terça-feira, 12 de maio de 2009

Batismo de Sangue: dominicanos e a morte de Carlos Marighella - Frei Betto

Editora: Civilização Brasileira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 284


“O gosto amargo da injustiça queima as entranhas, sangra o coração, exige o conduto político para não se perder na revolta individual ou na abnegada fatalidade do destino.”


“Primeiro de maio de 1936. Nas manifestações dos trabalhadores paulistas, a Polícia Especial de Filinto Müller detecta a presença do PCB sob o comando astuto de Carlos Marighella. Preso, o jovem comunista é torturado durante vinte e três dias. Querem os nomes de seus companheiros de Partido. A dor faz-se companheira em seu silêncio. A vida e a liberdade de seus camaradas no PCB valem mais do que a dele. Esse o preço da fidelidade a uma causa, salário de morte e de amor que não se paga com o simples querer. A resistência humana tem limites nem sempre conhecidos. Ao encarnar em sua vida os ideais pelos quais lutava, Marighella conseguiu que o limite de sua resistência chegasse à fronteira em que a morte recebe o sacrifício como dom.”


““Os brasileiros estão diante de uma alternativa” – escreve Marighella em Porque Resisti à Prisão. “Ou resistem à situação criada com o golpe de 1° de abril ou se conformam com ela. (...) Antes tínhamos a chamada democracia representativa. Nela, a inflação prosseguia em sua marcha acelerada. Os trustes norte-americanos mandavam. O latifúndio predominava. Milhões de homens do povo não podiam votar. Analfabetos e praças não tinham o direito de voto. Os comunistas não podiam ser eleitos, ainda que pudessem votar. Era uma democracia racionada. E racionada por isto. Porque os direitos individuais pelo menos eram respeitados, mas as restrições à participação do povo nessa democracia eram flagrantes. E injustas. Tal democracia, pela sua própria estrutura, constituía por si mesma um empecilho à realização das reformas sociais – as chamadas reformas de base. E por mais que oferecessem oportunidades – amparando os direitos individuais – sentia-se emperrada. E não podia avançar pacificamente. Como de fato não avançou; e acabou golpeada. As forças de direita do fascismo militar brasileiro deram-lhe o tiro da misericórdia.”


““O que havia de errado nesse tipo de democracia vinha de longe. Era um vício de origem. Um pecado original. Não se tratava de uma democracia feita pelo povo. Quem a instituiu foram as classes dirigentes. Nesse arcabouço erigido pelas elites, as massas conquistaram alguns direitos, ali introduzidos graças às suas lutas. Historicamente o mal dessa democracia era, acima de tudo, o seu conteúdo de elite, com a ostensiva marginalização das grandes massas exploradas – o proletariado crescendo sem nunca chegar à integração de direitos exigida pelo seu papel na produção. E os camponeses inteiramente por fora – párias da democracia – sob a ultrajante justificativa de sua condição de atraso e suprema escravização aos interesses dos senhores da terra”.
Se por um lado Marighella ainda refletia a opinião vigente na cúpula do PCB de que “a atual ditadura” é “precária”, por outro apontava quem eram os violentos e os subversivos: “As classes dirigentes não vacilaram em empregar a violência e subverter a ordem constitucional para liquidar com as liberdades, evitando que delas se favorecessem as massas e opondo uma barreira à participação do povo no poder”. Nomeia ele o “denominador comum” entre a tradição democrática brasileira e a “atual ditadura” – “o predomínio inalterado do poder das classes dirigentes, a defesa suprema de seus interesses contra os interesses das grandes massas, quer sobrevivam ou não as liberdades”.
A liberdade não é um valor reconhecido pela oligarquia brasileira, adverte Marighella. Ela pode existir, sempre “racionada”, desde que não ameace os interesses dominantes. Esses interesses estão acima dos valores humanos e políticos. Para assegurá-los, “a cadeia, a polícia, os tribunais – sem falar nas leis de defesa do Estado, como é o caso da Lei de Segurança Nacional – são e sempre foram (até que sejam derrogadas dessa investidura) os principais meios jurídicos da afirmação do poderio e da supremacia das classes que dominam no Brasil”.”


