Editora: Record
ISBN: 978-85-0105-878-2
Opinião: ★★★★★
Páginas: 174
“A máquina ideológica que sustenta as ações
preponderantes da atualidade é feita de peças que se alimentam mutuamente e
põem em movimento os elementos essenciais à continuidade do sistema. Damos aqui
alguns exemplos. Fala-se, por exemplo, em aldeia global para fazer crer que a
difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse
mito e do encurtamento das distâncias – para aqueles que realmente podem viajar
– também se difunde a noção de tempo e espaço contraídos. É como se o mundo se
houvesse tornado, para todos, ao alcance da mão. Um mercado avassalador dito global
é apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as
diferenças locais são aprofundadas. Há uma busca de uniformidade, ao serviço
dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando mais
distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal. Enquanto isso, o
culto ao consumo é estimulado.
Fala-se, igualmente, com insistência, na morte do
Estado, mas o que estamos vendo é seu fortalecimento para atender aos reclamos
da finança e de outros grandes interesses internacionais, em detrimento dos
cuidados com as populações cuja vida se torna mais difícil.
Esses poucos exemplos, recolhidos numa lista
interminável, permitem indagar-se, no lugar do fim da ideologia proclamado
pelos que sustentam a bondade dos presentes processos de globalização, não
estaríamos, de fato, diante da presença de uma ideologização maciça, segundo a
qual a realização do mundo atual exige como condição essencial o exercício de
fabulações.”
“A globalização é, de certa forma, o ápice do
processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entendê-la, como, de
resto, a qualquer fase da história, há dois elementos fundamentais a levar em
conta: o estado das técnicas e o estado da política.
Há uma tendência a separar uma coisa da outra. Daí
muitas interpretações da história a partir das técnicas. E, por outro lado,
interpretações da história a partir da política. Na realidade, nunca houve na
história humana separação entre as duas coisas. As técnicas são oferecidas como
um sistema e realizadas combinadamente através do trabalho e das formas de
escolha dos momentos e dos lugares de seu uso. É isso que fez a história.
No fim do século XX e graças aos avanços da
ciência, produziu-se um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da
informação, que passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e
assegurando ao novo sistema técnico uma presença planetária.
Só que a globalização não é apenas a existência
desse novo sistema de técnicas. Ela é também o resultado das ações que
asseguram a emergência de um mercado dito global, responsável pelo essencial
dos processos políticos atualmente eficazes. Os fatores que contribuem para
explicar a arquitetura da globalização atual são: a unicidade da técnica, a
convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um
motor único na história, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado
global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização
perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro.”
“O desenvolvimento da história vai de par com o
desenvolvimento das técnicas. Kant dizia que a história é um progresso sem fim;
acrescentemos que é também um progresso sem fim das técnicas. A cada evolução técnica,
uma nova etapa histórica se torna possível.”
“Este período dispõe de um sistema unificado de
técnicas, instalado sobre um planeta informado e permitindo ações igualmente
globais. Até que ponto podemos falar de uma mais-valia à escala mundial,
atuando como um motor único de tais ações?
Havia, com o imperialismo, diversos motores, cada
qual com sua força e alcance próprios: o motor francês, o motor inglês, o motor
alemão, o motor português, o belga, o espanhol etc., que eram todos motores do
capitalismo, mas empurravam as máquinas e os homens segundo ritmos diferentes,
modalidades diferentes, combinações diferentes. Hoje haveria um motor único que
é, exatamente, a mencionada mais-valia universal.
Esta se tornou possível porque a partir de agora a
produção se dá à escala mundial, por intermédio de empresas mundiais, que
competem entre si segundo uma concorrência extremamente feroz, como jamais
existiu. As que resistem e sobrevivem são aquelas que obtêm a mais-valia maior,
permitindo-se, assim, continuar a proceder e a competir.
