Editora: Companhia de bolso
ISBN: 978-85-3591-337-8
Tradução: Elena Grechi e Jussara de F. M. Ribeiro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 448
Sinopse: Publicado
em 1986, Danúbio resulta de uma experiência de viagem feita
pelo autor através da Europa Central no início da década de 1980. Às vésperas
do desmoronamento da Cortina de Ferro, o germanista italiano Claudio Magris se
vale do trajeto do grande rio europeu como fio condutor para percorrer de ponta
a ponta a história cultural e política dos países que viram surgir Franz Kafka
e o Terceiro Reich, Elias Canetti e o campo de concentração de Mauthausen,
Ludwig Wittgenstein e o arquiduque Francisco Ferdinando, Sigmund Freud e o
carrasco nazista Adolf Eichmann.
Com um estilo sóbrio e cheio de empatia, ora alegre ora
melancólico, o narrador reconstitui um enorme mural cujas figuras se movem e
parecem ganhar vida. Paisagens, personagens e reflexões se entrecruzam em um
conjunto complexo e fascinante, no qual as maravilhas e os horrores do passado
recente se apresentam com rara força.
Sem dogmatismos ou visões estereotipadas, Magris percorre
esse campo minado da Europa recolhendo os fragmentos e as ruínas que a história
foi amontoando ao longo do tempo. O resultado literário dessa viagem intelectual
é, indiscutivelmente, uma obra-prima do século XX.
“É verdade que a existência é uma viagem,
como se costuma dizer, e que passamos pela terra como hóspedes.”
“Quando se viaja sozinho, como acontece com
excessiva frequência, é preciso pagar do próprio bolso, mas algumas vezes a
vida é boa e permite passear e ver o mundo, mesmo que só de vez em quando e por
pouco tempo, com aqueles quatro ou cinco amigos que testemunharão por nós no
dia do Juízo Final, falando em nosso nome.”
“A relva do prado está ensopada de água, todo
o terreno está encharcado e alagado por uma quantidade de riachos diminutos. No
prado as duas irmãs se movem e se molham mais graciosamente que Amedeo, cujo
fascínio consiste, aliás, em grande parte, na maciça e tranquilizadora
corpulência à Pierre Bezukov. Sua pena é, todavia, digna daquela graça, pousa
leve e graciosa nos pormenores como uma borboleta sobre as flores, fixa a ampla
nitidez do dia. A fenomenologia tem razão, o simples aparecer das coisas é bom
e verdadeiro, a superfície do mundo é mais real do que as gelatinosas cavidades
interiores. Santo Agostinho estava parcialmente enganado, quando aconselhava a
não sair de si mesmo: quem permanece sempre no interior, divaga e se perde,
acaba por queimar incenso a algum ídolo de fumaça saído do lixo dos seus
temores, vazio e insidioso como os íncubos que a oração da noite intima a
desaparecer.”
“O Danúbio é um rio austríaco e austríaca é a
desconfiança na história, que resolve as contradições eliminando-as; na síntese
que supera e anula os termos em jogo; no futuro que aproxima a morte. Talvez
hoje a velha Áustria nos pareça muitas vezes uma pátria congenial, porque era a
pátria de homens que duvidavam de que seu mundo pudesse ter um futuro e não
queriam resolver as contradições do velho Império, mas adiar as soluções, pois
se davam conta de que qualquer solução comportaria a destruição de alguns
elementos essenciais para a heterogeneidade do Império e, portanto, o fim do
próprio Império. Para chegar à bacia do Breg é preciso descer, ainda que por
poucos metros, a breve encosta. Ali começa o rio, a sua descida. Seguindo-a, é
oportuno procurar também paradas, desvios, atrasos, pois, como sabia Rilke, não
é o caso de pensar em vitórias, mas sobreviver é tudo.”
