Editora: Martins
Fontes
ISBN:
978-85-3362-189-3
Tradução: Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 184
Sinopse: O
Estado, cujo nascimento é determinado por um conjunto de circunstâncias
históricas, é acima de tudo uma ideia, um produto da inteligência humana.
Móbil, mas também regulador da luta política, ele deve assegurar para si uma
base homogênea elevando-se acima dos interesses sociais divergentes. O Estado
liberal, o Estado de partido único, o estado pluralista tentam, cada um à sua
maneira, corresponder a essa exigência. Hoje os processos da ciência e os
desenvolvimentos da técnica, provocam uma metamorfose do Estado. Pensados por
indivíduos cuja mentalidade é cercada pelos imperativos da sociedade técnica,
ele agora só se justifica pelos serviços que o corpo social espera dele. É
realmente Leviatã, mas um Leviatã teleguiado. Um clássico da ciência política.
“Os homens inventaram o Estado para não
obedecer aos homens. Fizeram dele a sede e o suporte do poder cuja necessidade
e cujo peso sentem todos os dias, mas que, desde que seja imputada ao Estado,
permite-lhes curvar-se a uma autoridade que sabem inevitável sem, porém,
sentirem-se sujeitos a vontades humanas. O Estado é uma forma de Poder que
enobrece a obediência. Sua razão de ser primordial é fornecer ao espírito uma
representação do alicerce do Poder que autoriza fundamentar a diferenciação
entre governantes e governados sobre uma base que não seja as relações de
forças.”
“Compreende-se então que, concebido para ser
a sede impassível do poder, o Estado em geral chegue a ser apenas o álibi dos
que governam em seu nome. Eles se enfeitam de seus prestígios, mas na realidade
é o humor, as paixões ou os interesses deles que ditam as vontades que lhe são
imputadas. O Estado, colonizado pelos que deveriam ser apenas seus servidores,
torna-se então, se não o que Marx via nele quando o denunciava como um
instrumento de opressão, pelo menos o biombo de uma empreitada de dominação. O
mito degenera em mistificação e o Estado, imaginado para purificar o Poder de
todas as fraquezas humanas, chega a lhes servir de justificação.”
“É por causa de uma excessiva generosidade verbal
que se qualifica de Estado a organização política que existiu entre os
babilônios, os medos ou os persas, ou ainda que se vincula o mesmo título ao
poder exercido por um chefe de tribo da Melanésia ou na África equatorial. Por
certo, discerne-se em todos esses grupos a existência da coerção: o machado do
carrasco é do mesmo metal, quer execute a sentença proferida pelo Estado, quer
obedeça à ordem de um sátrapa que concentra em sua pessoa a propriedade e os
atributos do Poder. Mas, se é verossímil que o homem cuja cabeça vai ser
cortada ficará insensível às diferenças de que tratamos, elas estão longe de
serem devidas apenas a uma nuance de terminologia. No Estado o Poder reveste
características que não encontramos alhures; seu modo de enraizamento no grupo
lhe vale uma originalidade que repercute na situação dos governantes, sua
finalidade o livra da arbitrariedade das vontades individuais; seu exercício
obedece a regras que lhe limitam o perigo. Isso é suficiente, parece, para
impedir confundir o Estado com uma diferenciação qualquer entre chefes e
súditos.”
“Há Poder em todo fenômeno em que se revela a
capacidade de um indivíduo obter de outro um comportamento que ele não teria
adotado espontaneamente.”
“É importante compreender, de fato, que é na
medida em que a coletividade global se compõe de corpos parciais de essências
diferentes que é necessário que se afirme, para além dos objetivos de cada um
deles, um valor que lhes seja comum a todos. Esse valor só pode ser a própria
existência da sociedade.”
“Em sua essência profunda, o Poder é a
encarnação dessa energia provocada no grupo pela ideia de uma ordem social
desejável. É uma força nascida da consciência coletiva e destinada ao mesmo
tempo a assegurar a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele
considera seu bem e capaz, se necessário, de impor aos membros a atitude
exigida por essa busca.”
