Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-6028-123-7
Tradução: André
Telles
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 908
Sinopse: Um ex-oficial
nazista se reinventa anos após a guerra. Um intelectual versado em literatura e
filosofia esconde um passado sombrio e monstruoso. As benevolentes coloca
um espelho frente à humanidade, e o leitor não consegue se desviar de seu reflexo.
Neste épico histórico, Eichmann, Himmler, Heydrich — até o próprio Hitler — desempenham
papel fundamental.
Considerado pela crítica o “novo Guerra
e Paz”, As benevolentes tornou-se fenômeno de vendas e já é visto
como um clássico da literatura contemporânea. Para se ter ideia da repercussão da
obra na França, Jonathan Littell chegou a ser comparado a Tolstói
pelo jornal Le Monde.
Profundo e arrebatador, As benevolentes trata dos horrores
da Segunda Guerra Mundial sob a ótica do carrasco. São as memórias de Maximilien
Aue, jovem alemão de origem francesa que, como oficial nazista, participa de momentos
sombrios da recente história mundial: da execução dos judeus, as batalhas no front
de Stalingrado, a organização dos campos de concentração, até a derrocada final
da Alemanha.
Aue, no entanto, não tem somente lembranças de guerra. Vivendo
anonimamente na França, onde administra uma tecelagem, ele se recorda também de
sua deturpada relação com a família. Seu relato compõe um livro impressionante,
assombrado tanto por sua fria meticulosidade quanto por seu delírio insano. Através
dos olhos de Aue, o leitor é levado a vislumbrar o mal de uma forma jamais imaginada.
“Rastejamos por muito tempo nesta terra como uma
lagarta, à espera da borboleta esplêndida e diáfana que carregamos dentro de nós.
O tempo passa, a ninfose não chega, permanecemos larva, constatação aflitiva, o
que fazer? O suicídio, naturalmente, continua sendo uma opção. Mas, para falar a
verdade, o suicídio não me atrai muito. Pensei nisso, claro, durante muito tempo,
e se tivesse de recorrer a ele, eis como agiria: apertaria uma granada contra o
peito e partiria numa viva explosão de alegria. Uma granadinha redonda da qual eu
removeria o pino com delicadeza antes de soltar a trava, sorrindo ao barulhinho
metálico da mola, o último que eu ouviria, afora os batimentos do coração nos ouvidos.
E depois finalmente a felicidade, ou, em todo caso, a paz, e as paredes do meu escritório
enfeitadas com retalhos de carne. A limpeza caberá às faxineiras, são pagas para
isso, o problema é delas.”
“Apesar dos meus defeitos, e eles são muitos,
ainda sou dos que acham que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o
ar, a comida, a bebida e a excreção, além da busca pela verdade. O resto é facultativo.”
“A conclusão de tudo isso, se me permitem outra
citação, a última, prometo, é, como dizia muito bem Sófocles: O que se deve preferir
a tudo é não ter nascido. Schopenhauer, por sinal, escrevia claramente a mesma
coisa: Seria melhor que não existisse nada. Como há mais sofrimento que prazer
sobre a terra, toda a satisfação é apenas transitória, criando novos desejos e novas
aflições, e a agonia do animal devorado é maior do que o prazer do devorador.
Sim, eu sei, isso dá duas citações, mas a ideia é a mesma: na verdade, vivemos no
pior mundo possível.”
“Apesar do entusiasmo, meus amigos mostravam-se
pessimistas: “A direita francesa está mijando contra o vento”, disse-me Rebatet
uma noite. “Pela honra”. Todo mundo na França parecia aceitar passivamente que a
guerra chegaria, cedo ou tarde. A direita culpava a esquerda e os judeus; a esquerda
e os judeus, naturalmente, culpavam a Alemanha.”
““Em todo caso”, acrescentava sentenciosamente
Vogt, “Deus está com a nação e o Volkalemães. Não podemos perder esta guerra.”
