Editora: Ideias & Letras
ISBN: 978-85-9823-975-5
Tradução: Giovanni Semeraro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
Sinopse: Nesta
obra, o filósofo italiano Domenico Losurdo, por meio de uma investigação
histórica e filosófica inédita e corajosa, traz à tona as contradições e os
territórios de sombra negligenciados pelos estudos sobre o liberalismo
convencionalmente divulgados e ensinados. O resultado é surpreendente e
polêmico. O pensamento liberal em sua abstrata pureza é confrontado com as
concretizações que marcam as relações políticas e sociais das sociedades e dos
movimentos liberais, mostrando suas contradições.
“O que é o
liberalismo?
Um conjunto de
perguntas constrangedoras
As respostas usuais à pergunta que nos
colocamos não deixam dúvidas: o liberalismo é a tradição de pensamento que
situa no centro de suas preocupações a liberdade do indivíduo, desconsiderada
ou pisoteada pelas filosofias organicistas de diferente orientação. Sendo
assim, como situar John C. Calhoun? Este eminente estadista, vice-presidente
dos Estados Unidos, na metade do século XIX, entoa um hino apaixonado à
liberdade do indivíduo e, inspirando-se também em Locke, o defende
energicamente contra qualquer imposição e contra toda a indevida interferência
do poder do Estado. Mas, isso não é tudo. Juntamente com os “governos
absolutos” e a “concentração do poder”, ele não cansa de criticar e condenar o
fanatismo1 e o espírito de “cruzada”2, aos quais
contrapõe o “compromisso” como princípio inspirador dos autênticos “governos
constitucionais”3. Com igual eloquência, Calhoun defende o direito
das minorias: não se trata apenas de garantir pelo sufrágio a alternância ao governo
de diversos partidos: um poder excessivamente amplo é sempre inaceitável, mesmo
limitado no tempo e amenizado pela promessa ou pela perspectiva da periódica
inversão das funções na relação entre governantes e governados4. Não
há dúvida, teríamos aqui todas as características do pensamento liberal mais
maduro e sedutor; no entanto, por outro lado, desdenhando os meios-termos e a
timidez ou o temor dos que se limitavam a aceitá-la como um “mal” necessário,
Calhoun proclama que a escravidão, ao contrário, é um “bem positivo” ao qual a
civilização nunca pode renunciar. Certamente, ele denuncia repetidamente a
intolerância e o espírito de cruzada, não para colocar em discussão a
subjugação dos negros ou a caça impiedosa aos escravos fugitivos, mas sempre e somente
para estigmatizar os abolicionistas, estes “cegos fanáticos”5, que
consideram ser “sua mais sagrada obrigação lançar mão de todos os recursos para
destruir” a escravidão, uma forma de propriedade legítima e garantida pela
Constituição6. Observe-se que das minorias defendidas com tanto
vigor e tanta sabedoria jurídica não fazem parte os negros. Ao contrário, neste
caso, a tolerância e o espírito de compromisso parecem se reverter: se o
fanatismo conseguir realmente levar adiante o ensandecido projeto de abolição
da escravidão, haveria “a extirpação de uma ou outra raça”7. E,
considerando as concretas relações de força existentes nos Estados Unidos, não
seria difícil imaginar qual das duas iria sucumbir: portanto, os negros
poderiam sobreviver só continuando na condição de escravos. (...)
Estamos diante de um dilema. Se à pergunta
aqui formulada (Calhoun é ou não é liberal?) respondemos afirmativamente, não
podemos mais sustentar a tradicional (e edificante) configuração do liberalismo
como pensamento e vontade da liberdade. Se, ao contrário, respondemos
negativamente, esbarramos diante de uma nova dificuldade e de uma nova
pergunta, não menos problemática que a primeira: por que deveríamos continuar a
atribuir a dignidade de pai do liberalismo a John Locke? Sim, Calhoun fala da
escravidão dos negros como de um “bem positivo”, mas embora utilize uma
linguagem tão altissonante, também o filósofo inglês, ao qual o autor
estadunidense remete explicitamente, considera óbvia e natural a escravidão nas
colônias e contribui pessoalmente para a formalização jurídica desse instituto
na Carolina. Participa na redação da norma constitucional pela qual “todo homem
livre da Carolina deve ter absoluto poder e autoridade sobre os seus escravos
negros seja qual for sua opinião e religião”15. Locke é “o último
grande filósofo que procura justificar a escravidão absoluta e perpétua”16.
O que não lhe impede de atacar com palavras de fogo a “escravidão” política que
a monarquia absoluta queria impor (Dois
tratados sobre governo, de agora em diante TT, I, 1); de maneira análoga em
Calhoun a teorização da escravidão negra como “bem positivo” anda de mãos dadas
com o alerta contra uma concentração dos poderes que corre o risco de
transformar “os governados” em “escravos dos governantes”17. Afinal,
o estadista americano é proprietário de escravos, mas também o filósofo inglês
tem sólidos investimentos no tráfico dos negros18. (...)