“O conquistador pode acreditar que deve sua
sorte à sua espada, o legislador, à sua sabedoria, o condutor de povo, sua
influência a uma vocação histórica. É bom que pensem assim, pois essa confiança
estimula-lhes o zelo e os protege da imprudência. Mas, na realidade, são apenas
o instrumento de uma ideia que encontra neles a ocasião de desenvolver sua
potência.”
“De fato, durante milênios, a necessidade de
subsistir foi a única razão de ser dos grupamentos humanos. Ela implicava três
obrigações: comer, resistir aos vizinhos, não desagradar aos deuses.”
“Politicamente, o que caracteriza o sistema
feudal é o compromisso da fé, o apego de homem a homem. “Um homem comanda, não
uma entidade”*. (...) A autoridade repousa nas relações entre o superior e o
inferior. O indivíduo serve ao seu Senhor, não poderia servir a uma ideia; é
menos o súdito das leis do que o fiel do rei.”
* J. Calmette, Le monde féodal,
1934, p. 166.
“Que é uma instituição, de fato, senão um
empreendimento a serviço de uma ideia e organizado de tal maneira que, estando
a ideia incorporada no empreendimento, este possa dispor de um poder e de uma
duração superiores aos dos indivíduos pelos quais ele age? Ora, um
empreendimento assim corresponde exatamente ao que se tem direito de esperar de
um Poder: o uso do poder a serviço de uma ideia, mas de um poder cujos fins são
determinados pela ideia e sobrevivem aos indivíduos que lhe asseguram o
serviço. A ideia é a representação da ordem desejável; o organismo é o aparelho
do poder público organizado de tal modo que a ideia condicione-lhe a estrutura,
o pessoal e os meios. Na instituição o Poder não fica necessariamente
enfraquecido, mas é sujeito a realização de um projeto cujo conteúdo não é o
único a fixar.”
“Um instinto ou uma inflexão sentimental os
incita a dotar de uma figura a força que os socorre. O homem precisa prender
seu amor ou seu ódio a signos, a imagens, a fetiches. Mas, ao lado dessa
disposição primitiva, há nele, não mais em sua carne, mas em seu espírito, um
movimento que o impulsiona a conceber e a abstrair, uma capacidade intelectual
que lhe permite amar sem ver, acreditar sem tocar, obedecer a uma disciplina
que dispensa o chicote. E, se não pode evitar ser surrado, pelo menos pretende,
como diz Alain, olhar as varas. É nesse nível superior da reflexão que se situa
a institucionalização do Poder.”
“Não haver Estado sem território, sem
população e sem autoridade que comanda parece tão evidente que a opinião comum
vê nesses dados os elementos do Estado. É um erro, já que podem coexistir todos
sem que por isso o Poder deixe de ser individualizado. Mas a verdade é que a
maneira de ser deles favorece, em certa medida, a formação da ideia do Estado.
Assim é inegável que, embora todas as histórias nacionais sejam dominadas pelo
esforço dos governantes para reunir um patrimônio territorial e assegurar sua
unificação interna, a política de reunião das terras não é benéfica em si; só é
válida se, à unidade física do espaço fechado no interior das fronteiras,
corresponde a unidade espiritual do grupo que nele vive. O fracasso das
políticas de conquista prova que o combate pelo território só é uma prova salutar
se permite à coletividade tomar consciência de si mesma. Ora, essa consciência
se fortalece na medida em que, estando delimitadas as fronteiras (não foi por
acaso que a noção moderna de fronteira apareceu no século XVI, ou seja, no
momento em que se formava o conceito de Estado), o grupo vê no território um
patrimônio coletivo e não a propriedade dos chefes. Esse patrimônio precisa de
um titular que perdure e não tenha a liberdade de fracioná-lo como bem
entender. Essa condição, apenas o Estado pode preenchê-la.”