Esse motor único se tornou possível porque nos
encontramos em um novo patamar da internacionalização, com uma verdadeira
mundialização do produto, do dinheiro, do crédito, da dívida, do consumo, da
informação. Esse conjunto de mundializações, uma sustentando e arrastando a
outra, impondo-se mutuamente, é também um fato novo.
Um elemento da internacionalização atrai outro,
impõe outro, contém e é contido pelo outro. Esse sistema de forças pode levar a
pensar que o mundo se encaminha para algo como uma homogeneização, uma vocação
a um padrão único, o que seria devido, de um lado, à mundialização da técnica,
de outro, à mundialização da mais-valia.
Tudo isso é realidade, mas também e sobretudo
tendência, porque em nenhum lugar, em nenhum país, houve completa
internacionalização. O que há em toda parte é uma vocação às mais diversas
combinações de vetores e formas de mundialização.”
“O processo da crise é permanente, o que temos são
crises sucessivas. Na verdade, trata-se de uma crise global, cuja evidência
tanto se faz por meio de fenômenos globais como de manifestações particulares,
neste ou naquele país, neste ou naquele momento, mas para produzir o novo estágio
de crise. Nada é duradouro.
Então, neste período histórico, a crise é
estrutural. Por isso, quando se buscam soluções não estruturais, o resultado é
a geração de mais crise. O que é considerado solução parte do exclusivo
interesse dos atores hegemônicos, tendendo a participar de sua própria natureza
e de suas próprias características.
Tirania do dinheiro e tirania da informação são os
pilares da produção da história atual do capitalismo globalizado. Sem o
controle dos espíritos seria impossível a regulação pelas finanças. Daí o papel
avassalador do sistema financeiro e a permissividade do comportamento dos
atores hegemônicos, que agem sem contrapartida, levando ao aprofundamento da
situação, isto é, da crise.
A associação entre a tirania do dinheiro e a
tirania da informação conduz, desse modo, à aceleração dos processos
hegemônicos, legitimados pelo “pensamento único”, enquanto os demais processos
acabam por ser deglutidos ou se adaptam passiva ou ativamente, tornando-se
hegemonizados. Em outras palavras, os processos não hegemônicos tendem seja a
desaparecer fisicamente, seja a permanecer, mas de forma subordinada, exceto em
algumas áreas da vida social e em certas frações do território onde podem
manter-se relativamente autônomos, isto é, capazes de uma reprodução própria.
Mas tal situação é sempre precária, seja porque os resultados localmente
obtidos são menores, seja porque os respectivos agentes são permanentemente
ameaçados pela concorrência das atividades mais poderosas.”
“O mesmo sistema ideológico que justifica o
processo de globalização, ajudando a considerá-lo o único caminho histórico,
acaba, também, por impor uma certa visão da crise e aceitação dos remédios
sugeridos. Em virtude disso, todos os países, lugares e pessoas passam a se
comportar, isto é, a organizar sua ação, como se tal “crise” fosse a mesma para
todos e como se a receita para afastá-la devesse ser geralmente a mesma. Na
verdade, porém, a única crise que os responsáveis desejam afastar é a crise
financeira e não qualquer outra. Aí está, na verdade, uma causa para mais
aprofundamento da crise real – econômica, social, política, moral – que
caracteriza o nosso tempo.”
“Entre os fatores constitutivos da globalização, em
seu caráter perverso atual, encontram-se a forma como a informação é oferecida
à humanidade e a emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida
econômica e social. São duas violências centrais, alicerces do sistema
ideológico que justifica as ações hegemônicas e leva ao império das fabulações,
a percepções fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos
totalitarismos – isto é, dos globalitarismos – a que estamos assistindo.”
“Um dos traços marcantes do atual período histórico
é, pois, o papel verdadeiramente despótico da informação. Conforme já vimos, as
novas condições técnicas deveriam permitir a ampliação do conhecimento do
planeta, dos objetos que o formam, das sociedades que o habitam e dos homens em
sua realidade intrínseca. Todavia, nas condições atuais, as técnicas da
informação são principalmente utilizadas por um punhado de atores em função de
seus objetivos particulares.
