projeto alternativo ao neoliberalismo. Não se necessita de uma
memória histórica demasiado extensa para recordar nossos próprios
desgarramentos, os que deram corpo e sangue à nação mexicana; tampouco faz
falta uma agudeza especial para intuir que o desprezo pelo espaço público, ou
seu descuido, pode acarretar lamentáveis consequências a longo prazo. Bastaria
concluir com uma acertada afirmação de Lezek Kolakowski:
“A musa da história é amável, discreta e
douta,
mas vinga-se e cega aquele que a despreza”.”
(Adrián
Gurza Lavalle)
“A principal característica do pensamento
neoliberal é a ideia da liberdade do indivíduo, a soberania das preferências e
gostos de cada pessoa. Como o próprio Hayek afirma:
“...as características essenciais do
individualismo... são o respeito pelo homem individual na sua qualidade de
homem, isto é, a aceitação dos seus gostos e opiniões como sendo supremos
dentro de sua esfera, por mais estreitamente que isso se possa circunscrever, e
a convicção de que é desejável o desenvolvimento dos dotes e inclinações
individuais por parte de cada um”1.
A questão é que, apesar de o indivíduo
possuir gostos e opiniões que são supremos, a sociedade imprime-lhe limites que
coíbem suas manifestações. Por mais liberal que a sociedade seja, na melhor das
hipóteses para os neoliberais, a soberania de um indivíduo encontraria seu
limite justamente na soberania do outro2.
Mas isso não é nenhum problema, já que a
concorrência e o mercado resolvem esses conflitos individuais. Aliás, a
principal vantagem da concorrência, para Hayek, é que ela dispensa a existência
de um “controle social”, fazendo com que os indivíduos possam decidir por si
mesmos sobre os benefícios e desvantagens de determinada atividade. A própria
noção de escolha individual para Hayek já embute essa solução para os conflitos
pessoais. Para ele, em um sistema de escolha individual, as remunerações dos
indivíduos não são proporcionais aos seus méritos subjetivos, mas correspondem
à utilidade do indivíduo para o resto da sociedade3. É justamente aqui
que se encontra a principal falha metodológica da concepção neoliberal. Embora
defenda a soberania do indivíduo, os conflitos entre soberanias conflitantes
resolvem-se em uma instância social,
o mercado. Desta feita, o que seria o reino da liberdade individual torna-se o
império da subordinação dos indivíduos às leis do mercado. (...)
As políticas neoliberais começaram a ser
implementadas, de forma intensa, no final da década de 70 na Inglaterra de
Thatcher e pela reaganomics nos
Estados Unidos. Durante o governo da “dama de ferro”, a economia inglesa passou
por um processo acentuado de liberalização ou, como afirmam os arautos do
neoliberalismo, de adequação à “nova” realidade. Operou-se uma forte contração
monetária, que elevou as taxas de juros. Os impostos sobre grandes fortunas
foram drasticamente reduzidos.
Os fluxos financeiros tiveram seus controles
abolidos. Concebeu-se um amplo processo de privatização, nem sempre
implementado integralmente. As greves foram duramente combatidas pela imposição
de uma legislação antissindical e os gastos sociais foram cortados. Do outro
lado do Atlântico, a reaganomics, ou
economia da oferta, como ficou conhecida, implementou o mesmo tipo de política,
com a singularidade de que se elevou o déficit público em demasia, graças a uma
corrida armamentista ensandecida, A variante americana do neoliberalismo
provocou um enorme déficit no balanço de pagamentos. A única forma que a
economia americana encontrou para financiá-lo foi por meio de uma alta das
taxas de juros, que teve efeitos nada desprezíveis na economia mundial.
Durante a década de 80, o receituário
neoliberal tornou-se hegemônico no mundo globalizado. O resultado desse tipo de
política é cultuado como a melhor prova de sua adequação às “novas” condições.
A taxa de inflação, nos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento
Económico) caiu de 8,8% nos anos 70 para 5,2% nos anos 80. A taxa de lucro das
indústrias da mesma região também melhorou sensivelmente.
