terça-feira, 19 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte III), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

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Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I



“Francisco de Sierra Y Mariscal em suas “Ideas geraes sobre a revolução do Brasil e suas consequencias”, chegou a escrever, sob a impressão, ainda quente, da independência política do Brasil, que aqui o “Commercio se se quer he quem he o unico corpo aristocrata. Os previlegios dos senhores d’engenho, do unico que lhes servem he de os dezacreditar, por que estão auctorisados até serto ponto para não pagar a ninguem...”. E contra a ideia geral de serem os senhores de engenho uma classe só, e esta opulenta e bem nutrida, observava: “[...] qualquer pode ser senhor d’engenho e ha muitas qualidades d’engenho...”. Acrescentando: “[...] tem chegado a maior parte d’elles a tal estado que para comerem carne de vacca duas vezes por semana e terem hum cavallo d’estrebaria se faz necessario que morrão 200 pessoas de fome, que são os escravos do engenho, aquem lhes dão unicamente o Sabbado livre para com seu producto sustentarem-se e trabalharem o resto da semana para seus senhores”.307

Daí terem os senhores de engenho – a maior parte deles – chegado aos princípios do século XIX elemento de perturbação, e não de defesa, da ordem: “esta classe não forma Ordem”, isto é, ordem aristocrática no sentido de conservadora. Ao contrário: pertenciam, em grande parte, à ordem democrata dos que “nada tem a perder [...]. Os senhores d’engenho estão nesta ordem por que he o partido das Revoluções e com ellas se vem livres dos seus credores”. Na mesma situação estava “a maior parte do clero, pela mesma razão”; e também “os empregados publicos que ambecionão os restos da fortuna dos europeos”. Todos instáveis: mesmo os aparentemente ricos pois raros cuidavam de conservar ou desenvolver as riquezas.

O resultado é que muitos, nascidos ricos, chegavam à velhice melancolicamente pobres. Mas sempre desdenhosos de ofícios mecânicos que abandonavam a europeus e a escravos. Daí o violento contraste entre europeus que aqui chegavam pobres e morriam ricos e brasileiros nascidos ricos que envelheciam e morriam pobres.

Sierra y Mariscal fixou o contraste entre o filho de brasileiro rico que, apenas saído da infância, “porque o carinho paternal lhe da Rendas soltas”, degradava-se, e o filho de português que chegava ao Brasil tendo deixado a “Caza Paternal” apenas com “suas proprias e fracas forças”; na falta de conhecido ou parente no Brasil, fazia do “portico d’huma Igreja [...] o seu primeiro leito e a sua primeira morada”; recebido “ou de Caixeiro ou de Aprendiz não há nada a que elle se não sugeite”; “com a economia e o trabalho” chegava a ter “grandes cabedaes”; uma vez rico, chegava a ter “consideração”; desprezado pelos brasileiros por ter chegado aqui pobre ou miserável, depois de rico, ele é que desprezava os brasileiros por serem “fracos, immoraes, preguiçozos e pobres”; e tendo, na sua mocidade de pobre, contraído relações com “mulheres pobres” – muitos, poderia Sierra y Mariscal ter acrescentado, com mulheres pobres de cor, enquanto outros, com filhas mestiças e ricas de patrões também portugueses – “isto tambem tem sido hum ellemento de reproxes mutuos”. E ainda não tendo sido o portuguesinho aqui chegado aos dez ou doze anos, bem-educado na mocidade, raramente sabia educar bem os filhos.

Mesmo assim, tornara-se o comércio, no Brasil, para observadores como Sierra y Mariscal, “o único corpo aristocrata”, por ser o mais estável na sua condição e o mais interessado na manutenção do Estado tal como o concebia no Brasil o patriarcalismo da época, isto é, um patriarcalismo já um tanto mais urbano do que rural nas suas tendências decisivas. Para esse patriarcalismo o Estado era o pai dos pais de família. Principalmente dos mais ricos, dos mais conformados com a ordem estabelecida, dos mais ordeiros; e só dentro da ordem, mais progressistas. Estes amigos da ordem e, apenas em segundo lugar, do progresso, já não eram, no século XVIII, senão em número pequeno, os senhores de engenho, os senhores de terras, os fazendeiros, tantos deles endividados e, como todos os endividados, predispostos à inquietação, à revolta, à desordem; e sim os grandes do comércio, da indústria e das próprias artes mecânicas consideradas ingresias em contraste com as francesias (que significavam principalmente novidades em matéria de governo e de organização social e não apenas de trajo).

Principalmente os grandes do comércio e da indústria das grandes cidades tornaram-se os defensores por excelência da “ordem”. Novos comendadores, novos barões, novos viscondes em cujo champanha de dia de festa podia sentir-se, como no champanha de certo negociante opulento do Recife enriquecido no comércio de peixe seco, sentiu um humorista boêmio do fim do século XIX “gosto de bacalhau”; mas que passaram a constituir uma força mais sólida, na economia nacional, do que a nobreza da terra com todo o aroma de mel de cana que irradiava de suas terras, de suas plantações, de suas fábricas, de seus tachos, de suas casas, de suas próprias pessoas, outrora quase sagradas. Tão sagradas que na era colonial se julgavam com o direito de não pagar dívidas, de insultar credores, de adulterar produtos, embora considerando-se sempre superiores aos “vilões”, aos “traficantes”, aos “taverneiros”, aos “mecânicos”. Não imaginavam então que viria época de mendigarem crédito, esse crédito que, em 4 de dezembro de 1875, escrevia na Província “Um negociante”, em “Breves considerações sobre a praça comercial de Pernambuco”, ter desaparecido para os senhores de terras da velha província agrária.

Não foi, entretanto, o plantador ou lavrador na fase de transição da sede do domínio patriarcal no Brasil das casas-grandes do interior para os sobrados das capitais – isto é, nas áreas do País social e culturalmente mais importantes na época decisiva dessa transição – vítima passiva ou inerme dos novos poderosos. Ele próprio concorreu para sua degradação.

Como observava um cronista do meado do século XIX, se era certo que os “desgovernos” do Império vinham fazendo a agricultura definhar com o excesso de “tributos”, dela exigidos em benefício da Corte e das cidades, por outro lado, “os lavradores dos nossos campos são ainda mais culpados e dignos da mais aspera censura pelo desleixo e estupida miseria com que trabalhão”. Ao trabalho escravo juntavam-se pragas como as de “formigas, bezouros, gafanhotos”: “mas accresce a tudo isto a mandreisse orgulhosa em que vivem a maior parte dos nossos proprietarios de lavouras, respondendo com fofa basofia a tudo...”, julgando-se “os fidalgos da provincia”, “os ricos da terra”, os “protectores do commercio” quando “da forma em que vão são os impostores da provincia, são os pobres da terra, são os sanguesugas do commercio”: “os tributos que pagão á nação não equivalem aos calotes que pregão aos particulares, salvas algumas excepções que são tão poucas como dias de sol em tempo de inverno”. Acrescentava o cronista, referindo-se principalmente à província da Bahia: “Falla-se em machinas, falla-se em apparelhos”. Mas em vez de chegarem os agricultores a soluções concretas, dos problemas de substituição de escravos e animais por máquinas, ficavam tontos com palavras e cálculos em torno de máquinas e aparelhos; e continuavam explorando os negros e os bois, embora sem cuidarem de sua conservação como os antigos agricultores. O que primeiro deviam fazer era “dar estimação aos escravos e aos bois, principais moveis ou utencilios da lavoura...”. Em vez disso, o que se via agora “por este desalmado reconcavo”? Negros alimentados com “uma triste ração de carne secca podre”, surrados e “tendo por botica e medico, purgante de sal e vomitorio de Leroy, applicados estes remedios loucamente por uma negra chamada enfermeira que por ser bruta no serviço do engenho é removida para directora do hospital; os bois, esses dão alguns passos e puxão os carros opprimidos pelas cangas e fustigados pelas espetadelas do ferrão: findo o trabalho são elles atirados ao campo e ahi ficão ao desamparo de dia e de noite, expostos á chuva, sol e sereno; e se por maior desgraça o boi é novato no sitio e não pode saber dirigir-se a um certo charco chamado tanque que ha no pasto, ahi morre elle berrando damnado de sede. E ainda se queixão da morte de escravos e da falta de gado!”. E sarcástico, caricaturesco, exagerado, notava que se resguardavam nos engenhos e fazendas da Bahia “os objectos ou obras materiais de ferro e de madeira, porque podem se estragar”. Mas não se resguardava o corpo dos bois: “o boi que morre ao desamparo do campo devia ser immediatamente esfolado e o couro ser vestido no Sr. de engenho para andar de quatro pés e outros animaes vivos fazerem delle o bumba meu boi”.