Essas técnicas da informação (por enquanto) são
apropriadas por alguns Estados e por algumas empresas, aprofundando assim os
processos de criação de desigualdades. É desse modo que a periferia do sistema
capitalista acaba se tornando ainda mais periférica, seja porque não dispõe
totalmente dos novos meios de produção, seja porque lhe escapa a possibilidade
de controle.
O que é transmitido à maioria da humanidade é, de
fato, uma informação manipulada que, em lugar de esclarecer, confunde. Isso
tanto é mais grave porque, nas condições atuais da vida econômica e social, a
informação constitui um dado essencial e imprescindível. Mas na medida em que o
que chega às pessoas, como também às empresas e instituições hegemonizadas, é,
já, o resultado de uma manipulação, tal informação se apresenta como ideologia.
O fato de que, no mundo de hoje, o discurso antecede quase obrigatoriamente uma
parte substancial das ações humanas – sejam elas a técnica, a produção, o
consumo, o poder – explica o porquê da presença generalizada do ideológico em
todos esses pontos. Não é de estranhar, pois, que realidade e ideologia se
confundam na apreciação do homem comum, sobretudo porque a ideologia se insere
nos objetos e apresenta-se como coisa.”
“As mídias nacionais se globalizam, não apenas pela
chatice e mesmice das fotografias e dos títulos, mas pelos protagonistas mais
presentes. Falsificam-se os eventos, já que não é propriamente o fato o que a
mídia nos dá, mas uma interpretação, isto é, a notícia. Pierre Nora, em um
bonito texto, cujo título é “O retorno de fato” (in História: Novos problemas,
1974), lembra que, na aldeia, o testemunho das pessoas que veiculam o que
aconteceu pode ser cotejado com o testemunho do vizinho. Numa sociedade
complexa como a nossa, somente vamos saber o que houve na rua ao lado dois dias
depois, mediante uma interpretação marcada pelos humores, visões, preconceitos e
interesses das agências. O evento já é entregue maquiado ao leitor, ao ouvinte,
ao telespectador, e é também por isso que se produzem no mundo de hoje,
simultaneamente, fábulas e mitos.”
“Uma dessas fabulações é a tão repetida ideia de
aldeia global (Octávio Ianni, Teorias da
globalização, 1996). O fato de que a comunicação se tornou possível à
escala do planeta, deixando saber instantaneamente o que se passa em qualquer
lugar, permitiu que fosse cunhada essa expressão, quando, na verdade, ao contrário
do que se dá nas verdadeiras aldeias, é frequentemente mais fácil comunicar com
quem está longe do que com o vizinho. Quando essa comunicação se faz, na
realidade, ela se dá com a intermediação de objetos. A informação sobre o que
acontece não vem da interação entre pessoas, mas do que é veiculado pela mídia,
uma interpretação interessada, senão interesseira, dos fatos.”
“Outro mito é o do espaço e do tempo contraídos,
graças, outra vez, aos prodígios da velocidade. Só que a velocidade apenas está
ao alcance de um número limitado de pessoas, de tal forma que, segundo as
possibilidades de cada um, as distâncias têm significações e efeitos diversos e
o uso do mesmo relógio não permite igual economia do tempo.
Aldeia global tanto quanto espaço-tempo contraído
permitiriam imaginar a realização do sonho de um mundo só, já que, pelas mãos
do mercado global, coisas, relações, dinheiros, gostos largamente se difundem
por sobre continentes, raças, línguas, religiões, como se as particularidades
tecidas ao longo de séculos houvessem sido todas esgarçadas. Tudo seria
conduzido e, ao mesmo tempo, homogeneizado pelo mercado global regulador. Será,
todavia, esse mercado regulador? Será ele global? O fato é que apenas três praças,
Nova Iorque, Londres e Tóquio, concentram mais de metade de todas as transações
e ações; as empresas transnacionais são responsáveis pela maior parte do
comércio dito mundial; os 47 países menos avançados representam juntos apenas
0,3% do comércio mundial, em lugar dos 2,3% em 1960, enquanto 40% do comércio
dos Estados Unidos ocorrem no interior das empresas.”