“A história adquire sua realidade só mais
tarde, quando já passada, e as conexões gerais, instituídas e escritas anos
depois nos anais, conferem a um evento sua importância e seu papel. Recordando
a derrota búlgara, evento decisivo para o desfecho da Primeira Guerra Mundial e
por conseguinte para o fim de uma civilização, o conde Károlyi escreve que,
enquanto o tinha vivido, não percebera sua importância porque “naquele momento
‘aquele momento’ ainda não tinha se tornado ‘aquele momento’”. Também para
Fabrizio del Dongo a batalha de Waterloo, enquanto ele a está combatendo, ainda
não existe. No puro presente, a única dimensão em que todavia se vive, não há
história; em instante nenhum há o fascismo ou a Revolução de Outubro, porque
naquela fração mínima há tão-somente a boca que engole a saliva, um gesto da
mão, um olhar que pousa sobre a janela. Como Zenão negava o movimento de uma
flecha arremessada pelo arco porque em cada instante ela estava parada num
ponto do espaço e a sucessão de instantes imóveis não podia ser movimento,
assim se deveria dizer que não a sucessão daqueles instantes sem história cria
a história, mas sim as correlações e os acréscimos trazidos pela
historiografia. A vida, dizia Kierkegaard, só pode ser entendia olhando-se para
trás, mesmo tendo que ser vivida olhando para frente – ou seja, para alguma
coisa que não existe.”
“O amor não é suficiente para criar a poesia,
mesmo que às vezes seja necessário.”
“O infortúnio fascista de Heidegger não é um
acidente ocasional, porque o fascismo, na sua dimensão menos abjeta mas nem por
isso menos destrutiva, é também esta atitude de quem sabe ser bom amigo de seu
companheiro de banco mas não se dá conta de que também outros homens podem ser
igualmente amigos de seus companheiros de banco. Eichmann era sincero quando em
Jerusalém ficou horrorizado ao saber que o pai do capitão Less, o oficial
israelense que o interrogara durante meses e pelo qual sentia profundo respeito,
morrera em Auschwitz. Ficou horrorizado porque sua falta de fantasia o impedira
de reconhecer, nas cifras das vítimas, rostos, feições, olhares, homens
concretos.”
“A consciência coletiva, que não se dispõe a
superar a violência mas não ousa tampouco olhá-la de frente, sublima o egoísmo
e as opressões num frívolo culto do sentimento e da paixão, naquela cultura que
Céline qualificou fulminantemente de “bidê lírico”. Este último, ignorante da
verdade elementar do sexo e do amor, é o reino das grandes mentiras
intermediárias, a liricização da atividade das gônadas, as palpitações do amour-passion chamadas a justificar o
engano e o auto-engano. Poeta do sexo e da nostalgia de amor, Céline
desmascarou implacavelmente a falsificação sentimental, a ausência de
verdadeiro sexo e verdadeiro amor, aquele afluxo de sangue ao baixo-ventre que
sente a necessidade de nobilizar-se subindo para o alto e exalando em comovido
suspiro a incapacidade de amar e a baixeza de colar ao sexo, quando não se ama,
uma muleta sentimental que acaba fazendo os outros tropeçarem e quebrarem a
perna. O bidê lírico, ao contrário das grandes religiões, tem sempre a
necessidade de dourar a pílula.”
“Uma fé, vivida e concretizada nos gestos do
corpo, confere aquela tranquila certeza vital que permite atravessar o mundo
sem que o coração se perturbe.
Não é necessária uma fé em Deus, basta a fé
nas coisas criadas, que permite mover-se entre os objetos persuadido de que
eles existem, convencido da irrefutável realidade da cadeira, guarda-chuva, do
cigarro, da amizade. Quem duvida de si está perdido, como quem, temendo não
conseguir fazer amor, não o consegue. Somos felizes junto às pessoas que nos
fazem sentir a indubitável presença do mundo, assim como um corpo amado nos dá
a certeza daqueles ombros, daquele seio, daquela curva das ancas e da sua onda
que nos sustenta como o mar. E quem não tem fé, ensina Singer, pode
comportar-se como se acreditasse: a fé virá depois.”
“É indiscutível a vantagem que Neweklowsky
tem sobre os fiéis de outros cultos (o dele é no rio Danúbio). Quem acredita em
Deus pode sentir-se de repente abandonado, como aconteceu até mesmo a Jesus na
cruz, pode ver a realidade desaparecer à sua volta e debaixo de seus pés. O pio
Chaim Cohen, mais tarde magistrado em Israel, foi para Auschwitz com a fé
ortodoxa de seus pais, mas quando voltou de Auschwitz também o seu Deus havia
sido exterminado, reduzido a cinzas no forno crematório. Também a revolução, o
comunismo, a messiânica redenção da história podem revelar-se um Deus que traiu
ou que não existe, como aconteceu a Koestler e a tantos outros. Swann vive
inteiramente na paixão por Odete, e percebe no fim ter se consumido por uma
mulher que não valia a pena. Também o cego e irracional amor pela cálida vida,
que sustenta alguns homens como uma intensa carga de desejo e de sedução, pode
afrouxar-se subitamente, de modo que o encanto erótico da vitalidade acaba como
Falstaff em uma cesta de roupa suja, a bandeira enfunada pelo vento torna-se um
esfregão para limpeza.
