quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo (Parte II) – Manoel Luiz Malaguti, Marcelo D. Carcanholo e Reinaldo A. Carcanholo (org.)

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-598-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 266
Sinopse: Ver Parte I

“O desastre do sistema de saúde americano e a atual batalha para reformá-lo contêm valiosas lições para se levar em conta no debate sobre a privatização na saúde. Optar por satisfazer as necessidades de saúde no âmbito privado levou ao estabelecimento de um poderoso complexo médico-industrial que saiu caro e ineficiente para os EUA. Nenhum outro país gasta tanto em saúde — 13% do PIB — com resultados tão ruins na cobertura dos serviços — 15% da população não tem acesso a eles e outros 10% têm uma cobertura incompleta — e com tão baixo impacto sobre os indicadores de saúde — os EUA ocupam o segundo lugar em renda per capita, mas o décimo oitavo em indicadores de saúde. A deficiente cobertura deve-se ao fato de que a forma principal de acesso aos serviços médicos (58% da população) ocorre mediante um seguro coletivo privado concedido como vantagem trabalhista e cujas características dependem da capacidade de negociação em cada caso. Existem seguros públicos paralelos, “Medicare” e “Medicaid”, que dão certa cobertura à outra parte (20%) da população: os velhos e famílias pobres que reúnem certos requisitos.
Os altos custos do sistema e o aumento implacável de preços são explicados essencialmente por dois elementos. Um deles é que o financiamento mediante seguros privados encarece de múltiplas maneiras o sistema (altos custos de administração 35,5% contra 2,3% no seguro público — obtenção de lucro, impossibilidade de controlar os preços e tendência ao crescimento irracional da indústria hospitalar). Foi estimado que a introdução de um seguro nacional público significaria uma economia de 69 bilhões de dólares por ano.
Existe uma vasta literatura sobre a influência determinante do complexo médico-industrial privado na fixação de políticas de saúde nos EUA por meio de um intenso lobby. Seu sucesso em impedir a socialização do setor de saúde explica-se pelo poder econômico de seus integrantes, principalmente das companhias de seguro e das corporações hospitalares. Desse modo, as companhias de seguro concentram ativos que superam os ativos mundiais das cinquenta maiores corporações industriais americanas. As quatro maiores corporações hospitalares, por seu lado, cresceram sem interrupção nos últimos quinze anos e controlam 70% dos hospitais privados. Elas detêm ativos de cerca de 19 bilhões, vendas de 17 bilhões e lucros de 610 milhões de dólares. Seu afã de ampliar os próprios lucros levou-as a afinar os mecanismos para transferir os pacientes de alto custo e de baixo rendimento para os hospitais públicos, provocando assim uma crônica descapitalização destes últimos.
Em suma, a produção e o financiamento dos serviços de saúde é uma das atividades econômicas mais importantes nos EUA e a existência do complexo “médico-industrial” é a causa fundamental da crise de custos e de cobertura, e, ao mesmo tempo, o principal obstáculo para a racionalização do setor. Os enormes custos em saúde precária, as mortes prematuras e vontade de dezenas de milhões de americanos parecem ser pouco importantes diante da defesa inescrupulosa das seguradoras das corporações hospitalares, que estão canalizando milhões de dólares por meio do sistema legal de corrupção, o lobby, impedir a reforma sanitária e para proteger seus lucros.”
(Asa Cristina Laurell)


“Não existe projeto nacional viável em face do neoliberalismo caso não se reformule um projeto alternativo para o espaço público. Pode-se até dizer que não existe utopia social possível dentro dos limites do que conhecemos no mundo moderno se ela for concebida à margem do espaço público. A existência de tal suposição e sua vitalidade, como condição de toda sociedade moderna humanamente civilizada, depende em boa medida de que o espaço público seja altamente valorizado pela comunidade em seu conteúdo ético, político, democrático e funcional, inclusive no campo econômico e, portanto, de que as forças políticas fomentem e façam sua essa valorização até o ponto de incluí-la em seu itinerário programático.”
