sexta-feira, 30 de abril de 2010

As Benevolentes – Jonathan Littell

Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-6028-123-7
Tradução: André Telles
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 908
Sinopse: Um ex-oficial nazista se reinventa anos após a guerra. Um intelectual versado em literatura e filosofia esconde um passado sombrio e monstruoso. As benevolentes coloca um espelho frente à humanidade, e o leitor não consegue se desviar de seu reflexo. Neste épico histórico, Eichmann, Himmler, Heydrich — até o próprio Hitler — desempenham papel fundamental.
Considerado pela crítica o “novo Guerra e Paz”, As benevolentes tornou-se fenômeno de vendas e já é visto como um clássico da literatura contemporânea. Para se ter ideia da repercussão da obra na França, Jonathan Littell chegou a ser comparado a Tolstói pelo jornal Le Monde.
Profundo e arrebatador, As benevolentes trata dos horrores da Segunda Guerra Mundial sob a ótica do carrasco. São as memórias de Maximilien Aue, jovem alemão de origem francesa que, como oficial nazista, participa de momentos sombrios da recente história mundial: da execução dos judeus, as batalhas no front de Stalingrado, a organização dos campos de concentração, até a derrocada final da Alemanha.
Aue, no entanto, não tem somente lembranças de guerra. Vivendo anonimamente na França, onde administra uma tecelagem, ele se recorda também de sua deturpada relação com a família. Seu relato compõe um livro impressionante, assombrado tanto por sua fria meticulosidade quanto por seu delírio insano. Através dos olhos de Aue, o leitor é levado a vislumbrar o mal de uma forma jamais imaginada.

“Rastejamos por muito tempo nesta terra como uma lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que carregamos dentro de nós. O tempo passa, a ninfose não chega, permanecemos larva, constatação aflitiva, o que fazer? O suicídio, naturalmente, continua sendo uma opção. Mas, para falar a verdade, o suicídio não me atrai muito. Pensei nisso, claro, durante muito tempo, e se tivesse de recorrer a ele, eis como agiria: apertaria uma granada contra o peito e partiria numa viva explosão de alegria. Uma granadinha redonda da qual eu removeria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrindo ao barulhinho metálico da mola, o último que eu ouviria, afora os batimentos do coração nos ouvidos. E depois finalmente a felicidade, ou, em todo caso, a paz, e as paredes do meu escritório enfeitadas com retalhos de carne. A limpeza caberá às faxineiras, são pagas para isso, o problema é delas.”


“Apesar dos meus defeitos, e eles são muitos, ainda sou dos que acham que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, a comida, a bebida e a excreção, além da busca pela verdade. O resto é facultativo.”


“A conclusão de tudo isso, se me permitem outra citação, a última, prometo, é, como dizia muito bem Sófocles: O que se deve preferir a tudo é não ter nascido. Schopenhauer, por sinal, escrevia claramente a mesma coisa: Seria melhor que não existisse nada. Como há mais sofrimento que prazer sobre a terra, toda a satisfação é apenas transitória, criando novos desejos e novas aflições, e a agonia do animal devorado é maior do que o prazer do devorador. Sim, eu sei, isso dá duas citações, mas a ideia é a mesma: na verdade, vivemos no pior mundo possível.”


“Apesar do entusiasmo, meus amigos mostravam-se pessimistas: “A direita francesa está mijando contra o vento”, disse-me Rebatet uma noite. “Pela honra”. Todo mundo na França parecia aceitar passivamente que a guerra chegaria, cedo ou tarde. A direita culpava a esquerda e os judeus; a esquerda e os judeus, naturalmente, culpavam a Alemanha.”


““Em todo caso”, acrescentava sentenciosamente Vogt, “Deus está com a nação e o Volkalemães. Não podemos perder esta guerra.” – “Deus?”, cuspia Blobel. “Deus é comunista. E se eu o encontrar pela frente, ele terminará como seus comissários”.”


