Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-97-2310-543-8
Tradução, prefácio,
nota biográfica e transcrições: J. Dias Pereira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 90
Sinopse: Ver Parte I
A presciência de Deus e a livre vontade do homem,
contra a definição de Cícero.
Cícero esforça-se por refutar (a ideia de destino),
mas julga que nada pode contra eles a não ser que suprima a adivinhação. Para o
conseguir, chega a negar que haja conhecimento do futuro e sustenta com todas as
suas forças que nenhuma previsão dos fatos pode haver, quer nos homens quer em Deus.
Desta maneira, não só nega a presciência de Deus, mas também procura destruir toda
a profecia, mesmo que ela seja mais clara do que a luz, com vãos argumentos e opondo
a si mesmo certos oráculos que facilmente se podem refutar — mas nem sequer isto
mesmo consegue.
Mas, ao refutar as conjecturas dos astrólogos,
a sua retórica triunfa porque elas na verdade são de tal jaez que a si próprias
se destroem e se refutam. Todavia, são muito mais desculpáveis os que admitem a
fatalidade astral do que ele, que suprime a presciência do futuro. Efetivamente,
é extremada insânia admitir que Deus existe e negar-lhe o conhecimento do futuro.
Quando ele próprio se deu conta disso escreveu
um texto sobre a ideia que a Escritura condensa na frase:
Disse o louco no seu coração: Não há Deus. (Salmo XIII, 1),
mas sem o fazer em seu próprio nome. Viu quanto
isso seria revoltante e molesto e encarregou Cota, nos livros De natura deorum
(Acerca da natureza dos deuses), de sustentar a discussão acerca desta matéria contra
os estoicos; mas antes quis pôr-se do lado de Lucílio Balbo, a quem tinha confiado
a defesa das opiniões dos estoicos, do que do lado de Cota que nega que haja qualquer
natureza divina. Mas nos livros De divinatione (Acerca da adivinhação), é
em seu próprio nome que abertamente ataca a presciência do futuro. Parece que Cícero
fez tudo isto para que, admitindo-se o destino, se não negue a vontade livre. Pensa
ele que, uma vez admitida a ciência do futuro, o destino se toma uma consequência
necessária e inegável. Mas aonde quer que levem tão tortuosas controvérsias e as
discussões dos filósofos, o que nós confessamos é que há um Deus Supremo e verdadeiro,
tal como confessamos a sua vontade, o seu poder supremo e a sua presciência; nem
temos medo de poder fazer sem vontade o que voluntariamente fazemos, lá porque prevê
o que havemos de fazer Aquele cuja presciência se não pode enganar. Foi este receio
que levou Cícero a impugnar a presciência e os estoicos a dizerem que nem tudo acontece
necessariamente, embora sustentem que tudo acontece fatalmente.
Que é, pois, que Cícero receou na presciência
do futuro, para procurar abalá-la com uma argumentação detestável? Isto: se os acontecimentos
futuros são todos previstos, cumprir-se-ão pela mesma ordem por que foram previstos.
Se vierem por essa ordem, então a ordem das coisas está determinada pela presciência
de Deus; se a ordem dos acontecimentos está determinada, determinada está também
a ordem das causas, pois nada pode acontecer que não seja precedido de uma causa
eficiente. Se, portanto, a ordem das coisas, pela qual acontece tudo o que acontece,
está determinada, fatalmente acontece, diz ele, tudo o que acontece. Mas, se assim
é, nada está no nosso poder, e nenhum arbítrio da vontade existe. Mas, se tal admitirmos,
acrescenta ele, toda a vida humana se subverte, em vão se proferem leis, em vão
recorremos às censuras ou aos louvores, às críticas ou às exortações, nem haverá
mais justiça como prêmio para os bons, nem castigos instituídos para os maus.