Assim se expressava desabusado crítico do estado da lavoura na província da Bahia em artigo, “A agricultura”, que A Marmota Pernambucana publicou a 30 de julho de 1850, naturalmente por se aplicar parte da crítica à situação de outras áreas do Império, tão desintegradas ou minadas nas suas antigas bases patriarcais de economia quanto o recôncavo. Era artigo em que também se criticava a “agricultura dos quintaes”, ou das “roças” ou “sitios” em torno das casas de chácaras dos arredores de Salvador: roças, em geral, “reduzidas a plantar capim tão somente, o que dá muito má idéa da cidade aos observadores de fora...”. Entretanto, por essas casas e pelas ruas, era grande o número de “escravos ociozos e desnecessarios”, fora “um milhão de negras africanas e creoulas” ocupadas em vender “mamões entupidos” e “cocadas remellosas que o lucro que dão não serve nem para o concerto do taxo”. E sem contar os crioulinhos vadios – “crias de vóvó” que levavam os dias inteiros a quebrar telhados – as “cevadas creoulas [...] intituladas costureiras, rendeiras e bordadeiras” das quais havia então em Salvador “um quarteirão em cada casa”.308 Pois o crítico não deixava de salientar que, em contraste com os negros de eito do recôncavo – um recôncavo já perturbado nas suas antigas e doces condições de economia patriarcal pela introdução de máquinas em outras áreas tropicais – os domésticos e os suburbanos e urbanos viviam no ócio ou quase no ócio, muitos deles bem alimentados e até cevados pelos senhores dos sobrados. Sobrados – acentue-se sempre – já burgueses e ainda patriarcais onde o luxo tomou relevos raramente atingidos pelas casas-grandes que, para alguns dos senhores de engenho mais ricos do Rio de Janeiro, da Bahia, de Pernambuco, desde a primeira metade do século XIX passaram à condição de casas de campo, enquanto os sobrados de cidade se elevaram à de palacetes onde os mesmos senhores residiam mais tempo do que no interior. “Proporcionalmente ás nossas circumstancias creio que não ha no mundo cidade onde o luxo tenha chegado a tão alto ponto como em o nosso Pernambuco”, escrevia o padre d’O Carapuceiro em artigo “O luxo no nosso Pernambuco”, transcrito pelo Diário de Pernambuco de 31 de outubro de 1843. Era o luxo de senhores de engenho, residentes principalmente em sobrados urbanos, a rivalizar com o dos negociantes fortes, seus comissários e armazenários, donos de sobrados igualmente suntuosos.”

307 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1920-21, vol. XLIII-IV, p. 62.

308 Marmota Pernambucana, 30 de julho de 1850.

 

 

“Andrew Grant observou que a atividade dos homens de prol do Brasil dos começos do século XIX com relação às atividades industriais vinha alterando-se nos “últimos poucos anos”. Até mesmo os “inveterados preconceitos” contra o comércio, da parte dos nobres, vinham modificando-se sob a “crescente liberalidade” – ou libera-lismo – da época. Vários deles, nobres, estavam ligados a manufaturas estabelecidas no Rio de Janeiro. Um “gentleman of high rank” levantara uma casa de beneficiar arroz, empregando aí cerca de cem escravos.315

Era pena – para o observador inglês – que, ao lado do desenvolvimento das indústrias, das artes e do comércio, continuasse o Brasil a importar negros como se importasse gado. O que sucedia era o senhor branco, mesmo quando morador de “mansões” suntuosas – isto é, casas-grandes e sobrados – ser criatura mais degradada e infeliz que o escravo.

Realmente sucedeu, no Brasil, verificar-se a transigência da parte intelectualmente mais avançada da nobreza rural com as indústrias, com as artes, com o próprio comércio – com ingresias e até com francesias essencialmente burguesas – sem que se verificasse o abandono do sistema de trabalho escravo. Nessa combinação de contrastes, anteciparam-se Minas Gerais e, de certo modo, Pernambuco, no século XVIII e no próprio século XVII. Mas onde o contraste tornou-se mais evidente, cremos que foi no Maranhão dos princípios do século XIX – ao mesmo tempo tão rotineiro e tão progressista.

“Instrumentos agrarios não ha, senão a simples enxada, e machina, senão o miseravel escravo... As conduções em geral são feitas pelos rios e algumas que se fazem por terra são em carros de bois, ainda mais defeituosos que os que se usão em Portugal...” Assim escrevia em livro publicado em Lisboa em 1822 – Estatistica historica-geographica da provincia do Maranhão offerecida ao soberano congresso das cortes geraes – Antônio Bernardino Pereira do Lago.316 Observava mais haver naquela área colonial brasileira, apesar do alvará de 5 de janeiro de 1785 que proibira fábricas ou indústrias no Brasil, “fabricas de descascar arroz, de descaroçar algodão, de fazer assucar, de distillações e de tecer pano de algodão”. Fábricas movidas antes a braço de escravo que a máquina: “[...] podemos dizer que a força motriz de todas he só a resultante de muitos braços de escravos, parecendo aquellas fabricas mais huma masmorra d’Africa que interessante e agradavel edifício de industria”.317

Vê-se por depoimentos como este que a área maranhense – enobrecida desde o começo do século XIX por sobrados rivais dos baianos e dos pernambucanos – antecipou-se à paulista, do café – que só mais tarde seria enobrecida por tais sobrados – e acompanhou de perto a da mineração – desde o século XVIII famosa por cidades bem edificadas – como área de precoce ou prematura industrialização, mas não de mecanização, de sua economia, que continuou a basear-se, tanto quanto a agrária, ou ainda mais que a rusticamente agrária, na energia ou no trabalho do escravo. Perdeu, entretanto, sua organização social, com aquela antecipação, alguns dos traços mais doces de familismo tutelar ou de patriarcalismo benevolente. Explica-se assim terem sido aquelas três áreas caracterizadas, nas suas fases de precoce industrialização da economia, por um abandono do escravo pelo senhor ou por uma exploração do operário – reduzido à condição de substituto de máquina – pelo patrão, que não caracterizaram nem o nordeste agrário nem o Rio Grande do Sul e os sertões pastoris, nas suas relações entre senhores e escravos ou servos: entre senhores de engenho tutelares e escravos quase pessoas da família; entre fazendeiros e estancieiros, igualmente tutelares, e servos quase pessoas de casa.

Tais relações teriam de refletir-se, como se refletiram, na alimentação dos escravos que, nas áreas industrializadas, alterou-se quase sempre no sentido de sua degradação, desde que ao industrial precoce – como foram o mineiro, desde o século XVIII, e o maranhense e o paulista, desde o começo do século XIX – interessava mais esgotar rápida, comercial e eficientemente a energia moça do escravo (substituto de máquina e não apenas de animal) que prolongar-lhe a vida de pessoa servil e útil – mas pessoa ou, no mínimo, animal – através de alimentação farta e protetora – embora com aparência de rude – e de habitação igualmente protetora – embora com característicos de prisão: as senzalas de pedra e cal.

Foram estes os escravos – evidentemente a maioria da população escrava da época colonial e dos primeiros decênios do Império, dado o fato de que o Brasil ortodoxamente patriarcal foi antes agrário e pastoril que industrial e urbano como na área de mineração – que impressionaram os observadores estrangeiros mais penetrantes e mais objetivos nos seus reparos sobre condições de vida e de alimentação que pareceram a vários deles – Tollenare, Pfeiffer e Hamlet Clark – superiores às dos operários ou camponeses europeus e livres da mesma época.