“Marighella faz o inventário dos golpes mais recentes: “O golpe de 10 de novembro de 1937 implantou o Estado Novo, espécie de fascismo peculiar ao Brasil na época da ascensão do nazismo. O de 29 de outubro de 1945 levou a deposição de Getúlio Vargas e destinava-se a impedir a livre eleição de uma Assembleia Constituinte. O de 24 de agosto de 1954 induziu ao suicídio de Vargas e objetivava anular a Constituição de 1946. O de 11 de novembro de 1955 tinha em vista impedir a posse do presidente eleito, o que motivou, na mesma data, o contragolpe vitorioso chefiado pelo então general Lott. Isto fez fracassar os intuitos dos golpistas. O de 25 de agosto de 1961 conduziu à renúncia de Jânio e à insubordinação dos ministros militares fascistas, sublevados com a posse de Jango – substituto legal do presidente renunciante. O de 1.° de abril – o mais recente e calamitoso – deu origem à deposição de Jango e levou à ditadura dos ‘gorilas’.”


“Na conclusão de que “a ditadura deve ser derrotada”, Marighella admite que “o único meio, para a reconquista da democracia, ou melhor, para a conquista de uma democracia em consonância com a realidade econômica e social brasileira, é a luta de massas com as forças populares e nacionalistas à frente”.”


““Quando a liderança do proletariado se subordina à liderança da burguesia ou com ela se identifica” – escreve ele (Marighella) –, “a aplicação da linha revolucionária sofre inevitavelmente desvios para a esquerda e a direita”. Após identificar os erros do Partido (PCB), como “o reboquismo” ao Governo, “a perda do sentido de classe”, “a falta de condições ideológicas na liderança marxista” e “a falsa tese da nova tática do imperialismosegundo a qual “o imperialismo norte-americano não estaria interessado em golpes e ditadura”, Marighella reconhece que agora “entramos numa fase de recuo”. Trata-se, pois, de organizar o movimento de massas, a “frente única antiditadura”, não para “visar, nas condições atuais, a pressão sobre o governo... O objetivo do movimento de massas é levar a ditadura à derrota, substituí-la por outro governo.” Novamente admite que o “o caminho pacífico está superado. (...) Sem uma estratégia revolucionária, sem a ação revolucionária apoiada no trabalho pela base e não exclusivamente de cúpula, é impossível construir a frente única, movimentar as massas e dar-lhes a liderança exigida para a vitória sobre a ditadura”.”