É pois para evitar à humanidade estas consequências
indignas, absurdas e perniciosas que ele nega a presciência do futuro. Encerra a
alma religiosa no angustioso dilema de escolher de duas uma — ou a nossa vontade
tem algum poder, ou existe uma presciência do futuro. Porque, assim pensa, uma e
outra não podem coexistir: se admitirmos uma, negamos a outra; se escolhermos a
presciência do futuro, suprimimos o arbítrio da vontade; se escolhermos o arbítrio
da vontade, suprimimos a presciência do futuro. E assim ele, grande e douto varão,
tantas vezes e com tal mestria defensor da vida humana, das duas coisas escolheu
o livre arbítrio da vontade; mas, para o consolidar, negou a presciência do futuro
e assim, querendo fazer os homens livres, fê-los sacrílegos.
Mas a alma religiosa escolhe uma e outra, confessa
uma e outra e fundamenta uma e outra na fé religiosa. Como? Pergunta. Porque, se
há uma presciência do futuro, seguem-se todos aqueles acontecimentos que são conexos
até se chegar ao ponto em que na nossa vontade já nada há. Mas, se, pelo contrário,
alguma coisa depende da nossa vontade, os mesmos argumentos virados do avesso, nos
levam a demonstrar que não há presciência do futuro. Eis como se viram do avesso
todas essas questões: se há um arbítrio da vontade — nem tudo acontece fatalmente;
se nem tudo acontece fatalmente, a ordem das causas não está determinada; se a ordem
das causas não está determinada, também não está determinada na presciência de Deus
a ordem dos acontecimentos, porque eles não se podem realizar sem causas que os
precedam e os produzam; se a ordem dos acontecimentos não está determinada pela
presciência divina eles não acontecem todos como Deus previu que aconteceriam: e
portanto em Deus, diz ele, não há presciência de todos os futuros.
É contra estas audácias ímpias e sacrílegas que
nós afirmamos, não só que Deus conhece todos os acontecimentos antes que eles se
verifiquem, mas também que fazemos voluntariamente tudo o que sabemos e temos consciência
de que o fazemos apenas porque o queremos.
Não dizemos que tudo acontece fatalmente; dizemos
antes que nada acontece fatalmente; porque a palavra fatal ou destino,
no sentido que é costume dar-se-lhe, isto é, designando a posição dos astros no
momento em que cada um é concebido ou nasce, demonstramos que nada vale, porque
é uma expressão sem sentido. Mas a ordem das causas em que a vontade de Deus muito
pode, nem a negamos nem a designamos com o nome de destino salvo, talvez, no sentido
que se lhe dá ao derivar fatum (destino) de fari (falar). Não podemos,
na verdade, negar o que foi escrito nas Sagradas Escrituras:
Deus falou uma vez e eu ouvi duas coisas: o poder
pertence a Deus e a ti, Senhor, a misericórdia, a ti que recompensas cada um conforme
as suas obras. (Salmo LXI, 12-13)
Estas palavras semel locutus est significam:
ele proferiu uma “palavra imóvel” isto é, “irrevogável”, tal como conhece irrevogavelmente
tudo o que virá a acontecer e tudo o que Ele mesmo terá a fazer.
Com este sentido poderíamos fazer derivar fatum
(destino) de fari (falar) se não fosse costume entender-se por esta palavra
outra coisa para a qual não queremos que o coração dos homens se incline. Mas pelo
fato de a ordem das causas estar determinada para Deus, não se conclui que nada
depende do arbítrio da nossa vontade. É que as nossas próprias vontades pertencem
à ordem causal, certa para Deus e contida na sua presciência. As vontades humanas
são efetivamente as causas das ações humanas, e por conseguinte aquele que previu
todas as causas das coisas não pôde ignorar, entre as causas, as nossas próprias
vontades, pois que previu as causas das nossas ações.
Mas mesmo o que Cícero concede — que nada acontece
sem ser precedido de uma causa eficiente — é bastante para o refutar nesta questão.
Para que lhe serve, efetivamente, afirmar que nada acontece sem causa, mas que nem
toda a causa é fatal, pois que há causas fortuitas, causas naturais, causas voluntárias?