Nos anos 70, ela caiu 4,2%, enquanto nos anos
80 ela aumentou em 4,7%. Aparentemente, a política neoliberal produziu
excelentes resultados.
No entanto, a taxa média de desemprego dos
países da OCDE quadruplicou na década de 80. No mesmo período, a tributação dos
salários mais altos caiu em 20% e o crescimento dos valores negociados nas
bolsas equivale a quatro vezes o crescimento dos salários. Em outras palavras,
a política neoliberal produziu um elevado desemprego e uma impressionante
concentração de renda. Como se não bastasse isso, o crescimento econômico no
conjunto dos países capitalistas mais desenvolvidos também foi afetado. Se nos
anos 60, o crescimento anual era de 5,5%, nos anos 70 ele caiu para 3,6% e nos
anos 80 para 2,9%4.
Um balanço das políticas neoliberais
demonstra, portanto, que elas conseguiram reduzir a inflação, mas o custo que
isso proporcionou é sentido até hoje: elevados níveis de desemprego,
concentração da renda e redução das taxas de crescimento. É difícil entender
como as pessoas que acreditam que os benefícios da redução da inflação — queda
de 3,6 pontos percentuais! — superam os custos do desemprego, da concentração
da renda e da redução do crescimento econômico são consideradas ilustres
membros da “inteligência”.
Pode-se argumentar que a comparação entre os
custos da inflação e os do ajustamento faz parte da especulação política. Aliás,
é isso o que se escuta das pessoas que aplicam a política neoliberal,
geralmente envergonhadas de a denominarem dessa forma. Afinal, afirmam eles,
não há nada pior para um trabalhador do que ter seu salário corroído pela
inflação. Apesar de toda formalização e verborragia técnica, o fato é que
quando se tem um emprego, ao menos se tem algum salário para ser corroído pela
inflação.
Sem querer desmerecer a discussão política
que norteia o debate do neoliberalismo, já que, decididamente, não se trata de
uma questão técnica, deve-se desmitificar alguns dos pretensos axiomas do
neoliberalismo. São eles que fornecem essa aparência técnica ao debate.”
1. Friedrich Hayek. O Caminho da Servidão, São Paulo, Ed. Globo, 1977, p. 15.
2. Isso sem falar no fato de que, na
sociedade capitalista, a soberania individual se subordina aos “gostos” e “opiniões”
do capital, que determinam a dinâmica da sociedade. Mas isso já seria uma
crítica proveniente daquela parcela de analistas que não se encontra na “inteligência”
deste país. Deixemo-la então de lado, por enquanto.
3. Hayek, op. cit., p. 116.
4. Esses dados são analisados minuciosamente
por Perry Anderson e, “Balanço do Neoliberalismo”, in Sader & Gentili. Pós-Neoliberalismo — As Políticas Sociais e
o Estado Democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995.
(Marcelo Dias Carcanholo)
“OS MITOS DA “NOVA” REALIDADE
A globalização da economia tem sido
apresentada como um fenômeno totalmente novo. Os mercados não possuem mais
fronteiras. A nova base técnica flexível modificou completamente o processo de
trabalho e produção, existindo até quem chegue a falar em terceira Revolução
Industrial. Entretanto, a novidade é mera aparência. Se a globalização é uma
intensa internacionalização dos capitais e das mercadorias, o que há de novo?
Por acaso, as expansões ultramarinas dos séculos XVI e XVII, que tanto
contribuíram para a acumulação primitiva do capital, já não eram indícios de
que a dinâmica do capitalismo pressupõe sua expansão além das fronteiras
nacionais? Será que o neocolonialismo da virada do século passado que, no
limite, levou a um conflito mundial entre as nações mais ricas também não faz
parte dessa internacionalização do capital? Evidentemente, sim. Se existe algo
novo na expansão dos capitais em termos internacionais, esse algo não passa de
uma forma mais acelerada da expansão do capital, que é uma característica do
capitalismo desde o seu princípio.