É através das dissidências que a História acerta os seus passos. Há um momento em que as possibilidades de uma proposta – religiosa ou política parecem esgotar-se sob o peso dos anos, da rigidez de seus princípios, da inflexibilidade de sua disciplina, da intransigência de seus dogmas, da prepotência de seus líderes. Como a fonte seca à beira da estrada, incapaz de saciar a sede dos peregrinos que atraiu, a proposta vê-se rejeitada por seus discípulos dispostos a caminhar sem a tutela que lhes atrasa o passo. Foi o que ocorreu na Palestina do século I, onde o judaísmo, atravancado pela prodigiosa e revolucionária “seita”, cujos membros anunciavam a ressurreição de um jovem judeu crucificado pelos romanos, Jesus de Nazaré. Toda a história da Igreja é como uma teia entrelaçada por experiências místicas e disputas ideológicas, influências culturais e manobras políticas, heresias doutrinárias e inovações pastorais. O centro dessa teia, a fé no Senhor, permanece intangível. Mas sua extensão em intrincados labirintos é, de um lado, sinal da diversidade dos dons do Espírito e, de outro, obra dessa incessante busca que faz do ser humano, em seus anelos de perfeição, o aprendiz de Deus. A dissidência de Paulo, o Apóstolo, quebra o caráter judaizante da primitiva Igreja de Pedro, estendendo-a, como boa nova, aos pagãos, até os limites do Império Romano. Entretanto, opera-se entre os cristãos uma experiência que, embora carregada de exceções, se constitui na chave de sua unidade básica através dos séculos: a dissidência não significa, necessariamente, ruptura. E é justamente essa capacidade de uma instituição suportar a emergência do novo e assumir a gravidez que prenuncia, ao mesmo tempo, a sua transformação e o seu futuro, queda a ela perenidade. Se a Igreja dos papas revestidos de todo poder não suportasse o desafio evangélico da presença incômoda de um Francisco de Assis, ela teria sido tragada pelos séculos como as águas do mar acobertam a embarcação que afunda sob o peso de sua excessiva carga. Lutero sabia disso e fez o que pôde para prosseguir na luta interna. Mas a formação dos Estados europeus, o interesse dos príncipes em uma fonte alternativa de sacralização do poder – para escaparem ao monolitismo romano , o jogo econômico de um Renascimento que via agonizar a Idade Média e expandir-se o mercantilismo que, em breve, daria ao trabalho meios industriais de produção, inaugurando o capitalismo, fizeram com que a dissidência de Lutero adquirisse foro de ruptura e inovação. Desde então, a luta interna se enfraqueceu nas Igrejas protestantes, multiplicando as denominações segundo o número de dissidências.
Essa tensão entre a ortodoxia e a crítica que a desnuda, tornando-a vulnerável, existe da mesma forma na história dos partidos políticos, mormente entre as tendências de esquerda. Embora feita de dissidências e de discordâncias, a política, como a religião, não as suporta e, se não pode abatê-las pela mão de ferro do poder, recorre à difamação, à discriminação e às explicações pretensamente psicológicas que reduzem o adversário a um doente mental. Mesmo nas sociedades burguesas que ostentam o título de democráticas, a discordância não passa de um acordo de cavalheiros para encobrir os reais antagonismos. A lei que protege o patrão oprime o empregado; o direito reconhecido no médico é desprezado no paciente; o aparelho jurídico que não confunde o réu de colarinho e gravata com seu gesto criminoso é o mesmo que reduz a existência do pobre ao momento infeliz de transgressão da lei. Sobretudo, a discordância é admitida enquanto não ameaça passar o capital às mãos de quem trabalha.
A árvore genealógica dos partidos e movimentos de esquerda é rica em ramificações. De Lênin a Marighella, todos apostataram aos olhos de seus antigos camaradas. Quando chega ao poder, o “herege” é redimido pela vitória e absolvido pelos que o julgavam equivocado. Quando se é abatido em plena luta, como a ave em seu voo, a morte é o atestado de que necessitavam os “ortodoxos” à sua razão indelével, aferrada aos conceitos e às normas que sacralizam um partido, fazendo-o transcender o real.
Entretanto, as novas gerações veem-na dissidência a conquista da liberdade, ainda que, de fato, ela signifique recuo ou desvio. Daí a facilidade com que os mais jovens aderem às propostas do momento, que parecem brotar, como por encanto, da própria conjuntura que lhes é contemporânea. Contudo, além da torrente de palavras que escorre dos estuários de cada posição, na disputa inútil de uma certeza que o raciocínio não comporta, resta a prática como critério da verdade. Ela e o tempo dirão quem está certo e quem está errado. Indiferentes ao nosso maniqueísmo, é possível que a prática e o tempo sejam menos intolerantes e apontem os erros e os acertos de ambos os pratos da balança. Artífice real da História, as classes populares seguirão sempre como o fiel da balança, pendendo para um dos lados e confirmando as teorias que o inclinam na direção do futuro. Nesse movimento dialético, da árvore genealógica que muitas vezes se abre na infinidade de galhos e, por outras, se une em torno do tronco, é que história das tendências políticas de esquerda tece as suas razões que, contudo, só se fazem realidade quando deitam raízes na alma, esperança e anseio irreprimível de liberdade das camadas oprimidas”.


“Por ocasião do encerramento da OLAS, Marighella dirige carta a Fidel Castro, denunciando o PCB: “OS que se levantam contra o absurdo de uma direção ineficaz, imobilizada, imbecilizada pelo medo da revolução, são atacados virulentamente, acusados de fracionismo, aventureirismo e outros feios crimes (...). Ninguém vai deixar de ser comunista por ser este o panorama desalentador da direção do PCB. Ao contrário, o Partido é da classe operária e do povo e não monopólio dos que se intitularam seus dirigentes (...) o importante é prosseguir na luta ideológica para mostrar que a ideologia da burguesia penetrou fundo na direção do PCB”.”


“O segredo da vitória é o povo”.


“Nessa “Organização” – termo pelo qual ficaria conhecido o grupo de Marighella –, “o que vale é a ação” inspirada por três princípios básicos: “o primeiro é que o dever de todo revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários, e o terceiro é que só temos compromissos com a revolução”.”


“A partir de 1968, o Agrupamento passa a constituir-se numa organização revolucionária, a Ação Libertadora Nacional (ALN). O programa básico do movimento dirigido por Carlos Marighella propunha “derrubar a ditadura militar” e “formar um governo revolucionário do povo”; “expulsar do país os norte-americanos”; “expropriar os latifundiários" e “melhorar as condições de vida dos operários, dos camponeses e das classes médias”; “acabar com a censura, instituir a liberdade de imprensa, de crítica e de organização”; “retirar o Brasil da posição de satélite da política externa dos Estados Unidos e colocá-lo, no plano mundial, como uma nação independente”.”