(Adrián Gurza Lavalle)


“O espaço público é uma dimensão imposta ao Estado pela sociedade sob determinada correlação de forças, por meio da qual esta consegue colocar à margem da lógica do mercado um complexo de tarefas socialmente necessárias à reprodução e ao desenvolvimento da sociedade como um todo”4. Ao considerar como um dever a proteção de certas atividades, funções ou espaços considerados como socialmente valiosos, a comunidade decide financiá-los coletivamente. O considerado valioso, como produto direto de uma ética social sob determinada correlação de forças entre possuidores e despossuídos, implica geralmente a defesa de certos fatores nacionais necessários para um melhor destino comum, ou a universalização de certas possibilidades de progresso que igualam um padrão comum para todos como membros de uma mesma pátria. Claro está que o consenso sobre esses “comuns”, em um primeiro momento, não é senão o produto de um conflito social e das lutas em que este se manifesta; mas, com o passar do tempo, alguns desses consensos impregnam-se de tal maneira no tecido social que terminam por perder seu caráter político, transformando-se em normas culturais de convivência civilizada. (...)
O espaço público como dimensão social torna-se impotente se não conta com uma sólida esfera pública que o acompanhe e torne-o possível. Dependendo das diferenças históricas, cada sociedade que estruturou sua reprodução com a ajuda do espaço público como “princípio civilizado de convivência”7, desenvolveu ao mesmo tempo uma esfera pública que organiza o conjunto das atividades e processos por meio dos quais determina-se o que deve ser considerado como interesse público e a maneira de satisfazê-lo. Por seu lado, a esfera pública é um espaço vazio se não se assegura que a sociedade a inunde, enchendo-a de vida; esse objetivo participativo, que deve ser fomentado na medida em que constitui em si mesmo uma necessidade pública, tem sido chamado de vida pública. O espaço público perde seu conteúdo essencial sem a efetiva existência de uma esfera pública e de uma intensa vida pública; em outras palavras, essa dimensão erigida pela sociedade como autoproteção escapa-lhe das mãos, aliena-se.”
4: Adrián Gurza Lavalle, La Reestrutucturacion de lo Público y el Caso Conasupo. México, Ed. UNAM/ENEP Acatlán, 1994, pp. 62-69.
7: Aguilar Villanueva, op. cit., p. 130.
(Adrián Gurza Lavalle)


“Não é um excesso retórico afirmar que no espaço público, por meio de inúmeras batalhas, sedimentou-se a ética da humanidade em sua larguíssima evolução. País por país, o espaço público recolhe a eticidade ancestral de seus primeiros povos e ao mesmo tempo vai se modificando para incorporar as peculiaridades dos diferentes desenvolvimentos históricos nacionais. A presença do espaço público se faz mais necessária se contemplamos que o mundo moderno privatizou uma parte medular da sociedade, a economia, e ao fazê-lo erradicou seu caráter comunitário e excluiu definitivamente dela o relativo ao bem comum. Como nem tudo de que a sociedade necessitava para reproduzir a si mesma podia ser livremente convertido à economia moderna, o relativo ao interesse geral, que a partir desse momento começaria a opor-se ao interesse privado, seria excluído da privatização mediante sua inscrição no espaço público. Assim, o espaço público, ao contrário do mercado e do capital que se regem pelas leis do lucro, é socialmente sustentado por princípios deontológicos, isto é, do dever-ser: a educação deve ser pública porque as sociedades, ao desejarem que sua descendência tenha uma vida melhor e com maiores oportunidades igualmente distribuídas, elevaram-na à categoria de direito universal (dever ser universal); também a saúde tornou-se direito universal, não só por razões médicas ou técnicas, mas fundamentalmente por razões humanas. Falamos novamente de um dever ser histórico, conquistado e defendido, respeitado e normativo. A ruptura de certos conteúdos desse pacto ético, tal como sucede atualmente no México graças à ofensiva neoliberal, decorre do rompimento do pacto político que os sustentava e de um profundo desgarramento do tecido e da estrutura sociais. (...)