É verdade que a base técnica se alterou. Ela
se estrutura agora em uma maior integração e flexibilização do fluxo produtivo,
mas isso não nos permite afirmar que houve uma Terceira Revolução Industrial e,
muito menos, que o processo de produção capitalista tenha se modificado por
completo. No que alguns chamam de Primeira Revolução Industrial, o processo
teria sido revolucionado pela produção de motores a vapor por meio de máquinas.
Já no que chamam de Segunda Revolução Industrial seria representada pela
aplicação do motor elétrico e do motor à explosão. Vale ressaltar que,
independentemente da denominação, uma Revolução Industrial caracteriza-se tanto
pela generalização do processo revolucionário quanto por profundas alterações
das relações sociais. Os efeitos da nova base técnica parecem não estar nem tão
generalizados assim nem ter provocado expressivas modificações sociais. Quanto
à pretensa alteração do processo produtivo e das relações de classe que se
estabelecem a partir dele, convém perguntar: não existem mais capitalistas para
contratar trabalhadores? O operário não trabalha mais em troca de um salário? O
objetivo do capitalista deixou de ser a apropriação de lucros, quando compra
máquinas e matérias-primas e contrata trabalhadores? Os capitalistas deixaram
de concorrer entre si por maiores lucros, por meio da produtividade? Esta
última deixou de ser obtida por uma diminuição relativa do fator subjetivo da
produção? Se a resposta a todas essas perguntas for afirmativa, somos obrigados
a concluir que a sociedade capitalista acabou e que vivemos em uma sociedade “pós-industrial”,
como querem alguns. No entanto, não parece ser este o caso5.
Pode-se concluir, portanto, que: “Ao
contrário do que se divulga, a globalização é um fenômeno antigo na história
econômica”6.
A principal tese do neoliberalismo é a de que
o mercado, via mecanismo de preços, é a forma mais eficiente de alocar os
recursos e, portanto, qualquer intervenção governamental é prejudicial. É a
famosa tese do Estado mínimo, retratada na seguinte afirmação de Hayek: “Foi a
submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma
civilização que, sem isso, não se teria desenvolvido”7.
Em primeiro lugar, o argumento de que o
mercado garante a alocação ótima dos recursos só vale em um mundo de
concorrência perfeita e com livre mobilidade dos fatores8. Que a
economia capitalista não tende a se desenvolver estruturada em concorrência
perfeita, trata-se de um fato do qual a própria teoria econômica convencional
já se convenceu. Esta última já constrói seus modelos mais atuais com a
hipótese de concorrência imperfeita9. Quanto à livre mobilidade dos
fatores, a tese é válida para os capitais que estão cada vez mais
internacionalizados e, portanto, a desregulamentação dos mercados de capitais poderia, em tese, garantir essa livre
movimentação. Entretanto, por mais desregulamentado que seja, o mercado de
trabalho não pode ser globalizado. Quem pensa o contrário vê-se na árdua tarefa
de explicar as restrições americanas à entrada de latinos, especialmente
mexicanos, em seu mercado de trabalho, todos os problemas que os imigrantes
turcos enfrentam para trabalhar na Alemanha, que os africanos enfrentam para
conseguir empregos na Europa em geral e assim por diante.
Em segundo lugar, afirmar que o
desenvolvimento do capitalismo só foi possível mediante a subordinação às leis
do mercado é, no mínimo, desconhecer a história. Não existe nenhum caso, em
toda a história do capitalismo, de uma nação que tenha conseguido
industrializar-se, desenvolver-se, sem a ajuda, e até a iniciativa, do Estado.
Ele foi o responsável pelo desenvolvimento em vários momentos: na acumulação
primitiva do capital, que possibilitou a industrialização dos países da
primeira geração; no desenvolvimento industrial, mediante medidas
protecionistas, das principais potências de hoje (Estados Unidos, Alemanha,
Japão); no desenvolvimento industrial dos países de terceira e quarta gerações
(Brasil, México, Argentina, Tigres Asiáticos) por meio de gastos e
investimentos públicos, aliados a medidas protecionistas; garantia de mercados
no pós-guerra; proteção industrial na concorrência entre nações; produção
industrial nos setores e momentos em que a iniciativa privada não tem condições
de financiar o investimento.