“O policial perguntou-me como era possível conciliar a fé cristã com a opção política. Expliquei-lhe que o cristianismo é essencialmente transformador e essa revolução não se limita à história, culmina na transcendência. Jesus anunciou o Reino, a transformação radical deste mundo segundo o projeto libertador do Pai. Onde há justiça, liberdade e amor, aí estão as sementes do Reino de Deus. O cristão, como discípulo do Cristo, não tem outro compromisso senão com o Espírito que nos anima na direção dessa esperança. A fé desmascara, frente à palavra de Deus, o discurso ideológico dos dominadores, Jesus assume a identidade dos oprimidos e neles quer ser amado e servido: “tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me” (Mateus 25, 35-36). Servir à causa de libertação dos pobres é servir a Cristo. Uma parte da Igreja afastou-se historicamente da proposta evangélica. Trocou a aliança com o povo pela aliança com o poder. E o capital simbólico de nossa fé foi apropriado pelos opressores. O cristianismo passou a ser o espírito religioso do liberalismo. Deus, porém, não abandonou o Seu povo. O Concilio Vaticano II e a Conferência Episcopal de Medellín eram prenúncios de uma Igreja convertida às suas origens. Na América Latina, a religião cristã não seria mais o ópio do povo e o ócio da burguesia. Seria, sim, sinal de contradição, pedra de escândalo, fogo que queima e alumia, espada que divide. Já não se poderia servir a Deus e ao dinheiro.”


““Lola” prosseguiu apaixonada na luta que vocês iniciaram. Um ano depois, em novembro de 1972, Aurora Maria Nascimento Furtado foi presa pelo Esquadrão da Morte do Rio. Entre infindáveis torturas na Inventada de Olaria, puseram-lhe esta “obra-prima” da tecnologia da segurança nacional: a “coroa de Cristo” – seu crânio foi esmagado pelo capacete de aço feito para apertar aos poucos.”


“Frei Ivo dirigira toda a noite valendo-se da escuridão para resguardar melhor o mais procurado militante político que ajudamos a deixar o país. Olhos ariscos, cabelos lisos soltando uma mecha por cima dos óculos, o que o tornava mais jovial, Ivo não demonstrava cansaço. É possível que certas missões, como transportar um dirigente revolucionário através do país cuja polícia o procura como agulha no palheiro, despertem em nós estímulos que desconhecemos em circunstâncias normais. Líderes sindicais em greve são capazes de passar dois ou três dias acordados, sem tempo para sequer sentir sono; políticos em véspera de eleições experimentam um ânimo redobrado, a cabeça girando como piorra, acesa como uma tela de TV que não se apaga; guerrilheiros em combate sabem que a fadiga, o sono, é a cilada que carregam em si, e recebem o coice tio fuzil disparando contra as posições do inimigo como a energia que os mantém alertas.”


“No sábado, dia 8, os jesuítas foram libertados, exceto Camilo. Por mais que o delegado Firmino Perez Rodrigues, diretor do DOPS gaúcho, os apertasse, nada souberam dizer sobre a minha fuga. Para não ficar de mãos vazias, o DOPS segurou Camilo. Sabê-lo detido me fez sofrer, embora eu tivesse consciência de que não podemos nos culpar das arbitrariedades cometidas por um regime ditatorial. Na tentativa de separar companheiros e de desmoralizar um perante o outro, a repressão sempre transfere a responsabilidade de seus atos para as suas vítimas. Se estudantes são espancados na rua, é porque exorbitaram em suas manifestações; se sindicalistas são presos numa greve, é porque deram caráter político ao movimento reivindicatório; se um militante morre na tortura, é porque se matou em decorrência de desequilíbrio psíquico. Isso faz parte do modo de agir da polícia. Lamentável é quando ela consegue interiorizar num companheiro a sua visão das coisas e a sua versão dos fatos.”


“– Como um estudante de Teologia pode tratá-lo assim, de camarada para camarada? – perguntou o delegado.
Padre Marcelo explicou que considera seus irmãos todos que estão comprometidos com o Evangelho.
– Pode ser que a religião defenda Frei Betto, mas a lei o condena – assegurou o delegado.
– Nesse caso, eu fico com a religião – retrucou padre Marcelo. O interrogatório era conduzido de forma a jogar o depoente contra mim. A repressão brasileira aprendera, nos cursos ministrados pelos norte-americanos, a não alimentar escrúpulos em investigações. Todo réu é culpado até prova em contrário. Explorar as fraquezas humanas surgia como um recurso mais rápido, econômico e cruel. O fio da meada poderia ser encontrado sem exames periciais, sem provas dactiloscópicas, sem análises grafológicas – bastava pôr de lado o respeito aos direitos humanos e adotar a tortura, a chantagem e a pressão psicológica como métodos de interrogatórios.”