– “Deus?”, cuspia Blobel. “Deus é comunista. E se eu o encontrar pela frente, ele
terminará como seus comissários”.”
“Entrei no carro e segui os caminhões; na chegada,
os Polizei faziam as mulheres e crianças descerem e se juntarem aos homens que chegavam
a pé. Diversos judeus entoavam cânticos religiosos durante a caminhada; raros tentavam
fugir, estes eram imediatamente detidos pelo cordão ou abatidos. Do alto, ouviam-se
nitidamente as rajadas, as mulheres, sobretudo, começaram a entrar em pânico. Mas
nada podiam fazer. Eram divididas em pequenos grupos e um suboficial sentado a uma
mesa fazia a contagem; depois nossos ascaris se encarregavam delas e as guiavam
pela beira da ravina. Após cada série de disparos, era a vez de outro grupo, a coisa
funcionava bem. (...) Foram colocadas tábuas sobre o córrego para que judeus e atiradores
pudessem atravessar com facilidade; mais além, espalhados um pouco por toda parte
nos flancos nus das ravinas, pequenos cachos brancos multiplicavam-se. Os “empacotadores”
ucranianos arrastavam seus fardos para esses aglomerados e os obrigavam a se deitarem
em cima ou ao lado; os homens do pelotão avançavam então e passavam ao longo das
fileiras de pessoas deitadas quase nuas, destinando a cada uma, uma bala de metralhadora
na nuca; havia três pelotões ao todo. No intervalo entre as execuções, oficiais
inspecionavam os corpos e administravam tiros de misericórdia com a pistola. Sobre
uma colina, dominando a cena, grupos de oficiais SS e da Wehrmacht. Jeckeln estava
lá com seu séquito, tendo ao lado o Dr. Rasch; reconheci também diversas altas patentes
do 6º Exército. Vi Thomas, que me viu também mas não retribuiu minha saudação. Em
frente, os pequenos grupos rolavam pelos flancos da ravina e juntavam-se aos cachos
de corpos que aumentavam cada vez mais. O frio tornava-se dilacerante, mas o rum
circulava e bebi um pouco. Blobel desembarcou do carro diretamente no lado da ravina
que ocupávamos, devia estar vindo da inspeção; bebia numa garrafinha e vituperava,
gritava que as coisas não estavam andando suficientemente rápido. Entretanto, o
ritmo fora acelerado ao máximo. Os atiradores eram substituídos de hora em hora
e aqueles que não atiravam os abasteciam com rum e completavam a munição dos carregadores.
Os oficiais falavam pouco, alguns tentavam esconder a perturbação. A Ortskommandantur
mandara vir uma bateria de cozinha de campanha e um pastor militar fazia chá para
aquecer os Orpo e os membros do Sonderkommando. Na hora do almoço, os oficiais superiores
voltaram para a cidade, mas os subalternos ficaram para comer com os homens. Como
as execuções deviam prosseguir sem pausas, a cantina foi instalada mais embaixo,
em uma depressão de onde a ravina não era vista. Hartl ordenou-me que substituísse
Jeckeln quando terminasse o turno dele na ravina. “Está com sua arma? Está? Não
quero nenhum maricas no meu Kommando, está entendendo?” Cuspia, estava completamente
bêbado e quase não se controlava mais. Um pouco mais tarde avistei Janssen subindo
de volta. Cravou os olhos em mim com maldade: “Sua vez.” Em torno dos corpos, a
terra arenosa impregnava-se de um sangue negro, o riacho também estava escuro de
sangue. O cheiro medonho dos excrementos predominava sobre o do sangue, muita gente
defecava no instante de morrer; felizmente, o vento soprava com força e expulsava
parte daqueles eflúvios. Vistas de perto, as coisas passavam-se menos tranquilamente;
os judeus que chegavam no alto da ravina, empurrados pelos ascaris e os Orpo, berravam
apavorados ao descobrirem a cena, debatiam-se, os “empacotadores” aplicavam-lhes
golpes deschlag ou com fio metálico para obrigá-los a descer e se deitar,
mesmo derrubados ainda gritavam e tentavam se levantar, as crianças agarravam-se
à vida como os adultos, reerguiam-se de um pulo e escapuliam até que um “empacotador”
as alcançasse e abatesse, em geral os tiros não acertavam em cheio e as pessoas
ficavam apenas feridas, mas os atiradores se lixavam e já passavam à vítima seguinte,
os feridos rolavam, contorciam-se, gemiam de dor; outros, ao contrário, sob o choque,
calavam-se e quedavam paralisados, olhos esbugalhados. Os homens iam e vinham, desferiam
um tiro atrás do outro, quase sem descanso. Quanto a mim, estava petrificado, não
sabia o que fazer. Grafhorst chegou e sacudiu meu braço: “Obersturmführer!” Apontou
sua pistola para os corpos. “Tente acabar com os feridos.” Saquei minha pistola
e me dirigi para um grupo: um adolescente mugia de dor, apontei minha pistola para
sua cabeça e apertei o gatilho, mas o disparo não partiu, eu esquecera de soltar
a trava, retirei-a e lhe desferi um tiro na testa, ele estremeceu e se calou subitamente.