O Danúbio ao contrário, mesmo somente o
superior, existe, não desaparece, não promete aquilo que não mantém, não
abandona, corre fiel e verificável; não conhece o azar da teologia, as
perversões ideológicas, as desilusões do amor. Está lá, tangível e verdadeiro,
e o devoto que lhe dedica a própria existência sente-a fluir em harmoniosa e
indissolúvel união com afluência do rio. Esta constante harmonia faz esquecer
que ambos, o deus fluvial e o seu fiel, correm para o vale, para a foz.”
De mãos nuas
contra o Terceiro Reich
Em Ulm nasceu uma grande flor da
interioridade alemã. Hanz e Sophie Scholl, os dois irmãos presos, condenados à
morte e executados em 1943 por sua ativa luta contra o regime hitlerista, eram
de Ulm e hoje uma escola superior tem seu nome. Sua história é exemplo da
resistência absoluta que Ethos opõe a Kratos; eles souberam rebelar-se contra
aquela que a quase todo mundo parecia uma óbvia e inevitável aceitação da
infância. Como escreveu Golo Mann, eles combatiam de mãos nuas contra o enorme
poder do Terceiro Reich, enfrentavam o aparato político e militar do Estado
nazista munidos somente de seu mimeógrafo, com o qual difundiam as proclamações
contra Hitler. Eram jovens, não queriam morrer e desagradava-lhes deixar a
sedução dos dias de sol, como disse tranquila Sophie no dia da execução, mas
sabiam que a vida não é o valor supremo e que se torna amável e desfrutável
quando é colocada a serviço de alguma coisa que é superior a ela e que a
esclarece e a aquece como um sol. Por isso foram serenos ao encontro da morte,
sem temor, bem sabendo que o príncipe deste mundo já foi julgado”.
Um funeral
Ainda em Ulm se desenrolou na praça em frente
à sede do governo municipal outra cena do teatro alegórico da interioridade
alemã. Em 18 de outubro de 1944 aconteciam, na presença de Von Rundstedt, os
solenes funerais do marechal-de-campo Rommel. A multidão ignara dava-lhe a
última saudação, acreditando que tivesse morrido em consequência de um
ferimento recebido ao defender o Reich, ao passo que ele, envolvido na
conjuração de 20 julho e posto diante da escolha entre o processo e o suicídio,
envenenara-se. Este também é um paradoxo da interioridade alemã: Rommel não
temia certamente a execução, não lhe faltava a coragem com a qual, por exemplo,
Helmuth James von Moltke enfrentou abertamente o tribunal nazista do povo e o
enforcamento. As cartas que ele escrevia à esposa demonstram, na intensidade do
afeto, a responsabilidade de um homem íntegro. Provavelmente acreditou, naquele
momento, prestar um serviço à sua pátria, já tão periclitante, evitando a
perturbação e a incerteza que o processo teria espalhado na Alemanha, com a
transformação súbita de um grande soldado num inimigo da nação.
Com seco autocontrole e num supremo mas
paradoxal sacrifício, silenciou a voz da própria consciência e deu uma indireta
mas importante ajuda ao regime hitlerista, que procurava derrubar, e a Hitler,
a quem desejara matar. Sua educação não lhe permitia distinguir claramente, nem
naquele momento, entre seu país e o regime que o pervertia e o traía, afirmando
encarná-lo. Aliás, as próprias potências aliadas desconfiadas e obtusas diante
das propostas avançadas pelo Estado-Maior alemão para derrubar o nazismo,
tiveram certamente não pouca responsabilidade – desde a paz cartaginesa de
Versalhes – nessa letal identificação do país com o regime. Na escolha do
Rommel teve certamente um papel de destaque aquela educação alemã para o
respeito e a fidelidade que é por si mesma um grande valor, a lealdade para com
os que estão ao lado e para com a palavra dada, mas que está tão profundamente
arraiga que não se consegue arrancá-la nem quando o torrão natal se tornou um
pântano podre. Aquela fidelidade é tão forte que impede às vezes de perceber o
engano do qual se é vítima, de compreender que nos tornamos fieis não de nossos
deuses, mas de ídolos monstruosos e que, em nome da autêntica fidelidade, é um
dever rebelar-se contra quem a exige abusivamente.