“Entrei no carro e segui os caminhões; na chegada, os Polizei faziam as mulheres e crianças descerem e se juntarem aos homens que chegavam a pé. Diversos judeus entoavam cânticos religiosos durante a caminhada; raros tentavam fugir, estes eram imediatamente detidos pelo cordão ou abatidos. Do alto, ouviam-se nitidamente as rajadas, as mulheres, sobretudo, começaram a entrar em pânico. Mas nada podiam fazer. Eram divididas em pequenos grupos e um suboficial sentado a uma mesa fazia a contagem; depois nossos ascaris se encarregavam delas e as guiavam pela beira da ravina. Após cada série de disparos, era a vez de outro grupo, a coisa funcionava bem. (...) Foram colocadas tábuas sobre o córrego para que judeus e atiradores pudessem atravessar com facilidade; mais além, espalhados um pouco por toda parte nos flancos nus das ravinas, pequenos cachos brancos multiplicavam-se. Os “empacotadores” ucranianos arrastavam seus fardos para esses aglomerados e os obrigavam a se deitarem em cima ou ao lado; os homens do pelotão avançavam então e passavam ao longo das fileiras de pessoas deitadas quase nuas, destinando a cada uma, uma bala de metralhadora na nuca; havia três pelotões ao todo. No intervalo entre as execuções, oficiais inspecionavam os corpos e administravam tiros de misericórdia com a pistola. Sobre uma colina, dominando a cena, grupos de oficiais SS e da Wehrmacht. Jeckeln estava lá com seu séquito, tendo ao lado o Dr. Rasch; reconheci também diversas altas patentes do 6º Exército. Vi Thomas, que me viu também mas não retribuiu minha saudação. Em frente, os pequenos grupos rolavam pelos flancos da ravina e juntavam-se aos cachos de corpos que aumentavam cada vez mais. O frio tornava-se dilacerante, mas o rum circulava e bebi um pouco. Blobel desembarcou do carro diretamente no lado da ravina que ocupávamos, devia estar vindo da inspeção; bebia numa garrafinha e vituperava, gritava que as coisas não estavam andando suficientemente rápido. Entretanto, o ritmo fora acelerado ao máximo. Os atiradores eram substituídos de hora em hora e aqueles que não atiravam os abasteciam com rum e completavam a munição dos carregadores. Os oficiais falavam pouco, alguns tentavam esconder a perturbação. A Ortskommandantur mandara vir uma bateria de cozinha de campanha e um pastor militar fazia chá para aquecer os Orpo e os membros do Sonderkommando. Na hora do almoço, os oficiais superiores voltaram para a cidade, mas os subalternos ficaram para comer com os homens. Como as execuções deviam prosseguir sem pausas, a cantina foi instalada mais embaixo, em uma depressão de onde a ravina não era vista. Hartl ordenou-me que substituísse Jeckeln quando terminasse o turno dele na ravina. “Está com sua arma? Está? Não quero nenhum maricas no meu Kommando, está entendendo?” Cuspia, estava completamente bêbado e quase não se controlava mais. Um pouco mais tarde avistei Janssen subindo de volta. Cravou os olhos em mim com maldade: “Sua vez.” Em torno dos corpos, a terra arenosa impregnava-se de um sangue negro, o riacho também estava escuro de sangue. O cheiro medonho dos excrementos predominava sobre o do sangue, muita gente defecava no instante de morrer; felizmente, o vento soprava com força e expulsava parte daqueles eflúvios. Vistas de perto, as coisas passavam-se menos tranquilamente; os judeus que chegavam no alto da ravina, empurrados pelos ascaris e os Orpo, berravam apavorados ao descobrirem a cena, debatiam-se, os “empacotadores” aplicavam-lhes golpes deschlag ou com fio metálico para obrigá-los a descer e se deitar, mesmo derrubados ainda gritavam e tentavam se levantar, as crianças agarravam-se à vida como os adultos, reerguiam-se de um pulo e escapuliam até que um “empacotador” as alcançasse e abatesse, em geral os tiros não acertavam em cheio e as pessoas ficavam apenas feridas, mas os atiradores se lixavam e já passavam à vítima seguinte, os feridos rolavam, contorciam-se, gemiam de dor; outros, ao contrário, sob o choque, calavam-se e quedavam paralisados, olhos esbugalhados. Os homens iam e vinham, desferiam um tiro atrás do outro, quase sem descanso. Quanto a mim, estava petrificado, não sabia o que fazer. Grafhorst chegou e sacudiu meu braço: “Obersturmführer!” Apontou sua pistola para os corpos. “Tente acabar com os feridos.” Saquei minha pistola e me dirigi para um grupo: um adolescente mugia de dor, apontei minha pistola para sua cabeça e apertei o gatilho, mas o disparo não partiu, eu esquecera de soltar a trava, retirei-a e lhe desferi um tiro na testa, ele estremeceu e se calou subitamente. Para alcançar alguns feridos, eu precisava andar sobre os corpos, escorregava terrivelmente, as carnes brancas e gelatinosas rolavam sob minhas botas, os ossos quebravam-se perfidamente e me faziam tropeçar, eu estava enfiado até os tornozelos na lama e no sangue. Era horrível e fui tomado por uma sensação rangente de nojo, como naquela noite na Espanha, na latrina com as baratas, eu era ainda garoto, meu padrasto nos dera de presente umas férias na Catalunha, dormíamos em uma aldeia e certa noite eu senti cólicas, corri para a latrina no fundo do quintal iluminando o caminho com uma lanterna de bolso, e a fossa, limpa de dia, estava tomada por enormes baratas marrons, fiquei assustado, tentei aguentar e voltar para a cama, mas as pontadas eram muito fortes, não havia penico, calcei minhas galochas e retornei à latrina, matutando que poderia expulsar as baratas a pontapés e fazer a coisa com agilidade, passei a cabeça pela porta iluminando o chão, depois notei um reflexo na parede, dirigi para lá o foco da lanterna, a parede também estava ocupada pelas baratas, todas as paredes, o teto idem, e a tábua em cima da porta, virei lentamente a cabeça passada pela porta e elas estavam ali também, uma pasta escura e buliçosa, então retirei lentamente a cabeça, muito lentamente, voltei para o quarto e me segurei até de manhã. Andar sobre os corpos dos judeus me dava uma sensação igual, atirei quase a esmo em tudo que eu via se mexer, depois me acalmei e tentei me concentrar, apesar de tudo convinha que as pessoas sofressem o mínimo possível, de toda forma eu só podia acabar com os mais recentes, embaixo já havia outros feridos, não mortos ainda, mas que logo o seriam. Eu não era o único a perder o ânimo, alguns atiradores também tremiam e bebiam entre as fornadas. Um jovem Waffen-SS chamou minha atenção, eu não sabia seu nome: começava a atirar de qualquer jeito, metralhadora na altura dos quadris, ria assustadoramente e esvaziava seu pente ao acaso, um tiro à esquerda, outro à direita, depois dois, depois três, como uma criança que segue o traçado do calçamento segundo uma misteriosa topografia interna. Aproximei-me dele e o sacudi, mas ele continuava a rir e atirar à minha frente, arranquei a metralhadora dele e o esbofeteei, depois aloquei-o entre os homens que reabasteciam os estoques; Grafhorst me designou outro homem para o lugar e joguei uma metralhadora para ele, gritando: “E trabalhe direito, entendeu?!!” Perto de mim, traziam outro grupo: meu olhar cruzou com o de uma moça bonita, quase nua mas muito elegante, calma, os olhos cheios de uma tristeza infinita. Afastei-me. Quando voltei ela ainda vivia, encolhida de barriga para cima, uma bala saíra embaixo de seu seio e ela arquejava, petrificada, seus belos lábios tremiam e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os olhos arregalados, incrédulos, olhos de pássaro ferido, e aquele olhar grudou em mim, abriu minha barriga e fez escorrer uma onda de serragem de madeira, eu era uma boneca vulgar e não representava nada, ao mesmo tempo queria de todo meu coração me debruçar e limpar a terra e o suor misturados em sua testa, acariciar-lhe a face e lhe dizer que estava tudo bem, que estava tudo sob controle, mas em vez disso disparei convulsivamente uma bala em sua cabeça, o que afinal de contas dava no mesmo, para ela em todo caso, quando não para mim, pois eu, ao pensar naquele monturo humano insensato, estava tomado por uma raiva imensa, ilimitada, continuei a atirar nela e sua cabeça explodiu como uma fruta, então meu braço se desprendeu de mim e saiu sozinho pela ravina atirando em todas as direções, corri atrás dele, fazendo sinal para que esperasse o meu outro braço, mas ele não queria, ria de mim e atirava sobre os feridos por si só, à minha revelia; finalmente, extenuado, parei e comecei a chorar. Agora, eu pensava, acabou, meu braço não voltará nunca mais, mas para minha grande surpresa ele estava ali de novo, no lugar, solidamente preso no meu ombro e Häfner aproximava-se de mim e me dizia: “Chega, Obersturmführer. É minha vez”.”