Basta que reconheça que nada acontece senão em virtude de uma causa anterior. As
causas que se chamam fortuitas, donde fortuna tirou o nome, não dizemos que não
existem. Dizemos antes que estão escondidas. E atribuímo-las à vontade do verdadeiro
Deus ou de qualquer outro espírito. E as próprias causas naturais de forma nenhuma
as separamos da vontade d’Aquele que é o autor e o criador de toda a natureza. Até
mesmo as causas voluntárias provêm ou de Deus ou dos anjos, ou dos homens ou de
alguns animais, se é que se podem chamar vontades a esses movimentos das almas privadas
de razão, que as levam a agir conforme a sua natureza quando sentem algum desejo
ou aversão. Mas por vontade dos anjos entendo, quer a dos bons, a que chamamos anjos
de Deus, quer a dos maus, a que chamamos anjos do Diabo ou ainda demônios. Da mesma
forma a dos homens, quer dos bons quer dos maus.
Daqui se colhe que não há causas eficientes de
tudo o que acontece que não sejam voluntárias, isto é, procedentes dessa natureza
que é sopro (spiritus) de vida. E que também se chama sopro (spiritus)
ao ar ou ao vento. Mas este, porque é um corpo, não é sopro (spiritus) da
vida. Porém o sopro (spiritus) de vida que tudo vivifica e é criador de todo
o corpo e de todo o espírito (spiritus) criados, é o próprio espírito (spiritus)
inteiramente incriado. Na sua vontade está o poder supremo que ajuda as vontades
boas dos espíritos criados, julga as vontades más e a todas ordena, dando poderes
a umas e recusando-os a outras. De fato, assim como é o criador de todas as naturezas,
assim é também o dispensador de todos os poderes, mas não de todos os quereres.
Realmente, as vontades más não procedem d’Ele porque são contrárias à natureza,
que, essa sim, provém d’Ele. Por isso os corpos estão submetidos às vontades — uns
às nossas, isto é, de todos os seres viventes mortais e, aliás, mais os dos homens
do que os dos animais; outros às dos anjos; mas todos estão submetidos principalmente
à vontade de Deus, de quem dependem também todos os quereres, porque eles
não têm outros poderes que não sejam os que Ele lhes concede.
Também a causa das coisas, que faz mas não é feita,
é Deus. Mas há as outras causas que fazem e são feitas: como são todos os espíritos
criados, principalmente os racionais. Mas as causas corporais que são mais atuadas
do que atuantes, nem sequer entre as causas eficientes devem ser enumeradas, porque
o que elas podem realizar é apenas o que as vontades dos espíritos produzem, delas
se servindo.
Como é, então, que a ordem das causas que está
determinada (certa) na presciência de Deus faz com que nada dependa da nossa
vontade quando nessa mesma ordem de causas as nossas vontades ocupam lugar importante?
Pois lá se avenha Cícero com aqueles que afirmam ser fatal esta ordem de causas
ou, melhor dizendo, dão o nome de destino a essa ordem — o que nos causa repulsa
principalmente porque com tal palavra é costume nada se entender na realidade. Mas,
quando Cícero nega que a ordem de todas as causas está totalmente determinada (certíssima)
e perfeitamente conhecida (notissima) da presciência de Deus, mais do que
os estoicos detestamos nós essa opinião. Efetivamente, ou ele nega a existência
de Deus, como tentou fazê-lo por interposta pessoa nos livros De natura deorum,
ou então confessa a sua existência, mas nega a sua presciência do futuro, e nesse
caso nada mais faz do que repetir o que disse o insensato em seu coração: Não
há Deus. Efetivamente, quem não tem a presciência de todos os acontecimentos
futuros certamente que não é Deus. Aí está porque é que mesmo as nossas vontades
apenas podem o que Deus quis e previu que pudessem.
Portanto, o que elas podem, podem-no com certeza,
e serão elas próprias que hão-de fazer o que devem fazer — porque o que elas poderão
e terão a fazer, isso mesmo foi previsto por Aquele cuja presciência não se pode
enganar.