Para alcançar alguns feridos, eu precisava andar sobre os corpos, escorregava terrivelmente,
as carnes brancas e gelatinosas rolavam sob minhas botas, os ossos quebravam-se
perfidamente e me faziam tropeçar, eu estava enfiado até os tornozelos na lama e
no sangue. Era horrível e fui tomado por uma sensação rangente de nojo, como naquela
noite na Espanha, na latrina com as baratas, eu era ainda garoto, meu padrasto nos
dera de presente umas férias na Catalunha, dormíamos em uma aldeia e certa noite
eu senti cólicas, corri para a latrina no fundo do quintal iluminando o caminho
com uma lanterna de bolso, e a fossa, limpa de dia, estava tomada por enormes baratas
marrons, fiquei assustado, tentei aguentar e voltar para a cama, mas as pontadas
eram muito fortes, não havia penico, calcei minhas galochas e retornei à latrina,
matutando que poderia expulsar as baratas a pontapés e fazer a coisa com agilidade,
passei a cabeça pela porta iluminando o chão, depois notei um reflexo na parede,
dirigi para lá o foco da lanterna, a parede também estava ocupada pelas baratas,
todas as paredes, o teto idem, e a tábua em cima da porta, virei lentamente a cabeça
passada pela porta e elas estavam ali também, uma pasta escura e buliçosa, então
retirei lentamente a cabeça, muito lentamente, voltei para o quarto e me segurei
até de manhã. Andar sobre os corpos dos judeus me dava uma sensação igual, atirei
quase a esmo em tudo que eu via se mexer, depois me acalmei e tentei me concentrar,
apesar de tudo convinha que as pessoas sofressem o mínimo possível, de toda forma
eu só podia acabar com os mais recentes, embaixo já havia outros feridos, não mortos
ainda, mas que logo o seriam. Eu não era o único a perder o ânimo, alguns atiradores
também tremiam e bebiam entre as fornadas. Um jovem Waffen-SS chamou minha atenção,
eu não sabia seu nome: começava a atirar de qualquer jeito, metralhadora na altura
dos quadris, ria assustadoramente e esvaziava seu pente ao acaso, um tiro à esquerda,
outro à direita, depois dois, depois três, como uma criança que segue o traçado
do calçamento segundo uma misteriosa topografia interna. Aproximei-me dele e o sacudi,
mas ele continuava a rir e atirar à minha frente, arranquei a metralhadora dele
e o esbofeteei, depois aloquei-o entre os homens que reabasteciam os estoques; Grafhorst
me designou outro homem para o lugar e joguei uma metralhadora para ele, gritando:
“E trabalhe direito, entendeu?!!” Perto de mim, traziam outro grupo: meu olhar cruzou
com o de uma moça bonita, quase nua mas muito elegante, calma, os olhos cheios de
uma tristeza infinita. Afastei-me. Quando voltei ela ainda vivia, encolhida de barriga
para cima, uma bala saíra embaixo de seu seio e ela arquejava, petrificada, seus
belos lábios tremiam e pareciam querer formar uma palavra, fitava-me com os olhos
arregalados, incrédulos, olhos de pássaro ferido, e aquele olhar grudou em mim,
