quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Bíblia sem mitos: uma introdução crítica (Parte III) – Eduardo Arens

Editora: Paulus
ISBN: 978-85-349-2770-3
Tradução: Celso Márcio Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 416
Sinopse: Ver Parte I



“Há importância em conhecer o que o autor quis dizer, ou basta o que o texto nos diz, independentemente do que o autor pretendeu dizer, como afirmam filósofos como Hans-Georg Gadamer e Paul Ricoeur? A resposta está implícita em toda a discussão que até aqui expus e pode resumir-se em uma frase: Deus não inspirou nem inspira textos, mas pessoas. Os textos são produtos de pessoas; as interpretações são as pessoas que as fazem. Por outro lado, a fidelidade ao sentido literal (à mensagem básica originária) plasmado pelo escritor inspirado, cujo texto foi canonizado, coloca em jogo nossa própria fidelidade à mensagem que qualificamos como “Palavra de Deus”. É questão de identidade e de continuidade. Daqui a importância da exegese e da hermenêutica: saber o mais precisamente possível o que se quis dizer no momento de sua redação, e o que o texto diz nos contextos e nas conjunturas atuais. Ignorar o que o escritor bíblico quis comunicar arrisca desembocar na leitura fundamentalista da Bíblia.”


“Não posso sublinhar suficientemente a importância que têm os escritos bíblicos como testemunhas da revelação histórica, mediante a qual Deus se deu a conhecer e expressou sua vontade salvífica para os homens. Evidentemente, nós não temos sido testemunhas dessa revelação histórica (por exemplo, do êxodo, da conquista, das vozes proféticas, até da vida histórica de Jesus). É somente mediante os testemunhos bíblicos que temos acesso a essa revelação, cuja importância radica não somente no fato de ser revelação divina, mas também no fato de ser fundacional: tanto a fé judaica como a cristã se fundamenta nessa revelação histórica dos tempos bíblicos.”


“Mas pontualmente, o que é próprio da inspiração bíblica? É a capacidade de reconhecer, compreender e interpretar a Revelação como tal e de transmiti-la fielmente. Dito em outras palavras, Deus guiou algumas pessoas, das que viveram as experiências às quais a Bíblia se refere, a reconhecê-las, compreendê-las e interpretá-las como manifestações da presença orientadora de Deus, e a transmiti-las como tais. É assim que Deus inspirou, quer dizer, iluminou e guiou as capacidades mentais de determinadas pessoas para que reconhecessem que o êxodo do Egito revelava que Iahweh é um Deus libertador e da liberdade, e não simplesmente que era resultado da astúcia desse grupo de hebreus ou da fraqueza dos egípcios. Inspirou a certos profetas a falar em seu nome, de modo que orientassem seu povo pelo caminho da Aliança. Inspirou a outros para que se dirigissem a ele por meio de Salmos. Igualmente, o Espírito inspirou algumas pessoas em particular para que colocassem por escrito essas tradições, guiando-as em sua tarefa redacional. O mesmo espírito, além disso, guiou seu povo a reconhecer a normatividade dos escritos que constituem a Bíblia, e eventualmente a tomar a decisão a respeito do cânon. Se não fosse assim, como poderemos estar seguros de que o relato do Êxodo, escrito vários séculos mais tarde, preservou seu verdadeiro significado revelador? Igualmente, como podemos estar seguros de que a decisão sobre o cânon bíblico foi correta, de que não excluíram escritos que deveriam ter sido incluídos, e vice-versa? São perguntas medulares. A única resposta que podemos dar nos vem da fé: “Deus os inspirou”, estava com eles, guiando-os de um modo especial.
Em poucas palavras, a inspiração bíblica é (1) um carisma ou dom de Deus aos “autores” (desde a tradição oral até a fixação da Bíblia), (2) que os guiava de tal modo que reconhecessem, compreendessem e interpretassem determinados acontecimentos e vivências, bem como determinadas comunicações, em sua dimensão reveladora (a respeito de Deus e de sua vontade), e (3) os transmitissem correta e adequadamente a seu auditório, (4) para sua edificação e orientação na fé ao longo do tempo, pelo caminho que conduz à salvação.
Todo carisma é um dom gratuito de Deus a certas pessoas para a edificação de sua comunidade (veja ICor 12 e 14). O carisma da inspiração é, além disso, para a orientação futura dessa comunidade: para guiá-la pelo caminho que conduz à salvação, à qual Deus chama as pessoas de todos os tempos. Não se limita, então, à comunidade imediata, já que os testemunhos bíblicos, ao ser postos pós-escrito, adquirem uma objetividade que se projeta além da comunidade do momento de sua composição escrita: atraem outras pessoas alheias a ela e às gerações futuras: “falam” a todas as pessoas de boa vontade. Intuíram isto as gerações que atualizaram as tradições antes de ser fixadas por escrito, da mesma maneira que aquelas que continuaram atualizando essa Palavra de Deus depois de sua escritura. A inspiração bíblica, que é uma forma excepcional do carisma geral da inspiração, fez com que a mensagem que o texto encerra se estendesse além da intenção imediata do autor. Deus previu que servisse de guia para o futuro. Isso não significa que expressamente respondesse a todos os problemas de todos os tempos, ou que as intuições ali expressas fossem perfeitas. Deus, que inspirou a determinadas pessoas nos tempos bíblicos, concedeu esse carisma com o fim de guiar outros para ele. Por isso, a inspiração bíblica desembocou na fixação por escrito da Revelação que, historicamente, Deus concedeu a seu povo até sua máxima expressão que foi o acontecimento-Jesus Cristo. Recordemos que a Bíblia é, entre outros, um conjunto de testemunhos de vivências reveladoras, e não a Revelação mesma. Deus não se revelou em livros, mas em acontecimentos. E a inspiração bíblica inclui a decisão sobre o cânon, pois apenas com essa decisão se teve a “Bíblia”.”


