segunda-feira, 25 de maio de 2009

Plantados no Chão: assassinatos políticos no Brasil hoje - Natalia Viana

Editora: Conrad
ISBN: 978-85-7616-231-5
Opinião★★★☆☆
Páginas: 182


“Um país que deixa matar seus líderes populares está se ferin­do, se mutilando. Cada assassinato representa uma vitória para o atraso, a barbaridade, a raiva, a estupidez. Essa sangria perma­nente das mulheres e dos homens mais corajosos e dinâmicos, mais idealistas e generosos, tem um custo alto. A morte de um líder não é simplesmente a eliminação de uma pessoa inconve­niente, mas um golpe contra a esperança. Contra o futuro.”


      “O crime chocou o país e teve um efeito devastador sobre os xukuru. Mesmo assim, os indígenas decidiram prosseguir com sua reivindicação e adotaram, como símbolo de sua luta, a frase proferida pela esposa de Chicão, Zenilda Maria Araújo, durante os ritos funerários do marido. “Recebe teu filho, minha Mãe Na­tureza. Ele não vai ser sepultado, vai ser plantado na tua sombra, como ele queria. Para que dele nasçam novos guerreiros.” Basta perguntar a qualquer xukuru se seu cacique foi enterrado e ele responderá: “Não foi; foi plantado no chão”. Daí o nome deste li­vro, que é em primeiro lugar um tributo a todos aqueles que mor­reram simplesmente porque defendiam um ideal: que os direitos expressos na Constituição fossem cumpridos. Que cada um deles seja uma nova semente para que outros continuem sua luta.”


      “A grande maioria dos assassinados por defesa de direitos no Brasil é composta de pessoas ligadas a algum movimento social, cuja atuação é diferente da dos profissionais geralmente consi­derados “defensores” pela ONU. São vítimas de violações que se organizam para pleitear o que lhes cabe por lei. Quando os sem-terra ocupam uma fazenda improdutiva, estão exigindo o cum­primento do artigo 184 da Constituição, que estabelece a função social da propriedade. Quando um grupo de estudantes bloqueia um terminal de ônibus, está realizando um ato político para rei­vindicar o que está expresso nas leis municipais – que a tarifa deve ser condizente com o poder aquisitivo da população.”


      “Com todas as suas limitações, nossa proposta é levantar a discussão: como é possível, em plena democracia, a ocorrência de assassinatos políticos?
     A pergunta ganha força ao se analisar os dados publicados pela CPT. Segundo os cadernos “Conflitos no Campo”, nos três primeiros anos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2005), foram assassinadas 146 pessoas no campo, enquanto no mesmo período no governo anterior houve 76 mortes. Ou seja, um aumento de quase 100% – e isso se deu durante o governo do primeiro operário a chegar à presidência deste país, alguém que já foi um representante do movimento social, um sindicalista perseguido por sua militância.”


      “O assassinato de um militante não representa apenas a mor­te daquela pessoa. É um pouco o assassinato de sua causa, da luta que abraçou em vida. ‘Cada um desses assassinatos está im­pedindo que a comunidade, através da palavra daquela pessoa, possa ter um maior acolhimento das suas pretensões pelo poder público’, comenta o jurista Hélio Bicudo (...) ‘O crime político não é apenas o fato de que a pessoa assassinada esteja fazendo parte do organismo do Estado ou se opondo a ele, é a política num sentido maior, num sentido de que o Estado deve contemplar todos os direitos. Na medida em que não contempla e as pessoas se rebelam contra esse Estado, a eliminação dessas pessoas tem um conteúdo político evidente’. Ou seja: na origem de cada crime político está a responsabilidade do próprio Estado.”
  