abriu minha barriga e fez escorrer uma onda de serragem de madeira, eu era uma boneca
vulgar e não representava nada, ao mesmo tempo queria de todo meu coração me debruçar
e limpar a terra e o suor misturados em sua testa, acariciar-lhe a face e lhe dizer
que estava tudo bem, que estava tudo sob controle, mas em vez disso disparei convulsivamente
uma bala em sua cabeça, o que afinal de contas dava no mesmo, para ela em todo caso,
quando não para mim, pois eu, ao pensar naquele monturo humano insensato, estava
tomado por uma raiva imensa, ilimitada, continuei a atirar nela e sua cabeça explodiu
como uma fruta, então meu braço se desprendeu de mim e saiu sozinho pela ravina
atirando em todas as direções, corri atrás dele, fazendo sinal para que esperasse
o meu outro braço, mas ele não queria, ria de mim e atirava sobre os feridos por
si só, à minha revelia; finalmente, extenuado, parei e comecei a chorar. Agora,
eu pensava, acabou, meu braço não voltará nunca mais, mas para minha grande surpresa
ele estava ali de novo, no lugar, solidamente preso no meu ombro e Häfner aproximava-se
de mim e me dizia: “Chega, Obersturmführer. É minha vez”.”
“Agora julgava compreender melhor as reações dos
homens e dos oficiais durante as execuções. Se sofriam, como eu sofrera durante
a Grande Ação, não era apenas em virtude do cheiro e da visão do sangue, mas também
em virtude do terror e da dor moral dos condenados; da mesma forma, em geral os
que fuzilávamos sofriam mais com a dor e a morte, diante de seus olhos, daqueles
a quem amavam, mulheres, pais e filhos queridos, do que com a própria morte, que
recebiam no fim como uma libertação. Em muitos casos, eu arriscaria a dizer, o que
eu tomara como sadismo gratuito, a brutalidade inaudita com que alguns homens tratavam
os condenados antes de executá-los, não passava do efeito da piedade monstruosa
que sentiam e que, incapazes de se exprimir de outra forma, transformava-se em raiva,
mas uma raiva impotente, sem objeto, devendo portanto quase inevitavelmente voltar-se
contra aqueles que eram sua causa primeira. Se os terríveis massacres do Leste provam
uma coisa, é de fato, paradoxalmente, a terrível e inalterada solidariedade humana.
Por mais brutalizados e acostumados que estivessem, nenhum dos nossos homens conseguia
matar uma mulher judia sem pensar em sua mulher, em sua irmã ou sua mãe, ou matar
uma criança judia sem ver seus próprios filhos à sua frente diante do fosso. Sua
reações, sua violência, seu alcoolismo, as depressões nervosas, os suicídios, minha
própria tristeza, tudo isso demonstrava que o outroexiste, existe como outro,
como humano, e que nenhuma vontade, nenhuma ideologia, nenhuma montanha de estupidez
e álcool é capaz de romper esse laço, sutil mas indestrutível.”
“Os homens grosseiros e ignorantes castigam-se
a si mesmos.”
“(Em Stalingrado) Nišić apontou um buraco rodeado
de sacos de areia escorado por tábuas. “Pode olhar por aqui. Mas não por muito tempo.