“Em todos os países antigos, é a nação que
fez o Estado; ele formou-se lentamente nos espíritos e as instituições foram
unificadas pelo sentimento nacional. No Estado novo, tal como surge no
continente africano, é o Estado que deve fazer a nação. Só que, como o Estado
só pode nascer de um esforço nacional, o drama político se fecha num círculo
vicioso. O que vemos então? Vemos os chefes, que se pautam por um Estado que
ainda não existe e cujos traços eles copiam do modelo efetivamente realizado noutro
lugar, empenhar-se em criar em seu país as condições indispensáveis para o
estabelecimento de um Poder estatal. Mas, no momento em que invocam o Estado,
eles próprios realizam a figura mais perfeita do Poder individualizado. Esse
paradoxo é facilmente explicável. A amplitude e as dificuldades da tarefa por
realizar exigem da parte daqueles que a empreendem um poder incomum. Ora, onde
encontrariam sua fonte senão em seu prestígio pessoal e no apoio que lhes é
fornecido pela confiança de seus fiéis? A ideia da obra por realizar ainda é
mal percebida pelos grupos, aliás, divididos pelas rivalidades tribais;
portanto, ela é incapaz de fornecer aos chefes a energia suscetível de
substituir, até mesmo de suplantar, a autoridade própria deles. Por outro lado,
e esse não é o aspecto menos dramático da situação, na medida em que, da massa
intelectualmente subdesenvolvida, se destaca uma consciência política, esta só
aparece no nível das reivindicações coletivas orientadas pelo interesse
material imediato. Essa consciência é polarizada pela atualidade. No plano
sindical, no plano social, no plano das exigências econômicas, os povos da África
caminham na hora do século XX, mas é uma hora importada; ela não é um momento
na própria duração deles. Daí resulta um terrível contraste entre a intensidade
das exigências presentes cujo objeto apresenta o risco de exceder as
possibilidades do Poder e a ausência de tradições comuns que seriam, porém,
indispensáveis para fundamentar sua autoridade.”
“A explicação não exclui, entretanto, a
inquietude, pois se, para fazer uma nação, é preciso dar-lhe um passado, é de
temer que este seja concebido à imagem de nossas histórias nacionais, com suas
guerras, seus conquistadores e suas revoluções. Com certeza o risco fica mínimo
se os governantes aceitam contentar-se com lendas. Quando o chefe da República
Árabe Unida exalta Saladino ou a batalha de Damieta, o historiador pode sorrir,
ainda que não seja possível descobrir nos livros didáticos do Ocidente o
equivalente desse embelezamento dado ao fato para fazê-lo adquirir o valor de
símbolo nacional. De todo modo, o politicólogo fica tranquilo: essa história
imaginada permanece no passado, o sangue com que foi escrito está seco, já não
reclama vingança. (...) Mas exemplos desse gênero, embora mostrem como os
fundadores dos Estados novos sentem necessidade de enraizá-lo num passado,
fazem temer que, à míngua de história efetiva, o futuro seja considerado na
perspectiva de uma história por fazer com inimigos hereditários e brigas por
terras. Uma vez que é de bom tom condenar o colonialismo, a primeira acusação a
inscrever nos autos do processo seria ter inoculado o vírus histórico em povos
sem passado, senão sem memória.”
“(...) E depois, se aceitam de bom grado
obedecer, repugnam comprometer-se. É desagradável ser enforcado por ter
obedecido ao chefe que não era o certo. Mas como evitar essa desventura se não
se sabe quem tem o direito de comandar? Não precisamos voltar muito tempo atrás
na história para compreender o desconforto dessa situação. Dever-se-ia ouvir
Londres ou Vichy? É claro, uma alma de boa têmpera não hesitará. Mas é contar
demais com o caráter dos povos fundar uma sociedade política sobre o heroísmo
cotidiano de seus membros. O Poder deve ser um provedor de tranquilidade; sua
virtude se revela por campos florescentes, negócios prósperos e consciências
tranquilas.”