Também Von Stauffenberg, que cometeu atentado
contra Hitler, estava dilacerado pela cisão alemã entre fidelidade à pátria e
fidelidade à humanidade, e isso pôde ajudar a entender a dificuldade de uma
resistência armada e organizada na Alemanha. Mas certamente não foi só na
Alemanha do Terceiro Reich que se apresentou o dilema fundamental, mascarado
sob tantas formas, entre fidelidade ao universal e fidelidade à própria tarefa
imediata – entre ética da convicção e ética da responsabilidade, como disse Max
Weber, diagnóstico ainda insuperado das contradições entre os sistemas de
valores dentro dos quais avança nossa civilização. Entre os crimes do nazismo
há também a perversão da interioridade alemã; na encenação daquele funeral
celebrado em frente ao governo municipal de Ulm há a tragédia de um homem
íntegro representada como mentira.
“Grillparzer não pode certamente ver em
Napoleão, como Hegel, a alma do mundo a cavalo mas sim um parvenu que exerce o poder em nome de um desenfreado egocentrismo e
não de uma ideia superior; da experiência napoleônica nasce de fato em 1825 o
drama A felicidade e o fim do rei Ottokar,
no qual Grillparzer contrapõe Rodolfo de Habsburgo, fundador da linhagem e
encarnação do poder exercido humildemente como officium suprapressoal, a Ottokar da Boêmia, que quer e exerce o
poder por ambição individual. Napoleão é portanto para ele o símbolo de uma
época que vê a subjetividade (nacional, revolucionária, popular) destacar-se da
religio da tradição e provocar com a
nacionalização das massas, o fim do cosmopolitismo do século XVIII racionalista
e tolerante.
Napoleão é “febre de uma época doente”, mas,
como a febre, é uma reação violenta que pode “eliminar o mal” e levar à cura.
Grillparzer qualifica-o de “filho do destino”, confere-lhe a auréola de quem,
como Hamlet, é chamado a repor no lugar o tempo que saiu dos eixos; mas ao
Corso falta a humildade de Hamlet, ao qual a consciência da sua tremenda missão
faz dizer “ai de mim”, tornando-o consciente da sua inadequação pessoal.
Napoleão é, ao contrário, pequeno porque se arroga o direito de ser grande, mas
só se tornará realmente grande na queda, na expiação religiosa, no
reconhecimento da própria vaidade, como Ottokar, no drama, ascende à verdadeira
realeza quando é vencido e humilhado na batalha e no amor, acossado pela
velhice, reduzido a mendigo, ou seja, a homem verdadeiro.
Napoleão, que afirma que na Idade Moderna a
política tomou o lugar do destino, representa para Grillparzer o totalitarismo
ou a politização total da vida, a irrupção da história e do Estado na
existência do indivíduo, absorvida nos mecanismos sociais. A essa mobilização
geral, própria da sociedade moderna e do napoleonismo – no qual Grillparzer
distingue o aspecto caudilhesco, mas não percebe o impulso democrático e a ação
emancipadora –, contrapõe-se o ethos
josefino do fiel servidor do Estado, que cumpre com abnegação o próprio poder,
mas traça também os limites da ingerência da política defendendo a distinção
entre esfera pública e esfera privada.
Grillparzer define como “assustadora” a
unilateralidade de Napoleão, que “vê em toda parte só as suas ideias e
sacrifica tudo a elas”; contra o totalitarismo ideológico a tradição austríaca
defende o detalhe sensível, o particular erradio, a vida irredutível ao
sistema.
A civilização austríaca se inspira numa
totalidade barroca transcendente à história ou numa dispersa fragmentação
pós-histórica, que segue o dilúvio da história moderna; em ambos os casos ela
recusa os critérios de uma valoração puramente histórica, os metros segundo os
quais conferimos importância aos fenômenos e os distribuímos numa ordem de
grandeza. A civilização austríaca defende o marginal, o transitório, o
secundário, a parada e a pausa do mecanismo que pretende queimá-los para
conseguir resultados mais importantes.