Vimos Mill tomar posição a favor da União e
condenar os “autodenominados” liberais que gritam escandalizados diante da
firmeza com que ela conduzia a guerra contra o Sul e controlava aqueles que, no
próprio Norte, se inclinavam a aceitar a secessão escravista. Mas, veremos que,
com o olhar voltado para as colônias, o liberal inglês justifica o “despotismo”
do Ocidente sobre as “raças” ainda em “menoridade”, obrigadas a observar uma
“obediência absoluta”, de modo que possam ser postas no caminho do progresso. É
uma formulação que não iria desagradar Calhoun, que também legitima e celebra a
escravidão quando ele também se refere ao atraso e à menoridade da população de
origem africana: só na América, e graças aos cuidados paternais dos patrões
brancos, a “raça negra” consegue avançar e passar da anterior “condição ínfima,
degradada e selvagem” para a nova “condição relativamente civilizada”32.
Para Mill, “qualquer meio” é licito para quem assume a tarefa de educar as
“tribos selvagens”; a “escravidão” às vezes é uma passagem obrigatória para
conduzi-las ao trabalho e torná-las úteis à civilização e ao progresso (infra, cap. VII, § 3). Mas esta é também
a opinião de Calhoun, para o qual a escravidão é um meio inevitável para chegar
a civilizar os negros. Claro, diferentemente da eterna escravidão à qual,
conforme o teórico e político estadunidense, devem ser submetidos os negros, a
ditadura pedagógica de que fala Mill está destinada a se dissolver em um
futuro, embora remoto e problemático; o outro lado da medalha é que a esta
condição de falta de liberdade está explicitamente subjugado não apenas um
grupo étnico particular (o pequeno pedaço de África situado no coração dos
Estados Unidos), mas também o conjunto dos povos progressivamente tomados pela
expansão colonial e obrigados a sofrer o “despotismo” político e formas de
trabalho servil ou semiservil. Exigir a “obediência absoluta”, por um período
de tempo indeterminado, de grande parte da humanidade é compatível com a
profissão de fé liberal ou é sinônimo de “autodenominado” liberalismo?”
1. Calhoun, 1992, p. 529. / 2. Calhoun, 1992, p. 528-31, 469. / 3.
Calhoun, 1992, p. 30-31. / 4. Calhoun, 1992, p. 30-33. / 5. Calhoun, 1992, p.
474. / 6. Calhoun, 1992, p. 582. / 7. Calhoun, 1992, p. 529, 473. / 15. Locke,
1993c, p. 196 (art. CX). / 16. Davis, 1975, p. 45. / 17. Calhoun, 1992, p. 374.
/ 18. Cranston, 1959, p. 114-15; Thomas, 1977, p.199, 201. / 32. Calhoun, 1992,
p. 473.
“Para os colonos rebeldes o governo de
Londres, que impõe soberanamente a taxação a cidadãos ou súditos que inclusive
não estão representados na Câmara dos Comuns, comporta-se como um patrão em
relação aos escravos. Mas — objetam os outros — se for mesmo necessário falar
de escravidão, por que não começar a colocar em discussão aquela que se manifesta
de forma brutal e evidente exatamente onde com maior grandiloquência se aclama
a liberdade? Já em 1764, Franklin, na época em Londres para defender a causa
dos colonos, deve enfrentar os comentários sarcásticos dos seus interlocutores:
“Vós americanos fazeis um grande alarido frente à menor violação
imaginária das vossas liberdades consideradas tais; contudo, neste mundo não há
um povo tão tirânico, tão inimigo da liberdade como é o vosso quando isto lhe
convém”42.
Os pretensos campeões da liberdade retratam
como sendo sinônimo de despotismo e de escravidão uma imposição fiscal
promulgada sem o seu explícito consenso, mas não têm escrúpulo para exercer o
poder mais absoluto e mais arbitrário em detrimento dos seus escravos. É um
paradoxo: “Como se explica que os gritos mais elevados de dor pela liberdade se
elevam dos caçadores de negros?" — pergunta-se Samuel Johnson. De forma
análoga, no outro lado do Atlântico ironizam os que procuram contrastar a
secessão. Thomas Hutchinson, governador régio do Massachusetts, acusa os
rebeldes de incoerência ou hipocrisia: negam radicalmente aos africanos aqueles
direitos que proclamam como sendo “absolutamente inalienáveis”43. Em
sintonia com este, um legalista americano (Jonathan Boucher) refugiado na
Inglaterra, rememorando os acontecimentos que o haviam levado ao exílio,
observa: “Os mais barulhentos advogados da liberdade eram os mais duros e mais
selvagens patrões de escravos”44.
Com tanta dureza não falam apenas as
personalidades mais diretamente envolvidas na polêmica e na luta política. É,
particularmente, mordaz a intervenção de John Millar, expoente de primeira
linha do iluminismo escocês:
“É singular que os mesmos indivíduos que falam com estilo refinado de
liberdade política e que consideram como um dos direitos inalienáveis da
humanidade o direito de impor as taxas não tenham escrúpulo em reduzir uma
grande quantidade dos seus semelhantes a condições de serem privados não apenas
da propriedade, mas também de quase todos os direitos. Provavelmente, a sorte
nunca produziu uma situação maior do que esta para ridicularizar uma hipótese
liberal ou mostrar quanto a conduta dos homens, no fundo, seja pouco dirigida
por algum princípio filosófico”45.
Millar é um discípulo de Adam Smith. O
mestre, também, parece pensar da mesma forma. Quando declara que ao “governo
livre”, controlado pelos proprietários de escravos, prefere o “governo
despótico” capaz de cancelar a infâmia da escravidão, faz explícita referência
à América. Posto em termos imediatamente políticos, o discurso do grande
economista significa: o despotismo acusado na Coroa é preferível à liberdade
reivindicada pelos proprietários de escravos e que beneficia apenas uma restrita
classe de fazendeiros e patrões absolutos.”