Por isso, se me agradasse aplicar o nome de “destino”
a qualquer coisa, preferia dizer: “o destino aplica-se ao inferior, e ao superior
aplica-se a vontade que o mantém submetido ao seu poder”, a retirar à vontade o
arbítrio na ordem de causas a que os estoicos costumam apelidar, sem repugnância,
de destino.
Se alguma forma de necessidade domina a vontade
humana.
Não há, pois, que temer a necessidade. Porque
a temeram, os estoicos procuraram distinguir as causas dos seres de tal forma que
subtraíram algumas a essa necessidade e lhe submeteram outras. Entre as causas que
pretenderam subtrair à necessidade puseram eles as nossas vontades, com receio de
as privarem de liberdade ao sujeitarem-nas à necessidade.
Se de fato devemos apelidar de necessidade aquela
força que não está em nosso poder e que realiza, mesmo que o não queiramos, o que
está nas suas potencialidades (a necessidade da morte, por exemplo) é manifesto
que a nossa vontade, que nos faz viver bem ou mal, não está submetida a esta necessidade.
Fazemos efetivamente muitas coisas que, se não quiséssemos, decerto não faríamos.
E em primeiro lugar o próprio querer: se queremos, o querer existe, se não queremos,
não existe porque não quereremos se não quisermos. Mas, se se definir a necessidade
segundo a expressão “é necessário que tal coisa seja ou se faça assim” — não sei
porque é que havemos de recear que ela nos vá tirar a liberdade da vontade. Certamente
que não submetemos a vida de Deus nem a presciência de Deus à necessidade quando
dizemos — é necessário que Deus viva sempre e tudo saiba com antecipação;
como também se não minora o seu poder quando se diz que ele não pode morrer nem
enganar-se. Certamente que não o pode — mas de tal modo que, se o pudesse, ele teria
um poder menor. É pois corretamente que se chama onipotente quem todavia não pode
nem morrer nem enganar-se. Realmente, chama-se onipotente porque faz o que quer
e não porque suporta o que não quer: se isto lhe acontecesse, deixaria de ser onipotente.
Não pode certas coisas precisamente porque é onipotente.
Assim é também ao dizermos que é necessário, quando
queremos, querer com livre arbítrio. Dizemos sem a menor dúvida a verdade, sem todavia
sujeitarmos o nosso livre arbítrio a uma necessidade que suprime a liberdade. As
nossas vontades são, pois, nossas; elas próprias fazem tudo o que fazemos quando
queremos e que não se faria se não quiséssemos.
Mas quando alguém, sem querer, suporta alguma
coisa por vontade de outros homens — mesmo neste caso é a vontade que se exerce:
embora não seja vontade do próprio é sempre vontade de um homem. Todavia, o poder
é de Deus. (Porque, se se tratasse apenas de uma vontade que fosse incapaz de fazer
o que quer — ela estaria impedida por uma vontade mais forte. Mesmo neste caso,
a vontade não seria outra coisa mais que vontade, e não de outrem, mas de quem estivesse
querendo, embora o seu desejo se não pudesse cumprir). Por isso é que tudo o que
o homem suporta contra sua vontade, não deve atribuí-lo às vontades dos homens nem
à dos anjos nem à de qualquer espírito criado, mas sim à vontade d’Aquele que concede
o poder àqueles que são capazes de querer.
Portanto, lá porque Deus previu o que viria a
acontecer na nossa vontade, não se segue que nenhum poder tenha havido nela. Porque
quem isso previu alguma coisa previu. Ora, se, prevendo o que se passaria na nossa
vontade, ele previu não com certeza um puro nada, mas algo de real, sem dúvida conforme
a sua própria previdência, alguma coisa depende da nossa vontade. Consequentemente,
de modo nenhum somos obrigados nem a suprimir o livre arbítrio, mantendo a presciência
de Deus, nem a negar a presciência de Deus (o que é sacrílego), mantendo o livre
arbítrio. Pelo contrário: abraçamos uma e outra verdade, uma e outra confessamos
fiel e sinceramente — uma para bem querer, a outra para bem viver. Porque vive-se
mal se não se acreditar retamente em Deus. Longe de nós, portanto, negar, para permanecermos
livres, a presciência d’Aquele por cujo poder somos ou seremos livres.