      
     “De certa forma, existe um elemento ideológico que entre­meia todo esse processo. Para o advogado Darci Frigo (e para todos os outros entrevistados), o pano de fundo para o verda­deiro ciclo vicioso do crime político no Brasil é a criminalização dos movimentos sociais – ou seja, a associação entre militantes e criminosos perante a opinião pública.      
     “A criminalização tem vários estágios”, explica Frigo. Negar que os militantes lutam pelo que lhes é devido seria o primeiro passo para deslegitimar o movimento – algo que ocorreu inúme­ras vezes na história recente do país. No entanto, o processo evo­lui de maneiras variadas. É comum, por exemplo, que autoridades procurem deslegitimar as lideranças como representantes de um anseio coletivo. A socióloga Silvia Viana Rodrigues aponta para o fato de que é cada vez mais comum ouvir governantes afirmarem que tal ou tal movimento “tem fins políticos”. “Qualquer lideran­ça é acusada de ter aspirações político-partidárias. E o termo ‘po­lítico’ acaba ganhando uma conotação pejorativa”, explica.
     Outras estratégias, adotadas por diferentes atores em dife­rentes âmbitos do Estado, colaboram para a criminalização. Por exemplo, a negação da legitimidade dos meios de pressão utilizados pelos movimentos – como a ocupação de um terreno ou o bloqueio do trânsito – sob o argumento de que tal atitude é “ilegal”. “Pode-se desmoralizar as pessoas publicamente, acusar de crimes que não cometeram, transformar uma situação de ato político em um ato criminoso, prender sem provas formais”, re­lata Darci Frigo.
     Afinal de contas, se entrar sem permissão em uma proprie­dade privada é contra a lei, não seria correto chamar aqueles que o fazem de criminosos? Segundo Hélio Bicudo, não. “Esse embate é também político, mas é fundamentalmente jurídico. É uma questão interpretativa. Tomar posse de uma terra é uma ação formalmente ilegal, mas que defende o direito das pessoas sobre o direito da propriedade. Como o direito à terra é um di­reito social, nos usos e costumes a interpretação é absolutamen­te favorável a que o movimento tome terras que estão inaproveitadas para que elas sejam realmente utilizadas em benefício das pessoas. O que o MST está fazendo é, através de ocupações de terras que aparentemente são inaproveitadas, forçar uma de­finição do Estado sobre essas terras porque, se não estão sendo aproveitadas, o Estado tem que usar o dispositivo constitucional e desapropriá-las.” Ou seja: em vez de violar a lei, o movimen­to está forçando o cumprimento dela. A mesma regra pode ser aplicada aos demais casos: os estudantes que paralisam o trân­sito da cidade, os sindicalistas que realizam protestos diante das fábricas, os indígenas que expulsam invasores de suas terras.
     No entanto, esse debate geralmente não faz parte do coti­diano daqueles que lidam diretamente com os movimentos – os defensores da “lei e da ordem”. Artur Henrique da Silva Santos, presidente da CUT, é testemunha da violência com que as po­lícias militares e civis tratam trabalhadores durante as mani­festações sindicais, tradição que parece não perder terreno com o passar do tempo. Há ainda outras formas de coerção adota­das por policiais e investigadores, segundo Sandra Carvalho, da ONG Justiça Global: violação de domicílio ou instalações de organizações de direitos humanos, ingerências arbitrárias ou abusivas em correspondência ou comunicações telefônicas ou ele­trônicas, atividades de inteligência e espionagem dirigidas con­tra defensores, e restrições de acesso a informações em poder do Estado.”



(Trechos de declaração da ONU)
“Reconhecendo o importante papel da cooperação internacional e a importante contribuição do trabalho dos indivíduos, gru­pos e associações para a efetiva eliminação de todas as viola­ções de direitos humanos e liberdades fundamentais dos povos e dos indivíduos, nomeadamente no que diz respeito a violações em massa, flagrantes e sistemáticas como as que resultam do apartheid, de todas as formas de discriminação racial, do colo­nialismo, do domínio ou ocupação estrangeira, da agressão ou ameaças à soberania nacional, unidade nacional ou integridade territorial e da recusa em reconhecer o direito dos povos à au­todeterminação e o direito de todos os povos a exercerem plena soberania sobre suas riquezas e recursos naturais(...)”.


Artigo 1º
Todas as pessoas têm o direito, individualmente e em associação com outras, de promover e lutar pela proteção e realização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em nível nacio­nal e internacional.
Artigo 2º
1. Cada Estado tem a responsabilidade e o dever primordiais de proteger, promover e tornar efetivos todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, nomeadamente através da adoção das medidas necessárias à criação das devidas condições nas áreas social, econômica, política e outras, bem como das garantias ju­rídicas que se impõem para assegurar que todas as pessoas sob a sua jurisdição, individualmente e em associação com outras, possam gozar na prática esses direitos e liberdades;
  

2. Cada Estado deverá adotar as medidas legislativas, adminis­trativas e outras que se revelem necessárias para assegurar que os direitos e liberdades referidos na presente Declaração sejam efetivamente garantidos.” (...)