42 Franklin, 1987, p. 646-47. / 43 Foner, 2000, p. 54. / 44 Boucher,
cit. in Zimmer, 1978, p. 297. / 45 Miller, 1986, p. 294 (= Millar, 1989, p.
239).
“A troca de acusações entre colonos rebeldes
e ex-pátria-mãe, ou seja, entre os dois troncos do partido que até então havia
se vangloriado de ser o partido da liberdade, é uma recíproca, impiedosa
desmistificação. A Inglaterra que desponta da Revolução Gloriosa não se limita
a evitar a discussão sobre o comércio dos negros; não, esta conhece agora um
poderoso desenvolvimento59 e, por outro lado, um dos primeiros atos
de política internacional da nova monarquia liberal consiste em arrancar da
Espanha o monopólio do comércio dos escravos. No lado oposto, a revolução que
eclode na outra margem do Atlântico em nome da liberdade comporta a consagração
oficial do instituto da escravidão e a conquista e o exercício por longo tempo
da hegemonia política por parte dos proprietários de escravos.
Talvez, a intervenção mais articulada e mais
sofrida no âmbito dessa polêmica veio de Josiah Tucker, “padre e tory, mas de resto uma boa pessoa e um
valioso economista”60. Ele denuncia o papel proeminente da Inglaterra
no comércio dos negros: “Nós, os orgulhosos Campeões da Liberdade e os
declarados Advogados dos Direitos naturais da Humanidade, nos dedicamos a esse
comércio desumano e criminoso mais profundamente do que alguma outra nação”.
Mas, ainda mais hipócrita é o comportamento dos colonos rebeldes: “Os advogados
do republicanismo e da suposta igualdade da humanidade deveriam ser os
primeiros a sugerir algum humano sistema de abolição da pior de todas as
escravidões”61. E, no entanto...”
59 Dunn, 1998, p. 463-65. / 60 É a definição
de Marx (Marx, Engels, 1955-89, vol. XXII, p. 788). / 61 Tucker, 1993-96, vol.
V, p. 21-22.
“O primeiro país a entrar no caminho do
liberalismo é o País que revela um apego particularmente ferrenho ao instituto
da escravidão. Pelo que se sabe, são os colonos de origem holandesa os que
opõem a mais dura resistência às primeiras medidas abolicionistas, aquelas
introduzidas no Norte dos Estados Unidos no decorrer e na esteira da revolução72.
No tocante à Holanda propriamente dita, em 1791, os Estados gerais declaram
formalmente que o comércio dos negros é essencial para o desenvolvimento da
prosperidade e do comércio nas colônias. Sempre nesse mesmo período,
diferenciando-se nitidamente da Inglaterra, a Holanda reconhece aos
proprietários de escravos o direito de transportar e de depositar a sua
mercadoria humana na pátria-mãe antes de voltar às colônias. Enfim, deve-se
lembrar que a Holanda abole a escravidão nas suas colônias apenas em 1863,
quando já a Confederação secessionista e escravista do Sul dos Estados Unidos
caminha para a derrota73.”
72 Zilversmit, 1969, p. 165, 182. / 73
Drescher, 1999, p. 211, 218, 196.
“Mas para poder ser explicado, antes de mais
nada, esse paradoxo deve ser exposto em toda a sua radicalização. A escravidão
não é algo que permaneça não obstante o sucesso das três revoluções liberais;
ao contrário, ela conhece o seu máximo desenvolvimento em virtude desse
sucesso: “O total da população escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000
no ano de 1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o pico
de mais de 6 milhões nos anos 50 do séc. XIX”1. O que contribui de
forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo de poder absoluto do
homem sobre o homem é o mundo liberal. Na metade do séc. XVIII a Grã-Bretanha é
a que possui o maior número de escravos (878.000). Não há nada de óbvio nesse
dado. Embora o seu império seja de longe o mais extenso, a Espanha segue a
muita distância. Quem ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000
escravos e que na verdade é uma espécie de semicolônia da Grã-Bretanha: boa
parte do ouro extraído pelos escravos brasileiros acaba em Londres2.
Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo pela sua posição absolutamente
eminente é o país que está ao mesmo tempo na frente do movimento liberal e que
conquistou o seu primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente
a partir da Revolução Gloriosa. Por outro lado, é o próprio Pitt, o jovem, quem
em sua intervenção em abril de 1792 na Câmara dos Comuns sobre o tema da
escravidão e do tráfico dos negros, reconhece que “nenhuma nação na Europa
[...] está tão profundamente mergulhada nessa culpa como a Grã Bretanha”3.”
1 Blackburn, 1997, p. 3. / 2 Blackburn, 1990, p. 5. / 3 Pitt, cit. in
Thomas, 1997, p. 237.