“Agora julgava compreender melhor as reações dos homens e dos oficiais durante as execuções. Se sofriam, como eu sofrera durante a Grande Ação, não era apenas em virtude do cheiro e da visão do sangue, mas também em virtude do terror e da dor moral dos condenados; da mesma forma, em geral os que fuzilávamos sofriam mais com a dor e a morte, diante de seus olhos, daqueles a quem amavam, mulheres, pais e filhos queridos, do que com a própria morte, que recebiam no fim como uma libertação. Em muitos casos, eu arriscaria a dizer, o que eu tomara como sadismo gratuito, a brutalidade inaudita com que alguns homens tratavam os condenados antes de executá-los, não passava do efeito da piedade monstruosa que sentiam e que, incapazes de se exprimir de outra forma, transformava-se em raiva, mas uma raiva impotente, sem objeto, devendo portanto quase inevitavelmente voltar-se contra aqueles que eram sua causa primeira. Se os terríveis massacres do Leste provam uma coisa, é de fato, paradoxalmente, a terrível e inalterada solidariedade humana. Por mais brutalizados e acostumados que estivessem, nenhum dos nossos homens conseguia matar uma mulher judia sem pensar em sua mulher, em sua irmã ou sua mãe, ou matar uma criança judia sem ver seus próprios filhos à sua frente diante do fosso. Sua reações, sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha própria tristeza, tudo isso demonstrava que o outroexiste, existe como outro, como humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia, nenhuma montanha de estupidez e álcool é capaz de romper esse laço, sutil mas indestrutível.”