A violência do
dinheiro
A internacionalização do capital financeiro
amplia-se, recentemente, por várias razões. Na fase histórica atual, as
megafirmas devem, obrigatoriamente, preocupar-se com o uso financeiro do
dinheiro que obtêm. As grandes empresas são, quase que compulsoriamente,
ladeadas por grandes empresas financeiras.
Essas empresas financeiras das multinacionais
utilizam em grande parte a poupança dos países em que se encontram. Quando uma
firma de qualquer outro país se instala num país C ou D, as poupanças internas
passam a participar da lógica financeira e do trabalho financeiro dessa
multinacional. Quando expatriado, esse dinheiro pode regressar ao país de
origem na forma de crédito e de dívida, quer dizer, por intermédio das grandes
empresas globais. O que seria poupança interna transforma-se em poupança
externa, pela qual os países recipiendários devem pagar juros extorsivos. O que
sai do país como royalties, inteligência comprada, pagamento de serviços ou
remessa de lucros volta como crédito e dívida. Essa é a lógica atual da
internacionalização do crédito e da dívida. A aceitação de um modelo econômico
em que o pagamento da dívida é prioritário implica a aceitação da lógica desse
dinheiro.
Nas condições atuais de economia internacional, o
financeiro ganha uma espécie de autonomia. Por isso, a relação entre a finança
e a produção, entre o que agora se chama economia real e o mundo da finança, dá
lugar àquilo que Marx chamava de loucura especulativa, fundada no papel do
dinheiro em estado puro. Este se torna o centro do mundo. É o dinheiro como,
simplesmente, dinheiro, recriando seu fetichismo pela ideologia. O sistema
financeiro descobre fórmulas imaginosas, inventa sempre novos instrumentos,
multiplica o que chama de derivativos, que são formas sempre renovadas de
oferta dessa mercadoria aos especuladores. O resultado é que a escalação
exponencial assim redefinida vai se tornar algo indispensável, intrínseco, ao
sistema, graças aos processos técnicos da nossa época. É o tempo real que vai
permitir a rapidez das operações e a volatilidade dos assets. E a finança move a economia e a deforma, levando seus
tentáculos a todos os aspectos da vida. Por isso, é lícito falar de tirania do
dinheiro.
“Quando o sistema político formado pelos governos e
pelas empresas utiliza os sistemas técnicos contemporâneos e seu imaginário
para produzir a atual globalização, aponta-nos para formas de relações
econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência imediata,
sem a qual os atores são expulsos da cena ou permanecem escravos de uma lógica
indispensável ao funcionamento do sistema como um todo.
É uma forma de totalitarismo muito forte e
insidiosa, porque se baseia em noções que parecem centrais à própria ideia da
democracia – liberdade de opinião, de imprensa, tolerância –, utilizadas
exatamente para suprimir a possibilidade de conhecimento do que é o mundo, e do
que são os países e os lugares.”
“Atualmente, as empresas hegemônicas produzem o
consumidor antes mesmo de produzir os produtos. Um dado essencial do
entendimento do consumo é que a produção do consumidor, hoje, precede à
produção dos bens e dos serviços. Então, na cadeia casual, a chamada autonomia
da produção cede lugar ao despotismo do consumo. Daí, o império da informação e
da publicidade. Tal remédio teria 1% de medicina e 99% de publicidade, mas
todas as coisas no comércio acabam por ter essa composição: publicidade +
materialidade; publicidade + serviços, e esse é o caso de tantas mercadorias
cuja circulação é fundada numa propaganda insistente e frequentemente enganosa.