“Destaquei que Deus deu-se a conhecer em acontecimentos que foram vividos por indivíduos, acontecimentos que (por inspiração divina) foram compreendidos e interpretados como manifestações de Deus e de seus desígnios para os homens. Deus não se deu a conhecer nos relatos, mas nos acontecimentos, quer dizer, na história vivida. Na Bíblia temos os testemunhos de vivências reveladoras fundamentais e fundantes, mas não a Revelação mesma, que é anterior à composição dos diversos relatos e discursos que encontramos nos escritos bíblicos.
De que falamos?
Não se deve confundir Revelação e inspiração. Revelação é a manifestação da presença de Deus na história humana, mediante a qual ele se dá a conhecer e concede às pessoas reconhecer a ele e seu desígnio. Não houve uma, mas muitas revelações ao longo da história – que para simplificar chamamos de “Revelação”. A Revelação mais clara e explícita aconteceu mediante a vinda histórica de Jesus Cristo. A inspiração, ao contrário, é o dom (carisma) divino que guia as pessoas a reconhecer, compreender, interpretar e transmitir corretamente as manifestações reveladoras de Deus na história. A inspiração bíblica manifestou-se eminentemente na formação da Bíblia. A Bíblia aponta para a revelação divina, e definitivamente para o próprio Deus. Se a Revelação não fosse reconhecida e compreendida como tal, seria estéril. E se os testemunhos sobre a Revelação não houvessem chegado até nós (Bíblia), não saberíamos dela. Em outras palavras, Revelação e inspiração se complementam.”


“Nós, cristãos, confessamos que, quanto à identidade e à vontade de Deus, todo o essencial foi dito nos tempos bíblicos, cuja culminância foi a vinda de Jesus de Nazaré. Desse ponto de vista, do conteúdo essencial para a salvação, não haverá nada novo que Deus já não tenha revelado. Deus deu a conhecer tudo o que é necessário para que as pessoas possam chegar até ele. O que resta é ir compreendendo e aprofundando o significado e as implicações do que (conteúdo) Deus revelou e se encontra na Bíblia. No entanto, isso não significa que Deus já não fale à humanidade, que se tenha ausentado. Dito de outra maneira, enquanto novidade, informação, não haverá nada de novo até nosso encontro com Deus. Quanto à sua presença, esta não cessou, mas continua renovando-se: “Eu estou convosco todos os dias até o final dos tempos” (Mt 28,20). E seu espírito inspira as pessoas a continuarem comunicando-se com ele, a continuarem aprofundando e adaptando sua mensagem, a escutá-lo, a responder-lhe, tanto por meio dos testemunhos bíblicos como por meio dos acontecimentos e encontros que vivemos.”