O que conhecemos, por outras fontes de informação, do regime alimentar daqueles escravos que foram os típicos – e não os atípicos – do nosso sistema patriarcal, autoriza-nos a generalizar ter sido o escravo de casa-grande ou sobrado grande, de todos os elementos da sociedade patriarcal brasileira, o mais bem nutrido. Nutrido com feijão e toucinho; com milho ou angu; com pirão de mandioca; com inhame; com arroz – dado pelo geógrafo alemão A. W. Sellin como, em algumas regiões brasileiras, “alimento fundamental”318 “para os escravos” e não apenas para os senhores.

Também o quiabo, o dendê, a taioba e outras “folhas”, outros “verdes” ou “matos” de fácil e barato cultivo, e desprezados pelos senhores, entravam na alimentação do escravo típico. São “matos” cuja introdução na cozinha brasileira – em geral indiferente ou hostil à verdura – se deve ao africano: como quituteiro ou cozinheiro, contribuiu ele – principalmente através da chamada “cozinha baiana” – para o enriquecimento da alimentação brasileira no sentido do maior uso de óleos, de vegetais, de “folhas verdes”. E até – com os Malês – de leite e de mel de abelha. Escravo, o africano foi, de modo geral, elemento mais bem nutrido que o negro ou o mestiço livre e que o branco pobre de mucambo ou palhoça do interior ou das cidades, cuja alimentação teve de limitar-se, de ordinário, ao charque ou ao bacalhau com farinha. Mais bem nutrido que o próprio senhor de engenho ou o fazendeiro ou o dono de minas quando meão ou médio nos seus recursos – e os fazendeiros ou senhores de engenho desse tipo foram, entre nós, a maioria – de alimentação também caracterizada pelo uso excessivo do charque e de bacalhau mandados vir das cidades, junto com a bolacha, o peixe seco e a farinha de mandioca. Enquanto à mesa do estancieiro, farta de carne fresca ou sangrenta, parecem ter sempre faltado o legume, e, por muito tempo, o arroz, ausente também da mesa do sertanejo do Norte, farta apenas de queijo e de carne chamada de sol ou de vento; e tão pobre de legume quanto as outras mesas de patriarcas.

Quanto à mesa dos ricos senhores de casas-grandes e dos sobrados mais opulentos, não nos esqueçamos de que foi ela quase sempre prejudicada pelo excesso de conservas importadas da Europa, em condições de transporte que estavam longe de comparar-se, do ponto de vista da higiene ou da técnica de conservação de alimentos, com as dominantes no século atual. De onde muito alimento deteriorado ou rançoso consumido pela gente nobre dos sobrados que desdenhava das verduras ou matos frescos, comidos pelos negros ou pelos escravos.

São pontos, estes, que devem ser recordados com insistência contra a generalização, baseada quase sempre no sentimentalismo antiescravocrático ou no furor doutrinário dos que desejam acomodar a história das sociedades patriarcais a este ou aquele ismo, de que, em tais sociedades, o escravo foi sempre e sob todos os aspectos, um “mártir”, um “sofredor”, um “mal-alimentado”. A verdade é que houve sociedades, como a brasileira, nas quais, de modo geral, o escravo das áreas ortodoxamente patriarcais – as caracterizadas pelo maior domínio de família tutelar – tiveram um tratamento, um regime de alimentação, um gênero de vida superiores aos dos escravos em áreas já industriais ou comerciais, embora ainda de escravidão, caracterizadas pela tendência à impersonalização ou despersonalização das relações de senhor com escravo, reduzido à condição impessoal de máquina e não apenas de animal.”

315 Andrew Grant, History of Brazil, Londres, 1809, p. 151.

316 Página 56.

317 Página 64.

318 Geografia geral do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1889, p. 146.

 

 

Dizem que D. João VI quando chegou à Bahia em 1808 foi logo mandando iluminar a cidade: era “para o inglês ver”. Outros dizem que a frase célebre data dos dias de proibição do tráfico de escravos, quando no Brasil se votavam leis menos para serem cumpridas do que para satisfazerem exigências britânicas. Foi a versão colhida no Rio de Janeiro por Emile Allain que a apresenta como equivalente do francês “pour jeter de la poudre aux yeux”.357 De qualquer modo a frase ficou. E é bem característica da atitude de simulação ou fingimento do brasileiro, como também do português, diante do estrangeiro. Principalmente diante do inglês, em 1808, não mais o herege nem o “bicho” que era preciso salpicar de água benta, para se receber dentro de casa, mas, ao contrário, criatura considerada, em muitos respeitos, superior.

Sob o olhar desse ente superior, o brasileiro do século XIX foi abandonando muitos de seus hábitos tradicionais – como o de dançar dentro das igrejas no dia de São Gonçalo, por exemplo – para adotar as maneiras, os estilos e o trem de vida da nova camada de europeus que foram se estabelecendo nas nossas cidades. Desde as dentaduras postiças ao uso – até o contato maior com os ingleses quase insignificante – do pão e da cerveja.”

357 Émile Allain, Rio de Janeiro. Quelques données sur la capitale et sur l’administration du Brésil, 2ª ed., Rio de Janeiro-Paris, 1886, p. 147.

Afirma Pereira da Costa (Vocabulário pernambucano, cit.), a propósito da expressão “para inglês ver”, que sua origem é a seguinte: “Tocando na Bahia na tarde de 22 de janeiro de 1808 a esquadra que conduzia de Lisboa para o Rio de Janeiro a fugitiva família real portuguesa e não desembarcando ninguém pelo adiantado da hora, à noite, a geral iluminação da cidade, acompanhando a todas as suas sinuosidades, apresentava um deslumbrante aspecto. Extasiado e entusiasmado o príncipe regente D. João, ao contemplar do tombadilho da nau capitânia tão belo espetáculo, exclama radiante de alegria, voltando-se para a gente da Corte que o rodeava: ‘Está bem para o inglês ver’, indicando com um gesto o lugar em que fundeava a nau Bedford, da marinha de guerra britânica, sob a chefia do Almirante Jervis, de comboio à frota real portuguesa”.

 

 

No Brasil dos princípios do século XIX e fins do XVIII, a reeuropeização se verificou (perdoe o leitor os muitos mas inevitáveis “ão”) pela assimilação, da parte de raros, pela imitação (no sentido sociológico, primeiro fixado por Tarde), da parte do maior número; e também por coação ou coerção, os ingleses, por exemplo, impondo à colônia portuguesa da América – através do Tratado de Methuen, quase colônia deles, Portugal só fazendo reinar politicamente sobre o Brasil – e mais tarde ao Império, uma série de atitudes morais e de padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos brasileiros. Pelo menos com a rapidez com que foram seguidos pelas maiorias decisivas nessas transformações sociais.

A reconquista, porém, teve de seguir suas cautelas. De tomar suas precauções. Porque houve resistências, de ordem natural, umas, outras de ordem cultural. O clima, por exemplo, resistiu ao nórdico. E sob o favor do clima, a malária e a febre amarela agiram contra o europeu. À sombra das condições precárias de higiene, agiram contra ele a peste bubônica, a sífilis, a bexiga, o bicho-de-pé. Elementos, todos esses, de resistência antieuropeia; alguns de origem terrivelmente asiática ou africana. Operaram eles no sentido de moderar a reeuropeização do Brasil e de conservar o mais possível, no País, os traços e as cores extraeuropeias, avivadas durante séculos profundos de segregação.

Houve mesmo nativistas que se regozijaram com a ação violentamente antieuropeia da febre amarela. Febre terrível que, poupando o nativo, não perdoava o estrangeiro. Principalmente o louro, de olhos azuis, sardas pelo rosto.