“Durante a sua permanência em Londres, posto
em dificuldade pelos seus interlocutores ingleses, que zombam da bandeira da
liberdade agitada pelos colonos muitas vezes proprietários de escravos,
Franklin reage evidenciando a persistência na Inglaterra de relações
escravistas até no âmbito das forças armadas35. Refere-se
particularmente à marinha. Vamos dar a palavra aos historiadores dos nossos
dias: “Os marinheiros eram tão mal pagos, mal alimentados e maltratados, que
era impossível recrutar tripulações com alistamento voluntário”. Muitos
procuravam escapar desta espécie de sequestro de pessoa, mas a Grã-Bretanha os
perseguia, sem hesitar em bloquear os navios americanos e capturar com a força
das armas os desertores, inclusive os que haviam se tornado cidadãos
estadunidenses. Era necessário recorrer a estes métodos drásticos para garantir
o funcionamento de “mais de 700 navios de guerra com cerca de 150.000 homens”36.
Eis então que também Calhoun denuncia, assim como Franklin, a “escravidão dos
nossos marinheiros recrutados à força”37.
Tratava-se de um motivo bastante divulgado na
imprensa da época: na própria Inglaterra, os defensores da escravidão
evidenciavam a analogia entre esse instituto e o recrutamento forçado da
marinha: as duas práticas eram justificadas pelas circunstâncias excepcionais,
ou pela necessidade de manter respectivamente as colônias e a marinha militar;
por outro lado, o abolicionista Sharp condenava ambas as práticas38.
Ao contrário, quem fazia distinções era William Wilberforce, acusado de hipocrisia
pelos seus adversários39: o piedoso pastor comovia-se pelos escravos
negros, mas era insensível aos sofrimentos não menos graves padecidos por
aquela espécie de escravos brancos sobre os quais se fundavam a potência
militar e a glória do Império britânico. O argumento não podia ser desprezado:
os marinheiros eram “recrutados com a força pelas ruas de Londres e Liverpool”40,
e na população não havia instituição mais odiada do que a press-gang, o recrutamento forçado41. A que tipo de
condições eram depois submetidos pode ser facilmente deduzido pela comparação
indireta que Locke traça entre o poder do “capitão de uma galé” e aquele do “senhor
dos escravos” (TT, II, 2). A captura dos marinheiros nos bairros populares
tinha pontos em comum com a captura dos negros na África.
Por outro lado, não se tratava apenas da
marinha. Uma estudiosa contemporânea sintetiza assim a condição desses “detentos
em uniforme” (militar) que eram na realidade os soldados, chamados a defender
em todos os cantos do mundo um Império em rápida expansão:
“Eram embarcados e levados para terras longínquas muitas vezes em
condições repugnantes e até contra a própria vontade. Podiam ser separados por
décadas e às vezes para sempre das suas famílias, das suas mulheres e da sua
cultura de origem. Se julgados desobedientes ou rebeldes, eram facilmente
chicoteados. Se condenados por tentar a fuga podiam sofrer a pena capital; mas
permanecendo no lugar e obedecendo às ordens era de qualquer modo provável que
morressem de morte prematura”42.
Por outro lado, é significativa a maneira
pela qual Locke descreve a “prática corrente na disciplina militar”:
“A preservação do exército e, com ele, do Estado no seu conjunto exige
obediência absoluta das ordens de qualquer oficial superior, e desobedecer ou
discutir mesmo as mais irracionais significa exatamente a morte. Contudo,
observa-se que nem o sargento, que pode dar ordens a um soldado de marchar em direção
à boca de um canhão ou de ficar em lugares onde a morte é quase certa, pode dar
ordens para que aquele soldado venha a lhe dar algum dinheiro; nem o general,
que pode condená-lo por deserção ou por não ter executado as ordens mais
impossíveis, pode, com todo o seu absoluto poder de vida e de morte, dispor de
um centavo de propriedade daquele soldado ou apropriar-se de uma migalha dos
seus bens; isto, mesmo podendo exigir qualquer coisa e podendo enforcá-lo pela
menor desobediência” (TT, II, 139).
Dá particularmente o que pensar o “absoluto
poder de vida e de morte” que o oficial exerce sobre os seus subordinados. É a
expressão que Locke normalmente usa para definir a essência da escravidão.
Trata-se de uma amplificação retórica? Já em Grotius encontramos a observação
pela qual a condição do escravo não é muito diferente da condição do soldado (JBP,
II, V, § 28). Mas, vamos nos concentrar sobre a Inglaterra liberal. A taxa de
mortalidade dos soldados na viagem para a Índia é comparável à que atingia os
escravos negros ao longo da sua deportação de um lado para o outro do
Atlântico. Por outro lado, os soldados ingleses eram submetidos à punição
tradicionalmente reservada aos escravos, isto é, ao chicote, e de maneira paradoxal
continuaram a ser submetidos a isso mesmo quando essa disciplina havia sido
abolida pelas tropas indianas43.
No exército as relações de poder reproduzem
as existentes na sociedade. A figura do soldado tende a coincidir com a do
servo. No início do séc. XVIII Defoe observa: “Qualquer homem deveria desejar
carregar o mosquete antes que morrer de fome. [...] É a pobreza que torna os
homens soldados, que leva as multidões nos exércitos”44. No final do
século Townsend reafirma que “a indigência e a pobreza” podem empurrar “as
classes inferiores do povo a enfrentar todos os horrores que os esperam no
oceano tempestuoso ou sobre o campo de batalha”45. Quer dizer, nas
palavras de Mandeville, “as durezas e o peso da guerra, tudo o que suporta
pessoalmente, recaem sobre os que sustentam qualquer coisa”, isto é, sobre os
servos habituados a trabalhar e a sofrer “de maneira semelhante aos escravos”46.