Desse modo, vivemos cercados, por todos os lados,
por esse sistema ideológico tecido ao redor do consumo e da informação
ideologizados. Esse consumo ideologizado e essa informação ideologizada acabam
por ser o motor de ações públicas e privadas. Esse par é, ao mesmo tempo,
fortíssimo e fragilíssimo. De um lado é muito forte, pela sua eficácia atual
sobre a produção e o consumo. Mas, de outro lado, ele é muito fraco, muito
débil, desde que encontremos a maneira de defini-lo como um dado de um sistema
mais amplo. O consumo é o grande emoliente, produtor ou encorajador de
imobilismos. Ele é, também, um veículo de narcisismos, por meio dos seus
estímulos estéticos, morais, sociais; e aparece como o grande fundamentalismo
do nosso tempo, porque alcança e envolve toda gente. Por isso, o entendimento
do que é o mundo passa pelo consumo e pela competitividade, ambos fundados no
mesmo sistema da ideologia.
Consumismo e competitividade levam ao emagrecimento
moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo,
convidando, também, a esquecer a oposição fundamental entre a figura do
consumidor e a figura do cidadão. É certo que no Brasil tal oposição é menos
sentida, porque em nosso país jamais houve a figura do cidadão. As classes
chamadas superiores, incluindo as classes médias, jamais quiseram ser cidadãs;
os pobres jamais puderam ser cidadãos. As classes médias foram condicionadas a
apenas querer privilégios e não direitos. E isso é um dado essencial do
entendimento do Brasil: de como os partidos se organizam e funcionam; de como a
política se dá, de como a sociedade se move.”
“Até recentemente, havia a busca de um relativo
reforço mútuo das ideias e da realidade de autonomia individual (com a vontade
de produção de indivíduos fortes e de cidadãos) e da ideia e da realidade de
uma sociedade solidária (com o Estado crescentemente empenhado em exercer uma
regulação redistributiva). As situações eram diferentes segundo os continentes e
países e, se o quadro acima referido não constituía uma realidade completa,
essa era uma aspiração generalizada. (...)
Ambos eram responsáveis. Indivíduo e coletividade
eram chamados a criar juntos um enriquecimento recíproco que iria apontar para
a busca da democracia, por intermédio do Estado Nacional, do Estado de Direito
e do Estado Social, e para a produção da cidadania plena, reivindicação que se
foi afirmando ao longo desses séculos. Certamente a cidadania nunca chegou a
ser plena, mas quase alcançou esse estágio em certos países, durante os
chamados trinta anos gloriosos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. E essa
quase plenitude era paralela à quase plenitude da democracia. A cidadania plena
é um dique contra o capital pleno. (...)
Ao longo da história passada do capitalismo,
paralelamente à evolução das técnicas, ideias morais e filosóficas se difundem,
assim como a sua realização política e jurídica, de modo que os costumes, as
leis, os regulamentos, as instituições jurídicas e estatais buscavam realizar,
ao mesmo tempo, mais controle social e, também, mais controle sobre as ações
individuais, limitando a ação daqueles vetores que, deixados sozinhos, levariam
à eclosão de egoísmos, ao exercício da força bruta e a desníveis sociais cada
vez mais agudos. (...)