Mas o estrangeiro louro insistiu em firmar-se em terra tão sua inimiga com um heroísmo que ainda não foi celebrado. Só visitando hoje alguns dos velhos cemitérios protestantes no Brasil – o do Recife ou o de Salvador ou o do Rio de Janeiro – que datam dos princípios do século XIX, e vendo quanta vítima da febre apodrecer por esses chãos úmidos e cheios de tapuru, debaixo de palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico, faz alguém ideia exata da tenacidade com que o inglês, para conquistar o mercado brasileiro e firmar nova zona de influência para o seu imperialismo, se expôs a morrer de febre tão má nesta parte dos trópicos. As inscrições se sucedem em uma monotonia melancólica: “James Adcock – architect of civil engineer who after nearly three years of residence died here of yellow fever in the 39th year of his age”; “in memory of Robert Short – fifth son of William Short of Harrogate – died of yellow fever – aged 19 years”; “in loving memory of my beloved husband Ernest Renge Williams who died of yellow fever – age 26...””

 

 

A parte estritamente médica das palavras do Dr. Aquino Fonseca – que, aliás, estudara medicina na França – tem o pitoresco das terminologias arcaicas; mas não lhe falta sua nota de bom senso. “Outrora os vestuarios” – dizia o dr. Aquino – “eram ligeiros e feitos com amplidão; e isto estava inteiramente em harmonia com o clima quente da cidade, e facilitava não só os movimentos respiratórios, e por consequencia a hematose, como vedava que se estabelecesse a transpiração, evitando por este modo que qualquer viração, tão frequente aqui, désse causa a sua suppressão, donde resultam males incontestáveis; mas as modas francezas, trazendo a necessidade de arrocho, para que se possam corrigir as formas irregulares de certos individuos ou fazer sobresahir as regulares, embaraçam o jogo respiratorio das costellas e diaphragma, e influem sobre a hematose; e os pannos espessos de lan, reduzindo os vestuarios a verdadeiras estufas, tornam os homens sempre dispostos a contrahir affecções do systema respiratorio, pela suppressão da transpiração, que por muitas vezes e com facilidade tem logar”.360 Daí, ao seu ver, o aumento alarmante da tuberculose coincidir com o período de reeuropeização ou europeização dos hábitos de comer e de vestir: ou com as modas francesas e inglesas de roupa a que se refere quase furioso.

No século XVIII – que foi, talvez, quanto aos costumes, o mais autônomo, o mais agreste, o mais brasileiro na história social do País – Vilhena rebatera as críticas de alguns viajantes europeus, com relação ao trajo solto, à vontade, chamado “á fresca”, dos brasileiros, quando na intimidade de suas casas. Mostrara que esse relaxamento, tão repugnante para quem vinha de climas mais frios, correspondia às condições de clima tropical da colônia.361 Luccock, crítico tão severo das nossas maneiras nos últimos tempos de vida propriamente colonial, associou o fato de as crianças andarem em casa nuas, algumas só de roupa de baixo “nothing but under linen garment”, os antigos sunga-nenens – ao clima quente, inimigo das roupas de pano grosso.362

Mas com a reeuropeização do País, as próprias crianças tornaram-se martirezinhos das modas europeias de vestuário. Os maiores mártires – talvez se possa dizer. As meninas, sobretudo. Os figurinos do meado do século XIX vêm cheios de modelos de vestidos para meninas de cinco, sete, nove anos, que eram quase camisinhas de força feitas de seda, de tafetá ou de “poil de chèvre”. Meninas de cinco anos que já tinham de usar duas, três saias, por cima das calçolas, as de baixo bordadas com “ponto de espinhos” e guarnecidas com franja Tom-Pouce. Ou então saias guarnecidas com três ordens de fofos. E não só excesso de saias: gorra de veludo preto. Botinas de pelica preta até o alto da perna. Penas de perdiz enfeitando a gorra.

Em vão clamavam os Aquino Fonseca, os Correia de Azevedo, anos mais tarde, os Torres Homem. Correia de Azevedo dizendo que no caso do menino brasileiro, o vestuário devia “apenas resguardar-lhe o corpo das variedades da temperatura”. Que as crianças, num país tropical, não podiam nem deviam “ser criadas nem à inglesa, nem à alemã, nem à russa”.363 Os pais brasileiros, principalmente nas cidades, não queriam saber dessas advertências de médicos esquisitos. Vestiam seus filhos ortodoxamente à europeia. Os coitados que sofressem de brotoejas pelo corpo, assaduras entre as pernas. A questão é que parecessem inglesinhos e francesinhos.

Mas não foi só o vestuário da criança: a educação toda reeuropeizou-se, ao contato maior da colônia e, mais tarde, do Império, com as ideias e as modas inglesas e francesas. E aqui se observe um contraste: o contato com as modas inglesas e francesas operou, principalmente, no sentido de nos artificializar a vida, de nos abafar os sentidos e de nos tirar dos olhos o gosto das coisas puras e naturais; mas o contato com as ideias, ao contrário, nos trouxe, em muitos pontos, noções mais exatas do mundo e da própria natureza tropical. Uma espontaneidade que a educação portuguesa e clerical fizera secar no brasileiro.

A monocultura, devastando a paisagem física, em torno das casas, o ensino de colégio de padre jesuíta devastando a paisagem intelectual em torno dos homens, para só deixar crescer no indivíduo ideias ortodoxamente católicas, que para os jesuítas eram só as jesuíticas, quebrara no brasileiro, principalmente no da classe educada, não só as relações líricas entre o homem e a natureza – rotura cujos efeitos ainda hoje se notam em nossa ignorância dos nomes de plantas e animais que nos cercam e na indiferença pelos seus hábitos ou pelas suas particularidades – como a curiosidade de saber, a ânsia e o gosto de conhecer, a alegria das aventuras de inteligência, de sensibilidade e de exploração científica da natureza. Essa curiosidade, esse gosto, essa alegria nos foram comunicados nos fins do século XVIII, e através do XIX, pelos enciclopedistas e pelos revolucionários franceses e anglo-americanos. Através do século XIX, também por mestres franceses e ingleses que aqui estabeleceram colégios, para grande indignação dos padres.

Esses mestres, como aqueles enciclopedistas, fizeram ao brasileiro um bocado de mal, comunicando-lhe um liberalismo falso; mas fizeram-lhe também algum bem. Abriram-lhe nova zona de sensibilidade e de cultura, refazendo um pouco da espontaneidade intelectual, em tantos pontos abafada, não tanto pelo Santo Ofício, como pelo ensino uniformizador dos padres da Companhia. Ensino uniformizador útil, utilíssimo à integração social do Brasil, como já foi acentuado em capítulo anterior; mas que nos retardou e quase nos feriu de morte a inteligência, a capacidade de diferenciação, de iniciativa, de crítica, de criação.

Nada mais amolecedor da inteligência que o ensino exclusivo ou quase exclusivo do latim ou de qualquer língua morta. Foi o ensino que se desenvolveu entre nós sob a influência dos colégios de padre.

À proporção que o ensino dos jesuítas foi criando pelas cidades da colônia elitezinhas de letrados, quase todos simples latinistas untuosos, seráficos, de livro de missa no bolso – dos quais, entretanto, se desgarraram alguns temperamentos agrestes como o de Gregório de Matos – a leitura dos livros latinos tornou-se a única leitura nobre e digna: Virgílio, Tito Lívio, Horácio, Ovídio. Quem lesse Diana ou alguma novela ou romance em língua popular tinha o olhar desconfiado do Santo Ofício e do jesuíta dentro de casa. O único prazer intelectual dos bacharéis e mestres em artes formados pelos jesuítas era ler e decorar os velhos poetas latinos. Sabendo de cor trechos enormes dos autores clássicos alguns rivalizavam com os padres no conhecimento da língua oficial da Igreja que, dando-lhe acesso a tão grandes riquezas antigas, segregava-os da literatura viva, moderna, atual.