Neste sentido, a figura do oficial tende a coincidir com a do senhor, e
declarado e até ostentado é o desprezo que os oficiais-senhores têm em relação
à tropa: nas palavras de um soldado simples, esta era “como a classe mais
ínfima de animais, digna só de ser governada com o gato de sete rabos”47,
ou seja, com o chicote capaz de infligir as punições mais sádicas, as que
normalmente são reservadas aos escravos desobedientes.
Podemos entender então as dificuldades do
recrutamento militar: “as prisões são rastreadas para extrair delas malfeitores
a serem recrutados”; o oficio do soldado — observa Defoe — é repassado
particularmente a “homens provenientes da forca”48. E esses eram em
grande número na época. De 1688 a 1820 os crimes que comportavam a pena de
morte passam de 50 a 200-250, e trata-se quase sempre de crimes contra a
propriedade: enquanto até 1803 a tentativa de homicídio é considerada crime
leve, o furto de um shilling (quer dizer de um lenço) ou o corte abusivo de uma
cerca ornamental podem levar à forca; e é possível ser entregue ao carrasco
também com a idade de onze anos49. Em alguns casos, quem corre esse
risco são crianças de idade inferior: em 1833 a pena capital é aplicada a um
pequeno ladrão de nove anos, embora a sentença não tenha sido executada.”
35 Franklin, 1987, p. 652. / 36 Nevins, Commager, 1960, p. 170. / 37
Calhoun, 1992, p. 291. / 38 Davis, 1975, p. 376, 394. / 39 Rice, 1982, p. 151.
/ 40 Foner, 2000, p. 19. / 41 Thompson, 1988, p. 88. / 42 Colley, 2002, p. 314.
/ 43 Colley, 2002, p. 314-16. / 44 Defoe, 1982, p. 84-85. / 45 Townsend, 1971,
p. 35. / 46 Mandeville, 1988, vol. 1, p. 119. / 47 Colley, 2002, p. 314. / 48
Defoe, 1982, p. 84. / 49 Thompson, 1989, p. 28-29; Arblaster, p. 172; Hughes,
1990, p. 58.
“O “grande
rapto herodiano das crianças” pobres
Entre a força de trabalho imposta chamada a
assegurar o desenvolvimento das colônias havia também crianças de condição
pobre, atraídas enganosamente com doces, raptadas e deportadas para o outro
lado do Atlântico63. Diversamente, chegam à América juntamente com
os seus pais, que muitas vezes são obrigados a vendê-los para nunca mais
vê-los. Na Inglaterra, por outro lado, a situação das crianças de origem
popular não era muito melhor. Marx denuncia “o grande rapto herodiano das
crianças realizado pelo capital no início do sistema de fábrica nas casas dos
pobres e dos orfanatos, por meio do qual chegou a incorporar um material humano
totalmente desprovido de vontade”64. Indo além da utilização dos
orfanatos como fonte de força de trabalho a baixo custo e mais ou menos
coercitiva, é possível fazer aqui uma consideração de caráter mais geral. Se na
teoria e na prática protoliberal do tempo o trabalhador assalariado é, como veremos
daqui a pouco, o instrumentum vocale
de que fala Burke ou a “máquina bípede” nas palavras de Sieyès, os seus filhos
são em última análise res nullius,
destinados à primeira ocasião a serem utilizados exatamente na sua qualidade de
instrumentos e máquinas de trabalho. Locke declara explicitamente que as crianças
pobres, a serem encaminhadas ao trabalho desde os três anos de vida, devem ser “retiradas
das mãos dos pais”65. Embora distante mais de um século não é
diferente a atitude de Bentham. Este convida a se inspirar nos “exemplos de
fábricas (manufactures) onde crianças
até os quatro anos de idade ganham alguma coisa, e onde crianças com algum ano
a mais ganham do que viver e bem”66. É licito e benéfico “tomar as
crianças das mãos dos pais o mais possível e até totalmente”. Não se deve
hesitar:
“Vocês podem jogá-las em uma casa de inspeção e depois fazer o que bem
tenderem. Poderiam permitir, sem remorso, aos pais de dar uma espreitada por trás da cortina no lugar do mestre [...].
Poderiam manter separados por dezessete ou dezoito anos os vossos jovens alunos
homens e mulheres”67.
A sociedade pode dispor completamente dos
filhos dos pobres. Somos levados a pensar na sorte reservada aos escravos no
outro lado do Atlântico. Para pôr fim à sua presença no solo americano — sugere
Jefferson — se poderia adquirir a baixo preço e até obter grátis os negros
recém-nascidos, entregá-los “à tutela do Estado”, submetê-los ao trabalho o
mais cedo possível e assim recuperar em grande parte as despesas necessárias
para a “deportação” a Santo Domingo, a ser colocada em ato no momento oportuno.