Consequentemente, não é em vão que há leis, reprimendas,
exortações, louvores e censuras. Tudo isto ele previu e vale tanto quanto ele previu
que havia de valer. Também as preces valem para se obterem os bens que ele previu
conceder aos que oram. É de toda a justiça que se estabeleçam prêmios para as boas
ações e castigos para os pecados. E nem é por Deus ter previsto que havia de pecar
que o homem peca. Pelo contrário, está fora de dúvida que, quando peca, é ele, homem,
que peca — porque Aquele cuja presciência é infalível, sabia já que não seria o
destino, nem a fortuna, nem outra qualquer causa, mas que seria o próprio homem
que iria pecar. E se Ele não quiser, certamente que não pecará — mas, se não quiser
pecar, também isso Ele previu.
A Providência universal de Deus a cujas leis tudo
está submetido.
Efetivamente este supremo e verdadeiro Deus que,
com o seu Verbo e o seu Espírito Santo, são Três em Um;
este Deus único, onipotente, criador e autor de
toda a alma e de todo o corpo, de cuja beatitude participam todos os que em verdade
e não em ilusão são felizes;
que fez do homem um animal racional, composto
de um corpo e de uma alma, e que não permitiu, quando este homem pecou, que ficasse
impune, nem o abandonou sem misericórdia;
que aos bons e aos maus deu o ser como às pedras,
a vida vegetativa como às plantas, a vida sensitiva como aos animais, a vida intelectual
apenas como aos anjos;
de quem procedem toda a regra, toda a forma e
toda a ordem;
de quem procedem a medida, o número, o peso;
de quem procede tudo o que tem uma natureza, tudo
o que tem um gênero, tudo o que tem um preço, seja ele qual for;
de quem procedem os gérmenes das formas, as formas
dos gérmenes, o movimento das formas e dos gérmenes;
que deu à carne a sua origem, a sua beleza, a
sua saúde, a fecundidade da sua propagação, a disposição dos seus membros, a sua
salutar harmonia;
que à própria alma irracional deu memória, sensibilidade,
instinto, e à racional deu ainda espírito, inteligência, vontade;
que não deixou de conceder, não somente ao céu
e à terra, não somente ao anjo e ao homem, mas também aos órgãos do mais pequenino
e do mais desprezível dos animais, à mais pequena das penas da ave, à flor dos campos,
à tolha da árvore, a harmonia das suas partes e como que uma certa paz — seria de
todo inconcebível que Ele quisesse deixar o reino dos homens, as suas dominações
e as suas sujeições fora das leis da sua Providência.
“Mais vasto será o teu império se dominares o
teu espírito ambicioso, do que se reunires a Líbia aos longínquos povos de Cádis
e se os dois púnicos se te renderem.” (Horácio, Epist. 1, 1 , 36-37)
“Deita fora a jactância: que são todos os homens
senão homens? Mas, ainda mesmo que a perversidade do século admitisse que fossem
mais honrados os melhores — nem mesmo assim se deveria ter em grande conta a honra
humana: porque o fumo não tem peso.
Todavia, mesmo nestas coisas, aproveitemos dos
benefícios do Senhor nosso Deus. Consideremos tudo o que desprezaram, tudo o que
suportaram, quantas paixões abafaram pela glória humana estes homens que a mereceram
como recompensa de tais virtudes, e que isto nos ajude também a reprimir a nossa
soberba. E, pois que aquela cidade, em que nos foi permitido reinar, dista tanto
da de cá quanto o Céu dista da Terra, a vida eterna dista da alegria temporal, a
sólida glória dista dos vãos louvores, a sociedade dos anjos dista da sociedade
dos mortais, a luz d ’Aquele que fez o Sol e a Lua dista da luz do Sol e da Lua,
— não julguem os cidadãos de tão grande pátria que alguma coisa de grande fizeram
quando, para a conquistarem, algo fizeram de bom ou suportaram alguns males, quando
os Romanos pela pátria terrestre que já possuíam fizeram tamanhas coisas e tamanhas
coisas suportaram; principalmente porque a remissão dos pecados que congrega os
cidadãos para a eterna pátria, tem alguma coisa a que, como uma sombra, se assemelha
o asilo de Rômulo em que a impunidade concedida a todos os crimes reuniu a multidão
com que ele fundaria esta cidade.”