O espaço público tem mais virtudes do que seu conteúdo ético-político e do que sua funcionalidade político-ética; é também um espaço de democracia no amplo sentido da palavra, de democracia social, daquela que o artigo terceiro da Constituição mexicana denomina uma forma de vida e da qual a democracia política é só uma parte. O espaço público, nos mais diversos terrenos, é um espaço de reconhecimento dos direitos à igualdade entre desiguais: no educativo, no cultural, no recreativo, no alimentício, no econômico e, obviamente, no político. Adicionalmente, o espaço público é uma dimensão na qual a pluralidade social é reconhecida e permitida. Em um mundo em que a mercantilização absorve tudo e só se aceitam as diferenças toleradas pelo mercado, não existe lugar para o diferente, para o que pertence a outra natureza, a outro passado. Algumas das grandes modernizações que pretenderam mudar o velho mundo com que se enfrentaram, uma vez triunfantes tiveram de reconhecer a inconveniência ou impossibilidade de aniquilar o derrotado; algo dos restos de sua cultura devia ser respeitado, e para tal efeito, protegido e remetido ao espaço público. Assim o espaço público converteu-se em garantia do direito à sobrevivência do diferente, acolhendo certa pluralidade. Tal é o caso, por exemplo, do índio nas sociedades surgidas sob o estigma da colonização.
Isso não quer dizer que o espaço público seja a panaceia moderna e que elimine a exploração e a dominação; em boa medida, mantém-se graças a elas e aos conflitos que delas surgem. Mas sem o espaço público inexistiria toda a possibilidade de convivência civilizada e a sociedade ficaria submersa em um perpétuo desgarramento em que a violência seria convertida em regra e motor da vida social. Entre a indiferença ou o cinismo e a paciência milenária exigida pelos reinos imaginados, o de Deus, por um lado, e o da abolição da propriedade privada e com ele da luta de classes, o outro, o espaço público é a única utopia ao alcance dos que querem desenvolver com seriedade um projeto alternativo ao neoliberalismo. Não se necessita de uma memória histórica demasiado extensa para recordar nossos próprios desgarramentos, os que deram corpo e sangue à nação mexicana; tampouco faz falta uma agudeza especial para intuir que o desprezo pelo espaço público, ou seu descuido, pode acarretar lamentáveis consequências a longo prazo. Bastaria concluir com uma acertada afirmação de Lezek Kolakowski:
“A musa da história é amável, discreta e douta,
mas vinga-se e cega aquele que a despreza”.”
(Adrián Gurza Lavalle)


“A principal característica do pensamento neoliberal é a ideia da liberdade do indivíduo, a soberania das preferências e gostos de cada pessoa. Como o próprio Hayek afirma:
“...as características essenciais do individualismo... são o respeito pelo homem individual na sua qualidade de homem, isto é, a aceitação dos seus gostos e opiniões como sendo supremos dentro de sua esfera, por mais estreitamente que isso se possa circunscrever, e a convicção de que é desejável o desenvolvimento dos dotes e inclinações individuais por parte de cada um”1.
A questão é que, apesar de o indivíduo possuir gostos e opiniões que são supremos, a sociedade imprime-lhe limites que coíbem suas manifestações. Por mais liberal que a sociedade seja, na melhor das hipóteses para os neoliberais, a soberania de um indivíduo encontraria seu limite justamente na soberania do outro2.
Mas isso não é nenhum problema, já que a concorrência e o mercado resolvem esses conflitos individuais. Aliás, a principal vantagem da concorrência, para Hayek, é que ela dispensa a existência de um “controle social”, fazendo com que os indivíduos possam decidir por si mesmos sobre os benefícios e desvantagens de determinada atividade. A própria noção de escolha individual para Hayek já embute essa solução para os conflitos pessoais. Para ele, em um sistema de escolha individual, as remunerações dos indivíduos não são proporcionais aos seus méritos subjetivos, mas correspondem à utilidade do indivíduo para o resto da sociedade3. É justamente aqui que se encontra a principal falha metodológica da concepção neoliberal. Embora defenda a soberania do indivíduo, os conflitos entre soberanias conflitantes resolvem-se em uma instância social, o mercado. Desta feita, o que seria o reino da liberdade individual torna-se o império da subordinação dos indivíduos às leis do mercado. (...)
As políticas neoliberais começaram a ser implementadas, de forma intensa, no final da década de 70 na Inglaterra de Thatcher e pela reaganomics nos Estados Unidos. Durante o governo da “dama de ferro”, a economia inglesa passou por um processo acentuado de liberalização ou, como afirmam os arautos do neoliberalismo, de adequação à “nova” realidade. Operou-se uma forte contração monetária, que elevou as taxas de juros. Os impostos sobre grandes fortunas foram drasticamente reduzidos.