“Os homens grosseiros e ignorantes castigam-se a si mesmos.”


“(Em Stalingrado) Nišić apontou um buraco rodeado de sacos de areia escorado por tábuas. “Pode olhar por aqui. Mas não por muito tempo. Os snipers deles são de primeira. Parece que são mulheres.” Ajoelhei perto do buraco, depois estiquei lentamente a cabeça; a brecha era estreita, eu via apenas uma paisagem de ruínas informes, quase abstrata. Foi então que ouvi o grito, da esquerda: um longo uivo rouco, bruscamente interrompido. Então o grito voltou. Não havia mais nenhum outro barulho e eu ouvi nitidamente. Vinha de um rapazola e eram longos gritos dilacerantes, terrivelmente débeis; devia, pensei, estar ferido na barriga. Me debrucei e olhei de viés: percebi sua cabeça e uma parte do torso. Gritava até perder o fôlego, parava para inspirar e recomeçava. Sem saber russo, eu compreendia o que ele gritava: “Mama! Mama!” Era insuportável. “Que é isso?”, perguntei estupidamente a Nišić. – “É um dos sujeitos de agorinha.” – “Não pode acabar com ele?” Nišić fitou-me com um olhar duro, cheio de desprezo: “Não temos munição para desperdiçar”, grunhiu finalmente. Sentei-me contra a parede, como os soldados. Ivan apoiara-se no batente da porta. Ninguém falava. Fora, o garoto continuava a gritar: “Mama! Ia ne khatchu! Mama! Ia khatchu domoi!”, e outras palavras que eu não conseguia distinguir. Dobrei os joelhos e os enlacei com os braços. Nišić, agachado, continuava a olhar para mim. Eu queria tapar o ouvido, mas seu olhar de chumbo me petrificava. Os gritos do garoto perfuravam meu cérebro, uma colher de pedreiro remexendo uma lama grossa e viscosa, recheada de vermes e de uma vida imunda. E eu, pensei, será que chegado o momento vou implorar pela minha mãe? Entretanto, pensar nessa mulher me enchia de ódio e aversão. Fazia anos que não a via, e não queria vê-la; a ideia de invocar seu nome, sua ajuda, parecia-me inconcebível. Contudo, eu devia desconfiar que por trás dessa mãe havia outra, a mãe da criança que eu havia sido antes que alguma coisa se houvesse irremediavelmente rompido. Provavelmente também vou me retorcer e berrar por essa mãe. E, se não fosse por ela, seria pelo seu ventre, o de antes da luz, a malsã, a sórdida, a doentia luz do dia.”