“O coração da Revelação é a mensagem, que foi reconhecida graças ao dom da inspiração divina. Por isso, o esquema clássico “Deus -> Revelação - > Escritura” deve ser modificado para: “Deus -> acontecimento -> compreensão e interpretação -> tradição -> Escritura”.”


“Ao ler a Bíblia, especialmente seguindo a ordem cronológica da composição de seus escritos, se tem a impressão de que Deus foi-se dando a conhecer pouco a pouco. No entanto, o fato de que a Revelação foi acontecendo em acontecimentos e vivências que os homens deviam compreender, assim como a observação de que um mesmo acontecimento ocasionalmente se encontre interpretado na Bíblia em diferentes níveis de profundidade ou adaptado a diferentes circunstâncias, leva-nos a tomar consciência de que os homens foram lentamente compreendendo a Revelação e sua significação, segundo suas capacidades e seus condicionamentos. Em outras palavras, não é Deus que se tem revelado lenta e paulatinamente – Deus revela-se sempre como uma totalidade, como o próprio Deus –, mas os homens foram compreendendo e descobrindo lentamente o significado dos acontecimentos e as experiências reveladoras. E esse processo não terminou.
Não foi Deus que deu a conhecer aos homens, primeiramente, que é um Deus entre outros deuses (veja Gn 28,13; 35,1ss; Ex 3,6.15; 4,16; Jz 11,24, onde se reconhece a existência de outros deuses como tais), depois que é o Deus supremo (veja Ex 15,11; 20,2ss) e finalmente que é o único Deus (Is 43,10ss; 44,6 etc), mas antes foram os homens que foram descobrindo quem realmente é Deus. Igualmente, observamos nos textos mais antigos um desconhecimento de uma vida depois da morte (veja Is 38,18; Jó 14,13-22; Eclo 14,16ss; 17,22ss; assim como os Salmos), em textos mais tardios se fala já de um castigo depois da morte para, finalmente, tomar consciência de uma ressurreição. Dificilmente se poderá explicar por que Deus teria deixado a humanidade, durante séculos, na ignorância de algo tão importante como o destino depois da morte – algo sobre o qual os egípcios já tinham ideias claras muitos séculos antes! Não é que Deus se tenha revelado aos homens pouco a pouco, mas os homens o foram compreendendo lentamente. E a Bíblia contém a história da compreensão da Revelação por parte dos homens crentes em um processo de diálogo com seu Deus. E este processo de compreensão e aprofundamento não terminou.”


“Resumindo, Deus dá-se a conhecer de muitas maneiras, muitas das quais estão atestadas na Bíblia. De fato, embora se possa conhecer a Deus indiretamente em sua criação e nos acontecimentos da vida, ele é conhecido de forma mais direta na Bíblia, que fala explicitamente dele (Rm 1,18ss). A Bíblia permanece, então, como meio de Revelação (não como a Revelação mesma), porquanto constantemente apresenta a Deus e no-lo dá a conhecer: a Revelação é linguagem, e a Bíblia fala essa linguagem. Por isso, a qualificamos como “Palavra de Deus”. (...)
A Bíblia atesta a Revelação acontecida, remete a ela. Por isso, podemos dizer que é Revelação testemunhada, mas não a Revelação mesma. Portanto, não é correto dizer que a Bíblia é a Revelação. Mas é reveladora: aponta para Deus. É um meio de encontro com Deus, com o Deus da história. Daqui se pode dizer que tem caráter sacramentai. A Dei Verbum afirma que “a Igreja sempre venerou a sagrada Escritura como ao corpo do Senhor..., sobretudo na liturgia” (n. 21). O ponto de encontro é a interpretação. Sua capacidade reveladora significativa se atualiza, quando é entendida e apropriada como manifestação de Deus, como Revelação.”