““A realeza é um ofício, não é uma herança”,
declarava Philippe Pot aos Estados Gerais de 1844. Impunha-se a ideia do
Estado, sem contar todas as outras considerações mais relevantes, por sua
virtude prática. Ela era, como o dirá mais tarde Schopenhauer, “a focinheira
cujo objetivo é deixar inofensivo esse bicho carnívoro, o homem”.”
“Por outro lado, o espaçamento das relações
diretas entre o senhor e o súdito favorece a reflexão sobre os motivos da
obediência. Habituam-se a ver na obediência não a submissão para com um homem,
mas o respeito por uma regra justificada por seu objeto. Ao mesmo tempo, o indivíduo
adquire uma nova visão de sua dignidade pessoal. Compreende que não é submisso
a um outro, mas a essa força desencarnada que é o poder público. Perante ele,
obedecer não é se humilhar, pois a disciplina estatal é a única que não exige
rebaixar-se.”
“Dessa maneira, fica bem claro que o Estado é
de uma essência totalmente diferente daquela do clã ou da tribo, pois, ao passo
que estes procedem de uma associação espontânea dos indivíduos, o Estado, ao
contrário, para se formar, necessita que cada qual exerça sobre si próprio um
controle, reflita nas exigências da ordem jurídica e, finalmente, pense o
Estado como instrumento de realização de nosso destino temporal. Nesse sentido
o Estado, é acima de tudo, o efeito da vontade agindo contra aspirações, inclinações,
indiferenças do indivíduo propenso a deixar-se docilmente arrastar por seu
instinto egoísta.”
“Se o Estado moderno costuma ter um rosto
feio, é porque, em larga medida, as sociedades cujo esforço de reunião ele
expressa não tem grandeza nem generosidade.” (Fr. Perroux, Capitalisme ET communauté, 1938, p.264)
“Eis as proposições: primeiro, não existe
sociedade sem um objetivo que sele, por uma fidelidade espiritual, a
coexistência dos indivíduos por ela reunidos. Sem uma consciência com maior ou
menor clareza desse objetivo, há multidão ou ajuntamento, mas não sociedade.
Depois, essa percepção de um fim comum determina um consenso que nasce da convergência das representações individuais
em direção a uma imagem do futuro coletivo. Com efeito, esse consenso no qual a sociologia
contemporânea coloca, com razão, o critério da socialidade, não procede de uma
unidade já pronta; ele se forma de uma unidade por fazer ou pelo menos por
consolidar. Trata-se, para os membros do grupo, de continuar a viver juntos e,
se possível, a viver de uma certa maneira. Há o que eu denominava, no início
deste ensaio, uma representação da ordem desejável. Só que, e essa é a terceira
proposição, essa representação não é pura contemplação; é acompanhada de uma
preocupação de realização que lança mão dos meios de fazer que a imagem se
torne realidade. Daí a ideia de um conjunto de regras que, impondo-lhes
disciplina, orientarão os comportamentos individuais de tal sorte que se
realize o futuro esperado. Essas regras são as regras do direito. É por essa
razão que eu qualifico de ideia de
direito a representação da ordem desejável que, em dada sociedade,
constitui uma linha de força da mentalidade coletiva na qual ela cristaliza o consenso dominante.”
“Consideremos o princípio de justiça. Por que
sou obrigado? Moralmente, é porque a norma indica o que é justo; juridicamente,
é porque o objetivo social exige que eu faça o que a regra justa manda.
(...) A regra de direito se mostra tão
necessária para a realização do objetivo social que reclama uma inteligência
que a precise e a formule, uma vontade que a imponha, uma coerção que a
sancione. O Poder é a um só tempo essa inteligência, essa vontade e essa
coerção.”
“O Estado é limitado pelo direito porque seu
poder é juridicamente condicionado pela ideia de direito que o legitima. O
Estado não se limita; nasce limitado.”