Certamente, “a separação das crianças das suas mães pode gerar escrúpulos
humanitários”, mas não é necessário ser tão sensíveis68. Embora ele
seja motivado pelo cálculo econômico mais do que pela preocupação da pureza
racial, resta o fato de que, com os filhos dos pobres na Inglaterra, Bentham
gostaria de agir de modo ainda mais ousado:
“Uma casa de inspeção, à qual fosse entregue um grupo de crianças desde
o nascimento, permitiria um bom número de experimentações [...] O que vocês
acham de um internato fundado sobre esse princípio?”69
Veremos que Bentham pensa também em
experimentações de caráter eugenético. Mas, por enquanto, se pode chegar a uma
conclusão, dando a palavra a um economista inglês (Edward G. Wakefield), que em
1834 publica um livro de sucesso dedicado à comparação entre América e
Inglaterra: “Não sou eu, é toda a imprensa inglesa que chama de escravos
brancos as crianças inglesas” de derivação popular. A maioria é obrigada a
trabalhar por um tempo tão longo que chega a cair no sono sem perceber, para
ser depois acordada e obrigada novamente ao trabalho mediante pancadas e
tormentos de toda espécie. Quanto aos órfãos, é possível se livrar deles de
modo muito simples: nas portas das casas de trabalho há anúncios que promovem a
sua venda. Em Londres, o preço de meninos e meninas colocados assim no mercado
é sensivelmente inferior ao dos escravos negros na América; nas regiões rurais a
mercadoria em questão é ainda mais barata70.”
62 Sieyès, 1985, p. 76. / 63 Williams, 1990, p. 11. / 64 Marx, Engels,
1955-89, vol. XXIII, p. 425, nota 144. / 65 Locke, 1993 a,
p. 454. / 66 Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 56 (= Bentham, 1983, p. 76). / 67
Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64-65 (= Bentham, 1983, p. 98). / 68 Jefferson,
1984, p. 1450 e 1485-87 (carta a A. Gallatin, 26 de dezembro de 1820, e a J.
Sparks, 4 de fevereiro de 1824). / 69 Bentham, 1838-43, vol. IV, p. 64 (=
Bentham, 1983, p. 98). / 70 Wakefield, 1967, p. 52-55.
“Centenas
ou milhares de miseráveis “quotidianamente enforcados por alguma inépcia”
Sobre essa massa de miseráveis pesa uma
legislação que certamente não é caracterizada por garantias. Havia mandatos em
branco, que permitiam à polícia prender ou revistar uma pessoa a seu
bel-prazer. Eliminado da quarta emenda da Constituição americana, este “intolerável
instrumento de opressão”, para retomar a definição do liberal francês Laboulaye71
em 1866, continua a subsistir por muito tempo na Inglaterra. O próprio Smith,
não conseguindo justificá-lo, procura minimizá-lo. Admira-se pelo fato de que a
“gente comum”, no lugar de defender a livre circulação e o comércio da força de
trabalho, manifesta toda a sua indignação “contra os mandatos gerais de prisão
(general warrants), prática sem
dúvida abusiva, mas que não parece capaz de determinar uma opressão geral”72.
A própria pena de morte é infligida não só
com grande facilidade, mas também com algumas arbitrariedades. Com a publicação
em 1723 do Black Act — os Blacks provavelmente eram ladrões de
cervos — em alguns casos não há necessidade de recorrer a um processo formal
para cominar a pena capital, pois esta entrega ao carrasco também os que
ajudaram de qualquer maneira o ladrão a escapar da justiça73.
Sem perturbar-se, Mandeville reconhece que é
cancelada a “vida de centenas, de milhares até, de miseráveis delinquentes,
quotidianamente enforcados por alguma inépcia”74; a execução
torna-se muitas vezes um espetáculo de massa com finalidades pedagógicas75.
O liberal inglês exorta os magistrados a não se deixar estorvar nem por uma “comoção”
fora de lugar nem por dúvidas e escrúpulos excessivos. Certamente, os ladrões
poderiam ter cometido o roubo levados pela necessidade: “o que podem ganhar
honestamente não é suficiente para sustentá-los”; e, “no entanto a justiça e a paz
da sociedade exigem que os culpados “sejam enforcados”. Claro, “talvez as
provas não sejam totalmente certas ou são insuficientes” e há o risco de levar à
morte um inocente; mas, por “terrível” que isso possa ser, é necessário de
qualquer modo alcançar o objetivo que “nenhum culpado fique impune”. Seria
grave se juízes muito escrupulosos preferissem a “própria serenidade”, à “vantagem”
da “nação”76. Os tribunais dos juízes-proprietários são chamados a
funcionar como uma espécie de Comitê de saúde pública.
Podemos chegar então à conclusão de que,
mesmo querendo abstrair das colônias no seu conjunto (inclusive a Irlanda), na
própria Inglaterra o gozo pleno de uma esfera privada de liberdade garantida
pela lei — a “liberdade moderna” ou “negativa” da qual falam respectivamente
Constant e Berlin77 — é o privilégio de uma restrita minoria. A
massa é submetida a uma regulamentação e a uma coerção, que ultrapassam o lugar
do trabalho (ou o lugar de punição que não é só o cárcere, mas abrange também
as casas de trabalho e o exército). Se Locke se propõe a regulamentar o consumo
de álcool das classes populares, Mandeville considera que a elas, pelo menos
aos Domingo, “deveria ser impedido [...] o acesso a todo tipo de diversão fora
da igreja”78. Em relação ao álcool, Burke argumenta de maneira
diferente: embora não tenha propriedades nutritivas, ele pode pelo menos
aliviar o estímulo da fome no pobre; por outro lado, “em qualquer época e em
toda nação” o álcool, juntamente com o “ópio” e o “tabaco”, tem sido chamado a fornecer
as “consolações morais” que às vezes são necessárias para o homem”79.