Também nos seminários fundados no Rio de Janeiro nos princípios do século XVIII e no de Mariana e no de Olinda – estabelecimentos de orientação pedagógica já diversa da dos jesuítas e até em antagonismo com o ensino da S. J. – continuou-se a dar importância quase exclusiva ao estudo do latim, embora no de Olinda cuidando-se já do estudo das ciências e das letras vivas. Sistematizado pelo padre Pereira na sua gramática – o Novo Método – e começando com a leitura das Fábulas de Fedro, o ensino do latim ia até Ovídio e Horácio. Era uma disciplina severa; e teria sido ótimo, se não fosse exclusivo. O aluno atravessava a fase mais dura das declinações e dos verbos sob a vara de marmelo e a palmatória do padre-mestre. Mas acabava não sabendo escrever um bilhete, senão com palavras solenes e mortas; e evitando as palavras vivas até na conversa.

A retórica se estudava nos autores latinos – lendo Quintiliano, recitando Horácio, decorando as orações de Cícero. Lógica e Filosofia, também: eram ainda os discursos de Cícero que constituíam os elementos principais de estudo. A filosofia era a dos oradores e a dos padres. Muita palavra e o tom sempre o dos apologetas que corrompe a dignidade da análise e compromete a honestidade da crítica. Daí a tendência para a oratória que ficou no brasileiro, perturbando-o tanto no esforço de pensar como no de analisar as coisas, os fatos, as pessoas. Mesmo ocupando-se de assuntos que peçam a maior sobriedade verbal, a precisão, de preferência ao efeito literário, o tom de conversa em vez do de discurso, a maior pureza possível de objetividade, o brasileiro insensivelmente levanta a voz e arredonda a frase como se estivesse prestando exame de retórica em colégio de padre. Efeito do muito latim; da muita retórica de padre de que se impregnou entre nós o ensino; de que se deixou marcar a formação intelectual dos homens.”

360 Joaquim de Aquino Fonseca, cit. por Otávio de Freitas, A tuberculose em Pernambuco, Recife, 1896.

361 Vilhena, Cartas, cit., p. 89.

362 Luccock, op. cit., p. 127.

363 Para Correia de Azevedo o Brasil devia fugir do “moderno francesismo”, inclusive em relação ao vestuário das crianças: “O mesmo brasileiro, em consequência do clima e dos acidentes das localidades em que habita, tem de seguir uma higiene à parte, só para ele formulada. Nossas crianças não podem e não devem ser criadas nem à inglesa, nem à alemã, nem à russa [...]. O seu vestuário deve apenas resguardar-lhe o corpo das variedades da temperatura” (“Concorrerá o modo por que são dirigidos entre nós a educação e a instrução da mocidade para o benéfico desenvolvimento físico e moral do homem?”, Anais Brasilienses de Medicina, Rio de Janeiro, abril de 1872, tomo XXIII, p. 435).

 

 

“Se, em grande número de casos, a cristianização ou a europeização de ameríndios e de africanos e de seus descendentes foi obra de superfície, não os arrancando senão aparentemente de seus hábitos de “raças inferiores” transformadas em classes servis, noutros casos resultou em fazer de descendentes de selvagens ou primitivos uns quase fanáticos das ortodoxias – a política, a moral e a religiosa – por eles mal assimiladas dos primeiros europeus. Nessas ortodoxias – talvez mais por fidelidade ou apego à região mais propícia aos homens de cultura primitiva e de economia antes rústica que urbana, isto é, o senão, que por motivos principalmente de “raça” ou de classe – alguns grupos se fixaram com unhas e dentes, contra desvios ou invasões dos próprios brancos do litoral. Daí o seu modo nem sempre lógico de participação em lutas civis travadas no Brasil, depois de já aqui estabelecidas formas patriarcais de convivência. Em vez de investirem contra as ordens estabelecidas pelos brancos, a atitude de caboclos e homens de cor foi, mais de uma vez, a de defesa de valores europeus ortodoxos, ou já tradicionais, no Brasil. Valores que julgavam ameaçados por inovações.

Não foi outro o modo de se justificarem os cabanos e os papa-mel do Norte – grande número dos quais, sertanejos e matutos com sangue ameríndio, a quem se juntaram negros e pardos de engenhos, atraídos pela possibilidade de se libertarem – de sua guerra de morte a liberais, progressistas e inovadores dos sobrados do litoral ou das cidades. “Os liberaes não querem mais desigualdade, quando desde que Christo se humanisou que ha desigualdade”, diziam os papa-mel de Alagoas em resposta à proclamação legalista de 11 de setembro de 1832. Justificavam-se assim esses homens quase de mucambos do seu monarquismo absolutista e do seu patriarcalismo severo e a seu modo hierárquico de rústicos. E acrescentavam: “querem os liberaes que os filhos não obedeçam aos paes, os sobrinhos aos tios, os afilhados aos padrinhos: querem, si agradar, a filha dos outros, carregal-a e da mesma sorte a mulher mais bonita... o mais a proporção como estão obrando contra a lei de Nosso Senhor Jesus Christo. Finalmente não querem obedecer ao monarcha e o mesmo Deus disse ao rei que quando os povos lhe faltassem com a obediencia que elle os destruirá com peste, fome e guerra”.412

Ora, desse movimento a um tempo patriarcalista e monarquista, de homens rústicos contra liberais e progressistas das cidades, não participaram só pequenos agricultores e criadores de gado, dos quais muitos, descendentes de caboclos; nem apenas negros e homens de cor, escravos de engenhos da região – região de engenhos pequenos. Também participaram dele ameríndios recém-civilizados como os do Jacuípe, com seu capitão-mor,413 envolvidos na luta – luta de absolutistas contra constitucionalistas, de restauradores de D. Pedro I contra nacionalistas partidários de Pedro II – talvez por solidariedade com a região ou por “consciência de espécie” regional – sertanejos contra o litoral – talvez por vago sentimento de lealdade à monarquia, sabido como é que, no Brasil, os reis de Portugal deixaram bem estabelecida a tradição de ser a Coroa amiga dos indígenas, em particular, e das gentes de cor, em geral. E na verdade mais de uma vez defendeu a Coroa as gentes de cor, contra os interesses dos particulares ricos ou contra a exploração ou os excessos de religiosos poderosos. Contra a própria discriminação de raça ou de cor da parte de jesuítas contra pardos.

Da crise de Pedra Bonita – onde sertanejos de Pajeú das Flores, na província de Pernambuco, na sua maioria caboclos, dominados por um místico que foi uma espécie de esboço traçado a sangue do fanático ou monge de Canudos, chegaram ao sacrifício humano414 – não nos esqueçamos de que foi a seu modo sebastianista: expressão de sentimento ou desejo de regresso à monarquia absoluta e, ao mesmo tempo, de repúdio àquelas formas dominantes de grande propriedade – a das casas-grandes – que não se conciliavam com a independência das “casas de caboclos”, donos apenas de cabras de leite. Antes de haver no Brasil uma “guarda negra”, de defesa à monarquia paternalista ou maternalista dos Braganças e composta de africanos e descendentes de africanos – capoeiras, capadócios, capangas – que grandemente dificultaram a ação antimonárquica de bacharéis brancos como Silva Jardim ou a de propagandistas da República mestiços como Saldanha Marinho e Glycerio, houve caboclos e descendentes de caboclos, mestiços e cafuzos que, em grupos numerosos, se puseram ao lado das instituições mais antigas para aqui transplantadas da Europa – mesmo as mais duramente hierárquicas, como a monarquia absoluta ou a forma mais severamente patriarcal de família – e contra as inovações, mesmo as igualitárias: igualitarismo que, praticado, tenderia a beneficiá-los. É que, como raças subjugadas, se sentiam necessitados menos de liberdades abstratas que da proteção efetiva que reis e papas pareciam ser os mais aptos a lhes conceder contra senhores brancos e padres católicos desabusados no exercício, ou na perversão, do domínio econômico, político ou religioso sobre as gentes de cor. Dos reis e dos papas, na verdade, é que mais de uma vez tiveram os nativos do Brasil e mesmo os negros vindos da África, proteção efetiva contra abusos de particulares e até de religiosos; e essa proteção é natural que tenha criado nos ameríndios e nos seus descendentes e nos negros e descendentes de negros sentimentos de classe capazes de superar os de raça: vermelhos, pretos ou pardos eram tão filhos de Deus e de Maria Santíssima como qualquer branco; vermelhos ou pardos eram tão súditos del-Rei como qualquer português. Nem a colonização portuguesa do Brasil – já o acentuamos em outras páginas – se fez sobre outra base: a da importância capital ser a do status religioso e não a do de raça; a do status político e não a do de cor.