“Não são de fato as riquezas da Terra que nos
tornarão felizes a nós ou a nossos filhos: — temos de as perder em vida, uma vez
mortos serão elas levadas por quem desconhecemos ou talvez possuídas por quem não
queremos. Deus é que faz a nossa felicidade e é a verdadeira riqueza das almas.”
“Marco Régulo, general romano, esteve cativo entre
os Cartagineses. Como estes preferiam que aqueles lhes devolvessem os seus prisioneiros
a reterem em seu poder os romanos, enviaram Régulo com os seus embaixadores a Roma
com o fim primordial de obterem a permuta. Mas antes fizeram-no jurar que voltaria
para Cartago se nada conseguisse. Para lá se dirigiu, mas exortou o Senado a não
realizar a troca dos cativos por estar convencido da sua desvantagem para o Estado
Romano. Depois desta exortação, nenhum dos seus o obrigou a voltar para o inimigo.
Mas ele cumpriu o que voluntariamente tinha jurado. Os cartagineses entregaram-no
então a horríveis e requintadas torturas, dando-lhe a morte. Com efeito, meteram-no
dentro de um apertado caixão dentro do qual tinha forçosamente de se manter de pé;
pregaram nele agudíssimos pregos, de maneira que a parte nenhuma se podia encostar
sem sofrer atrocíssimas dores e aniquilaram-no à força de vigílias. Sem dúvida que
é justificadamente que se louva tamanha virtude, maior ainda que a sua infelicidade.
(...)
— Se M. Régulo, para não quebrar a fé jurada a
crudelíssimos inimigos, voltou de Roma para junto deles respondendo, conforme consta,
aos Romanos que pretendiam retê-lo, que, depois de ter sido escravo dos Africanos,
não podia conservar lá a dignidade de um honesto cidadão; e se os Cartagineses o
sujeitaram com gravíssimos suplícios à morte porque ele contra eles procedeu no
Senado Romano — que suplícios se não devem desprezar para guardar a fé naquela pátria
a cuja felicidade a mesma fé nos conduz? Ou
que retribuirá ao Senhor pelos bens que dele recebeu, (Salmo CXV, 3)
o homem que, pela fé que lhe é devida, sofrer
tormentos semelhantes aos que sofreu Régulo pela fé que devia a ferozes inimigos?
— Como é que um cristão se atreverá a gabar-se
da sua pobreza voluntária, abraçada para caminhar cá, mais à vontade, na peregrinação
que conduz à Pátria em que Deus é a verdadeira riqueza — quando ouve ou lê que Lúcio
Valério, falecido durante o seu consulado, era tão pobre que foi preciso pedir ao
povo ofertas para assegurar a sua sepultura? Ou quando ouve ou lê que Quíncio Cincinato,
dono de quatro geiras, que cultivava com as suas próprias mãos, foi afastado do
arado para ser feito ditador, dignidade superior ao consulado, e que, depois de
ter alcançado vitória sobre os inimigos, permaneceu na mesma pobreza?
— Será que ele virá a gabar-se de ter feito alguma
coisa de grande por não se deixar separar por nenhuma recompensa terrestre da sua
comunhão com a pátria eterna — quando aprendeu que Fabrício não pôde ser retirado
à Cidade Romana pelos enormes presentes oferecidos por Pirro, rei do Epiro, nem
mesmo pela promessa de lhe dar a quarta parte do seu reino, e preferiu continuar
pobre e simples cidadão na sua pátria?