Os fluxos financeiros tiveram seus controles abolidos. Concebeu-se um amplo processo de privatização, nem sempre implementado integralmente. As greves foram duramente combatidas pela imposição de uma legislação antissindical e os gastos sociais foram cortados. Do outro lado do Atlântico, a reaganomics, ou economia da oferta, como ficou conhecida, implementou o mesmo tipo de política, com a singularidade de que se elevou o déficit público em demasia, graças a uma corrida armamentista ensandecida, A variante americana do neoliberalismo provocou um enorme déficit no balanço de pagamentos. A única forma que a economia americana encontrou para financiá-lo foi por meio de uma alta das taxas de juros, que teve efeitos nada desprezíveis na economia mundial.
Durante a década de 80, o receituário neoliberal tornou-se hegemônico no mundo globalizado. O resultado desse tipo de política é cultuado como a melhor prova de sua adequação às “novas” condições. A taxa de inflação, nos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico) caiu de 8,8% nos anos 70 para 5,2% nos anos 80. A taxa de lucro das indústrias da mesma região também melhorou sensivelmente.
Nos anos 70, ela caiu 4,2%, enquanto nos anos 80 ela aumentou em 4,7%. Aparentemente, a política neoliberal produziu excelentes resultados.
No entanto, a taxa média de desemprego dos países da OCDE quadruplicou na década de 80. No mesmo período, a tributação dos salários mais altos caiu em 20% e o crescimento dos valores negociados nas bolsas equivale a quatro vezes o crescimento dos salários. Em outras palavras, a política neoliberal produziu um elevado desemprego e uma impressionante concentração de renda. Como se não bastasse isso, o crescimento econômico no conjunto dos países capitalistas mais desenvolvidos também foi afetado. Se nos anos 60, o crescimento anual era de 5,5%, nos anos 70 ele caiu para 3,6% e nos anos 80 para 2,9%4.
Um balanço das políticas neoliberais demonstra, portanto, que elas conseguiram reduzir a inflação, mas o custo que isso proporcionou é sentido até hoje: elevados níveis de desemprego, concentração da renda e redução das taxas de crescimento. É difícil entender como as pessoas que acreditam que os benefícios da redução da inflação — queda de 3,6 pontos percentuais! — superam os custos do desemprego, da concentração da renda e da redução do crescimento econômico são consideradas ilustres membros da “inteligência”.
Pode-se argumentar que a comparação entre os custos da inflação e os do ajustamento faz parte da especulação política. Aliás, é isso o que se escuta das pessoas que aplicam a política neoliberal, geralmente envergonhadas de a denominarem dessa forma. Afinal, afirmam eles, não há nada pior para um trabalhador do que ter seu salário corroído pela inflação. Apesar de toda formalização e verborragia técnica, o fato é que quando se tem um emprego, ao menos se tem algum salário para ser corroído pela inflação.
Sem querer desmerecer a discussão política que norteia o debate do neoliberalismo, já que, decididamente, não se trata de uma questão técnica, deve-se desmitificar alguns dos pretensos axiomas do neoliberalismo. São eles que fornecem essa aparência técnica ao debate.”
1. Friedrich Hayek. O Caminho da Servidão, São Paulo, Ed. Globo, 1977, p. 15.
2. Isso sem falar no fato de que, na sociedade capitalista, a soberania individual se subordina aos “gostos” e “opiniões” do capital, que determinam a dinâmica da sociedade. Mas isso já seria uma crítica proveniente daquela parcela de analistas que não se encontra na “inteligência” deste país. Deixemo-la então de lado, por enquanto.
3. Hayek, op. cit., p. 116.
4. Esses dados são analisados minuciosamente por Perry Anderson e, “Balanço do Neoliberalismo”, in Sader & Gentili. Pós-Neoliberalismo — As Políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995.