O que desde cedo resultou na transferência de valores e sentimentos, em outras áreas presos principalmente à condição de raça, para a condição, quase pura, de classe: o homem de cor, civilizado e cristianizado, podia ser socialmente tão português como qualquer português e tão cristão como qualquer cristão, desde anos remotos tendo se aberto aos ameríndios o próprio sacerdócio, franqueado também, em casos excepcionais, a descendentes de africanos como o grande Antônio Vieira; desde anos remotos tendo se aberto aos dois elementos extraeuropeus, por imposição de necessidades de defesa militar da colônia, a própria carreira das armas, na qual podiam chegar a postos elevados da confiança especial del-Rei. O caso de Camarão e o de Henrique Dias, entre outros.

E tendo sido esta a tendência, em nosso país, desde dias remotos, é natural que as gentes de cor venham se comportando menos como duas raças oprimidas pela branca, que vária ou diversamente, segundo status de cada indivíduo ou de cada família na sociedade (classe) e no espaço físico-social ou físico-cultural (região). Pois não devemos nos esquecer da força com que, entre nós, a situação regional do indivíduo ou da família a tem impelido para integrar-se, independente da cor, da raça, da classe, e da própria condição de naturalizado ou de nato, em culturas, ou configurações regionais de cultura, como a sertaneja, a caipira ou a gaúcha. Que o diga, além dos exemplos já invocados, o de Canudos onde se reuniram, em torno do conselheiro, indivíduos e famílias de procedências e situações étnicas diversas, cuja “consciência de espécie” era principalmente a de sertanejos estagnados em sua concepção ao mesmo tempo pastoril e patriarcal de vida, em fase remota de transição de culturas primitivas para a europeia e católica. Que o diga, por outro lado, a situação do ameríndio e do próprio negro nas estâncias rústicas do Rio Grande do Sul, onde, segundo esclarecido historiador moderno da região, “o negro foi mais companheiro do que servo”.415 Situação que se acentuou quando o negro, numa área brasileira eminentemente militar como a sul-riograndense pastoril, encontrou na atividade bélica, ou no serviço de guerra a pé e a cavalo, o caminho para sua elevação social. O mesmo caminho que encontrara no Nordeste do século XVII, isto é, durante os dias de uma guerra de efeitos confraternizantes sobre portugueses e brasileiros de todas as classes, raças e até regiões – pois os próprios paulistas participaram da luta – reunidos contra o inimigo comum, que era o invasor holandês.416

412 M. Lopes Machado, “O 14 de abril de 1832, em Pernambuco”, Rev. do Inst. Arq. Hist. Geog. Pernambucano, XXXIII, p. 62. Para esse historiador os insurretos de 1832 deram provas de “heroicidade, de amor ao lar e à família...” (p. 65) supondo “defender a família, o lar e a religião” (p. 62). Foram uma espécie de antecipação e, ao mesmo tempo, de miniatura de Canudos: “Dos píncaros mais agrestes, dos alcantis mais escabrosos, das brenhas mais enredadas daqueles lugares, caíam de improviso sobre as avançadas do governo, ou os atraíam a veredas enguerrilhadas para os destruir e aniquilar e quando surpreendidos todos ou separados na refrega, morriam motejando, sem nunca se renderem” (p. 61). Note-se, ainda, que, “dividiam-se em bandos sem disciplina militar mas obedientes ao chefe” (p. 61), isto é, ao chefe de cada bando. São muitas as semelhanças entre o movimento chamado dos “cabanos”, no Nordeste, e os quase contemporâneos que ocorreram no Maranhão (“Balaiada”) e no extremo Norte do Império (“Cabanagem”), o primeiro estudado pelo Sr. Astolfo Serra no seu ensaio A Balaiada, Rio de Janeiro, 1946, o segundo pelo Sr. Ernesto Cruz, no seu trabalho Nos bastidores da Cabanagem, Belém, 1942.

413 Ibid., p. 63.

414 Note-se que em Pedra Bonita a superstição dominante foi a de que ali, depois do sacrifício de certo número de inocentes, se desencantaria um reino “onde o proletário [...] ressurgiria nobre, rico e poderoso”, como lembra o conselheiro Tristão de Alencar Araripe em prefácio a Fanatismo religioso – Memória sobre o reino encantado na comarca de Vila Bela, de Antônio Ático de Sousa Leite, 2ª edição por Solidônio Ático Leite, Juiz de Fora, 1898, p. 8. E pormenor significativo: além do sacrifício de criaturas humanas, houve “o sacrifício de cães, verdadeiros molossos, que no dia do grande evento levantar-se-iam como valentes e indômitos dragões para devorar os proprietários” (p. 9).

415 Dante de Laytano, O negro no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1941, p. 8.

416 Em seu ensaio O banguê nas Alagoas (Rio de Janeiro, 1949), o Sr. Manuel Diegues Júnior recorda que na luta contra os holandeses o próprio escravo negro “acompanhou o senhor de engenho no seu sofrimento e na sua reação.” E acrescenta: “Moradores e cabras de engenho, gente do eito e da bagaceira, pessoal da moenda e da casa-grande, juntaram-se todos no mesmo sentimento de confraternização com os proprietários rurais, reagindo contra os holandeses”. Em comentário ao mesmo ensaio, já salientamos em trabalho publicado em Cultura, Rio de Janeiro, no I, setembro-dezembro de 1948, que o patriarcado no Brasil “não só tornou o senhor dependente do escravo e o escravo dependente do senhor como criou entre senhor e escravo, nos dias normais e não apenas nos de guerra, sentimentos de solidariedade mais de uma vez superiores aos de classe ou de raça de cada um daqueles elementos. Donde podermos concluir que tais elementos nem sempre foram antagônicos mas, ao contrário, sob mais de um aspecto, simbióticos.” E mais: “...não devemos nos esquecer de que nas Alagoas, como noutras partes do Brasil, a tendência dominante foi para o escravo sentir-se membro da família de que era escravo, a ponto de identificar-se com seus sentimentos, sua linguagem, seus gestos, seus deuses domésticos, suas devoções e seus símbolos. Sabe-se que houve escravos, por este vasto Brasil, de tal modo identificados com a política de seus senhores que, homens feitos, usavam, como os senhores, o cavanhaque ou a pera que se tornara insígnia dos membros do Partido Conservador” (p. 121).

Sobrados e mucambos (Parte II), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

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Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I



“Interessante para o leitor brasileiro o capítulo “Índole de la economía colonial” que dedica à interpenetração de feudalismo e de capitalismo na economia colonial da América Latina, inclusive na do Brasil, o Sr. Sérgio Bagu, no seu recente Economía de la sociedad colonial – Ensayo de historia comparada de la América Latina, Buenos Aires, 1949. Para esse economista “hay una etapa en la historia capitalista en la cual renacen ciertas formas feudales con inusitado vigor: la expansión del capitalismo colonial”.

Foi o que sucedeu, de modo geral, na América Latina, e no Brasil, em particular, onde os engenhos tornaram-se a base feudal da sociedade colonial, com sobrevivências na imperial: a interpenetração de feudalismo e capitalismo. Exigindo o escravo, o feudalismo brasileiro apoiou-se em um tráfico que o Sr. Bagu considera, com razão, do ponto de vista estritamente econômico em que se coloca, de base capitalista.

Mesmo, porém, separando-se, um tanto arbitrariamente o aspecto econômico do todo social, é preciso reconhecer-se, como reconhece o Sr. Bagu, que o chamado “capitalismo colonial presenta reiteradamente en los distintos continentes ciertas manifestaciones externas que lo assemejan al feudalismo.” Daí o seu “perfil equívoco”, como escreve à página 143. O que é inegável é que, através do comércio internacional, que madrugou entre nós, a América Latina contribuiu, como contribuiu a África, para “el deslumbrante florecimento del capitalista europeo”. Mas sem deixarem de ser, em várias áreas, feudalistas a seu modo.