Uma Temporada no Inferno – Jean-Nicolas Arthur Rimbaud

Editora: Livro distribuído
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 103
Sinopse: “A última palavra do desespero, da revolta, da maldição. A poesia tudo deve a Rimbaud. Até agora ninguém o superou em audácia e imaginação.” (Henry Miller)
Embora tenha parado de escrever aos 21 anos, Arthur Rimbaud (1854-1891) foi uma das vozes poéticas mais talentosas já vistas, e sua pequena obra influenciou os maiores escritores dos séculos XIX e XX. Uma temporada no inferno, de 1873 é o visceral relato em prosa poética do homem perscrutando as suas profundezas e origens. De uma riqueza imagética sem precedentes na literatura, os textos deste livro visitam sonhos e terras distantes, desejo de solidão e sede de conhecimento, o passado ancestral e a busca pelo desconhecido. Deles emerge o homem rebelde e aventureiro, vivendo – como dizia Verlaine a respeito de Rimbaud – a própria “vida inimitável”.


““Sempre serás hiena, etc...” exclama o demônio que me coroou de tão amáveis papoulas. “Vence a morte com todos os teus apetites, com todo o teu egoísmo e todos os pecados capitais”.”


“Não ignoro que fui sempre de raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça só se rebelará para saquear: como os lobos ao animal que não mataram.”


“A quem me alugar? Que besta é preciso adorar? Que santa imagem atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? Sobre que sangue caminhar?”


“O sono em meio às riquezas é impossível.”


“O tédio já não é o meu amor. As cóleras, a libertinagem, a loucura, – dos quais conheço todos os impulsos e todas as consequências – todo o meu fardo está deposto. Apreciemos sem vertigem a extensão de minha inocência.”


“Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como alcançá-la? Os gostos fúteis abandonaram-me. Já não preciso de sacrifícios nem de amor divino. Não tenho saudades do século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: retenho meu lugar no alto desta angélica escala de bom senso.”


“E é ainda a vida! - Se a condenação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está condenado, não é assim? Acredito-me no inferno, logo estou nele. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo de meu batismo. Pais, fizestes a minha desgraça e a vossa! Pobre inocente! - O inferno nada pode contra os pagãos. - É a vida. Mais tarde, as delícias da condenação serão mais profundas. Um crime, depressa, que as leis humanas me precipitem no nada.”


“Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, – e o inferno da preguiça; um concerto de infernos. Morro. De cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de horrores! Satã, farsante, queres dissolver-me com teus feitiços? Exijo. Exijo! Um golpe de tridente, uma gota de fogo.”


“Ele diz: “Não amo as mulheres: sabemos que o amor está por ser reinventado. Já não podem desejar senão uma posição segura. Alcançada, o coração e a beleza são postos à margem: não resta senão álgido desdém, o alimento do casamento, hoje (...)”.”


“Declara-me que sente remorsos, que tem esperanças: isto não deve importar-me. Fala com Deus? Talvez devesse eu mesma dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo abismo, e não sei mais rezar.”


“A moral é uma fraqueza do cérebro.”


“Tive que viajar, distrair os encantamentos concentrados em meu cérebro. Do mar, que eu amava como se ele me fosse lavar de uma mancha, via emergir a cruz consoladora. Eu havia sido condenado pelo arco-íris. A Felicidade era a minha fatalidade, o meu remorso, o meu verme: a minha vida sempre seria demasiado imensa para dedicá-la à força e à beleza.”


“– Tive razão ao desprezar esses bons sujeitos que não perderiam ocasião de uma carícia, parasitas do asseio e da saúde de nossas mulheres, hoje que elas tão pouco se entendem conosco. Tive razão de todos os meus desprezos: por isso me evado! Evado-me? Eu me explico. Ainda ontem suspirava: “Céus! somos tantos os condenados cá em baixo! Quanto a mim faz tanto tempo que pertenço a essa legião! Conheço-os um por um. Aliás nos reconhecemos sempre; detestamo-nos. Ignoramos a caridade Somos, porém, corteses; nossas relações com o mundo corretíssimas”. É assombroso. O mundo! Os mercadores, os ingênuos! – Não estamos desonrados. – Mas os eleitos, como nos receberiam?”


“– Mas compreendo que meu espírito dorme. Se estivesse sempre desperto, a partir deste instante, alcançaríamos logo a verdade que provavelmente nos rodeia com seus anjos em pranto!...”


“Mas por que ter saudades de um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da claridade divina, – longe dos que morrem nas estações?”