Como resposta a algumas lições de história,
um neoliberal mais honesto poderia afirmar que o Estado teve o seu papel no
desenvolvimento capitalista, mas, nesta nova fase de globalização, deve-se
priorizar a livre iniciativa e os investimentos privados. Daí a importância das
políticas neoliberais. No entanto, não é isso o que ocorre mesmo nos países que
mais advogam a supremacia do neoliberalismo. Considerando apenas barreiras
não-tarifárias, os países desenvolvidos aumentaram a proteção de suas economias
contra o comércio de produtos industrializados de 5%, em 1966, para 51% em
1986. No Japão, cerca de 30% das importações oriundas dos países em
desenvolvimento são atingidas por proteções não-tarifárias. Essas barreiras nos
Estados Unidos, em 1986, chegavam a 79% nos produtos têxteis, 64% nos
equipamentos de transporte, 41% nas matérias-primas agrícolas e 40% nos
alimentos. O subsídio da Comunidade Europeia na área dos cereais era, na mesma
época, de 38%10.
Dessa forma, o livre mercado e a concorrência
perfeita nunca foram os responsáveis pelo desenvolvimento de nenhuma das nações
capitalistas, e as políticas neoliberais, apesar de toda a propaganda, não
parecem ser a estratégia de desenvolvimento das principais potências econômicas,
como demonstram os dados.
O terceiro grande mito do neoliberalismo é
que, dado que o mundo vive em uma “aldeia global”, em que os mercados estão
internacionalizados e o livre mercado é o meio mais eficiente para se alocar os
recursos, a única política eficaz para os países em desenvolvimento, que
garantiria a competitividade, é a neoliberal. Assim sendo, a desregulamentação
dos mercados de trabalho e de capitais, a privatização de empresas estatais
falidas11, a contenção salarial e a elevação das taxas de juros sob
o pretexto de estabilização, a abertura comercial e a drástica redução dos
gastos sociais seriam as únicas medidas capazes de garantir, aos países em
desenvolvimento, a inserção na “nova” realidade da globalização.
Acreditando em todas essas recomendações e
aceitando a imposição feita pelos principais órgãos internacionais, a grande
maioria dos países latino-americanos implementou essas medidas durante a década
de 80. O resultado foi desastroso. Enquanto as economias latino-americanas,
contaminadas pela doença do “estatismo”, cresceram a uma taxa anual de 5,7% na
década de 60, e de 5,6% na década seguinte (com todos os problemas que
caracterizaram o período), essa mesma taxa passou a ser de 1,3% ao ano a partir
do momento em que foram adotadas as políticas neoliberais, na década de 80.
Esses dados parecem não seduzir os
apologistas da nova ordem. Afirmam eles que a privatização é a única forma de
saldar o enorme déficit público originado pela incompetência administrativa do
Estado. Isso possibilitaria a quebra do monopólio estatal e, portanto, uma
maior concorrência, o que levaria a preços mais baixos e maior qualidade dos
produtos ofertados.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que,
no Brasil, a falência de algumas estatais é resultado tanto do controle dos
preços públicos — praticado pelas mesmas pessoas que hoje defendem outros
métodos para reduzir a inflação, quanto do excessivo endividamento externo
dessas mesmas estatais, fruto de exigências anteriores da política econômica nacional.
As empresas públicas estão, portanto, falidas porque subsidiaram empresas
privadas que se utilizaram dos produtos das estatais a preços baixos, e porque
possibilitaram a entrada de capitais privados externos. Em outras palavras, o
problema das estatais deve-se muito mais a uma apropriação privada dos recursos
públicos do que a uma incompetência administrativa inerente ao Estado. Além do
mais, a privatização das estatais não garante a preservação do sistema de livre
concorrência. O caso brasileiro é muito ilustrativo. Depois da privatização das
estatais petroquímicas e siderúrgicas, o grupo Bozzano Simonsen domina o setor
de aços planos, o grupo Gerdau o de não-planos e a Odebrecht possui o controle
do setor petroquímico. Existe alguma diferença relevante entre um monopólio
estatal e oligopólios privados? Existe sim! Toda a apropriação de recursos
gerados por essas atividades agora é privada. E a tão propagandeada
concorrência? Fica no discurso.