(Marcelo Dias Carcanholo)


“OS MITOS DA “NOVA” REALIDADE
A globalização da economia tem sido apresentada como um fenômeno totalmente novo. Os mercados não possuem mais fronteiras. A nova base técnica flexível modificou completamente o processo de trabalho e produção, existindo até quem chegue a falar em terceira Revolução Industrial. Entretanto, a novidade é mera aparência. Se a globalização é uma intensa internacionalização dos capitais e das mercadorias, o que há de novo? Por acaso, as expansões ultramarinas dos séculos XVI e XVII, que tanto contribuíram para a acumulação primitiva do capital, já não eram indícios de que a dinâmica do capitalismo pressupõe sua expansão além das fronteiras nacionais? Será que o neocolonialismo da virada do século passado que, no limite, levou a um conflito mundial entre as nações mais ricas também não faz parte dessa internacionalização do capital? Evidentemente, sim. Se existe algo novo na expansão dos capitais em termos internacionais, esse algo não passa de uma forma mais acelerada da expansão do capital, que é uma característica do capitalismo desde o seu princípio.
É verdade que a base técnica se alterou. Ela se estrutura agora em uma maior integração e flexibilização do fluxo produtivo, mas isso não nos permite afirmar que houve uma Terceira Revolução Industrial e, muito menos, que o processo de produção capitalista tenha se modificado por completo. No que alguns chamam de Primeira Revolução Industrial, o processo teria sido revolucionado pela produção de motores a vapor por meio de máquinas. Já no que chamam de Segunda Revolução Industrial seria representada pela aplicação do motor elétrico e do motor à explosão. Vale ressaltar que, independentemente da denominação, uma Revolução Industrial caracteriza-se tanto pela generalização do processo revolucionário quanto por profundas alterações das relações sociais. Os efeitos da nova base técnica parecem não estar nem tão generalizados assim nem ter provocado expressivas modificações sociais. Quanto à pretensa alteração do processo produtivo e das relações de classe que se estabelecem a partir dele, convém perguntar: não existem mais capitalistas para contratar trabalhadores? O operário não trabalha mais em troca de um salário? O objetivo do capitalista deixou de ser a apropriação de lucros, quando compra máquinas e matérias-primas e contrata trabalhadores? Os capitalistas deixaram de concorrer entre si por maiores lucros, por meio da produtividade? Esta última deixou de ser obtida por uma diminuição relativa do fator subjetivo da produção? Se a resposta a todas essas perguntas for afirmativa, somos obrigados a concluir que a sociedade capitalista acabou e que vivemos em uma sociedade “pós-industrial”, como querem alguns. No entanto, não parece ser este o caso5.
Pode-se concluir, portanto, que: “Ao contrário do que se divulga, a globalização é um fenômeno antigo na história econômica”6.
A principal tese do neoliberalismo é a de que o mercado, via mecanismo de preços, é a forma mais eficiente de alocar os recursos e, portanto, qualquer intervenção governamental é prejudicial. É a famosa tese do Estado mínimo, retratada na seguinte afirmação de Hayek: “Foi a submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma civilização que, sem isso, não se teria desenvolvido”7.
Em primeiro lugar, o argumento de que o mercado garante a alocação ótima dos recursos só vale em um mundo de concorrência perfeita e com livre mobilidade dos fatores8. Que a economia capitalista não tende a se desenvolver estruturada em concorrência perfeita, trata-se de um fato do qual a própria teoria econômica convencional já se convenceu. Esta última já constrói seus modelos mais atuais com a hipótese de concorrência imperfeita9. Quanto à livre mobilidade dos fatores, a tese é válida para os capitais que estão cada vez mais internacionalizados e, portanto, a desregulamentação dos mercados de capitais poderia, em tese, garantir essa livre movimentação. Entretanto, por mais desregulamentado que seja, o mercado de trabalho não pode ser globalizado. Quem pensa o contrário vê-se na árdua tarefa de explicar as restrições americanas à entrada de latinos, especialmente mexicanos, em seu mercado de trabalho, todos os problemas que os imigrantes turcos enfrentam para trabalhar na Alemanha, que os africanos enfrentam para conseguir empregos na Europa em geral e assim por diante.