As Palavras Andantes - Eduardo Galeano

Editora: L&PM
ISBN: 978-85-2540-450-3
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 316
Sinopse: As Palavras Andantes são, segundo o autor, “as histórias de espantos e encantos que quero escrever, as vozes que recolhi pelos caminhos, e os meus sonhos de andar acordado, realidades deliradas, delírios realizados, palavras andantes que encontrei – ou fui por elas encontrado”.
Esta obra central de Eduardo Galeano, com gravuras de J. Borges inseparáveis dos textos, percorre as lendas urbanas e a mitologia tradicional da América Latina para colher personagens que se movem entre o real e o fantástico, o sagrado e o profano, os vivos e os fantasmas, os humanos e os animais.
A voz poética de Eduardo Galeano é a mesma voz mordaz que denuncia a penúria dos oprimidos e a iniquidade dos opressores – numa coleção de contos afinados pelo diapasão da dignidade, abrindo de par em par as suas “janelas”, curtas ladainhas de aforismos e reflexões.


Janela sobre a palavra (I)
Os contadores de história, só podem contar enquanto a neve cai. A tradição manda que seja assim. Os índios do norte da América têm muito cuidado com essa questão dos contos. Dizem que quando os contos soam, as plantas não se preocupam em crescer e os pássaros esquecem a comida de seus filhotes.


“Mas um escritor profissional deveria saber que numa narração verossímil, o tudo está no que parece nada.”


“O bordel, que havia sido frio como um hospital e duro como um quartel, encheu-se de pássaros e violas e plantas e cores. As pernas só eram abertas a partir do crepúsculo, e, enquanto durasse a noite. Durante o dia, e até a primeira badalada do ângelus, abriam-se as orelhas. Essa ideia veio da experiência. As meninas haviam aprendido que todo macho pelado esconde um náufrago que suplica amparo. O confessionário teve tanto êxito que transbordou de multidões que acudiam da inimiga cidade de Tegucigalpa e de todos os lugares. Pelas ladeiras da colina viam-se longas filas de homens, esperando a vez para contar dúvidas e segredos, medos guardados, sonhos e pesadelos. A igreja não competia. Os padres, como o senhor sabe, só recebem a confissão dos pecados, que é o que as pessoas menos necessitam confessar.”


“Com a barriga acariciada pela água do rio, Dulcídio dorme a sesta.
Quando abre um olho, vê a mulher. Ela está lendo. Ele nunca havia visto, na vida, uma mulher de óculos.
Dulcídio aproxima o nariz:
– O que você está lendo?
Ela afasta o livro e olha para ele, sem susto, e diz:
– Lendas.
– Lendas?
– Velhas vozes.
– E para que servem?
Ela sacode os ombros:
– Fazem companhia.


Janela sobre os seres e os afazeres
A pele da passadeira de roupas é lisa.
Longo e pontiagudo é o consertador de guarda-chuvas.
A vendedora de frangos parece um frango depenado.
Brilham demônios nos olhos do inquisidor.
Há duas moedas entre as pálpebras do avarento.
Os bigodes do relojoeiro marcam as horas.
Têm teclas as mãos da secretária.
O carcereiro tem cara de preso e o psiquiatra, cara de louco.
O caçador se transforma no animal que persegue.
O tempo transforma os amantes em gêmeos.
O cão passeia o homem que o passeia.
O torturador tortura os sonhos do torturador.
Foge, o poeta, da metáfora que encontra no espelho.


Janela sobre as paredes
Escrito em um muro de Montevidéu: As virgens têm muitos Natais, mas nenhuma Noite Boa.
Em Buenos Aires: Estou com ome. Já comi o f.
Também em Buenos Aires: Ressuscitaremos, ainda que isso nos custe a vida!
Em Quito: Quando tínhamos todas as respostas, mudaram as perguntas.
No México: Salário mínimo para o presidente, para ver o que ele sente.
Em Lima: Não queremos sobreviver. Queremos viver.
Em Havana: Tudo é dançável.
No Rio de Janeiro: Quem tem medo de viver não nasce.


Janela sobre as ditaduras invisíveis
A mãe abnegada exerce a ditadura da servidão.
O amigo solícito exerce a ditadura do favor.
A caridade exerce a ditadura da dívida.
A liberdade de mercado permite que você aceite os preços que lhe são impostos.
A liberdade de opinião permite que você escute aqueles que opinam em seu nome.
A liberdade de eleição permite que você escolha o molho com o qual será devorado.