Napoleão personifica, ao contrário, a moderna
febre de agir que aniquila o otium e
o efêmero, e destrói o instante na sua impaciência de prosseguir. No seu
romance Os cem dias, Joseph Roth
retomará o velho boato da ejaculatio
praecox do imperador, fazendo dela o símbolo da sua ansiosa pressa que deve
fazer tudo rapidamente, que sempre tem algo mais a fazer e em cada instante
pensa já no seguinte, sem poder parar nem ao menos no amor e no prazer, porque
quem não está persuadido não quer fazer, mas já ter feito.
A perspectiva austríaca é excêntrica em
relação ao mito napoleônico europeu, que conhece outras entonações – do
fascínio por uma grande vida que emerge e se levanta do nada, presente em
Stendhal ou em Dostoiévski, ao pathos
apocalíptico de Léon Bloy. Grillparzer intui alguns aspectos da modernidade
napoleônica, mas lhe contrapõe um ethos
josefino iluminista-burocrático, que no seu tempo tinha sido radicalmente
inovador mas que na era napoleônica ia se transformando apesar da tenaz
resistência da sua grande e progressiva tradição ético-política, em aparato do
imobilismo.”
“Aqui em Günzburg, nesta cidadezinha que foi
chamada a pequena Viena durante o período habsbúrgico nasceu Josef Mengele, o
médico algoz de Auschwitz, talvez o mais atroz assassino dos Lager; aqui ficou
escondido até 1949, em um convento, e aqui voltou furtivamente em 1951 para o
funeral do pai. Em Auschwitz, Mengele, sempre sereno e sorridente jogava
crianças no forno, arrancava lactentes dos braços das mães e os esfacelava no
solo, extraía fetos do ventre materno, fazia experiências com pares de gêmeos –
com particular paixão por gêmeos ciganos – arrancava olhos, que conservava
espetados na parede do seu quarto e enviava ao professor Otran von Verschuer
(diretor do Instituto de Antropologia em Berlim e professor da Universidade de
Münster até depois de 1953), injetava vírus, queimava genitais. Talvez esteja
ainda vivo e há quarenta anos foge da caçada*. Certamente, até mesmo um homem
que mata outro por divertimento obrigando o filho deste a assistir à cena, pode
amar o próprio pai.
A infâmia atrai cumplicidades: Mengele foi
libertado pelos americanos, talvez ajudado a fugir pelos ingleses, escondido
pelos frades, protegido pelo ditador do Paraguai. Certamente o nazismo não é a
única barbárie que existiu no mundo, e condenar hoje a violência nazista, que
não é mais ameaçadora, serve a muitos para calar outras violências, realizadas
sobre outras vítimas de outra raça e cor, e ficar em paz com a consciência
graças a essa profissão de fé antifascista. Mas é também verdade que o nazismo
foi um apogeu, um vértice insuperado da infâmia, o nexo mais estreito que já
existiu entre uma ordem social e a ferocidade. É desencaminhador recorrer a
explicações patológicas, no caso do sádico médico sorridente, como se se
tratasse de um doente vítima de uma pulsão irrefreável. Em Günzburg, no
convento onde havia se homiziado, não arrancava olhos nem cortava vísceras, e
não creio que sofresse crises de abstinência; terá se comportado bem, um senhor
tranquilo e discreto que talvez regasse as flores e escutasse respeitosamente o
ofício vespertino. Não matava, porque não podia fazê-lo, porque as
circunstâncias o impediam, e resignava-se sem inquietação a esta renúncia, aos
limites que a realidade impunha às suas aspirações, assim como alguém deixa o
coração em paz se não pode tornar-se multimilionário ou ir para a cama com as
estrelas de Hollywood. Timor Domini, initium sapientiae; na ausência de uma
lei, de um temor, de uma barreira que impeça fazer aquilo que em Auschwitz se
podia fazer impunemente, não só o dr. Mengele, mas talvez cada um de nós pode
tornar-se Mengele.”
*: Mengele fugiu
para a Argentina, Paraguai e por fim para o Brasil, onde adotou o nome falso de
Wolfgang Gerhard. Morreu em 7 de fevereiro de 1979 na cidade de Bertioga, São
Paulo, sem pagar pelos crimes que cometeu.
“As vítimas algumas vezes aplainam a estrada
para os seus prevaricadores, nem por isso menos culpados.”