Os snipers deles são de primeira. Parece que são mulheres.” Ajoelhei perto
do buraco, depois estiquei lentamente a cabeça; a brecha era estreita, eu via apenas
uma paisagem de ruínas informes, quase abstrata. Foi então que ouvi o grito, da
esquerda: um longo uivo rouco, bruscamente interrompido. Então o grito voltou. Não
havia mais nenhum outro barulho e eu ouvi nitidamente. Vinha de um rapazola e eram
longos gritos dilacerantes, terrivelmente débeis; devia, pensei, estar ferido na
barriga. Me debrucei e olhei de viés: percebi sua cabeça e uma parte do torso. Gritava
até perder o fôlego, parava para inspirar e recomeçava. Sem saber russo, eu compreendia
o que ele gritava: “Mama! Mama!” Era insuportável. “Que é isso?”, perguntei
estupidamente a Nišić. – “É um dos sujeitos de agorinha.” – “Não pode acabar com
ele?” Nišić fitou-me com um olhar duro, cheio de desprezo: “Não temos munição para
desperdiçar”, grunhiu finalmente. Sentei-me contra a parede, como os soldados. Ivan
apoiara-se no batente da porta. Ninguém falava. Fora, o garoto continuava a gritar:
“Mama! Ia ne khatchu! Mama! Ia khatchu domoi!”, e outras palavras que eu
não conseguia distinguir. Dobrei os joelhos e os enlacei com os braços. Nišić, agachado,
continuava a olhar para mim. Eu queria tapar o ouvido, mas seu olhar de chumbo me
petrificava. Os gritos do garoto perfuravam meu cérebro, uma colher de pedreiro
remexendo uma lama grossa e viscosa, recheada de vermes e de uma vida imunda. E
eu, pensei, será que chegado o momento vou implorar pela minha mãe? Entretanto,
pensar nessa mulher me enchia de ódio e aversão. Fazia anos que não a via, e não
queria vê-la; a ideia de invocar seu nome, sua ajuda, parecia-me inconcebível. Contudo,
eu devia desconfiar que por trás dessa mãe havia outra, a mãe da criança que eu
havia sido antes que alguma coisa se houvesse irremediavelmente rompido. Provavelmente
também vou me retorcer e berrar por essa mãe. E, se não fosse por ela, seria pelo
seu ventre, o de antes da luz, a malsã, a sórdida, a doentia luz do dia.”
“Em Rakotino, finalmente, encontrei Hohenegg em
uma pequena isbá miserável enterrada até a metade na neve, batendo numa máquina
de escrever portátil à luz de uma vela enfiada em uma conexão de PAK. Levantou a
cabeça sem manifestar a menor surpresa: “Veja só. O Hauptsturmführer. Que bons ventos
o trazem?” – “O senhor.” Passou a mão em seu crânio calvo: “Não sabia que era tão
desejável. Mas aviso desde já: se estiver doente, veio à toa. Só cuido daqueles
para quem já é tarde demais.” Fiz um esforço para me recobrar e encontrar uma réplica:
“Doutor, sofro apenas de uma doença, sexualmente transmissível e irremediavelmente
fatal: a vida”.”
“Também encontrei soldados nessas paisagens devastadas;
alguns dirigiam-se a mim com hostilidade, outros educadamente, outros ainda com
indiferença; contavam sobre a Rattenkrieg, a “guerra dos ratos” pela tomada
daquelas ruínas, onde um corredor, um teto e uma parede serviam de linha de frente,
onde se bombardeava cegamente à base de granadas em meio à poeira e à fumaça, onde
os vivos sufocavam no calor dos incêndios, onde os mortos atravancavam as escadas,
os andares, as soleiras dos apartamentos, onde se perdia toda noção de tempo e espaço
e onde a guerra tornava-se quase um jogo de xadrez abstrato, tridimensional. Nossas
forças, por sinal, chegaram às vezes a três, duas ruas do Volga, não mais longe
que isso. Agora era a vez dos russos: todos os dias, geralmente de madrugada e à
noite, lançavam investidas ferozes contra nossas posições, sobretudo no setor das
fábricas, mas também no centro; as munições das companhias, rigorosamente racionadas,
esgotavam-se, e, depois do ataque, os sobreviventes prostravam-se, arrasados; de