Em segundo lugar, afirmar que o desenvolvimento do capitalismo só foi possível mediante a subordinação às leis do mercado é, no mínimo, desconhecer a história. Não existe nenhum caso, em toda a história do capitalismo, de uma nação que tenha conseguido industrializar-se, desenvolver-se, sem a ajuda, e até a iniciativa, do Estado. Ele foi o responsável pelo desenvolvimento em vários momentos: na acumulação primitiva do capital, que possibilitou a industrialização dos países da primeira geração; no desenvolvimento industrial, mediante medidas protecionistas, das principais potências de hoje (Estados Unidos, Alemanha, Japão); no desenvolvimento industrial dos países de terceira e quarta gerações (Brasil, México, Argentina, Tigres Asiáticos) por meio de gastos e investimentos públicos, aliados a medidas protecionistas; garantia de mercados no pós-guerra; proteção industrial na concorrência entre nações; produção industrial nos setores e momentos em que a iniciativa privada não tem condições de financiar o investimento.
Como resposta a algumas lições de história, um neoliberal mais honesto poderia afirmar que o Estado teve o seu papel no desenvolvimento capitalista, mas, nesta nova fase de globalização, deve-se priorizar a livre iniciativa e os investimentos privados. Daí a importância das políticas neoliberais. No entanto, não é isso o que ocorre mesmo nos países que mais advogam a supremacia do neoliberalismo. Considerando apenas barreiras não-tarifárias, os países desenvolvidos aumentaram a proteção de suas economias contra o comércio de produtos industrializados de 5%, em 1966, para 51% em 1986. No Japão, cerca de 30% das importações oriundas dos países em desenvolvimento são atingidas por proteções não-tarifárias. Essas barreiras nos Estados Unidos, em 1986, chegavam a 79% nos produtos têxteis, 64% nos equipamentos de transporte, 41% nas matérias-primas agrícolas e 40% nos alimentos. O subsídio da Comunidade Europeia na área dos cereais era, na mesma época, de 38%10.
Dessa forma, o livre mercado e a concorrência perfeita nunca foram os responsáveis pelo desenvolvimento de nenhuma das nações capitalistas, e as políticas neoliberais, apesar de toda a propaganda, não parecem ser a estratégia de desenvolvimento das principais potências econômicas, como demonstram os dados.
O terceiro grande mito do neoliberalismo é que, dado que o mundo vive em uma “aldeia global”, em que os mercados estão internacionalizados e o livre mercado é o meio mais eficiente para se alocar os recursos, a única política eficaz para os países em desenvolvimento, que garantiria a competitividade, é a neoliberal. Assim sendo, a desregulamentação dos mercados de trabalho e de capitais, a privatização de empresas estatais falidas11, a contenção salarial e a elevação das taxas de juros sob o pretexto de estabilização, a abertura comercial e a drástica redução dos gastos sociais seriam as únicas medidas capazes de garantir, aos países em desenvolvimento, a inserção na “nova” realidade da globalização.
Acreditando em todas essas recomendações e aceitando a imposição feita pelos principais órgãos internacionais, a grande maioria dos países latino-americanos implementou essas medidas durante a década de 80. O resultado foi desastroso. Enquanto as economias latino-americanas, contaminadas pela doença do “estatismo”, cresceram a uma taxa anual de 5,7% na década de 60, e de 5,6% na década seguinte (com todos os problemas que caracterizaram o período), essa mesma taxa passou a ser de 1,3% ao ano a partir do momento em que foram adotadas as políticas neoliberais, na década de 80.
Esses dados parecem não seduzir os apologistas da nova ordem. Afirmam eles que a privatização é a única forma de saldar o enorme déficit público originado pela incompetência administrativa do Estado. Isso possibilitaria a quebra do monopólio estatal e, portanto, uma maior concorrência, o que levaria a preços mais baixos e maior qualidade dos produtos ofertados.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que, no Brasil, a falência de algumas estatais é resultado tanto do controle dos preços públicos — praticado pelas mesmas pessoas que hoje defendem outros métodos para reduzir a inflação, quanto do excessivo endividamento externo dessas mesmas estatais, fruto de exigências anteriores da política econômica nacional. As empresas públicas estão, portanto, falidas porque subsidiaram empresas privadas que se utilizaram dos produtos das estatais a preços baixos, e porque possibilitaram a entrada de capitais privados externos. Em outras palavras, o problema das estatais deve-se muito mais a uma apropriação privada dos recursos públicos do que a uma incompetência administrativa inerente ao Estado. Além do mais, a privatização das estatais não garante a preservação do sistema de livre concorrência. O caso brasileiro é muito ilustrativo. Depois da privatização das estatais petroquímicas e siderúrgicas, o grupo Bozzano Simonsen domina o setor de aços planos, o grupo Gerdau o de não-planos e a Odebrecht possui o controle do setor petroquímico. Existe alguma diferença relevante entre um monopólio estatal e oligopólios privados? Existe sim! Toda a apropriação de recursos gerados por essas atividades agora é privada. E a tão propagandeada concorrência? Fica no discurso.