Janela sobre a memória (I)
À beira-mar de outro mar, outro oleiro se aposenta, em seus anos finais.
Seus olhos se cobrem de névoa, suas mãos tremem: chegou a hora do adeus. Então acontece a cerimônia de iniciação: o oleiro velho oferece ao oleiro jovem sua melhor peça. Assim manda a tradição, entre os índios do noroeste da América: o artista que se despede entrega sua obra-prima ao artista que se apresenta.
E o oleiro jovem não guarda esta peça perfeita para completá-la e admirá-la: a espatifa contra o solo, a quebra em mil pedaços, recolhe os pedacinhos e os incorpora à sua própria argila.


“Temos um esplêndido passado pela frente?
 Para os navegantes com desejo de vento, a memória é um porto de partida.”


Janela sobre o corpo
A igreja diz: O corpo é uma culpa.
A ciência diz: O corpo é uma máquina.
A publicidade diz: O corpo é um negócio.
O corpo diz: Eu sou uma festa.


“As mulheres? Uma raça inferior, como os negros, os pobres e os loucos. Incapazes de liberdade, como as crianças. Destinadas a chorar e a gritar, a falar mal de suas próximas e a mudar todo dia de opinião e de penteado. Na cama e na cozinha, às vezes dão prazer. Fora dali, só desgostos.”


“Muito longe dali, Ventura despertou. Despertou todo sujo de sangue seco e atormentado pelas dores, do chapéu aos pés.
Até respirar doía. Caminhar foi muito difícil, enorme sombra trêmula, e recordar foi muito mais difícil. Quando? Onde? Quem? Lua alta, lua ruim. Havia caído a noite, dentro dele havia caído a noite, e a noite já não era mais a hora do amor nem da guerra. Seus olhos haviam perdido a fala, e só tinha ouvidos para as goteiras da morte. Puta vida, vida sem fogo. Sobrevivendo? Sobremorrendo. Queira Deus soprar esta cinza.”


“Ao anoitecer, seu marido passa para buscá-la. E no caminho de casa vão os dois, calados, respirando o veneno do ar, quando você torna a vê-lo no turbilhão das ruas: esse corpo, essa cara que sem palavras pergunta e chama.
E desde então você o vê com os olhos abertos, em tudo que olha, e o vê com os olhos fechados. Em tudo que pensa; e o toca com seus olhos.
Este homem vem de algum lugar que não é este lugar e de algum tempo que não é este tempo. Você, mãe de, mulher de, é a única que o vê, a única que pode vê-lo. Você já não tem mais fome de ninguém, fome de nada, mas cada vez que ele aparecesse e se desvanece, você sente uma irremediável necessidade de rir e chorar os risos e os prantos que engoliu ao longo de tantos longos anos, risos perigosos, prantos proibidos, segredos escondidos em quem sabe que cantos de seus cantos.
E quando chega a noite, enquanto seu marido dorme, você vira de costas e sonha que desperta.”


“Nas noites de frio, os homens ficam de cócoras, cobertos pelos ponchos, ao redor do fogo. Em rodas de chimarrão e aguardente, fumam e contam mentiras que dizem a verdade. E assim se vingam do frio e da bobagem de viver, e assim passam o tempo que o dia juntou para que a noite o perdesse.”

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A Revolução dos Bichos – George Orwell

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-3590-955-5
Tradução: Heitor Aquino Ferreira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 152
Sinopse: Verdadeiro clássico moderno, concebido por um dos mais influentes escritores do século XX, A revolução dos bichos é uma fábula sobre o poder. Narra a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos. Progressivamente, porém, a revolução degenera numa tirania ainda mais opressiva que a dos humanos.
Escrita em plena Segunda Guerra Mundial e publicada em 1945 depois de ter sido rejeitada por várias editoras, essa pequena narrativa causou desconforto ao satirizar ferozmente a ditadura stalinista numa época em que os soviéticos ainda eram aliados do Ocidente na luta contra o eixo nazifascista.
De fato, são claras as referências: o despótico Napoleão seria Stálin, o banido Bola-de-Neve seria Trotsky, e os eventos políticos – expurgos, instituição de um estado policial, deturpação tendenciosa da História – mimetizam os que estavam em curso na União Soviética.
Com o acirramento da Guerra Fria, as mesmas razões que causaram constrangimento na época de sua publicação levaram A revolução dos bichos a ser amplamente usada pelo Ocidente nas décadas seguintes como arma ideológica contra o comunismo. O próprio Orwell, adepto do socialismo e inimigo de qualquer forma de manipulação política, sentiu-se incomodado com a utilização de sua fábula como panfleto.
Depois das profundas transformações políticas que mudaram a fisionomia do planeta nas últimas décadas, a pequena obra-prima de Orwell pode ser vista sem o viés ideológico reducionista. Mais de sessenta anos depois de escrita, ela mantém o viço e o brilho de uma alegoria perene sobre as fraquezas humanas que levam à corrosão dos grandes projetos de revolução política. É irônico que o escritor, para fazer esse retrato cruel da humanidade, tenha recorrido aos animais como personagens. De certo modo, a inteligência política que humaniza seus bichos é a mesma que animaliza os homens.
Escrito com perfeito domínio da narrativa, atenção às minúcias e extraordinária capacidade de criação de personagens e situações, A revolução dos bichos combina de maneira feliz duas ricas tradições literárias: a das fábulas morais, que remontam a Esopo, e a da sátira política, que teve talvez em Jonathan Swift seu representante máximo.