“Certamente Roma era também e sobretudo
domínio, e a universalidade por ela reclamada era uma máscara do domínio e como
tal destinada a perecer, apesar das pretensões de eternidade; para cada poder
que se arroga o direito de representar o universal e a civilização vem o
momento de sofrer o castigo e de ceder as armas a quem, até pouco antes, era
considerado um rude inferior.”
“No cemitério de Sankt Peter, na periferia de
Straubing, as lápides, espalhadas em volta da igreja como num jardim,
testemunham vidas tranquilas, que repousam no orgulho de classe: aqui jaz Adam
Mohr, fabricante de cerveja, conselheiro municipal e tenente da Guarda Nacional
bávara, morto em 1826. O orgulho de classe sela uma pia harmonia entre o
indivíduo e a comunidade, mas transforma-se rapidamente em ferocidade quando
outras leis ou outras vozes do coração põe o indivíduo em contraste com a ordem
social e o induzem a perturbar, mesmo sem querer, esta última. Numa das três
capelas há o monumento fúnebre de Agnes Bernauer, a lindíssima filha do
barbeiro de Augsburgo, que em 12 de outubro de 1435 o duque Ernesto de Baviera
mandou afogar no Danúbio, sob a acusação de feitiçaria, porque desposara seu
filho Alberto e ameaçava, com essa mésalliance,
a política dinástica e a própria ordem do Estado.
O monumento fúnebre, que mostra Agnes
Bernauer com um rosário na mão e dois pequenos cães a seus pés, símbolo da
fidelidade conjugal que unia a moça do povo e seu esposo principesco, foi
construído pelo duque Ernesto, seu matador. A tradição, recolhida pelo drama de
Hebbel, é um apólogo da razão de Estado: o duque Ernesto teria admirado
profundamente as virtudes e a personalidade de Agnes, o amor puríssimo que a
ligava a seu filho, e teria decidido com firmeza mas, a contragosto, eliminá-la
brutalmente em vista das consequências políticas provocadas pelo casamento e pelas
sucessivas complicações – desordens, guerras, rebeliões, divisão e colapso do
Estado, lutas fratricidas e miséria. Realizado este sacrifício, ou delito de
Estado, o duque prestou homenagem à firmeza moral e à inocência da vítima,
erigindo-lhe – agora que não constituía mais um perigo – um túmulo que a
lembrasse nos séculos e retirando-se ele próprio para um claustro; seu filho
Alberto, que tomara armas contra ele para defender e em seguida para vingar a
esposa, recuperou rapidamente sua posição nos escalões políticos e dinásticos
e, reconciliado em nome da razão de Estado com o pai que fizera dele um viúvo,
assumiu o cetro ducal e passou depois a novas núpcias mais condizentes com sua
condição.
Agnes foi afogada no Danúbio e até o fim
recusou-se a salvar a vida renegando o marido. Para afogá-la, uma vez que
boiava nas ondas, os sicários do duque tiveram de enrolar seus lendários
cabelos em volta de um pau e mantê-la longamente com a cabeça debaixo d’água,
até que morreu. A acusação formal era de bruxaria. Relembrando o episódio, o
Antiquarius, que escreve no fim do século das luzes, não pode mais considerá-la
uma bruxa, mas como bom burguês seculariza a superstição e diz com desdém que
ela tinha “vergonhosamente” seduzido o duque Alberto, o qual, contudo, não era
uma criança, mas um cavaleiro, na flor da idade, e a tinha conhecido e
cortejado durante um torneio em Augsburgo. Um fio vermelho liga Emmeram
Rusperger, o jurista que formula a acusação de feitiçaria contra Agnes, o
Antiquarius que a considera uma sem-vergonha e a opinião comum ainda hoje
difundida, segundo a qual se um pai de família abandona esposa e filhos para
juntar-se a uma mocinha de vinte anos, só esta é culpada e ele é uma pobre vítima.
Pena que o drama sobre Agnes Bernauer não tenha sido escrito por Marieluise,
pois ela o teria escrito do lado de Agnes Bernauer. A tragédia, em vez disso,
foi escrita, sem dúvida com notável força poética, por Friedrich Hebbel, em
1851. Hebbel está cheio de admiração pela mulher límpida e lindíssima, que
conhece os artigos da fé cristã como a Margarida do Fausto, e em cuja garganta, quando bebia, via-se transparecer o
vinho como através de um cristal. Agnes deve morrer “só porque é linda e
honesta” e porque, quando a ordem do mundo é perturbada e o Senhor intervém não
com a sachola mas com a foice, que golpeia sem distinção justos e malvados,
“não é mais questão de culpa ou de inocência, mas simplesmente de causa e
efeito”, ou seja, é só questão de eliminar a causa da perturbação. Hebbel
embriaga-se com este pathos da razão
de Estado; a nobreza e a pureza do indivíduo só servem para aumentar a solene
sacralidade de quem se coloca, como o duque Ernesto e o próprio poeta, do lado
da totalidade, que está sempre com a razão e tanto mais parece estar quanto
mais subjetivamente inocente e admirável é o indivíduo que é sacrificado.