dia, os russos passeavam a descoberto, sabendo que nossos homens não tinham condições
de atirar. Nos porões, amontoados, viviam sob tapete de ratos, que, tendo perdido
todo o medo, corriam tanto atrás dos vivos como dos mortos e, à noite, vinham lambiscar
as orelhas, o nariz ou os dedos dos que se entregavam ao sono. Certo dia, encontrava-me
no segundo andar de um prédio quando um pequeno obus de morteiro explodiu na rua;
instantes depois, escutei uma risada ensandecida. Olhei pela janela e vi um torso
humano pousado no meio do entulho: um soldado alemão, as duas pernas arrancadas
pela explosão, ria desbragadamente. Olhei e ele não parava de rir no centro de uma
poça de sangue que ia se ampliando por entre os escombros. Esse espetáculo me deixou
arrepiado, deu um nó nas minhas entranhas; fiz Ivan sair e abaixei minhas calças
no meio da sala. Quando a cólica me atacava durante alguma incursão, eu cagava em
qualquer lugar, em corredores, cozinhas, quartos, até mesmo, dependendo das ruínas,
acocorado numa pia de banheiro, nem sempre conectada a um cano, aliás. Esses grandes
prédios destruídos, onde ainda no verão anterior milhares de famílias viviam a vida
do dia-a-dia, banal, de todas as famílias, sem desconfiar que em breve homens dormiriam
em grupos de seis em seu leito conjugal, se limpariam com suas cortinas ou lençóis,
se massacrariam a golpes de pá em suas cozinhas e amontoariam os cadáveres dos mortos
em suas banheiras, esses prédios me enchiam de uma angústia vã e amarga.”
“Obuses haviam esmagado os degraus e destroçado
as pesadas portas de madeira; no interior do grande saguão, entre fragmentos de
mármore e colunas estilhaçadas, amontoavam-se dezenas de cadáveres que enfermeiros
traziam dos porões e colocavam ali, esperando para incinerá-los. Um mau cheio interminável
refluía dos acessos aos subterrâneos, impregnando o saguão: “Vou esperar aqui”,
declarou Ivan postando-se perto das portas principais para enrolar um cigarro. Contemplei-o
e meu espanto diante de sua fleuma transmutou-se em uma tristeza súbita e aguda:
com efeito, eu tinha toda a probabilidade de ali permanecer, mas ele não tinha nenhuma
de sair. Fumava tranquilamente, indiferente. Encaminhei-me para o subsolo. “Não
se aproxime muito dos corpos”, disse um enfermeiro perto de mim. Apontou com o dedo
e olhei: uma procissão escura e indistinta corria por cima dos cadáveres empilhados,
saía deles, movia-se por entre os escombros. Olhei mais de perto e meu estômago
revirou. As pulgas deixavam os corpos frios, em massa, em busca de novos hóspedes.
Contornei-os cuidadosamente e desci; atrás de mim, o enfermeiro ria. Na cripta,
o mau cheiro me envolveu como um pano molhado, uma coisa viva e multiforme que grudava
nas narinas e na garganta, feita de sangue, gangrena, feridas putrefatas, fumaça
de lenha úmida, lã molhada ou empapada de urina, diarreia quase caramelada, vômitos.
Respirei pela boca, tentando segurar o enjoo. Os feridos e doentes haviam sido alinhados
sobre cobertores ou diretamente no chão, em meio a todos os vastos porões frios
e cimentados do teatro; os gemidos e gritos ressoavam nas abóbadas; uma grossa camada
de lama cobria o chão. Alguns médicos ou enfermeiros com aventais imundos evoluíam
lentamente por entre as fileiras de moribundos, procurando precavidamente onde pisar
para evitar esmagar um membro.”
“Ela ou outras também me alimentavam, deslizando
colheres de caldo entre meus lábios; eu teria preferido um bife sangrento, mas não
ousava pedir, afinal, aquilo não era um hotel, mas, finalmente eu compreendera,
um hospital: e ser um paciente é isso também, a palavra significa precisamente o
que significa.”