“Por mais sedutor que seja, esse realismo é
ilusório, pois a realidade não nos faz conhecer somente governantes; mostra
que, para além dos governantes que passam, há um poder que permanece estável;
que, acima da vontade dos governantes, há uma autoridade soberana que os
designa e, se necessário, poderia destituí-los. Portanto, é a observação que
nos ensina que, no Estado, a totalidade do Poder não está concentrada na pessoa
dos governantes. Há um soberano que, mesmo não governando sempre efetivamente,
não deixa de desempenhar um papel decisivo; há um poder de Estado que, mesmo
tomando emprestadas a inteligência e a vontade aos governantes, não deixa de
gozar de uma perfeita autonomia provada por sua estabilidade.”
“Daí resulta que os governantes não têm nenhum
direito subjetivo ao exercício do comando. São investidos de uma competência,
ou seja, de uma aptidão legal para realizar certos atos. Ora, quem diz
competência subentende o objetivo em virtude do qual ela pode ser regularmente
utilizada. A função dos governantes, assim como a dos agentes administrativos,
está, pois, subordinada à lei do serviço que o bem público é. Não tem
qualificação para agir senão na medida em que servem à instituição. Essa medida
é em geral determinada numa constituição formal que constitui então o título
concreto de competência deles, mas não é necessário que seja assim. Mesmo na
ausência de um estatuto escrito, os governantes só podem exercer uma autoridade
que lhes é delegada, aquela cujo titular é a instituição estatal. Antes da
institucionalização, eles ainda podiam, em sua atividade, misturar o que era a
realização da ideia de direito e o que era serviço de seus interesses pessoais.
Desde que sua autoridade estivesse suficientemente estabelecida, seu título de
chefe abrangia tudo. Com a existência do Estado, já não é assim; os governantes
só podem agora servir à ideia de direito que se encarnou na instituição, pois
não tem competência – portanto autoridade – a não ser para isso. Separados
dessa ideia, suas ordens e seus atos perdem não só toda legitimidade, mas
também toda qualidade jurídica. Então só há pretensão vã ou manifestação de
força. Se se tratasse de um agente administrativo, esse modo de agir seria
qualificado de ilegal. Tratando-se dos governantes, a sanção poderá ser a
resistência à opressão ou a revolução.”
“Essa explicação reside, em minha opinião, no
fato de o conceito de Estado ser, no fundo, apenas a racionalização de uma
crença que não poderia ser confessada num meio intelectualmente evoluído. Não
mais podendo dar crédito às fábulas, aos prodígios nem à unção sagrada, pede-se
a uma construção intelectualmente racional o que, nos séculos antigos, os
homens esperavam da lenda ou da mitologia. Digamos mais cruamente que a ideia
do Estado veio substituir as forças misteriosas que, no pensamento mágico,
subordinam o espírito dos chefes. Em vez de ver neles os agentes de um poder
sobrenatural, de admitir que devem seu título a uma prova de iniciação
vitoriosamente superada ou de torná-los os depositários das vontades dos
deuses, vincularão a autoridade deles a um Poder racionalmente concebido para
receber neles figura humana, sem deixar, porém, de ser superior aos homens. O
conceito de Estado torna aceitável o Poder, resolvendo a contradição que contém
e que provém do fato de ele ser individualmente intolerável e socialmente
inevitável. Com isso, a ideia do Estado se aproxima muito da razão de ser do
pensamento mágico que, pelo sentido que atribui aos fenômenos que ele explica,
subordina os comportamentos individuais.”
“O Poder é uma maldição; ora, é interessante
ver como, na própria situação em que ele os coloca, eles encontraram recursos
suficientes para libertar-se da humilhação do subordinado, como conseguiram
domesticar o mistério da autoridade para, finalmente, fazer de uma força
destinada a curvá-los o instrumento de um destino cujo encargo eles próprios
pretendem assumir. Tudo é crença, sem dúvida, mas há algumas que aviltam,
outras que enobrecem: a teoria do Estado que proponho é destas. É também uma
tentativa de explicação de que não é exagerado dizer que exaltou a estatura
humana.”