Como último recurso para justificar as privatizações, o neoliberalismo tupiniquim garante que nossa economia possui uma participação do Estado muito alta por comparação à que existe em outras nações; o discurso em outros países latino-americanos é muito parecido. Ele desconhece, ou omite, que grande parte das economias industrializadas mais importantes do planeta destinou em 1985 mais da metade de seu PIB ao gasto público e, nem por isso, deixaram de crescer. No final da década de 80, o gasto público em relação ao PIB era de 52,8% na Argentina, 31,2% no Brasil, 56,4% no Chile, 31,1% no México e 27% na Venezuela. Além disso, a pressão tributária, em 1989, nos países mais desenvolvidos da América Latina era de 17% do PIB, na África era de 15,4% do PIB, na Ásia de 14,6% e no conjunto de países industrializados, assombrosamente, a pressão tributária era de 37,5%!12.
Essa política neoliberal também defende a abertura comercial como forma de confrontar as empresas nacionais com a competição internacional, obrigando-as a elevar a produtividade para garantir certa competitividade. Tudo em nome da concorrência. No entanto, a mesma política prega a manutenção de altas taxas de juros para reduzir a demanda interna, controlando importações e inflação, e para atrair os capitais externos que podem financiar investimentos. Ora, como é possível obrigar as empresas nacionais a aumentar sua produtividade, o que requer investimentos, com taxas reais de juros exorbitantes? Promete-se a competitividade, mas impede-se seu financiamento. Além disso, beira o cinismo defender privatizações para saldar as dívidas do Estado quando se praticam taxas de juros elevadas, que fazem acelerar o crescimento dessas dívidas.”
5. Os autores que anunciam a mudança do processo produtivo, na verdade, não conseguem diferenciar o processo material de trabalho do processo de produção, que é algo mais complexo. Assim, qualquer alteração do processo material de trabalho é vista como modificação do processo produtivo.
6. Essa afirmação não seria levada a sério se fosse formulada por um crítico. Entretanto, seu autor é um dos homens mais bem-sucedidos do capitalismo contemporâneo, um dos homens que mais lucrou com a globalização financeira: George Soros. A frase foi formulada em entrevista concedida à revista Veja de 01/05/96.
7. Hayek, op. cit., pp. 191-192.
8. Além do mais, esse argumento é construído pressupondo-se toda uma distribuição da renda e as relações sociais como dadas, ou seja, o mercado, ao alocar eficientemente os recursos, não atua sobre elas. Muito pelo contrário, o mercado tende a perpetuar essa distribuição e essas relações.
9. George Soros afirmou, na mesma entrevista, que “reconhecer a imperfeição dos mercados é o primeiro passo. É equivocada a noção de que pessoas buscando livremente seus interesses acabam gerando prosperidade geral”.
10. Para uma análise desses dados, veja-se Stat Studies for the World Economic Outlook, setembro de 1990; FMI, Relatório da Economia Mundial, 1991, ONU; e Nilson Araújo de Souza, O Colapso do Neoliberalismo, Ed. Global, São Paulo, 1995.
11. É, no mínimo, curioso que a defesa da privatização se alastre para estatais lucrativas e competitivas- No caso do Brasil, a Petrobrás e a Companhia. Vale do Rio Doce são um bom exemplo disso.
12. Para uma análise minuciosa dos dados da participação do setor público no PIB em diversos países, cf. CEPAL, Transformación Productiva con Equidad. Santiago, 1990; CEPAL, Equidad y Transformación Productiva: un enfoque integrado. Santiago, 1992; e Atílio Borón, “A Sociedade Civil depois do Dilúvio Neoliberal”. Sader & Gentilli, op. cit.
(Marcelo Dias Carcanholo)

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