“Então, camaradas, qual é a natureza da nossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo de alimento necessário para continuar respirando e os que podem trabalhar são forçados a fazê-lo até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua.”


“Por que, então, permanecemos nesta miséria? Porque quase todo o produto do nosso esforço nos é roubado pelos seres humanos. Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se em uma só palavra – Homem. O homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem, e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.”


“Mas no fim, nenhum animal escapa ao cutelo.”


“E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Todos os animais são iguais.”


“Os porcos não trabalhavam, propriamente, mas dirigiam e supervisionavam o trabalho dos outros. Donos de conhecimentos maiores, era natural que assumissem a liderança.”


“Benjamim sabia ler tão bem quanto os porcos, mas não exercia sua faculdade. Ao que sabia – costumava dizer – nada havia que valesse a pena ler.”


“Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem sabiam que, embora os humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, poderiam fazer outra tentativa, mais reforçada, para retomar a granja e restaurar Jones. Tinham as melhores razões para tentar, pois a notícia, da derrota, se espalhara pela região e tornara os animais das granjas vizinhas mais rebeldes do que nunca. Como sempre, Bola-de-Neve e Napoleão não estavam de acordo. Segundo Napoleão o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se no seu emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O primeiro argumentava que, se não fossem capazes de defender-se, estavam destinados à submissão; o outro alegava que, fomentando revoluções em toda parte, não teriam necessidade de defender-se.”


“– Camaradas – disse –, tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas, às vezes, poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; então, onde iríamos parar? Suponhamos que tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve com suas miragens de moinho de vento – logo Bola-de-Neve que, como sabemos, não passava de um criminoso?”


“Naquela tarde, Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca fora contra a construção do moinho de vento. Pelo contrário, ele é que advogara a ideia desde o início, e o plano que Bola-de-Neve havia desenhado no assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade, roubado de entre os papéis de Napoleão. O moinho de vento, era, em verdade, criação do próprio Napoleão.
– Por que, então - perguntou alguém –, ele tanto falou contra o moinho?
Garganta olhou, manhoso.
– Aí é que estava a esperteza do Camarada Napoleão – disse. – Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, o plano podia prosseguir sem sua interferência. Isso, disse garganta, era uma coisa chamada tática. Repetiu inúmeras vezes: “Tática, camaradas, tática!”, saltando à roda e sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do significado da palavra, mas Garganta falava tão persuasivamente e os três cachorros – que por coincidência estavam com ele – rosnavam tão ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas.”


“De certa maneira, parecia como se a granja se houvesse tornado rica sem que nenhum animal tivesse enriquecido – exceto, é claro, os porcos e os cachorros. Talvez isso acontecesse por haver tantos porcos e tantos cachorros. Não que esses animais não trabalhassem, à sua moda. Garganta nunca se cansava de explicar que havia um trabalho insano na ação de supervisionar e organizar a granja. Grande parte desse trabalho era de natureza tal que estava além da ignorância dos bichos. Tentando explicar, Garganta dizia-lhes que os porcos despendiam diariamente enormes esforços com coisas misteriosas chamadas “arquivos”, “relatórios”, “minutas” e “memorandos”. Eram grandes folhas de papel que precisavam ser miudamente cobertas com escritas e, logo depois, queimadas no forno. Era tudo da mais alta importância para o bem-estar da granja, dizia Garganta.”


“Todos os animais são iguais. Mas alguns animais são mais iguais que os outros.”