“Em Rakotino, finalmente, encontrei Hohenegg em uma pequena isbá miserável enterrada até a metade na neve, batendo numa máquina de escrever portátil à luz de uma vela enfiada em uma conexão de PAK. Levantou a cabeça sem manifestar a menor surpresa: “Veja só. O Hauptsturmführer. Que bons ventos o trazem?” – “O senhor.” Passou a mão em seu crânio calvo: “Não sabia que era tão desejável. Mas aviso desde já: se estiver doente, veio à toa. Só cuido daqueles para quem já é tarde demais.” Fiz um esforço para me recobrar e encontrar uma réplica: “Doutor, sofro apenas de uma doença, sexualmente transmissível e irremediavelmente fatal: a vida”.”


“Também encontrei soldados nessas paisagens devastadas; alguns dirigiam-se a mim com hostilidade, outros educadamente, outros ainda com indiferença; contavam sobre a Rattenkrieg, a “guerra dos ratos” pela tomada daquelas ruínas, onde um corredor, um teto e uma parede serviam de linha de frente, onde se bombardeava cegamente à base de granadas em meio à poeira e à fumaça, onde os vivos sufocavam no calor dos incêndios, onde os mortos atravancavam as escadas, os andares, as soleiras dos apartamentos, onde se perdia toda noção de tempo e espaço e onde a guerra tornava-se quase um jogo de xadrez abstrato, tridimensional. Nossas forças, por sinal, chegaram às vezes a três, duas ruas do Volga, não mais longe que isso. Agora era a vez dos russos: todos os dias, geralmente de madrugada e à noite, lançavam investidas ferozes contra nossas posições, sobretudo no setor das fábricas, mas também no centro; as munições das companhias, rigorosamente racionadas, esgotavam-se, e, depois do ataque, os sobreviventes prostravam-se, arrasados; de dia, os russos passeavam a descoberto, sabendo que nossos homens não tinham condições de atirar. Nos porões, amontoados, viviam sob tapete de ratos, que, tendo perdido todo o medo, corriam tanto atrás dos vivos como dos mortos e, à noite, vinham lambiscar as orelhas, o nariz ou os dedos dos que se entregavam ao sono. Certo dia, encontrava-me no segundo andar de um prédio quando um pequeno obus de morteiro explodiu na rua; instantes depois, escutei uma risada ensandecida. Olhei pela janela e vi um torso humano pousado no meio do entulho: um soldado alemão, as duas pernas arrancadas pela explosão, ria desbragadamente. Olhei e ele não parava de rir no centro de uma poça de sangue que ia se ampliando por entre os escombros. Esse espetáculo me deixou arrepiado, deu um nó nas minhas entranhas; fiz Ivan sair e abaixei minhas calças no meio da sala. Quando a cólica me atacava durante alguma incursão, eu cagava em qualquer lugar, em corredores, cozinhas, quartos, até mesmo, dependendo das ruínas, acocorado numa pia de banheiro, nem sempre conectada a um cano, aliás. Esses grandes prédios destruídos, onde ainda no verão anterior milhares de famílias viviam a vida do dia-a-dia, banal, de todas as famílias, sem desconfiar que em breve homens dormiriam em grupos de seis em seu leito conjugal, se limpariam com suas cortinas ou lençóis, se massacrariam a golpes de pá em suas cozinhas e amontoariam os cadáveres dos mortos em suas banheiras, esses prédios me enchiam de uma angústia vã e amarga.”


“Obuses haviam esmagado os degraus e destroçado as pesadas portas de madeira; no interior do grande saguão, entre fragmentos de mármore e colunas estilhaçadas, amontoavam-se dezenas de cadáveres que enfermeiros traziam dos porões e colocavam ali, esperando para incinerá-los. Um mau cheio interminável refluía dos acessos aos subterrâneos, impregnando o saguão: “Vou esperar aqui”, declarou Ivan postando-se perto das portas principais para enrolar um cigarro. Contemplei-o e meu espanto diante de sua fleuma transmutou-se em uma tristeza súbita e aguda: com efeito, eu tinha toda a probabilidade de ali permanecer, mas ele não tinha nenhuma de sair. Fumava tranquilamente, indiferente. Encaminhei-me para o subsolo. “Não se aproxime muito dos corpos”, disse um enfermeiro perto de mim. Apontou com o dedo e olhei: uma procissão escura e indistinta corria por cima dos cadáveres empilhados, saía deles, movia-se por entre os escombros. Olhei mais de perto e meu estômago revirou. As pulgas deixavam os corpos frios, em massa, em busca de novos hóspedes. Contornei-os cuidadosamente e desci; atrás de mim, o enfermeiro ria. Na cripta, o mau cheiro me envolveu como um pano molhado, uma coisa viva e multiforme que grudava nas narinas e na garganta, feita de sangue, gangrena, feridas putrefatas, fumaça de lenha úmida, lã molhada ou empapada de urina, diarreia quase caramelada, vômitos. Respirei pela boca, tentando segurar o enjoo. Os feridos e doentes haviam sido alinhados sobre cobertores ou diretamente no chão, em meio a todos os vastos porões frios e cimentados do teatro; os gemidos e gritos ressoavam nas abóbadas; uma grossa camada de lama cobria o chão. Alguns médicos ou enfermeiros com aventais imundos evoluíam lentamente por entre as fileiras de moribundos, procurando precavidamente onde pisar para evitar esmagar um membro.”