Ora, mais do que o disciplinamento de operários e vagabundos, como em Locke e
Mandeville, o problema é o encobrimento da consciência e do sofrimento do
faminto em geral. A tendência a governar a existência das classes populares até
nos seus aspectos mais miúdos permanece inabalável. A referência ao ópio
acrescenta apenas um toque de cinismo. Mais tarde, os próprios relatórios das
comissões governamentais de inquérito vão denunciar a catástrofe: nos bairros
mais pobres se alastra o consumo do ópio, que se torna um meio de alimentação
ou um seu paliativo; às vezes, ele é oferecido até aos lactantes, os quais “se
encolhem como macaquinhos e enrugam como velhinhos”80.
Essa regulamentação capilar não pode
obviamente deixar de lado a religião. Para Locke, a iniciação das crianças
pobres ao trabalho desde os três anos é uma medida benéfica não apenas no plano
econômico, mas também no âmbito moral: ela oferece a “oportunidade de
obrigá-los a ir à igreja regularmente todo domingo, ao lado dos seus próprios
mestres, e com isso ensinar-lhes o sentido da religião”81. Por outro
lado, Mandeville exige que a frequência à igreja aos Domingo e a doutrinação
religiosa tornem-se uma obrigação para os pobres e os iletrados”. Não é
suficiente apelar à espontaneidade do sentimento religioso: “É um dever
premente para todo magistrado tomar conta particularmente” do que acontece aos
Domingos: “os pobres e as suas crianças deveriam ser dirigidos para a igreja de
manhã e de noite”. Os resultados positivos não vão faltar: “Se os magistrados
tomarem todas as medidas ao alcance deles, os ministros do Evangelho poderão
inculcar nos cérebros mais fracos” a devoção e a virtude da obediência82.
Além de sua vida privada, as classes populares
são ainda mais controladas na vida pública que, entre tantas dificuldades,
procuram alcançar: “Entre 1793 e 1820, foram aprovados pelo Parlamento mais de
sessenta decretos voltados a reprimir ações coletivas da classe operária”83.
Bem antes da atividade sindical propriamente dita, quer dizer, da ação direta a
elevar o nível dos salários e a melhorar as condições de trabalho, o que é
visto com suspeita é a tentativa dos servos de sair do isolamento e de
comunicar-se entre eles. Estes — troveja alarmado Mandeville — “se reúnem
impunemente quando querem”. Desenvolvem até relações de recíproca
solidariedade: procuram ajudar o colega licenciado ou punido pelo seu patrão.
Só pelo fato de não se limitar à relação vertical e subalterna com os seus
superiores e de querer desenvolver relações horizontais entre eles, os servos
devem ser considerados responsáveis de uma subversão inadmissível: “usurpam a
cada dia os direitos dos seus patrões e fazem de tudo para se colocar no mesmo
nível”; estão “perdendo aquele sentido de inferioridade que apenas poderia
torná-los úteis ao bem-estar público”. Ultrapassando qualquer limite, o servo
assume poses de gentlmen: é a comédia
do “servo-gentlmen”, uma comédia que,
se não for interrompida rapidamente, pode transformar-se em uma “tragédia” para
a nação inteira84.
Nesse contexto, revela-se particularmente
significativa a tomada de posição de Adam Smith. Ele reconhece que “não existem
leis do parlamento contra as coalizões voltadas a baixar o preço do trabalho
enquanto há muitas contra as coalizões voltadas a elevá-lo”. Por outro lado: “os
patrões sendo em número menor podem unir-se mais facilmente [...]. Os patrões
estão sempre e em qualquer lugar em uma espécie de tácita mas nem por isso
menos constante e uniforme coalizão voltada a impedir o aumento dos salários
acima do nível atual” ou voltada a “baixar ulteriormente o nível dos salários”85.
Portanto, mesmo se no plano legislativo patrões e operários são tratados da
mesma forma, os primeiros continuariam sempre a gozar de uma situação de
vantagem. Por outro lado, eles são favorecidos também pelas condições de vida
muito precárias em que se encontra a contraparte:
“Para pressionar a uma decisão rápida, os operários recorrem sempre aos
meios mais clamorosos e às vezes às violências e às ofensas mais
impressionantes. São desesperados e agem com a loucura e os excessos de homens
desesperados que devem morrer de fome ou obrigar os seus patrões a aceitar as
suas solicitações”86.
Isso não impede Smith de recomendar ao
governo de agir com rigor contra as coalizões operárias. Certamente, “é difícil
que pessoas do mesmo ofício se encontrem para festejar e se divertir, sem que a
conversação termine com uma conspiração contra o Estado ou com algum outro
expediente para elevar os preços”. Por outro lado, é “impossível impedir esses
encontros por meio de uma lei compatível com a liberdade e a justiça”. Mas, o
governo deve prevenir qualquer agregação operária, mesmo a mais casual e,
aparentemente, mais inócua. Por exemplo, a obrigação do registro burocrático
para os que exercem um determinado oficio acaba por colocar “em relação entre
eles indivíduos que diversamente poderiam não se conhecer uns aos outros”. Em
nenhum caso pode ser tolerado “um regulamento que autoriza os que desempenham o
mesmo ofício a se taxar para providenciar aos próprios pobres, aos próprios
doentes, às próprias viúvas e aos próprios órfãos, atribuindo-se um interesse
comum a ser administrado”87. Portanto, não apenas a ação sindical,
mas também uma sociedade de mútuo socorro deve ser considerada ilegal. No
entanto, Smith reconhece que estamos na presença de “homens desesperados”, que
arriscam a morte pela inédia. Mas, esta consideração passa em segundo plano em
relação à necessidade de evitar reuniões, “conversações”, agregações que tendem
a serem sinônimos de “conspiração contra o Estado”.