“– Consta no seu depoimento que você conheceu pessoalmente o Marighella. Certo?
– Certo.
– Que impressões lhe ficaram?
– Um homem sedento de justiça que entregou a vida pela causa do povo.
– Um homem que sequestrou, matou, assaltou bancos e atirou bombas, não é?
– É o que diz a polícia. Não respondo pelas acusações que os senhores fazem a ele. Respondo pelos contatos que tive – repliquei.
– Mas você sabia que ele era comunista, não é mesmo?
– Sabia.
– E como um cristão pode colaborar com um comunista?
– Para mim, os homens não se dividem entre crentes e ateus, mas sim entre opressores e oprimidos, entre quem quer conservar a sociedade injusta e quem quer lutar pela justiça.
– Você reza pela bíblia de Marx?
– Embora reconheça a importância da contribuição de Marx, rezo pela Bíblia de Jesus. No capítulo 25 do evangelho de São Mateus, quando perguntam a Jesus quem se salvará, ele não diz que serão os crentes, os padres, os ricos que ajudam a construir igrejas ou os democratas-cristãos. Diz: “eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber... Os justos perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Ao que Ele lhes responderá: a cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes”. Portanto, são as atitudes bem concretas em prol da justiça que nos salvam.
– Só falta dizer que Marighella era um homem da Igreja!
 Procurei falar mais devagar para controlar melhor o raciocínio, como se as ideias fossem pesadas cordas a serem cuidadosamente erguidas da exaustão que me disseminava calafrios pelo corpo.
– Ele não estava na Igreja, mas estava no Reino, nessa esfera da justiça e da igualdade que é o objeto principal da pregação de Jesus. O papel da Igreja é anunciar o Reino.
– Reino de paz e de amor?
Dir-se-ia que sua pose altiva era mais de um cientista examinando a cobaia humana.
– Reino de paz e de amor – assenti.
Seus olhos acenderam por baixo das lentes brancas. Acreditou-me em xeque-mate:
– Quer dizer que você condena a violência, a luta armada?
– Não quero outra coisa senão a paz, muita paz. Por isso luto contra a violência da burguesia sobre os trabalhadores, das estruturas da sociedade capitalista.
– Inclusive com armas, contra a orientação da Igreja?
– Pelo que conheço da doutrina da Igreja, ela não descarta, em última instância, o direito de os oprimidos se defenderem, com armas, da opressão estrutural que os esmaga. Leia O Regime dos Príncipes, de São Tomás de Aquino, e a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI.
– O que você quer é o comunismo?
– Quero uma sociedade justa, onde a vida do ser humano socialmente mais insignificante esteja assegurada. O Deus no qual eu creio é o Senhor da vida. Não me interessa se essa sociedade tenha o nome de socialismo, de comunismo, de utopismo ou qualquer outro. Os rótulos não revelam o conteúdo.
– Você já leu Marx?
– Li, Engels, Lênin, Stálin, Mao, Guevara e Pascal, Kant, Hume e Hegel. Nós dominicanos, aprendemos que quando se quer conhecer uma teoria o mais indicado é ir diretamente à fonte.
– Leu que Marx considera a religião ópio do povo?
– É a burguesia que faz da religião um ópio do povo, pregando um deus apenas senhor dos céus enquanto ela se apodera da terra. O Deus da minha fé é aquele que se encarna em Jesus Cristo e assume a libertação dos oprimidos. Cabe a nós cristãos provar que a afirmação de Marx, válida para a Alemanha dos séculos XVIII e XIX, não pode ser generalizada a todas as épocas e sociedades.”


“Luiz Eurico Tejera Lisboa veio a ter um destino trágico, semelhante ao de inúmeros brasileiros perseguidos pelo terror policial. Mais tarde eu soube que ele se mudara para o centro do país, deitado em Porto Alegre sua companheira Suzana, e continuara a participar corajosamente da resistência à ditadura. Em agosto de 1972, aos 24 anos, correu a notícia de sua prisão em São Paulo. Sua família repetiu a mesma via crucis percorrida por tantas outras ainda hoje: procurou órgãos de segurança, visitou autoridades, falou com políticos, foi a presídios e quartéis, fez apelos e denúncias. O Governo, como um assassino de costas largas, manteve-se calado; nada vira, nada soubera, nada a informar. Em alguma esquina do Brasil, Luiz Enrico “evaporara”. O terror do Estado agia sob a complacência da Justiça. Em nome da segurança nacional, um jovem brasileiro fora sequestrado e morto. Nenhuma notícia a seu respeito. Os jornais, com a boca tapada pela censura e intimidados, nada diziam a respeito. Contudo, uma pessoa não pode deixar de existir nas entranhas de sua mãe, no coração de sua esposa, no afeto de seus parentes e amigos, na admiração de seus companheiros, na memória dos que sobrevivem e alimentam-se de seu sacrifício e exemplo. Um revolucionário é um ser social, como uma árvore cujas raízes se espalham à sua volta, cravadas no chão da história, e cujos frutos vão muito além de seus galhos e nutrem o esforço de libertação.”