É também a partir desse quadro que se pode
interpretar a serialização de que falava J.P. Satre em Questions de méthode, Critique de la Raison dialectique, 1960. Em
tais condições, instalam-se a competitividade, o salve-se-quem-puder, a volta
ao canibalismo, a supressão da solidariedade, acumulando dificuldades para um
convívio social saudável e para o exercício da democracia. Enquanto esta é
reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada como eleitoralismo, isto é,
consumo de eleições, as “pesquisas” perfilam-se como um aferidor quantitativo
da opinião, da qual acaba por ser uma das formadoras, levando tudo isso ao
empobrecimento do debate de ideias e a própria morte da política. Na esfera da
sociabilidade, levantam-se utilitarismos como regra de vida mediante a
exacerbação do consumo, dos narcisismos, do imediatismo, do egoísmo, do
abandono da solidariedade, com a implantação, galopante, de uma ética
pragmática individualista. É dessa forma que a sociedade e os indivíduos aceitam
dar adeus à generosidade, à solidariedade e a emoção com a entronização do
reino do cálculo (a partir do cálculo econômico) e da competitividade.
São, todas essas, condições para a difusão de um
pensamento e de uma prática totalitárias. Esses totalitarismos se dão na esfera
do trabalho como, por exemplo, num mundo agrícola modernizado onde os atores
subalternizados convivem, como num exército, submetidos a uma disciplina
militar. O totalitarismo não é, porém, limitado à esfera do trabalho, escorrendo
para a esfera política e das relações interpessoais e invadindo o próprio mundo
da pesquisa e do ensino universitários, mediante um cerco às ideias cada vez
menos dissimulado. Cabe-nos, mesmo, indagar diante dessas novas realidades
sobre a pertinência da presente utilização de concepções já ultrapassadas de
democracia, opinião pública, cidadania, conceitos que necessitam urgente
revisão, sobretudo nos lugares onde essas categorias nunca foram claramente
definidas nem totalmente exercitadas.
Nossa grande tarefa, hoje, é a elaboração de um
novo discurso, capaz de desmitificar a competitividade e o consumo e de
atenuar, senão desmanchar, a confusão dos espíritos.”
“Fala-se, hoje, muito em violência e é geralmente
admitido que é quase um estado, uma situação característica do nosso tempo.
Todavia, dentre as violências de que se fala, a maior parte é sobretudo formada
de violências funcionais derivadas, enquanto a atenção é menos voltada para o
que preferimos chamar de violência estrutural, que está na base da produção das
outras e constitui a violência central original. Por isso, acabamos por apenas
condenar as violências periféricas particulares.
Evoluímos de situações em que a perversidade se
manifestava de forma isolada para uma situação na qual se instala um sistema da
perversidade, que, ao mesmo tempo, é resultado e causa da legitimação do
dinheiro em estado puro, da competitividade em estado puro e da potência em
estado puro, consagrando, afinal, o fim da ética e o fim da política.”
“Concorrer e competir não são a mesma coisa. A
concorrência pode até ser saudável sempre que a batalha entre agentes, para
melhor empreender uma tarefa e obter melhores resultados finais, exige o
respeito a certas regras de convivência preestabelecidas ou não. Já a
competitividade se funda na invenção de novas armas de luta, num exercício em
que a única regra é a conquista da melhor posição. A competitividade é uma
espécie de guerra em que tudo vale e, desse modo, sua prática provoca um
afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência.
Para exercer a competitividade em estado puro e
obter o dinheiro em estado puro, o poder (a potência) deve ser também exercido
em estado puro. O uso da força acaba se tornando uma necessidade. Não há outro telos, outra finalidade que o próprio
uso da força, já que ela é indispensável para competir e fazer mais dinheiro;
isso vem acompanhado pela desnecessidade de responsabilidade perante o outro, a
coletividade próxima e a humanidade em geral.
Por exemplo, a ideia de que o desemprego é o
resultado de um jogo simplório entre formas técnicas e decisões microeconômicas
das empresas é uma simplificação, originada dessa confusão, como se a nação não
devesse solidariedade a cada um dos seus membros. O abandono da ideia de
solidariedade está por trás desse entendimento da economia e conduz ao
desamparo em que vivemos hoje. Jamais houve na história um período em que o
medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego,
medo da fome, medo da violência, medo do outro. Tal medo se espalha e se
aprofunda a partir de uma violência difusa, mas estrutural, típica do nosso
tempo, cujo entendimento é indispensável para compreender, de maneira mais
adequada, questões como a dívida social e a violência funcional, hoje tão
presentes no cotidiano de todos.”
