Editora: Ediouro
ISBN: 978-85-00-0220-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136
Sinopse: Alguém
que comete um ato monstruoso é necessariamente um monstro? Início da década de
1980, a era dos yuppies e da geração new wave. Uma personagem principal, sem
nome, disposta a contar tudo que o pai, à beira da morte, não sabia sobre a
vida dela. Até os seus piores pecados.
“Mas um livro é um livro. Precisa ser
entendido como um todo, mas apreciado por partes.”
“Pois bem, pai, esse é um exemplo do quanto
esse empreendimento é complicado. Refiro-me a contar minha vida para você. Se o
faço, é porque me é uma necessidade; não de expurgar ou de esclarecer algo em
mim mesma; não, não é com o pensamento voltado à ilusão “cabeça” da autoanálise
que me esmero nessas páginas; mas porque você está morrendo e não me conhece. E
eu faço questão de que vá para o inferno sabendo como foi paga sua passagem. Foi
com isso que me tornei, por sua culpa, uma pessoa que se sente
insuportavelmente sozinha o tempo todo. Posso me cercar por multidões, pulando
carnaval, que morro de solidão ali no meio. Não há companhia, ou emoção
coletiva, ou comoção nacional, que me livre de estar só. Festas acontecem ao
meu redor, sem que eu nunca me estabeleça como integrante. Pelo contrário,
odeio quietinha todas elas, as festas, porque não suporto qualquer manifestação
de felicidade. Odeio férias, odeio os feriados, odeio mesas grandes em
pizzarias. Detesto Natal, tenho raiva do verão, fujo de aniversários. Tudo
isso, paizinho, eu devo a você.”
“Com certeza eu não me permitiria o vexame de
tentar provar nada para os meus filhos.”
“Odeio sonhar por causa disso: nós vemos como
estamos internamente. Não dá para disfarçar diante de um sonho. Através das
mudanças dos delírios sem nexo, revelamos uma radiografia das nossas partes
internas, implacável, em que cada mancha, mesmo após mil lavagens, pode ser
detectada, gritante, no lençol que encobre as nossas verdades.”
“A mais cruel das rejeições é a de mãe e
pai.”
“Um imbecil letrado é algo dantesco. Mil
vezes os imbecis ignorantes, mil vezes os analfabetos.”
“Todo segredo requer mentiras.”
“– Eu acho que perdão precisa ser
pronunciado: perdão – disse a mulher.
– Não concordo, acho até meio ridículo esse
negócio do perdão em voz alta. O gesto do perdão é maior do que um papo-cabeça.
Um perdão num diálogo pode ser mais falso do que um perdão insinuado. Há,
nessas conversas, uma grande dose de teatro. A dramaturgia do leito de morte,
principalmente, de um pai distante, tende a ser cínica e mentirosa.
– Eu te conheço e sei que você não gosta de
conversas dessa ordem, que nós chamamos de debater relação.
– Nada a ver.
– Tudo a ver. Você evita conversas intensas,
sempre evitou. Não creio que faça isto por frieza, mas por total constrangimento.
Somos casados há anos e todas as nossas crises foram resolvidas no silêncio. Silêncio
que pode até ser menos vexaminoso, mas nos deixa sempre à beira de um abismo.
Que existe, mas que a gente contorna. Até que um dia tropeçamos nesta elegância
do não-debate e caímos lá embaixo. Então eu pergunto: para que nos terá servido
a intimidade? Para nada. Porque não fomos capazes de nos expor.
– O teatro tem o seu valor.
– Tem, os diálogos têm a sua verdade, mesmo
que os termos desta psicanálise de revista feminina nos tornem, todos,
personagens ridículos.