“No fundo, repetia para mim com uma vã amargura,
é só nos nove primeiros meses que nos sentimos tranquilos, depois o arcanjo da espada
de fogo nos expulsa para todo o sempre pela porta que diz Lasciate ogni speranza,
e passamos a querer apenas uma coisa, voltar atrás, embora o tempo continue a nos
empurrar impiedosamente à frente e no fim não haja nada, absolutamente nada.”
“Desliguei o telefone e desci até o andar debaixo
do meu; achei com facilidade uma porta e bati. Quem abriu foi uma mulher bonita
e alta em trajes de soirée bem informais, os olhos cintilantes: “Pois não?”
Atrás dela, a música bramia, dava para ouvir copos tilintando, gargalhadas. “O quarto
é seu?”, perguntei, com o coração a mil. – “Não, espere”. Virou-se: “Dicky! Dicky!
Um oficial quer falar com você.” Um homem de casaca, um tanto embriagado, veio até
a porta; a mulher olhava-nos sem esconder a curiosidade. “Pois não, Herr Sturmbannführer”,
disse ele. “Que posso fazer pelo senhor?” Sua voz afetada, cordial, quase confusa,
refletia uma aristocracia de velha cepa. Inclinei-me ligeiramente e articulei no
tom mais neutro possível: “Meu quarto fica no andar em cima do seu. Estou voltando
de Stalingrado, onde fui gravemente ferido e onde quase todos os meus companheiros
foram mortos. Suas festas me incomodam. Quis descer para matá-lo, mas telefonei
para um amigo que me aconselhou a falar primeiro com o senhor. Então aqui estou,
vim falar com o senhor. Seria melhor para todos nós que eu não tivesse que descer
de novo.” O homem empalidecera: “Não, não...” Virou-se para trás: “Gofi! Pare a
música! Pare!” Olhou para mim: “Desculpe-nos. Vamos parar imediatamente.” – “Obrigado”.
Enquanto eu subia, vagamente satisfeito, ouvi-o gritar: “Todo mundo para fora! Terminou.
Debandar!” Eu havia tocado num nervo, e não era questão de medo: subitamente ele
também compreendera, e tivera vergonha.”
“Muito se discorreu, depois da guerra, para tentar
explicar o que acontecera, a desumanidade. Mas a desumanidade, me desculpem, não
existe. Existe apenas o humano e o mais humano: e esse Döll é um bom exemplo disso.
Quem é Döll senão um bom pai de família que queria alimentar os filhos e que obedecia
ao seu governo, ainda que em seu foro íntimo não concordasse plenamente com aquilo?
Se houvesse nascido na França ou nos Estados Unidos, teria sido considerado um pilar
de sua comunidade e um patriota; mas, nasceu na Alemanha, então é um criminoso.
A necessidade, os gregos já sabiam disso, é uma deusa não apenas cega, como cruel.”
“Schellenberg tinha o hábito de referir-se àqueles
de quem não gostava como putas, termo que caía como uma luva nele, e, pensando
bem, não deixa de ser verdade que os insultos prediletos das pessoas, os que lhes
vêm mais espontaneamente aos lábios, revelam no fim das contas frequentemente seus
próprios defeitos ocultos, pois elas odeiam por natureza aquilo com que mais se
assemelham. Essa ideia não me abandonou aquela noite, e, de volta em casa, já tarde,
um pouco bêbado talvez, peguei em uma prateleira uma coletânea dos discursos do
Führer pertencente à Frau Gutknecht e comecei a folhear, procurando as passagens
mais virulentas, sobretudo sobre os judeus, e ao lê-las eu me perguntava se, vociferando:
Faltam aos judeus capacidade e criatividade em todos os domínios da vida, menos
um: mentir e trapacear, ou O edifício inteiro do judeu irá desmoronar se
nos recusarmos a segui-lo, ou ainda São mentirosos, falsários, hipócritas.