Equívoca na sua economia a ponto de parecer ora feudal, ora capitalista, a sociedade brasileira da época colonial, e até certo ponto da imperial, foi, nas suas formas, predominantemente feudal: um neofeudalismo penetrado por influências capitalistas com as quais chegou a entrar em “conflitos armados”, como reconhece o Sr. Bagu, para emergir, desses conflitos, uma sociedade complexa em que – como já salientamos mais de uma vez – “mascates” como Fernandes Vieira tornaram-se, pelo casamento, senhores feudais, imitadas as formas feudais de vida dos elementos economicamente vencidos pelos economicamente vencedores. Aspecto que tem escapado à observação dos estudiosos menos profundos do assunto.

Sobre as revivescências de feudalismo, veja-se principalmente o estudo de Wilhelm Röpke, Die Gesellschafterkrisis der Gegenward (1942), traduzido ao espanhol e publicado em Madri em 1947 sob o título La crisis social de nuestro tiempo. Salienta o professor Röpke à página 145 do seu ensaio que “os característicos feudal-absolutistas” de organização social podem apresentar-se em diferenças extremas sobre poderosos e fracos que correspondem a razões extraeconômicas, explicando-se assim, segundo ele, a sobrevivência do feudalismo dentro do próprio capitalismo.

Em 1822, em Memórias econopolíticas sobre a administração pública no Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1823), escrevia à página 4 da “Primeira memoria” “Hum portuguez” que a organização colonial no Brasil “não diferia do feudalismo” senão na substituição dos “pequenos senhorios” pelo “pretos escravos” que lavravam para si e não apenas para os senhores. “Hum portuguez” percebia que dentro das mesmas formas podem variar os conteúdos, sem alteração sociológica das formas.”

 

 

“Mas a educação do jesuíta, enquanto pôde fazer sombra à autoridade do senhor da casa-grande sobre o menino, foi a mesma que a doméstica e patriarcal nos seus métodos de dominação, embora visando fins diversos dos patriarcais. A mesma no empenho de quebrar a individualidade da criança, visando adultos passivos e subservientes. Passivos perante o Senhor do Céu e da Terra e a Santa Madre Igreja e não tanto diante do pai nem da mãe simplesmente de carne.

Daí a tática terrível, porém sutil, dos educadores jesuítas, de conseguirem dos índios que lhes dessem seus culumins, dos colonos brancos que lhes confiassem seus filhos, para educarem a todos nos seus internatos, no temor do Senhor e da Madre Igreja, lançando depois os meninos, assim educados, contra os próprios pais. Tornando-os filhos mais deles, padres, e dela, Igreja, do que dos caciques e das mães caboclas, dos senhores e das senhoras de engenho ou de sobrado.

Os padres esforçaram-se em fazer dos meninos, o mais depressa possível, homens ou adultos, que fizessem frente ao caciquismo das tabas e ao patriarcalismo dos velhos das casas-grandes. Regozijavam-se diante dos meninos mais precoces que, logo cedo, amadurecidos à força, cantassem em latim, pregassem a Paixão, discutissem teses, parecessem aos pais criaturas superiores, sem nenhum jeito ou modo de menino. Visando, ao que parece, aquele domínio social, estimularam a precocidade literária, que se tornou tão caraterística do menino brasileiro, no regime de vida patriarcal de nossa formação.

Uma carta enviada do Espírito Santo em 1562, “para o padre doctor Torres por commissão do padre bras Lourenço” refere o caso de “hu Indiosinho da Baya”, menino de seus treze anos, que já pregava a Paixão em português a gente de fora; e com tanto fervor que movia muito os ouvintes. Desses alunos precoces, aliados dos padres contra os próprios pais, deve ter havido também brancos ou mestiços. As cartas dos jesuítas82 constituem precioso documentário do esforço dos padres no sentido de subtraírem os meninos mais inteligentes ao domínio dos pais, em idade ainda angélica.

Essa precocidade era conseguida não só por uma série de estímulos à vitória do indivíduo mais brilhante, e não do mais profundo em coisas intelectuais – estímulos muito caraterísticos da antiga pedagogia jesuítica: a maior responsável, talvez, pelas escolas campos de batalha, com os alunos desafiando-se em latim para as competições em que vencia justamente o melhor polemista, o argumentador de palavra mais fácil e de memória mais fértil – como também à custa de vara. A vara, já o bom do Anchieta a considerava a melhor pregação entre caboclos. Deve ter sido também o auxiliar mais poderoso dos padres-mestres, nos primeiros colégios que a Companhia fundou no Brasil.

Do irmão Antônio Rodrigues, tutor em um desses primeiros colégios, sabe-se por uma carta de Antônio Blasquez, que era tão camarada dos alunos que andava no meio deles pescando pelas praias; e quando os meninos tinham vergonha de dizer a doutrina “lh’a tirava elle a seu exemplo dizendo que pois elle era mais antigo e como pae de todos, e com isto não tinha pejo, quanto mais elles que eram ainda moços”; mas fosse algum interno comportar-se mal durante as aulas ou exercícios de religião que Rodrigues “lhe ia á mão, e lhe fazia estar quedo”.

Se eram assim os irmãos, imaginem-se os padres. Representantes do Senhor e ensinando gramática e latim para maior glória de Deus, eles não deixavam que o ensino sofresse o menor desrespeito da parte de meninos desatentos ou de estudantes vadios. As aulas tinham alguma coisa de religioso naqueles primeiros colégios de padres, alguns funcionando – o da Bahia, pelo menos – em sobrado que Gabriel Soares chama “sumptuoso”: casarão de pedra e cal com todas as escadas, portas e janelas de pedraria com varanda; “grandes dormitorios e muito bem acabados, parte dos quaes ficão sobre o mar com grande vista”; “cubiculos mui bem forrados, e os claustros por baixo lageados com muita perfeição”; grandes cercas até o mar “com agua muito boa por dentro”.83

Na arquitetura escolar parece ter se antecipado entre nós a arquitetura urbana mais grandiosa que não foi assim a propriamente eclesiástica – catedral ou igreja – nem a puramente civil: as casas de governo, as casas de Câmara, as casas chamadas de função. Nem mesmo os grandes sobrados dos ricos. Os colégios dos padres, como o da Bahia, com seus cubículos para 80 religiosos, seus dormitórios para 200 meninos, foram talvez as massas mais imponentes de edificação urbana no Brasil dos primeiros séculos coloniais. Urbana e talássica. Alguns daqueles edifícios mais grandiosos, como o próprio colégio dos jesuítas na Bahia, eram sobrados “com humas terracenas onde recolhem o que lhe vem embarcado de fora”.84

O que lhes vinha por mar era quase tudo: sementes, ferramentas, livros. Tudo da Europa. E drogas de todo o mundo. Havia sempre um Antônio Pires pedindo que lhe mandassem de Portugal ferramentas; um Vicente Rodrigues pedindo que lhe enviassem sementes; mas principalmente padres Nóbrega, padres Navarros, padres-mestres, gramáticos, teólogos, insistindo nos livros cuja falta não se cansavam de lamentar. “Porque nos fazem muita mingua para as duvidas que cá ha que todas se preguntam a mim”, escrevia em 1549 o padre Nóbrega ao padre-mestre Simão. E muitas dessas coisas essenciais – sementes, ferramentas, livros – não chegaram ao Brasil pelo desembarcadouro geral que havia nas cidades, mas pelas tais terracenas particulares dos colégios de padres.

Nesses sobradões de pedra e cal, em que se expandiram as primeiras escolas dos jesuítas, algumas tão miseráveis nos seus começos – a de Piratininga, por exemplo, mucambo de palha com o pobre do padre Anchieta magro, corcunda, um ar de velho aos trinta anos, mal se podendo mover entre os meninos, um frio horrível a torturá-lo e aos pequenos de manhã cedo, todos tiritando de frio, e o próprio padre tendo de escrever, um a um, os livros para os alunos estudarem, em vez de recebê-los impressos da Europa, em caixotes, nas terracenas dos sobrados; nesses enormes sobrados de pedra e cal, prepararam-se no Brasil os primeiros letrados, que seriam os primeiros bacharéis, os primeiros juízes, padres, desembargadores, homens mais da cidade que da “roça” ou da “mata”. Muito lhe deve a cultura literária com que o Brasil dos primeiros tempos coloniais adornou-se precocemente.