A poesia é chamada a celebrar este
sacrifício, que é também auto-sacrifício, porque é a repressão da amorosa
simpatia que a poesia, por sua natureza, sente pelo indivíduo, pela vítima, por
Agnes Bernauer. “A grande roda passou por cima dela” diz o duque Ernesto,
depois de mandar matá-la. “Agora ela está ao lado daquele que a faz girar.”
Como todo pathos do objeto, que se
exalta com a aniquilação e a auto-aniquilação do sujeito, também este é
suspeito; toda grandiloquência da totalidade é também sublime disfarce da
vulgaridade filisteia do Antiquarius. Há uma retórica da objetividade que
parece, na sua estentórea brutalidade, uma paródia da relação entre as
exigências coletivas de uma sociedade e as pessoais de seus componentes. O tom
exultante com que tantos advogados não solicitados do Todo repetem as palavras
de Hegel – “quando se aplaina caem aparas” – é uma caricatura do pensamento
hegeliano e de todo pensamento que leva em conta, responsável mas não
enfaticamente, a realidade político-social.
Hebbel está seguro de que aquela “violência”
é “violência do direito”. O advogado da totalidade está de fato sempre certo de
alguma coisa que, ao contrário, fica sempre por demonstrar, isto é, de
representar a história, os interesses gerais. Poderia, por exemplo, ser verdade
o contrário: o casamento de Alberto com Agnes ameaça, está dito na tragédia,
desagregar o ducado bávaro e dessa desagregação depreende-se, poderia
aproveitar-se o imperador para reafirmar sobre os príncipes a sua autoridade
central, assim como a águia se apodera da presa que os ursos estão disputando.
Mas a história, o todo, poderia desejar esta vitória do Império sobre o particularismo
dos príncipes, e neste caso o duque Ernesto seria o representante de uma
ambição subjetiva e o casamento de Agnes Bernauer seria não infração, mas
expressão da totalidade. Poderia ser Agnes a encarnar naquele momento o Weltgeist, o espírito do mundo.
Não existe um quadro dos procuradores legais
deste último e o alvoroço entre os que se arrogam o direito de usar o título é
indecorosamente interminável. O desejo de marchar com os tempos, e de
incorporar-se em seu cortejo, é a regressiva e fascinante nostalgia de se
libertar de toda escolha e de todo conflito, ou seja, da liberdade, e de achar
a inocência na convicção de que é impossível ser culpado porque é impossível
escolher e agir de maneira autônoma. A poesia, no drama de Hebbel, é a sereia dessa
ilusão, dessa abdicação; inocente, na tragédia, não é somente Agnes, mas também
e sobretudo seu assassino. “Há coisas”, diz o duque Ernesto falando do seu
crime, “que é preciso fazer como que em sonho; esta, por exemplo.”
Também Grillparzer escreveu um drama sobre a
razão de Estado, a Judia de Toledo,
no qual os Grandes de Espanha decidem-se a matar Rahel, a linda e demoníaca
amante do rei de Castilha, que o mantém numa espécie de inerte servidão
amorosa, paralisando o reino que se acha assim exposto à agressão dos inimigos,
à guerra, à chacina e à ruína. Mas Grillparzer contrapõe, diria Max Weber, a
ética da convicção à da responsabilidade, mostrando as razões de ambas e não
sacrificando uma à outra, mas evitando toda reconciliação de seu conflito que aparece
irredutível e por isso mesmo trágico. Os Grandes de Espanha que mataram Rahel
perseguiram “o bem, mas não a justiça”; eles acreditam ter feito o seu dever
para com o Estado, mas não acreditam que o fim perseguido torne menos delituoso
seu ato e justifique a violação de um mandamento universal. Eles se reconhecem
culpados e assassinos, pedem perdão a um Deus longínquo e misterioso.”
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