O marido olhou para mim, como quem diz:
“pirou”. Notei que seu rosto estava mais vermelho do que deveria estar. Pensei
em pegar a minha bolsa e deixá-los ali, com suas misérias, indo resolver as
minhas. Devo confessar que concordo com ela, mas sou como ele: acho um saco
certas sentimentalidades. Nesses debates, estilo sincerão, o que mais me irrita
é que todo mundo tem razão. Então, resolvi dizer isso:
– Eu acho que todo mundo tem razão. Este é o
ponto que torna a discussão infundada. Não a de vocês, todas. Acho até que
nunca participei de uma conversa tão sensata quanto esta, mesmo porque me
identifico com ambas as partes. O que comprova que nada disso faz sentido. Se
eu conversasse com meu marido, ou melhor, ex-marido, nós dois estaríamos
certos. Ele, em ir, eu, em odiá-lo por ir. É isto que me desanima.
– E se nós dois tivéssemos conversado, todas
as vezes que estivemos à beira de algum abismo, é bem provável que um de nós já
tivesse empurrado o outro lá embaixo.
– Discordo. Eu não sou uma maluca que quer
ficar debatendo cada sensação conflitante. Mas nós passamos por coisas sérias,
que se tornaram maiores, porque não foram excretadas da nossa mente. Não é,
papai?
– Eu não quero me meter nisso.
– Não vai se meter em nada. Estou falando em
teoria.
– Em teoria, os homens têm vergonha desse
troço de conversa. Entendo que às vezes elas são necessárias. Mas existem
certas deficiências que o tempo traz para as relações, que palavras apenas
pioram. Certos assuntos que sabemos, mas se não falarmos sobre, podemos fingir
que ninguém percebeu.
– Mas qual é a vantagem de fingir que não há
o problema?
– Quando ele é insolúvel, a vantagem é que
você não terá que resolver algo que não tem como ser resolvido.
– Tipo o quê?
– Tipo o fim do amor. Para os mais jovens, o
fim do amor pode ser resolvido com o término do casamento. Inclusive, acho isso
uma grosseria... Isso que não entendo nesse assunto de abismo... Desculpa,
filha, mas abismo é viver. Não estamos à beira dele, estamos nele. E todo mundo
age como se fosse um herói por contornar crises, por meio do debate, ou não.
Todo mundo vai fazer análise, justamente para não olhar para a pessoa ao lado e
dizer: eu tenho vontade de vomitar quando escuto os teus passos. E isso não se
diz numa conversa. Você não pode virar para a mãe de seus filhos e falar:
“Olha, eu não te odeio, te desejo tudo de melhor, mas eu não te amo mais”, sem
que isso venha cheio de acusações. Quando, no fundo, no fundo, amor não dura. E
nem venham me falar que o que não dura é paixão. A ideia do amor está lá, faz
parte de nossa cultura, essa tal transformação do amor. Podemos dizer: eu não
te amo como te amei, mas esse amor se transformou, e eu amo ver televisão com
você, eu amo saber que, se eu tiver um treco e ficar todo cagado, você me
limpará. Isso é que é indiscutível. O amor não se transforma, ele se esgota, e
a gente vai levando, por vários motivos. E, saibam, muitos desses motivos não
são nada nobres.”
“O que leva uma mãe a foder com a vida da
filha? Inveja, será? É uma possibilidade. Mas que tipo de mãe sentiria inveja
da própria filha? Que monstro seria esse? Respondo: qualquer mãe. Todas elas.
Todas as mães sentem um pouco de inveja das suas filhas. É horrível dizer isso?
É. Mas é melhor do que ser cínica.
Tente imaginar, pai, o susto que é ser uma
garota. Na rua, somos cantadas, em casa, somos reprimidas. Querem-nos belas,
mas nos agridem se tentamos. Somos violentadas sob a capa do afeto. Parece
discurso feminista, eu sei. Mas não há como evitar: ser menina é um problema.
Mais um. Principalmente, para as meninas que nascem aqui no Brasil, uma país
onde a mulher, além da obrigação de ser bonita, tem a obrigação de ser a dona
da alegria. Aqui, mulher tem que fazer comida e fazer charme. Tem que ter
coragem e bunda. Tem que saber sambar e saber o seu lugar. Uma barbárie. Aposto
que você nunca tinha pensado sobre isso, tinha? Nenhum homem pensa. Eu penso.