Como último recurso para justificar as
privatizações, o neoliberalismo tupiniquim garante que nossa economia possui
uma participação do Estado muito alta por comparação à que existe em outras
nações; o discurso em outros países latino-americanos é muito parecido. Ele
desconhece, ou omite, que grande parte das economias industrializadas mais
importantes do planeta destinou em 1985 mais da metade de seu PIB ao gasto
público e, nem por isso, deixaram de crescer. No final da década de 80, o gasto
público em relação ao PIB era de 52,8% na Argentina, 31,2% no Brasil, 56,4% no
Chile, 31,1% no México e 27% na Venezuela. Além disso, a pressão tributária, em
1989, nos países mais desenvolvidos da América Latina era de 17% do PIB, na
África era de 15,4% do PIB, na Ásia de 14,6% e no conjunto de países
industrializados, assombrosamente, a pressão tributária era de 37,5%!12.
Essa política neoliberal também defende a
abertura comercial como forma de confrontar as empresas nacionais com a
competição internacional, obrigando-as a elevar a produtividade para garantir
certa competitividade. Tudo em nome da concorrência. No entanto, a mesma
política prega a manutenção de altas taxas de juros para reduzir a demanda
interna, controlando importações e inflação, e para atrair os capitais externos
que podem financiar investimentos. Ora, como é possível obrigar as empresas
nacionais a aumentar sua produtividade, o que requer investimentos, com taxas
reais de juros exorbitantes? Promete-se a competitividade, mas impede-se seu
financiamento. Além disso, beira o cinismo defender privatizações para saldar
as dívidas do Estado quando se praticam taxas de juros elevadas, que fazem
acelerar o crescimento dessas dívidas.”
5. Os autores que anunciam a mudança do
processo produtivo, na verdade, não conseguem diferenciar o processo material
de trabalho do processo de produção, que é algo mais complexo. Assim, qualquer
alteração do processo material de trabalho é vista como modificação do processo
produtivo.
6. Essa afirmação não seria levada a sério se
fosse formulada por um crítico. Entretanto, seu autor é um dos homens mais
bem-sucedidos do capitalismo contemporâneo, um dos homens que mais lucrou com a
globalização financeira: George Soros. A frase foi formulada em entrevista
concedida à revista Veja de 01/05/96.
7. Hayek, op. cit., pp. 191-192.
8. Além do mais, esse argumento é construído
pressupondo-se toda uma distribuição da renda e as relações sociais como dadas,
ou seja, o mercado, ao alocar eficientemente os recursos, não atua sobre elas. Muito
pelo contrário, o mercado tende a perpetuar essa distribuição e essas relações.
9. George Soros afirmou, na mesma entrevista,
que “reconhecer a imperfeição dos mercados é o primeiro passo. É equivocada a
noção de que pessoas buscando livremente seus interesses acabam gerando
prosperidade geral”.
10. Para uma análise desses dados, veja-se Stat Studies for the World Economic Outlook,
setembro de 1990; FMI, Relatório da Economia Mundial, 1991, ONU; e Nilson
Araújo de Souza, O Colapso do Neoliberalismo,
Ed. Global, São Paulo, 1995.
11. É, no mínimo, curioso que a defesa da
privatização se alastre para estatais lucrativas e competitivas- No caso do
Brasil, a Petrobrás e a Companhia. Vale do Rio Doce são um bom exemplo disso.
12. Para uma análise minuciosa dos dados da
participação do setor público no PIB em diversos países, cf. CEPAL, Transformación Productiva con Equidad.
Santiago, 1990; CEPAL, Equidad y
Transformación Productiva: un enfoque integrado. Santiago, 1992; e Atílio
Borón, “A Sociedade Civil depois do Dilúvio Neoliberal”. Sader & Gentilli, op. cit.
(Marcelo Dias Carcanholo)
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