A perversidade
sistêmica
Seja qual for o ângulo pelo qual se examinem as
situações características do período atual, a realidade pode ser vista como uma
fábrica de perversidade. A fome deixa de ser um fato isolado ou ocasional e
passa a ser um dado generalizado e permanente. Ela atinge 800 milhões de
pessoas espalhadas por todos os continentes, sem exceção. Quando os progressos
da medicina e da informação deviam autorizar uma redução substancial dos
problemas de saúde, sabemos que milhões de pessoas morrem antes do quinto ano
de vida.
Dois bilhões de pessoas sobrevivem sem água
potável. Nunca na história houve um tão grande número de deslocados e
refugiados. O fenômeno dos sem-teto, curiosidade na primeira metade do século
XX, hoje é um fato banal, presente em todas as grandes cidades do mundo. O
desemprego é algo tornado comum. Ao mesmo tempo, ficou mais difícil do que
antes atribuir educação de qualidade e, mesmo, acabar com o analfabetismo. A
pobreza também aumenta. No fim do século XX havia mais 600 milhões de pobres do
que em 1960; e 1,4 bilhão de pessoas ganham menos de um dólar por dia. Tais
números podem ser, na verdade, ampliados porque, ainda aqui, os métodos
quantitativos da estatística enganam: ser pobre não é apenas ganhar menos do
que uma soma arbitrariamente fixada; ser pobre é participar de uma situação
estrutural, com uma posição relativa inferior dentro da sociedade como um todo.
E essa condição se amplia para um número cada vez maior de pessoas. O fato,
porém, é que a pobreza tanto quanto o desemprego agora são considerados como
algo “natural”, inerente ao seu próprio processo. Junto ao desemprego e à
pobreza absoluta, registre-se o empobrecimento relativo de camadas cada vez
maiores graças à deterioração do valor do trabalho. No México, a parte de
trabalho na renda nacional cai de 36% na década de 1970 para 23% em 1992.
Vivemos num mundo de exclusões, agravadas pela desproteção social, apanágio do
modelo neoliberal, que é também, criador de insegurança.
Na verdade, a perversidade deixa de se manifestar
por fatos isolados, atribuídos a distorções da personalidade, para se
estabelecer como um sistema. Ao nosso ver, a causa essencial da perversidade
sistêmica é a instituição, por lei geral da vida social, da competitividade
como regra absoluta, uma competitividade que escorre sobre todo o edifício
social. O outro, seja ele empresa, instituição ou indivíduo, aparece como um
obstáculo à realização dos fins de cada um e deve ser removido, por isso sendo
considerado uma coisa. Decorrem daí a celebração dos egoísmos, o alastramento
dos narcisismos, a banalização da guerra de todos contra todos, com a
utilização de qualquer que seja o meio para obter o fim colimado, isto é,
competir e, se possível, vencer. Daí a difusão, também generalizada, de outro
subproduto da competitividade, isto é, a corrupção.
Esse sistema da perversidade inclui a morte da
Política (com um P maiúsculo), já que a condução do processo político passa a
ser atributo das grandes empresas. Junte-se a isso o processo de conformação da
opinião pelas mídias, um dado importante no movimento de alienação trazido com
a substituição do debate civilizatório pelo discurso único do mercado. Daí o
ensinamento e o aprendizado de comportamentos dos quais estão ausentes
objetivos finalísticos e éticos.
Assim elaborado, o sistema da perversidade legitima
a preeminência de uma ação hegemônica mas sem responsabilidade, e a instalação
sem contrapartida de uma ordem entrópica, com a produção “natural” da desordem.