“Padre Marcelo abriga em sua fé uma vocação mística inquieta. No cárcere, o atual Bispo de Guarabira contemplou o mistério da vida de um militante comunista, Jeová de Assis Gomes. Gravou-se em minha memória este diálogo entre os dois, através das grades das solitárias:
– Jeová, você foi torturado horas seguidas. Desmaiou várias vezes. Fizeram com você o que não fizeram com o Cristo. Quebraram seus braços e pernas. Você podia ter morrido. Não passou por sua cabeça que a morte seria o encontro com o Absoluto, com Alguém? Você se sente realizado? E se tivesse morrido?
– Padre, agora me sinto feliz porque conheço o gosto da morte. Sei, por experiência, que sou capaz de dar a minha vida pela causa revolucionária. Minha vida foi entregue aos oprimidos.
– Quem ama passa da morte para a vida. Numa leitura cristã, de fé, quem faz a experiência do dom total, do amor, está salvo e se encontra com Deus. A Bíblia não diz que serão salvos os que têm fé e celebram o culto, mas sim os que são capazes de amar. Para estar aqui neste calabouço, eu arrisquei muito pouca coisa. Mas você arriscou sua juventude, a carreira universitária, a formação de uma família e a própria vida, por amor. Você faz a experiência do dom total. Isso, numa leitura cristã, vale mais que proclamar a fé.
Jeová retrucou enfático:
– Como o senhor arriscou pouco!? O senhor é monsenhor!
– Sou merda e você é Cristo. O capítulo 25 do evangelho de São Mateus mostra claramente quais são os critérios de salvação: são as respostas eficazes que damos às necessidades econômicas, sociais e espirituais do próximo. Jesus se identifica com quem tem fome, sede, vive no abandono ou aprisionado. O que fazemos ao oprimido para libertá-lo é ao próprio Cristo que o fazemos. Portanto, Jeová, o que você faz pela humanidade, pelo amor dos homens, é por Ele que você o faz.
Criou-se uma afetuosa cumplicidade entre padre Marcelo e Jeová. Seis anos mais tarde, Dom Marcelo me reafirmaria que o testemunho desse jovem combatente fora a mais forte interpelação que recebera em sua vida. Libertado, meses depois, por ocasião do sequestro do Embaixador da Alemanha, no Rio, Jeová regressou clandestinamente ao país, vinculado ao Molipo e disposto a realizar o antigo projeto de organizar politicamente os camponeses. Delatado e cercado num campo de futebol, foi fuzilado a sangue-frio no Norte de Goiás, em 1971.”


“A celebração da missa nos subterrâneos do DOPS quebraria o espesso clima de atrocidades e permitiria, mais uma vez, a tentativa de recuperação de nosso espaço vital. Para a maioria dos companheiros, a missa interessava enquanto rito capaz de simbolizar e de exprimir a nossa unidade mais radical nos limites do sofrimento humano e na esperança libertadora que consumia nossas vidas ali dentro. Nesse sentido, a eucaristia – memória atualizadora da paixão e da ressurreição do Senhor – teria lugar privilegiado naquele calabouço, sem o risco de objetiva profanação que ela corre em igrejas frequentadas pelos ricos senhores da terra que, aos domingos, comungam o corpo de Jesus e, durante a semana, esmagam aqueles com quem o Senhor mais se identifica (Mateus 5, 23 e 24).”