“Ela ou outras também me alimentavam, deslizando colheres de caldo entre meus lábios; eu teria preferido um bife sangrento, mas não ousava pedir, afinal, aquilo não era um hotel, mas, finalmente eu compreendera, um hospital: e ser um paciente é isso também, a palavra significa precisamente o que significa.”


“No fundo, repetia para mim com uma vã amargura, é só nos nove primeiros meses que nos sentimos tranquilos, depois o arcanjo da espada de fogo nos expulsa para todo o sempre pela porta que diz Lasciate ogni speranza, e passamos a querer apenas uma coisa, voltar atrás, embora o tempo continue a nos empurrar impiedosamente à frente e no fim não haja nada, absolutamente nada.”


“Desliguei o telefone e desci até o andar debaixo do meu; achei com facilidade uma porta e bati. Quem abriu foi uma mulher bonita e alta em trajes de soirée bem informais, os olhos cintilantes: “Pois não?” Atrás dela, a música bramia, dava para ouvir copos tilintando, gargalhadas. “O quarto é seu?”, perguntei, com o coração a mil. – “Não, espere”. Virou-se: “Dicky! Dicky! Um oficial quer falar com você.” Um homem de casaca, um tanto embriagado, veio até a porta; a mulher olhava-nos sem esconder a curiosidade. “Pois não, Herr Sturmbannführer”, disse ele. “Que posso fazer pelo senhor?” Sua voz afetada, cordial, quase confusa, refletia uma aristocracia de velha cepa. Inclinei-me ligeiramente e articulei no tom mais neutro possível: “Meu quarto fica no andar em cima do seu. Estou voltando de Stalingrado, onde fui gravemente ferido e onde quase todos os meus companheiros foram mortos. Suas festas me incomodam. Quis descer para matá-lo, mas telefonei para um amigo que me aconselhou a falar primeiro com o senhor. Então aqui estou, vim falar com o senhor. Seria melhor para todos nós que eu não tivesse que descer de novo.” O homem empalidecera: “Não, não...” Virou-se para trás: “Gofi! Pare a música! Pare!” Olhou para mim: “Desculpe-nos. Vamos parar imediatamente.” – “Obrigado”. Enquanto eu subia, vagamente satisfeito, ouvi-o gritar: “Todo mundo para fora! Terminou. Debandar!” Eu havia tocado num nervo, e não era questão de medo: subitamente ele também compreendera, e tivera vergonha.”


“Muito se discorreu, depois da guerra, para tentar explicar o que acontecera, a desumanidade. Mas a desumanidade, me desculpem, não existe. Existe apenas o humano e o mais humano: e esse Döll é um bom exemplo disso. Quem é Döll senão um bom pai de família que queria alimentar os filhos e que obedecia ao seu governo, ainda que em seu foro íntimo não concordasse plenamente com aquilo? Se houvesse nascido na França ou nos Estados Unidos, teria sido considerado um pilar de sua comunidade e um patriota; mas, nasceu na Alemanha, então é um criminoso. A necessidade, os gregos já sabiam disso, é uma deusa não apenas cega, como cruel.”