Para tudo isso, também contribui o estabelecimento
do império do consumo, dentro do qual se instalam consumidores mais que
perfeitos (M. Santos, O espaço do cidadão,
1988), levados à negligência em relação à cidadania e seu corolário, isto é, o
menosprezo quanto à liberdade, cujo culto é substituído pela preocupação com a
incolumidade. Esta reacende egoísmos e é um dos fermentos da quebra da
solidariedade entre pessoas, classes e regiões. Incluam-se também, nessa lista
dos processos característicos da instalação do sistema da perversidade, a
ampliação das desigualdades de todo gênero: interpessoais, de classes,
regionais, internacionais. Às antigas desigualdades, somam-se novas.
Os papéis dominantes, legitimados pela ideologia e
pela prática da competitividade, são a mentira, com o nome de segredo da marca;
o engodo, com o nome de marketing; a dissimulação e o cinismo, com os nomes de
tática e estratégia. É uma situação na qual se produz a glorificação da
esperteza, negando a sinceridade, e a glorificação da avareza, negando a
generosidade. Desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades
e ao fim da ética, mas, também, da política. Para o triunfo das novas virtudes
pragmáticas, o ideal de democracia plena é substituído pela construção de uma
democracia de mercado, na qual a distribuição do poder é tributária da
realização dos fins últimos do próprio sistema globalitário. Estas são as
razões pelas quais a vida normal de todos os dias está sujeita a uma violência
estrutural que, aliás, é a mãe de todas as outras violências.
“A informação é centralizada nas mãos de um número
extremamente limitado de firmas. Hoje, o essencial do que no mundo se lê, tanto
em jornais como em livros, é produzido a partir de meia dúzia de empresas que,
na realidade, não transmitem novidades, mas as reescrevem de maneira
específica. Apesar de as condições técnicas da informação permitirem que toda a
humanidade conheça tudo que o mundo é, acabamos na realidade por não sabê-lo,
por causa dessa intermediação deformante.”
“O discurso que ouvimos todos os dias, para nos
fazer crer que deve haver menos Estado tem como base essencial o fato de que os
condutores da globalização necessitam de um Estado flexível a seus interesses.
As privatizações são a mostra de que o capital se tornou devorante, guloso ao
extremo, exigindo sempre mais, querendo tudo. De tal forma, o Estado acaba por
ter menos recursos para tudo o que é social, sobretudo no caso das
privatizações caricatas, como no modelo brasileiro, que financia as empresas
estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional. Não é que o Estado
se ausente ou se torne menor. Ele apenas se omite quanto ao interesse das
populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da
economia dominante.”
“O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o
número de letrados e diminui o de intelectuais. Não é este um dos dramas atuais
da sociedade brasileira? Tais letrados, equivocadamente assimilados aos
intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a
verdade, não a dizem. Nesse caso, não se podem encontrar com o futuro,
renegando a função principal da intelectualidade, isto é, o casamento
permanente com o porvir, por meio da busca incansada da verdade.”
“Ao contrário do que se repete impunemente, o
Estado continua forte e a prova disso é que nem as empresas transnacionais, nem
as instituições supranacionais dispõem de força normativa para impor, sozinhas,
dentro de cada território, sua vontade política ou econômica. (...) É o Estado
nacional que, afinal, regula o mundo financeiro e constrói infraestruturas,
atribuindo, assim, a grandes empresas escolhidas a condição de sua viabilidade.
O mesmo pode ser dito das instituições supranacionais (FMI, Banco Mundial,
Nações Unidas, Organização Mundial do Comércio), cujos editos ou recomendações
necessitam de decisões internas a cada país para que tenham eficácia. (...) O
Banco Central é, frequentemente, a correia de transmissão (situada acima do
Parlamento) entre uma vontade política externa e uma ausência de vontade
interior. Por isso, tornou-se corriqueiro entregar a direção desses bancos
centrais a personagens mais comprometidas com os postulados ideológicos da
finança internacional do que com os interesses concretos das sociedades
nacionais.”
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