 “Era a primeira vez que participávamos de uma celebração na qual predominavam comunistas. Fiz o comentário da leitura:
– Isaías não diz que, no futuro, os pobres da terra viverão em harmonia com os homens impetuosos. Pelo contrário, a boca do profeta anuncia a justiça de Deus que sacia a fome dos pobres e faz morrer o ímpio. Não há conciliação possível entre opressores e oprimidos. O amor, porém, une os que colocam suas vidas na mesma direção. Do lado de dentro dessas grades, encontram-se comunistas e cristãos. O que há de comum entre nós? O mesmo amor à libertação do nosso povo. Não foi em torno de bancas universitárias, dispostos a discutir questões teóricas, que nos encontramos. Foi a luta que nos aproximou, traçando a linha divisória entre os que defendem os interesses da burguesia e os que assumem as aspirações do proletariado. Deste lado, ficaram vocês e ficamos nós. No entanto, cristãos e marxistas sempre foram considerados polos antagônicos. Não haveria entre nós mais coisas em comum do que a luta pela justiça? Temos as mesmas raízes judaicas – Cristo e Marx eram judeus, tributários da historicidade de seu povo. Para o marxismo houve, no início dos tempos, uma sociedade comunista primitiva, na qual reinava a harmonia entre os homens. Para o cristianismo houve, no início dos tempos, um paraíso, no qual reinava plena harmonia entre os homens, a natureza e o Criador. Ao escolher-se em detrimento de seu próximo, o homem quebrou, pelo pecado original, a unidade genuína. Ao apropriar-se do que era comum, um grupo cindiu, pela acumulação primitiva, a sociedade em classes antagônicas. Segundo o marxismo, essa igualdade primordial só será recuperada na futura sociedade comunista, enquanto o cristianismo vislumbra a restauração da unidade paradisíaca no Reino de Deus, onde “Deus mesmo estará com seu povo” (Apoc. 21, 3). É através da história, configurada em sucessivos modos de produção, que se criam as condições de passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade. Na história e pela história, Deus revela-se a seu povo e o convoca a construir o futuro de justiça e de liberdade. O sujeito da história, na ótica de Marx, é o oprimido, a classe mais espoliada ou – para usar uma analogia – a mais crucificada pelo sistema capitalista. Na revelação cristã, é o Crucificado quem liberta e salva. Aquele que foi mais esmagado é o mais exaltado. Todo joelho se dobra a seu nome. No entanto, o pecado impede o ser humano de realizar plenamente os desígnios de Deus. Presente nas estruturas e nas instituições, o pecado desvia o processo histórico de seu rumo libertador, e deita raízes no coração do homem, alienando-o. Do mesmo modo, para Marx, a alienação cria o descompasso entre a nossa existência e a nossa essência. Não vivemos o que somos e nem podemos ser o que gostaríamos de viver. Para nós cristãos, essa adequação entre a essência e a existência é a santidade. Sabemos pela fé certas coisas que vocês buscam pela análise dialética. A fé não nos dá a radiografia do momento histórico, mas sim o sentido último e absoluto da história: o antagonismo de classe será suprimido e todos viverão como irmãos em torno do mesmo Pai. Haverá igual partilha da comida e da bebida, como aqui na mesa eucarística. Essa dimensão transcendente a teoria marxista não alcança. Todavia, o mais importante, hoje, entre nós é amarmos os oprimidos. No dia da ressurreição Ele dirá aos que não tiveram fé: “tive fome e me destes de comer... tive sede e me destes de beber...”. Vocês indagarão: “quando foi Senhor que o vimos com fome?... com sede?...” E o Rei lhes responderá: “O que fizestes a um desses pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes”.”