“Schellenberg tinha o hábito de referir-se àqueles de quem não gostava como putas, termo que caía como uma luva nele, e, pensando bem, não deixa de ser verdade que os insultos prediletos das pessoas, os que lhes vêm mais espontaneamente aos lábios, revelam no fim das contas frequentemente seus próprios defeitos ocultos, pois elas odeiam por natureza aquilo com que mais se assemelham. Essa ideia não me abandonou aquela noite, e, de volta em casa, já tarde, um pouco bêbado talvez, peguei em uma prateleira uma coletânea dos discursos do Führer pertencente à Frau Gutknecht e comecei a folhear, procurando as passagens mais virulentas, sobretudo sobre os judeus, e ao lê-las eu me perguntava se, vociferando: Faltam aos judeus capacidade e criatividade em todos os domínios da vida, menos um: mentir e trapacear, ou O edifício inteiro do judeu irá desmoronar se nos recusarmos a segui-lo, ou ainda São mentirosos, falsários, hipócritas. Só chegaram aonde estão graças à ingenuidade dos que os cercam, ou ainda Podemos viver sem o judeu. Mas ele não pode viver sem nós, o Führer, à sua revelia, não descrevia a si próprio. Ora, aquele homem nunca falava em seu próprio nome, os acidentes da sua personalidade não contavam muito: seu papel era quase o de uma lente, captava e concentrava a vontade do Volk para dirigi-la para um foco óptico, sempre no ponto mais correto. Assim, se com essas palavras falava de si mesmo, não falava de todos nós? Mas isso, só agora posso dizê-lo.”


“Pensei no seu medo diante daquela coisa que crescia dentro dela. “Sempre tive medo”, me dissera um dia, muito tempo atrás. Onde, isso? Não sei mais. Ela me falara do medo permanente das mulheres, esse velho amigo que convive com elas o tempo todo. Medo quando sangram todos os meses, medo de receberem alguma coisa em seu interior, de serem penetradas pelas partes dos homens que são frequentemente egoístas e brutais, medo da gravidade que puxa a carne e os seios para baixo. Devia ser a mesma coisa no caso do medo de ficar grávida. Algo cresce, cresce no ventre, um corpo estranho dentro de você, que se agita e bombeia todas as forças do corpo, e sabemos que tem que sair, ainda que mate você, aquilo tem que sair, que horror. Nenhum homem me fazia chegar perto disso, eu nada compreendia daquele medo insensato das mulheres. E, uma vez nascido os filhos, devia ser pior ainda, porque então começa o medo constante, o terror que assombra noite e dia e que só termina com você ou com eles. Eu via a imagem dessas mães apertando suas crianças enquanto eram fuziladas, eu via aquelas judias húngaras sentadas sobre suas malas, mulheres grávidas e meninas que esperavam o trem e o gás no fim da viagem, devia ter sido isso que eu vira nelas, isso de que nunca conseguira me livrar e nunca soubera exprimir, esse medo, não o medo delas aberto e explícito dos gendarmes e dos alemães, de nós, mas o medo calado que vivia dentro delas, na fragilidade de seus corpos e de seus sexos aninhados entre suas pernas, fragilidade que íamos destruir sem jamais vê-la.”


“A população, por sua vez, perdia toda esperança, e a propaganda de Goebbels não consertava as coisas: à guisa de consolo, prometia que o Führer, em sua imensa sabedoria, preparava uma morte serena, nas câmaras de gás, para o povo alemão. Era realmente muito encorajador e, como diziam as más línguas: “Um covarde? É um sujeito que está em Berlim e que resolve ir para o front.” Na segunda semana de abril (de 1945), a Filarmônica deu seu último concerto. O programa, execrável, era típico do gosto desse período – a última ária de Brünnhilde, o Götterdämmerung naturalmente, e, para terminar, a Sinfonia romântica de Bruckner –, mas fui assim mesmo. A sala, glacial, estava intacta, os lustres brilhavam com todas as suas lâmpadas, avistei Speer de longe, com o almirante Dönitz, no camarote de honra; na saída, Hitlerjugend de uniforme e guarda-pó ofereciam cápsulas de cianureto aos espectadores, gesto que quase me fez engolir uma ali na hora, de vergonha. Flaubert, tenho certeza, espernearia frente a tal exibição de burrice. Essas demonstrações ostentatórias de pessimismo se alternavam com efusões exaltadas de alegria otimista: no mesmo dia desse famoso concerto, Roosevelt morria, e Goebbels, confundindo Truman com Pedro III, já no dia seguinte lançava a palavra de ordem A czarina morreu.”


“Senti de repente todo o peso do passado, do sofrimento da vida e da memória inalterável e fiquei sozinho com o hipopótamo agonizante, alguns avestruzes e os cadáveres, sozinho com o tempo e a tristeza e a dor da lembrança, a crueldade da minha existência e a minha morte ainda por vir. As Benevolentes haviam encontrado meu rastro.”

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