“Todo Estado se encontra, por isso, dividido
por uma contradição fundamental devida ao fato de que nele o exercício do Poder
ocupa menos espaço e mobiliza menos esforço do que requerem sua defesa e a
necessidade constante em que está de se justificar.”
“Assim, o Poder, fiel ao seu papel que é de
realizar a imagem que a sociedade tende a dar a si mesma, faz ordem com os
movimentos que provocam as tensões sociais. Nesse sentido, toda análise
histórica mostra que a figura da ordem foi desenhada por uma multiplicidade de
tendências que primeiro se enfrentaram, depois enfraqueceram e se acalmaram
para dar origem à disciplina que marca com seu estilo a sociedade existente.
Todavia, seria uma explicação por demais simplista ver na dinâmica política um
mecanismo que faz a ordem suceder ao movimento. Ela não se analisa somente numa
sucessão de tempos fortes e tempos fracos. A ordem não é feita somente com o
movimento passado; resulta do movimento presente que ela assimila, pois só se
mantém por sua aptidão para integrá-lo.”
“Por certo, os Poderes de fato não lutam
somente entre si, lutam também contra o Poder estatal; mas o objeto do conflito
não é o mesmo: entre si, os Poderes de fato procuram, se não se destruir, pelo
menos neutralizar-se; o que visam no Estado é o título dos que comandam em seu
nome. Seu objetivo não é, pois, destruí-lo, mas apossar-se dele e ocupá-lo. Por
seu lado, o Estado não é sistematicamente o adversário dos Poderes de fato, já
que é deles, afinal, que tirará a substância de suas decisões; é somente o
regulador de suas pretensões, papel que desempenha em nome da sociedade global.
É, poder-se-ia dizer, um poder seletivo que escolhe as energias de que fará sua
força. E é mesmo porque a arte política consiste em organizar e fazer o Estado
agir de tal modo que utilize, para as finalidades de sua própria ação, não uma
força política dentre outras, mas a resultante de suas pressões. Portanto, é no
Estado e pelo Estado que se resolve a rivalidade dos Poderes de fato. Só que se
trata de uma solução sempre provisória; o equilíbrio que a consagra é
incessantemente questionado, de forma que o papel do Estado consiste em
mantê-lo mediante a constante renovação de seus dados. E compete ao Poder
estatal medir a capacidade de absorção da ordem social, tal como é garantida
pelo regime político em vigor, a propósito das forças que visam transformá-la.
Ele mantém e prevê abrindo a ordem de hoje aos imperativos que presidirão à
ordem de amanhã. A saúde não se define de outro modo: um rejuvenescimento das
células sem alteração do organismo.”
“Portanto, é vão imaginar uma espécie de
coexistência pacífica entre a classe (classe econômica, classe trabalhadora, ou
classe economicamente desfavorecida) e a sociedade global. Não só aquela é
refratária a uma penetração por esta, mas ainda tende a eliminá-la. Arraigada
numa recusa, a consciência de classe se afirma numa vontade de luta. Pelo
próprio fato de a estrutura da sociedade global comportar a existência da
classe, seus membros têm o sentimento de serem frustrados dos proveitos da vida
comum, de serem colonizados pelos beneficiários da ordem existente. Por
conseguinte, se pretendem restaurar sua dignidade humana, parece-lhes que isso
só poderá ocorrer numa sociedade cujas bases tanto materiais como espirituais
forem renovadas.
Consciência separada, a consciência de classe
é uma força de contestação, não só porque nelas expressam reivindicações
econômicas, mas porque inclui uma visão do mundo incompatível com a proposta
pela sociedade existente.
Poderá o Poder estatal ignorar essa força,
deverá combatê-la, recuperá-la, ou acomodar-se a ela?”
“Essa argumentação pela qual o Estado liberal
se proibiu restringir o poder do povo não impediu que, para a história, ele
tenha sido o Estado burguês. Sua base foi tal que nele o Poder não parou de ser
submetido à influência dos interesses e das visões sociais na burguesia.