“Há cinco dias Frei Tito escrevera a um confrade:
(...) Na cadeia, tenho descoberto o Evangelho de S. Mateus. O troço tem que ser ou pão ou pedra. Noutras palavras, acho que ele nos convida a sermos simplesmente homens. É impressionante como tantos não-cristãos aqui vivem isso até as últimas consequências. Outro dia dizia-me um jovem: “Não falei nada porque fiz uma opção e diante dela morrer ou não é secundário”. (...)
– Fui levado do Presídio Tiradentes para a Operação Bandeirantes – Oban (Polícia do Exército) – no dia 17 de fevereiro de 1970, terça-feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”. Algemaram minhas mãos, jogaram-me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres. (...)
– Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª Auditoria de Guerra da 2ª Região Militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz-auditor, Dr. Nelson Guimarães. Soube posteriormente que esse juiz autorizara minha ida para a Oban sob “garantias de integridade física”.
Denunciado incontáveis vezes nos tribunais militares brasileiros, o crime de torturar jamais foi apurado ou punido. À luz da justiça sobrepõe-se, no juiz, a força do interesse. Sua estabilidade depende da confiança dos militares; qualquer suspeita significa o fim de sua carreira. Por isso, ao espanto inicial provocado pelos relatos de atrocidades, prevalece no magistrado a adequação de sua sensibilidade e consciência à tortura como método de interrogatório, ao assassinato como recurso de profilaxia política, à crueldade do poder como exigência de segurança e firmeza de autoridade. Para os torturadores, porém, o juiz não passa de um pobre coitado obrigado a dar cobertura legal aos crimes cometidos pelo Estado.
– Ao chegar à Oban, fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois me levaram para o pau-de-arara. Dependurado, nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” [tapas nos ouvidos] e berravam impropérios. Isso durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do pau-de-arara. O interrogatório se reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava, mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até as vinte e duas horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado por hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5mts, cheia de pulgas e de baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.
Para certos militares, todo réu é culpado, até prova em contrário – princípio emanado da Doutrina de Segurança Nacional e infundido na cabeça de todos que, durante anos, comandaram a repressão no Brasil. Parte-se da ideia de que ninguém confessa os seus “crimes”, a menos que seja forçado a falar. E para isso só há um recurso: a tortura. A dor física, o pânico psíquico e o medo desencadeiam, no prisioneiro, o instinto de sobrevivência, sob ameaça de levá-lo a dizer ou assinar o que querem seus carrascos. Troca-se a dignidade pela preservação da vida. Nesse momento, a escolha é crucial, entre ceder à ânsia de sobreviver ou aceitar a dor e a morte por fidelidade aos princípios assumidos. (...)
– Na quarta-feira, fui acordado às oito horas. Subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que, no dia seguinte, enfrentaria a “equipe da pesada”. (...)
– Na quinta-feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas: “Vai ter que falar senão só sai morto daqui!”, gritou. Logo vi que isso não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na cadeira-do-dragão, com chapas metálicas e fios, descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas que cada vez mais se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e animado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a descarga elétrica para 220 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isso durou até as dez horas, quando chegou o capitão Albernaz. (...)
– “Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz ligando os fios em meus membros. “Quando venho para a Oban, deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede... Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram torturados por ele). Darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo não que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Estavam três militares na sala. Um deles gritou: “quero nomes e aparelhos”. Quando respondi: “não sei”, recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos. Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “quais os padres que têm amantes?”, “porque a Igreja não expulsou vocês?”, “quem são os outros padres terroristas?” Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pelo DOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à Oban prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que “a Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. Revestidos de paramentos litúrgicos, os policiais me fizeram abrir a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziram um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritavam difamações contra a Igreja, berravam que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas, encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela, onde fiquei estirado no chão. (...)
– Às dezoito horas serviram o jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disseram que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” se reiniciou para que eu “confessasse” os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estômago, palmatória, ponta de cigarro aceso em meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram deixar-me dependurado toda a noite no pau-de-arara. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”. (...)
– Na cela, eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros religiosos sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me. (...)
– Na cela cheia de lixo encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas, no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isso seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre. (...)
– Na sexta-feira, fui acordado por um policial. Havia a meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “O senhor tem hoje e amanhã para se decidir a falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos.” Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a gilete para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gilete, enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde, recobrei os sentidos num leito do Pronto-Socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia, transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, este padre não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos.” No meu quarto, a Oban deixou seis soldados de guarda. (...)
– No sábado, teve início a tortura psicológica. “A situação agora vai piorar para você que é um padre suicida e terrorista”, diziam eles. “A Igreja vai expulsá-lo”. Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse. (...)
– Na segunda noite, recebi a visita do juiz-auditor, acompanhado de um padre do convento e de um bispo-auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do Presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles, mostrando os hematomas e as cicatrizes, os pontos recebidos no Hospital das Clinicas, as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltasse à Oban, o que prometeu fazer. (...)
– De fato, fui bem-tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da Oban que montavam guarda em meu quarto. As irmãs Vicentinas deram-me toda a assistência necessária. Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, 27 de fevereiro de 1970, fui levado de manhã para a Oban. Fiquei numa cela até o fim da tarde, sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar. À noite, entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.


“Seu relato de torturas, redigido na prisão, foi divulgado pela primeira vez no jornal Publik, da Alemanha, e, posteriormente, mereceu prêmio especial de reportagem da revista norte-americana Look, em 1970. Correu mundo em diversos idiomas. Em seu parágrafo final, alerta Frei Tito:
– É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schreiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde. A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra esta situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este, o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo. “Não queremos, irmãos, que ignoreis a tributação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2 Co. 1, 8 e 9). Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.”


“A violência revolucionária é necessariamente a violência de uma classe e não de uma vanguarda. A vanguarda destina-se a orientar politicamente essa violência. No Brasil, foi a vanguarda que decretou a violência revolucionária, sem orientar politicamente a classe operária. E o que aconteceu? A guerra tornou-se uma guerra de vanguardas confusas e desorientadas. Não foi a guerra do povo, mas a guerra pelo povo. Nesse sentido teve um papel eminentemente ético (a guerra é justa). Mas não teve um papel político (a guerra é correta).”

Um comentário:

Luiza Lamas disse...

Meeeeu, como eu quero ler esse livro! Ano passado fiz um projeto com a escola sobre a Ditadura e quero muuuito saber mais sobre isso!
Um beijo!
www.choqueliterario.blogspot.com.br