Só chegaram aonde estão graças à ingenuidade dos que os cercam, ou ainda
Podemos viver sem o judeu. Mas ele não pode viver sem nós, o Führer, à sua revelia,
não descrevia a si próprio. Ora, aquele homem nunca falava em seu próprio nome,
os acidentes da sua personalidade não contavam muito: seu papel era quase o de uma
lente, captava e concentrava a vontade do Volk para dirigi-la para um foco
óptico, sempre no ponto mais correto. Assim, se com essas palavras falava de si
mesmo, não falava de todos nós? Mas isso, só agora posso dizê-lo.”
“Pensei no seu medo diante daquela coisa que crescia
dentro dela. “Sempre tive medo”, me dissera um dia, muito tempo atrás. Onde, isso?
Não sei mais. Ela me falara do medo permanente das mulheres, esse velho amigo que
convive com elas o tempo todo. Medo quando sangram todos os meses, medo de receberem
alguma coisa em seu interior, de serem penetradas pelas partes dos homens que são
frequentemente egoístas e brutais, medo da gravidade que puxa a carne e os seios
para baixo. Devia ser a mesma coisa no caso do medo de ficar grávida. Algo cresce,
cresce no ventre, um corpo estranho dentro de você, que se agita e bombeia todas
as forças do corpo, e sabemos que tem que sair, ainda que mate você, aquilo tem
que sair, que horror. Nenhum homem me fazia chegar perto disso, eu nada compreendia
daquele medo insensato das mulheres. E, uma vez nascido os filhos, devia ser pior
ainda, porque então começa o medo constante, o terror que assombra noite e dia e
que só termina com você ou com eles. Eu via a imagem dessas mães apertando suas
crianças enquanto eram fuziladas, eu via aquelas judias húngaras sentadas sobre
suas malas, mulheres grávidas e meninas que esperavam o trem e o gás no fim da viagem,
devia ter sido isso que eu vira nelas, isso de que nunca conseguira me livrar e
nunca soubera exprimir, esse medo, não o medo delas aberto e explícito dos gendarmes
e dos alemães, de nós, mas o medo calado que vivia dentro delas, na fragilidade
de seus corpos e de seus sexos aninhados entre suas pernas, fragilidade que íamos
destruir sem jamais vê-la.”
“A população, por sua vez, perdia toda esperança,
e a propaganda de Goebbels não consertava as coisas: à guisa de consolo, prometia
que o Führer, em sua imensa sabedoria, preparava uma morte serena, nas câmaras
de gás, para o povo alemão. Era realmente muito encorajador e, como diziam as más
línguas: “Um covarde? É um sujeito que está em Berlim e que resolve ir para o front.”
Na segunda semana de abril (de 1945), a Filarmônica deu seu último concerto. O programa,
execrável, era típico do gosto desse período – a última ária de Brünnhilde, o Götterdämmerung
naturalmente, e, para terminar, a Sinfonia romântica de Bruckner –, mas fui
assim mesmo. A sala, glacial, estava intacta, os lustres brilhavam com todas as
suas lâmpadas, avistei Speer de longe, com o almirante Dönitz, no camarote de honra;
na saída, Hitlerjugend de uniforme e guarda-pó ofereciam cápsulas de cianureto aos
espectadores, gesto que quase me fez engolir uma ali na hora, de vergonha. Flaubert,
tenho certeza, espernearia frente a tal exibição de burrice. Essas demonstrações
ostentatórias de pessimismo se alternavam com efusões exaltadas de alegria otimista:
no mesmo dia desse famoso concerto, Roosevelt morria, e Goebbels, confundindo Truman
com Pedro III, já no dia seguinte lançava a palavra de ordem A czarina morreu.”
“Senti de repente todo o peso do passado, do sofrimento
da vida e da memória inalterável e fiquei sozinho com o hipopótamo agonizante, alguns
avestruzes e os cadáveres, sozinho com o tempo e a tristeza e a dor da lembrança,
a crueldade da minha existência e a minha morte ainda por vir. As Benevolentes haviam
encontrado meu rastro.”
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