Sobre como nos querem festivas e subjugadas. Efusivas e caladas. Dadas e
reservadas. O Brasil é macho, muito macho. É o pau-brasil, o bumba-meu-boi, o
saci-pererê, o berimbau, o futebol e o caralho a quatro. E as meninas
brasileiras são criadas para seguirem em frente sem perceber o quanto são
ridicularizadas. Aqui é pior que na China, na Índia, países onde as mulheres
são oficialmente inferiorizadas. Aqui, se disfarça. Somos enganadas, levadas a
crer que ser menina é isso mesmo: tomar na bunda sorrindo. Metáfora forte
demais? Não, nem é metáfora.
E eu não tenho inveja da minha filha? Tenho!
E eu tenho a chance de fazer uma diferença positiva, dentro do destino ingrato
que a aguarda, ao admitir meus sentimentos mesquinhos. Estou com quase 40 e ela
é adolescente – é óbvio que eu sinto inveja. E assumo que isto afeta a minha
relação com ela. Acho importante que minha filha saiba disso. Ela vai logo
ficar sabendo que o tempo, para uma mulher, é uma merda. Os homens envelhecem e
ficam mais maduros, as mulheres envelhecem e ficam desesperadas. Temos essa
fraqueza, e uma mãe deve ensinar a filha a lidar com isso. Hoje, enquanto ela
floresce, eu murcho. E ela tem a sorte de eu pertencer a uma geração mais
esclarecida, então posso dar tudo aquilo que não recebi. Sei reconhecer e
elogiar suas habilidades, pois não fui reconhecida nem elogiada. Tenho plena consciência
de que é necessário cumprir aquilo que prometemos – coisa recente entre as
famílias brasileiras. Aprendi com a vida e sei que se deve ensinar o que se
aprende, não o que nos ensinam. Sei que pintar o cabelo acaba com o brilho e
que devemos adiar esse recurso ao máximo. Sei que não é bom raspar as pernas
muito cedo, porque depois você vira um arame farpado ambulante. Sei que começar
a fumar é um vacilo, pois se trata do vício mais difícil de se largar. Sei que,
enquanto somos jovens, temos mais facilidade para aprender línguas. Sei que não
vale a pena contar com homem nenhum em momento nenhum. Mas que ela pode contar
comigo, mesmo sabendo que eu tenho inveja dela. Como não cobiçar a vida de uma
menina que terá tudo o que eu não tive? A inveja talvez seja, ao lado do amor
que sinto, um dos poucos sentimentos não-destrutivos em mim. Já que não a
alimento, mas a reconheço e a torno útil. Não aguento essa hipocrisia da
negação sistemática da inveja. Por que as pessoas são assim? Por que não
admitem que mentem, que fingem e às vezes morrem de raiva da felicidade alheia?
Eu fujo de gente que afirma não se irritar com nada. São, sem dúvida nenhuma,
os mais perigosos. Porque não pensam naquilo que sentem e, sem pensar, agem.
São como crianças, acreditam que um pensamento errado já é algo criminoso,
então abafam suas mentes numa vaga letargia disfarçada de cuca fresca. Dizem-se
calmos. Na verdade, estão atrapalhando o mundo e a natureza com seus
comportamentos antinaturais. Não existe o bem-estar completo, e isto definiu o
ser humano. Gente que não se incomoda com nada é o atraso da humanidade. Assim
como gente que diz não sentir ciúmes é o viés do amor. Prefiro arder. Prefiro
sentir a ser. Sinto inveja, mas não sou invejosa. Sei que as sensações antecedem
as ações, e é a ação que vale. Sendo essa consciência a única forma de nos
frear antes do abuso. É o desejo de dar uma surra num filho que impede a surra.
Sente-se vontade de estrangular um bebê que chora a noite toda, e imaginar essa
hipótese é que nos faz ver que um filho é a coisa mais importante da vida. Eu
morro de inveja, quando vejo minha filha sair linda, para encontrar os amigos;
mas não infernizarei a vida dela, como a minha mãe fez comigo. Irei, isto sim,
melhorar, entendendo o que sinto, porque eu não sou o que sinto.”
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