Com o intuito de criminalizar desde a origem
qualquer associação popular, a classe dominante recorre a métodos ainda mais
sumários, que podemos descrever com as palavras de Constant: é “o horrendo
expediente de enviar espiões e atiçar os espíritos ignorantes e propor-lhes a
revolta para depois podê-la denunciar”. Os resultados não faltam: “Os
miseráveis seduziram os que tiveram a desventura de ouvi-los e provavelmente
acusaram também os que não conseguiram seduzir”. E sobre ambos se abate a
justiça88. (...)
O que aqui está sendo tão apaixonadamente
invocado é um Todo que exige o sacrifício não momentâneo, mas permanente da
grande maioria da população, cuja condição é tanto mais trágica pelo fato de
que aparece muito remota qualquer perspectiva de melhora. Pelo contrário, só
vislumbrar projetos que apontem nessa direção é sinônimo não apenas de utopismo
abstrato mas também e sobretudo de perigoso subversivismo. Segundo Townsend, “o
capital de felicidade humana é fortemente acrescido” pela presença de “pobres”,
obrigados a oferecer os trabalhos mais pesados e mais penosos. Os pobres
merecem plenamente a própria sorte por serem gastadores e vagabundos, mas para
a sociedade seria um desastre se porventura eles chegassem a se emendar: “As
frotas e os exércitos do Estado sentiriam a falta de marinheiros e soldados, se
a sobriedade e a diligência prevalecessem universalmente”90. Também
a economia do país viria a se encontrar em uma situação muito difícil. À mesma
conclusão chega Mandeville: “Para a felicidade da sociedade é necessário que a
grande maioria permaneça ignorante e pobre”; “a riqueza mais segura consiste em
uma massa de pobres laboriosos”91. E agora vamos ler Arthur Young: “Todos,
menos os idiotas, sabem que as classes inferiores devem ser mantidas pobres,
diversamente deixam de ser produtivas”92 e de contribuir à “riqueza
das nações” de que fala Smith. Mais tarde, na França, às mesmas conclusões
chega Destutt de Tracy: “As nações pobres são aquelas em que o povo vive em
condições de bem-estar, enquanto as nações ricas são aquelas em que ele fica
normalmente pobre”93. Por que não é percebida como contraditória a
proposição, nas suas diferentes variações, em base à qual a felicidade e a
riqueza da sociedade dependem do esgotamento e das privações dos pobres que
constituem a grande maioria da população? Quem explica a lógica desse Todo em
suas características singulares é Locke: os escravos “não podem ser
considerados parte da sociedade civil, cuja finalidade principal é a
conservação da propriedade” (TT, II, 85). E esta é também a opinião de Algernon
Sidney: “Um reino ou uma comunidade [...] é composta de homens livres e iguais;
os servos podem estar presentes nela, mas não são seus membros”; sim, “nenhum
homem, enquanto é servo, pode ser membro do Estado” (commonwealth); nem membro do povo ele é, porque o “povo” é o
conjunto dos “homens livres”94. Os pobres são a casta servil da qual
a sociedade tem necessidade, são o fundamento subterrâneo do edifício social,
são os que depois Nietzsche vai definir como “cegas toupeiras da cultura”.”
71 Laboulaye, 1866, vol. III, p. 541-42. / 72 Smith, 1981, p. 157 (=
Smith, 1977, p. 141) (livro I, cap. X, 2). / 73 Thompson, 1989, p. 29 e 186-87.
/ 74 Mandeville, 1988, vol. I, p. 273 (= Mandeville, 1974, p. 75-76). / 75
Hughes, 1990, p. 59. / 76
Mandeville, 1988, vol. 1, p. 272-73, 87 (=Mandeville, 1974, p. 74-75, 56). / 77 Constant, 1980; Berlin, 1989,
p. 185-241. / 78 Mandeville, 1988, vol. I, p. 307 (= Mandeville, 1974, p. 112).
/ 79 Burke, 1826, vol. VII, p. 413-14. / 80 Marx-Engels, 1955-89, vol. XXIII,
p. 420-21 e nota 133. / 81 Locke, 1993 a, p. 454. / 82 Mandeville, 1988, vol.
1, p. 307-308 (= Mandeville, 1974, p. 111-12). / 83 Wallerstein, 1978-95, vol.
III, p. 193. / 84 Mandeville, 1988, vol. I, p. 306 (= Mandeville, 1974, p.
110-11). / 85 Smith, 1981, p. 83-84 (= Smith, 1977, p. 67) (livro I, cap. 8). /
86 Smith, 1981, p. 84-85 (= Smith, 1977, p. 68) (livro 1, cap. 8). / 87 Smith,
1981, p. 145 (= Smith, 1977, p. 128-29) (livro 1, cap. X, 2). / 88 Constant,
1830, vol. I, p. 28 e passim. / 90
Townsend, 1971, p. 35. / 91 In Marx, Engels, 1955-89, vol. XXIII, p. 643. / 92
Young, cit. in Tawney, 1975, p. 514. / 93 Destutt de Tracy, cit. in
Marx-Engels, 1955-89, vol. XXII / 94 Sidney, 1990, p. 89, 103.
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