“Na Bíblia fala-se das experiências e vivências históricas das pessoas em determinados tempos, muitos séculos atrás. Mas estas correspondem, em boa medida, às experiências dos homens através de todos os tempos; são semelhantes. A realidade do leitor e a situação da qual procede o texto bíblico são paralelas ou análogas. A condição humana como tal não muda ao longo dos milênios; confrontamo-nos com as mesmas perguntas e com os mesmos problemas humanos. De fato, as inquietudes, as interrogações, os problemas, as atitudes básicas dos homens são os mesmos ontem e hoje. Dito de outro modo, apesar das diferenças históricas e culturais entre os tempos bíblicos e os nossos, as experiências humanas e a relação dos homens com Deus (sejam ateus ou crentes) são basicamente as mesmas. Deus é o mesmo ontem e hoje; continua dando-se a conhecer aos homens e continua convidando-os a confiar nele. A Bíblia é eminentemente existencial: dirige-se à vida. Por trás das diferentes cenas, personagens e reflexões que encontramos nos escritos da Bíblia, podemos reconhecer-nos a nós mesmos. E a Bíblia é o meio privilegiado mediante o qual Deus “nos fala”; ali estão os testemunhos de suas múltiplas manifestações, as orientações fundamentais para o caminho que conduz à salvação. Podemos concluir que, embora a Bíblia não seja idêntica com a Palavra de Deus no sentido forte do termo, no entanto contém sua palavra (mediada pelo escritor) e “fala” a toda pessoa que tenha os ouvidos abertos. Por isso, é importante tomar consciência de que a Bíblia não se reduz a um conjunto de recordações do passado e convites para homens a que confiem em Deus e sigam seu caminho, que são apresentados mediante esses velhos textos, mas testemunhos cheios de frescor.
Repetidas vezes mencionei que a Bíblia é mediação entre Deus e nós. Convém esclarecer que não é uma mediação a mais, entre tantas outras, mas o é de forma singular: são testemunhos da revelação histórica de Deus, desse mesmo Deus em quem cremos hoje. Esses testemunhos são insubstituíveis, pois são fundamento de nossa fé – mesmo em suas variações históricas e literárias. Por exemplo, podemos crer na ressurreição de Jesus somente através do testemunho que encontramos no Novo Testamento. A Bíblia é o conjunto de mediações que nos fala expressamente desse Deus nosso que se revela historicamente, até chegar à sua manifestação mais objetiva: o acontecimento-Jesus Cristo. E a Bíblia remete-nos a isso, para falar-nos a partir daí.”


“A interpretação não é para contemplar o passado ou admirá-lo, mas para que sirva de orientação para o futuro.”