Apesar da evidência aparente do fato, não se
pode dizer que o Estado liberal foi um Estado de classe. Logo, é uma visão
errônea ver nele uma espécie de “par” do Estado comunista em sua primeira fase,
enquanto é o instrumento da ditadura do proletariado. A simetria é errada pois,
muito longe de valorizar as classes como o faz o marxismo, o Estado liberal as
nega. Não desconhece, é claro, a diversidade das categorias sociais, não ignora
que há ricos e pobres. Mas esses são dados sociais que, politicamente, para ele
não têm nenhum sentido.
O Estado de classe supõe a subordinação da
sociedade ao Estado. Nele o exercício do Poder é organizado de forma que os
imperativos da classe dominante rejam toda a vida coletiva. O regime político
deve, pois, ser autoritário para prevenir as divergências devidas às
diferenciações sociais. O Estado liberal repousa, ao contrário, na autonomia da
sociedade com relação ao Estado. Não é o Poder que impõe uma estrutura à
sociedade, é ela que, espontaneamente, instila sua ordem que o papel do Poder
se limita a garantir. A iniciativa é social, não é política.
Por outro lado, se o Estado liberal tivesse
sido um Estado de classe, teria cristalizado a classe burguesa, encerrada numa
armadura rígida que teria paralisado sua evolução. Teria sido circunscrita em
seu recrutamento, unificada em sua expressão por um partido único. Ora, a
ideologia liberal exclui qualquer predestinação social; admite uma classe
dominante apenas com a condição que ela rejuvenesça sem parar; postula a
mobilidade social. É mais do que certo que entra uma parte de farisaísmo na
generosidade com que o liberalismo pretende manter a sociedade aberta, pois, se
ele oferece a todos a possibilidade de uma promoção, não proporciona os meios
de aproveitá-la. A verdade é que essa sociedade aberta, constantemente
enriquecida de forças novas, não é propícia à fossilização dos estratos sociais
e não realiza as condições de estabelecimento de um poder político de classe.”
“É que, de fato, o povo não conseguiu
integrar-se nessa sociedade que o desconhecia e na qual parece, entretanto, que
suas forças poderiam ter-se introduzido facilmente. Lutando com imperícia,
incerto dos objetivos por atingir, divididos por brigas de seitas, assim como
por rivalidades de interesses, hesitante entre a ação revolucionária e a
utilização de procedimentos legais, o povo permaneceu à margem de uma sociedade
que seus ataques assustaram sem realmente abalar.
Essa impotência só pode ser explicada pela
ausência de uma consciência suficientemente clara para servir de suporte a um
poder capaz de interpretar suas exigências. As massas operárias, repentinamente
chamadas à vida pelas transformações econômicas, sentem confusamente que são
uma força. Sabem que são a maioria e bem veem que o sucesso da civilização
industrial que está se elaborando diante de seus olhos é subordinado à sua
ajuda. Mas trata-se de reações elementares, mal coordenadas e impróprias para
fomentar uma disciplina de ação. O espírito ainda não habita essa potência
terrível, próxima, por sua falta de jeito, dos monstros antideluvianos. Privada
de consciência, a enorme força contida nas massas não pode produzir um Poder
que lhe seja próprio. Não é nelas, por certo, que repousa o poder estatal
existente, mas elas são incapazes de lhe suscitar um rival.
Assim, durante cerca de três quartos de
século, os trabalhadores das fábricas serão emigrantes no país de seu
nascimento, impotentes tanto para reformular a sociedade sobre uma base mais
acolhedora para eles como para nela ganhar direito de cidadania pelos meios
regulares que o regime estabelecido põe à disposição de todos. Só que esse
estrangeiro é o povo enquanto classe; nenhum ostracismo atinge o trabalhador ut singuli; cada qual participa do ser
nacional sem sofrer discriminação alguma proveniente de sua origem, de seu meio
ou de seu trabalho. Cortado da sociedade por todas as particularidades de sua
existência, é-lhe vinculado pelo laço político. E é da solidez desse laço que
dependerá, em última análise, a estabilidade do Estado liberal.”
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