Com efeito, enquanto a república (res publica),
isto é, a empresa do povo (res populi), a empresa da pátria (res patriae),
a empresa comum (res communis), era opulentíssima, eram eles em suas casas
de tal modo pobres que um deles, depois de ter sido duas vezes cônsul, foi expulso
daquele senado de pobres sob a acusação censória de que lhe tinham sido encontradas
dez libras de prata nuns vasos; eles próprios eram pobres, mas os seus triunfos
enriqueciam o erário público; todos os cristãos que, num desígnio ainda mais elevado,
põem as suas riquezas em comum, conforme o que está escrito nos Atos dos Apóstolos
— “que se distribua a cada um conforme as suas necessidades e que ninguém diga que
alguma coisa lhe pertence, mas que tudo lhes seja comum” — será que não compreendem
que não devem dar-se ares arrogantes ao praticarem esse preceito para obterem a
sociedade dos Anjos quando aqueles homens fizeram quase outro tanto para conservarem
a glória dos Romanos?
Estes fatos e outros que tais que se podem achar
na sua literatura, teriam adquirido semelhante notoriedade, seriam celebrados com
tal renome, se o Império Romano, que se estendeu em todas as direções, não se tivesse
desenvolvido devido a sucessos magníficos? Desta forma esse império, tão vasto,
tão duradouro, célebre e glorioso pelas virtudes de tão grandes homens, foi para
eles a recompensa a que aspiravam os seus esforços e oferece-nos a nós uma tão exemplar
e necessária lição que sentiremos o espinho da vergonha se não praticarmos pela
gloriosíssima Cidade de Deus as virtudes que eles praticaram, de forma um tanto
semelhante, pela glória da cidade terrestre; e, se as praticarmos, não nos empertiguemos
de soberba porque, como diz o Apóstolo,
os sofrimentos do tempo presente são de nada comparados
com a glória futura que em nós será revelada. (Rom., VIII,
18)
Mas para alcançar a glória humana, no tempo presente,
considera-se bastante digna a vida deles. Daí que, à luz do Novo Testamento, oculto
no véu do Antigo (que nos sugere a adoração do único verdadeiro Deus, não para obtermos
benefícios temporais e terrenos, concedidos pela divina Providência ao mesmo tempo
a bons e a maus, mas sim para a vida eterna, para as recompensas perpétuas e para
vivermos associados à Cidade Celeste), — à luz, repito, do Novo Testamento, os Judeus,
que mataram Cristo, com toda a justiça foram submetidos para glória dos Romanos.
Era justo, na verdade, que aqueles que procuraram e conseguiram a glória terrena
pelas suas virtudes, sejam elas quais forem, triunfassem dos que pelos seus grandes
vícios rejeitaram e mataram o dador da verdadeira glória e da cidade eterna.”
“Para o que tem virtudes é uma grande virtude
desprezar a glória, porque este desprezo Deus o vê mas escapa ao juízo dos homens.
Na verdade, tudo o que fizer aos olhos dos homens para que vejam que despreza a
glória, pode ser que por alguns suspeitosos seja isso tomado como maneira de procurar
louvores, isto é, uma glória maior — sem poder mostrar-lhes que é diferente do que
dele suspeitam. Mas o que despreza o juízo dos que o louvam, despreza também os
juízos temerários dos que suspeitam; mas, se é verdadeiramente bom, não se desinteressa
da salvação deles. É que, na realidade, é tão grande a justiça daquele cujas virtudes
são um dom do Espírito de Deus, que ele até aos seus inimigos ama e ama-os de tal
forma que chega a querer para os que o odeiam e o caluniam a sua emenda e a sua
companhia, não na pátria terrestre mas na suprema. Quanto aos aduladores, embora
não faça caso dos seus elogios, nem por isso despreza a sua afeição, nem quer enganar
os que o louvam, não vá decepcionar os que lhe querem bem. Por isso é que faz ardentes
esforços por que seja antes louvado Aquele que concede ao homem tudo o que nele
merece ser louvado.
Mas o que, desprezando embora a glória, é ávido
de domínio, supera as bestas, quer pela crueldade quer pela luxúria. Tais foram
certos Romanos. Tendo deixado de se preocupar com a reputação, não lhes faltou a
paixão de domínio.”
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