Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3590-241-9
Tradução: Sergio Tellaroli
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Aos cinquenta anos de idade, um músico erudito alemão tem um grande
projeto: escrever uma ópera baseada na obra do poeta russo Ossip Mandelstam
(1891-1938). Dinheiro não é problema, pois há tempos ele se dedica também a
compor trilhas sonoras para seriados policiais de televisão. A música erudita
contemporânea não lhe trouxe reconhecimento de público ou crítica, mas os
seriados de TV garantiram-lhe fama, fortuna e estabilidade.
A calmaria de sua vida, porém,
está prestes a ser abalada. Judit, a filha de 23 anos de Maria, uma ex-namorada
húngara, bate à sua porta em Munique, onde pretende concluir os estudos de
violoncelo.
Seduzido pela réplica perfeita
de Maria, o músico é atormentado pelo desdém que ela demonstra por sua obra e
pelas novas regras cotidianas impostas pela garota. Um ciúme doentio de Judit
toma conta do seu dia-a-dia. É em torno desse estranho triângulo amoroso que se
desenvolve a história contada em A violoncelista.
Michael Krüger explora com
maestria o lado cômico desse imbróglio, ao mesmo tempo em que o emprega como
pretexto para passar em revista os ideais políticos e artísticos da conturbada
segunda metade do século XX.
“Começara a suar,
pois era-me embaraçoso importunar homem tão importante, e tão completamente
exausto da longa viagem, com meus farrapos de uma língua que apenas de longe, e
somente pela melodia, lembrava o italiano, mas o escritor pareceu-me tão
absorto no planejamento das horas restantes até o recital que não teve tempo de
dedicar atenção àquele meu embaraço. Curiosa criatura. Ao contrário dos colegas
alemães e do próprio Günter – de quem eu obtivera todos os detalhes sobre a
vida do italiano –, ele parecia não se preocupar muito com sua obra. Odiava
aparições, odiava recitais, jamais comparecia a homenagens se demandavam dele
algum discurso, e recusava premiações. Tinha mais de sessenta anos e morava
ainda com a mãe numa casa atrás do panteão. Ela cerzia suas meias, punha suas
cartas no correio e atendia o telefone, lamentando que o filho – de pé e
trêmulo ao seu lado – não estivesse em casa. Dormiam em quartos separados, mas
sempre de porta aberta. Eu o considerava um grande humorista, um Gogol italiano;
ele se via como um grande autor trágico, o que, afinal, prolongando as duas
linhas o bastante, dava no mesmo.”
“Muitas vidas são
consumidas para que uma dê certo, disse-me ele: aqui na Hungria, cem para uma.”
“Enquanto pensava
numa boa razão para partir pela quarta vez à procura do edifício, um cão se
juntou a mim, jovem e sarnento; as orelhas, apartadas de um modo singular,
pareciam ter sido parafusadas dos dois lados da cabeça; um cão que
evidentemente desejava tomar parte de meu destino. É certo que ele mantinha um
olho na cestinha contendo o jantar, por entre cujas malhas largas entrevia-se o
papel pardo de embrulho que envolvia não apenas o peixe e os legumes, mas
também a linguiça que eu comprara para o ulterior café da manhã; mas seu outro
olho, ou assim acreditei, apreendera meu problema: sua escura amizade
dirigia-se apenas a mim, o soturno ascético. Como estivéssemos defronte à casa
de Lukács, chamei-o György, o que pareceu tê-lo agradado, pois ele se pôs de
imediato a abanar amistoso as orelhas estropiadas. Enquanto eu o alimentava com
pedacinhos de linguiças que, apoiados nas patas traseiras e feito um aluno
aplicado, ele deglutia sem fazer nenhum movimento reconhecível de mastigação,
György contou-me sua terrível história, que, a despeito de todo o exagero de
que somente um cão vadio é capaz, me agradou de tal maneira que não me restou
alternativa senão lançar-lhe ainda goela abaixo a última pontinha de linguiça.
Você está exagerando, György, disse eu, depois de ele haver afirmado conhecer
cada gato-pingado daquele nobre bairro. Todo cachorro húngaro exagera, na hora
decisiva da linguiça, mas seus exageros são desmedidos.”
“E, quando eu
tentava me concentrar para, depois de todos os desaforos daquela noite,
encontrar o sono, ali estava ela, sentada na beirada da cama, como que trazida
pelo vento.
Você já está
dormindo?, perguntou.
Não, respondi,
estou pensando.
E no que pensa um
homem à meia-noite?
Em nada.
Você é budista,
para conseguir não pensar em nada?
Não, rebati, sou
um cristão apaixonado pelo cansaço, perguntando-se que pecados cometeu para que
a filha de vinte e dois anos de uma amiga húngara o atormente desta maneira.
Eu apenas disse a
verdade, respondeu ela. E Maria concorda comigo. Disse que eu tenho de ficar de
olho em você, do contrário você se arruína sozinho. Você precisa compor.
E como é que eu
posso compor, Judit, se, de manhã até a tarde, tenho de ficar cavando jardim,
pintando janelas, construindo poço e me deixando insultar?
Em Munique, você
já não compunha. Ficava o dia inteiro sentado entre os livros, fazendo nada –
essa é a verdade.
A verdade não
existe, disse eu: pelo menos é o que dizem os inúteis dos livros!
Se seus livros
dizem um absurdo desses, melhor não lê-los. É claro que existe a verdade da
arte!
Muito bem,
respondi cansado, mas ela se esconde atrás de muitas máscaras, e ninguém sabe
quais.
Então, é seu dever
atraí-la para fora. Com sua música.”
“Não era
desagradável estar sozinho de novo. Desaparecem os afazeres que surgem quando
duas ou mais pessoas vivem juntas, silenciam os chamados em voz alta, o ruído
de passos, as eternas perguntas e admoestações. Eu trabalhava, alimentava os
animais, saía para passear. Quando alguém é obrigado a providenciar seus
próprios passatempos, ocorre-lhe coisas que não vêm à tona em meio a um grupo
de pessoas. Muitos preferem buscar companhia, outros suportam bem a vida de
cônjuge, e outros, ainda, encontram prazer em sentar-se ao lado das demais
pessoas em jogos de futebol ou apresentações teatrais. Há aqueles que acham perfeitamente
natural exercer seu domínio sobre os outros. E há aqueles que precisam ajudar
os outros o tempo todo. Somente poucos, porém, são capazes de ficar sozinhos de
fato. E, sendo eles tão poucos, são alvos de suspeita.”
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