“O termo “mito” e o qualificativo “mítico” para referir-se a esta linguagem são infelizes, porque para a maioria são sinônimos de fantasioso, de ficção, de conto, do que foi criado pela imaginação. É necessário esclarecer que o termo “mito” se emprega no campo religioso, filosófico, antropológico e sociológico, para referir-se à maneira pré-científica de compreender e de falar a respeito do mundo, que se caracteriza por ser explicações em chave religiosa: intervêm forças “espirituais”, divindades, demônios.
Não se trata somente de maneira de falar, mas também de um modo de compreender, de conceitos. Na base está uma visão do mundo e da vida. Para comunicar os conceitos que se têm, emprega-se uma linguagem que permita compreendê-los. A linguagem é o meio de comunicar os conceitos. Pois bem, os mitos baseiam-se em conceitos pré-científicos, até pré-filosóficos. Seus autores – nos tempos bíblicos e também em muitos povos primitivos hoje – estavam convencidos de que certas “realidades” e fenômenos que se experimentavam e se observavam eram produtos da atividade de Deus ou de demônios. As origens de certas situações ou fenômenos do homem mesmo, de seu destino e de sua relação com “o espiritual”, enfim, tudo o que era importante e não tinha uma explicação natural dentro dos limites da experiência sensível, eles o explicavam em termos míticos. Fenômenos como raios e trovões, que hoje conhecemos pela ciência, naquele tempo eram considerados como produtos do “além”. Quer dizer, havia uma espécie de intercâmbio entre o mundo do “além” e o do “aquém”, e também falavam “Deus” como se fosse um homem, raios e trovões como se viessem de Deus. Basta ver os relatos de Gênesis 1-11, que é uma coleção de mitos, cheios de vivacidade e de colorido, nos quais o próprio do “além”, o mundo transcendente, se entretece com o do mundo da experiência humana. (…)
Os autores bíblicos não eram filósofos, mas gente simples, de mentalidade prática; porém, além disso, com uma visão pré-científica do mundo. Seus conceitos eram expressos por meio de imagens (que passam a ser símbolos) tomadas do mundo de suas experiências. É a linguagem que as crianças empregam, e é a que melhor se presta para a compreensão entre as pessoas simples. Para a mentalidade pré-científica, o pensamento mítico é o único caminho de que dispõe a mente para abordar certos problemas que caem precisamente fora do âmbito da experiência sensível.
Mito costuma ser associado com falsidade, mentira, como se a única narração veraz fosse a história, e para muitos como se a única verdade fosse a demonstrável (científica). Esse juízo obedece à ideia que não corresponde à dignidade de Deus e da Bíblia outro tipo de narração que não seja a história. O fato, no entanto, é que o mito busca expressar uma verdade. É uma maneira de dar expressão compreensível a uma realidade não sensível. Sua verdade é do tipo da poesia, que não é o mesmo tipo de um relato histórico – poesia não representa história, no entanto, tem “sua verdade”, e uma verdade frequentemente mais profunda do que a de um relato histórico.”


“É mítico dizer que Deus nos castiga por nossas culpas. O castigo é a retribuição que damos por uma ofensa, mas a Deus não podemos ofender (definição comum de pecado). Falar assim é projetar sobre Deus (que não é de nosso mundo) um conceito próprio de nossa existência humana. Deus não pode ser ofendido, pois, se fosse, teríamos poder sobre ele, já que poderíamos ofendê-lo ou não ofendê-lo como nos aprouvesse, e estaria sujeito ao que nós fizéssemos.”


“Por um lado, os mitos tinham origens nas experiências humanas e nas reflexões sobre elas. Por outro lado, as perguntas profundas às quais se buscava responder são próprias de toda pessoa que medita sobre sua existência e sobre sua relação com o mundo, com seu destino e com o divino. Por isso, por trás do mito e da linguagem mítica que encontramos na Bíblia, devemos descobrir a experiência-base e as interrogações para as quais buscavam dar uma resposta, quer dizer, a verdade profunda que expressam. Muitos mitos do passado podem ser expressos em outros termos, a linguagem das imagens própria de uma época pode ser substituída por outra mais adaptada, mas a verdade à qual remetem não deve ser descartada automaticamente. A imagem do diabo é substituível, mas a verdade à qual remete essa imagem é a existência de “forças misteriosas” do mal. As imagens que constituem o quadro mítico do juízo final em Mt 25,31ss são discutíveis, quando são tomadas literalmente, mas a realidade à qual o quadro remete não o é: haverá um encontro definitivo com Deus em outro nível que o humano, e passaremos a um modo de existência irreversível que está estreitamente relacionado com nosso comportamento durante nossa vida terrena. O que sempre deve ocupar o centro da atenção é a verdade à qual o mito aponta, verdade que foi a razão pela qual ele foi composto e relatado. O mito e sua linguagem expressam realidades que tocam o homem mais profunda e existencialmente do que aquelas captadas pelas ciências e pela lógica. Por isso, sua verdade é existencial, não científica ou estritamente histórica.”


“É necessário ter presente que a Bíblia é produto de reflexões comunitárias. Os escritos bíblicos foram compostos em uma comunidade e para ela, foram aceitos como normativos por ela e é, por conseguinte, somente dentro do seio da fé de uma comunidade que está em comunhão com a dos tempos bíblicos que a Bíblia poderá ser compreendida corretamente. A Bíblia é um conjunto de testemunhos de vivências comunitárias: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estarei eu entre eles” (Mt 18,20). Seus escritos não foram compostos para uso exclusivo de indivíduos isolados, não foram escritos para ser lidos, meditados ou estudados de modo particular, mas para ser escutados e assimilados em comunidade. O fato de que depois existissem textos impressos, de modo que cada um possa ter uma cópia pessoal, é uma vantagem adicional, mas não anula o fato de que os escritos bíblicos foram compostos para ser lidos, comentados e meditados em comunidade.
Somente quem tem experiência de vida comunitária e vive sua fé em uma comunidade poderá compreender os escritos que refletem vivências comunitárias e são produtos delas. Os escritos bíblicos têm como um de seus fins primordiais a vida de fé comunitária, não a pessoal e isolada.”


“Muito mais seriamente, à luz de tudo o que foi exposto, a ideia de perfeição que alguns têm da Bíblia e sua interpretação literal de tudo leva-os a fazer uma caricatura de Deus. Um Deus responsável por todo tipo de erros, incluindo as múltiplas ignorâncias, um Deus que não conhece bem sua criação, que é caprichoso, que se encoleriza e é ciumento, que muda de opinião... Em outras palavras, os que tomam a Bíblia como autoridade máxima, suprema, perfeita e absoluta, assumem e pressupõem demasiadas coisas gratuitamente, baseados em preconceitos que não vêm da Bíblia, mas de dogmas implícitos que para eles são inquestionáveis – mas não têm outra sustentação que certas passagens soltas da Bíblia, o que constitui um círculo vicioso: usa-se para prova o que se quer provar. (…)
Em síntese, a Bíblia é o ponto de partida crítico indispensável, mas não é o ponto final de nossas reflexões e decisões. É ponto de partida, porque inclui as tradições dos testemunhos fundacionais, sobre os quais nos apoiamos. Mas não é ponto final, porque os textos bíblicos não são a apreciação nem a expressão mais perfeita da Revelação histórica. Os escritos bíblicos não contêm a máxima, a mais perfeita, completa e inalterável expressão do que se possa compreender a respeito da Revelação de Deus. São interpretações da Revelação histórica acontecida. Nem todos os conceitos e ideias, nem todas as leis e mandamentos são absolutamente perfeitos na Bíblia, prova disso são as incoerências e as variedades de apreciações e de mandamentos, e as evoluções conceituais na própria Bíblia. A Bíblia é, portanto, uma autoridade limitada, não absoluta.”


“O propósito dos redatores dos escritos bíblicos, com algumas exceções, não foi simplesmente informar nem guardar memórias ou recordações, mas o de comunicar uma mensagem existencial, para a vida. Sua finalidade não era a de contar algo que aconteceu, mas em primeiro lugar dizer algo aos seus leitores através daquilo que aconteceu. Não respondiam à curiosidade, mas a necessidades vitais.”


“O fundamentalismo é a corrente mais extensa e nefasta na atualidade, associado especialmente a certas seitas. Trata-se da atitude mental que sustenta e propaga os “fundamentos” de determinada crença, seja política, social, religiosa ou outra, que pertencem a um passado já não em vigência, e o faz de maneira agressivamente fanática, proselitista, não-crítica e fechada a todo diálogo. Seus “fundamentos” são categóricos e dogmáticos, e são tidos simples e singelamente por inquestionáveis. Não se trata, então, necessariamente de uma seita ou de uma religião, mas de uma atitude mental e emotiva. (…)
O fundamentalista não progride: fica estático, mentalmente paralisado. Sua concepção do mundo, do homem e de Deus é para ele absolutamente segura, inquestionável, verdadeira – assim pensa e assim a propaga. Mas é uma concepção pré-crítica! O fundamentalista teme as mudanças, teme o pluralismo, teme o novo, teme a liberdade, teme o amadurecimento adulto. Não causa estranheza que, quando essa visão é questionada, ele se refugie no passado e que ataque virulentamente tudo o que ameace mudá-la.
O fundamentalismo é expressão de profunda insegurança psicológica. É a resposta não-crítica, simplista, à ânsia de segurança, de estabilidade, de certeza. O fundamentalista compra a segurança a preço da liberdade. Por isso mesmo, é intolerante diante de tudo o que tenha sabor de instabilidade, de ecumenismo, de “relativismo”.”

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