Os organizadores ou consolidadores da nossa vida civil e intelectual, os revolucionários da Bahia e de Vila Rica, os poetas, oradores, escritores dos tempos coloniais foram quase todos alunos de jesuítas. O gosto pelo diploma de bacharel, pelo título de mestre, criaram-no bem cedo os jesuítas no rapaz brasileiro. No século XVI já o brasileiro se deliciava em estudar a retórica e latim para receber o título de bacharel ou de mestre em artes.

Já a beca dava uma nobreza toda especial ao adolescente pálido que saía dos “pátios” dos jesuítas. Nele se anunciava o bacharel do século XIX – o que faria a Abolição e a República, com a adesão até dos bispos, dos generais e dos barões do Império. Todos um tanto fascinados pelo brilho dos bacharéis.

Mas toda aquela cultura precoce e um tanto tristonha, saliente-se mais uma vez que os jesuítas a impuseram aos filhos mais inteligentes dos colonos e aos culuminzinhos arrancados às tabas, à força de muita disciplina e de muito castigo. Tradição que se perpetuaria nos colégios de padre até os fins do século XIX.

Os jesuítas – repita-se – deram no século XVI valor exagerado ao menino inteligente, com queda para as letras, tornando-o mesmo criatura um tanto sagrada aos olhos dos adultos, que se admiravam de ver os filhos tão brilhantes, tão retóricos, tão adiantados a eles em conhecimentos. Mas essa valorização artificial era conseguida, sacrificando-se na criança sua meninice, abafando-se sua espontaneidade, secando-se antes de tempo sua ternura de criança. E por meio de castigos e privações é que, mais tarde, os outros padres, também mestres de meninos, tornaram seus colégios ainda mais sombrios que os da S. J. Os jesuítas em parte falharam na sua brava oposição ao sistema patriarcal das casas-grandes: aos seus excessos de absorção do filho pelo pai, do indivíduo pela família. Mas esses outros colégios vieram no momento certo de concorrerem para o declínio do pátrio poder no Brasil. Ou para a sua desintegração em benefício do maior poder da Igreja.”

82 São várias as cartas dos jesuítas, escritas no século XVI, que revelam o esforço dos padres no sentido de oporem ao poder patriarcal absoluto dos pais a superioridade moral e intelectual dos meninos, educados por eles, padres, nos seus colégios, que foram, naquele século e mesmo no seguinte, sistema rival ao formado pelos patriarcas.

83 A descrição do colégio levantada pelos jesuítas na capital da Bahia, feita por Gabriel Soares, mostra que a arquitetura dos colégios de padres – padres, ao nosso ver, decididos, desde o início, a enfrentarem, como rivais, o poder supremo dos pais de família e a reduzirem-no em benefício da Santa Madre Igreja – foi, para a época, monumental, mesmo em comparação com as grandes casas-grandes patriarcais como a da Torre. Diz, com efeito, Gabriel Soares: “E occupa este terreiro e parte da rua da banda do mar um sumptuoso collegio dos padres da Companhia de Jesus [...]. Tem este collegio grandes dormitorios e muito bem acabados, parte dos quaes ficão sobre o mar com grande vista; cuja obra é de pedra e cal, com todas as escadas, portas e janelas de pedrarias, com varandas e cubiculos mui bem forrados, e os claustros por baixo lageados com muita perfeição [...]” (Gabriel Soares de Sousa, Notícia do Brasil, São Paulo, s. d., I, p. 260).

84 É ainda de Gabriel Soares de Sousa a informação: “[...] o qual collegio tem grandes cercas até o mar, com agua muito boa por dentro, e ao longo do mar humas terracenas onde recolhem o que lhe vem embarcada de fora”. (Ibid., I, p. 260: Terracenas informa o anotador da edição, professor Pirajá da Silva, serem “tulhas, celeiros ou armazéns à beira do rio ou perto do cais”, que completavam, então, as casas-grandes e sobrados mais importantes.)

 

 

“Tollenare achou no seminário de Olinda certo aspecto de liceu francês – dos departamentais, não dos metropolitanos – com alunos que se destinavam não só às ordens sacras, mas a outras carreiras: rapazinhos desejosos de fazer os estudos de Humanidades; e estudando não só latim e filosofia, mas matemáticas, física, desenho. Era a orientação de Azeredo Coutinho que assim rompia com os restos da tradição jesuítica de ensino colonial.

Já outra era a fisionomia dos colégios que pela mesma época – fins do século XVIII, princípios do XIX – substituíram no Rio de Janeiro as antigas escolas dos jesuítas. Luccock, pelo menos, teve impressão má do seminário de São Joaquim. E um dos aspectos que mais o impressionaram foi o atraso com relação às ciências: o ensino era ainda todo literário e eclesiástico. Jesuiticamente literário. Outro aspecto que o horrorizou foi a tristeza dos meninos. Meninos calados, doentes, de olhos fundos.

Era a precocidade. Era a opressão da pedagogia sádica, exercendo-se sobre o órfão, sobre o enjeitado, sobre o aluno com o pai vivo mas aliado do mestre, no esforço de oprimir a criança. Todos – o pai e o mestre – inimigos do menino e querendo-o homem o mais breve possível. O próprio menino, inimigo de si mesmo e querendo ver-se homem antes do tempo.

É bem expressiva a alcunha que o povo do Rio de Janeiro pôs nos meninos de São Joaquim: carneiros. Carneirinhos. Calados, olhos tristes, sem vontade própria, eram mesmo uns carneiros. E o trajo ainda lhes dava mais o ar de carneiros: uma batina branca com uma cruz vermelha no peito; um cinto de cadarço preto.

No tempo do Império, passada já a época do colegial andar de batina, os meninos de colégio continuaram meninos tristes, agora de sobrecasaca preta, roupa de homem, alguns já viciados no fumo, diz o padre Gama que até no rapé. O ensino nos colégios menos eclesiástico, mas a vida de internato ainda triste. E a tendência da pedagogia, ainda a colonial, de amadurecer a criança à força e animar a precocidade. O próprio D. Pedro II foi um precoce que aos quinze anos já era imperador, cercado de ministros provectos, de titulares de barba longa entre os quais, ele, logo que pôde, apareceu também com grande barba loura a escorrer-lhe pelo peito.”

 

 

“A transição do patriarcalismo absoluto para o semipatriarcalismo, ou do patriarcalismo rural para o que se desenvolveu nas cidades, alguém já se lembrou de comparar à transição da monarquia absoluta para a constitucional. A comparação é das melhores e abrange alguns dos aspectos mais característicos do fenômeno jurídico, tanto quanto do moral e social, daquela transição. (...)

O absolutismo do pater famílias na vida brasileira – pater famílias que na sua maior pureza de traços foi o senhor de casa-grande de engenho ou de fazenda – foi se dissolvendo à medida que outras figuras de homem criaram prestígio na sociedade escravocrática: o médico, por exemplo; o mestre-régio; o diretor de colégio; o presidente de província; o chefe de polícia; o juiz; o correspondente comercial. À medida que outras instituições cresceram em torno da casa-grande, diminuindo-a, desprestigiando-a, opondo-lhe contrapesos à influência: a Igreja pela voz mais independente dos bispos, o governo, o banco, o colégio, a fábrica, a oficina, a loja. Com a ascendência dessas figuras e dessas instituições, a figura da mulher foi, por sua vez, libertando-se da excessiva autoridade patriarcal, e, com o filho e o escravo, elevando-se jurídica e moralmente. Também o casamento de bacharel pobre ou mulato ou de militar plebeu com moça rica, com branca fina de casa-grande, com iaiá de sobrado, às vezes prestigiou a mulher, criando entre nós – já o acentuamos – uma espécie de descendência matrilinear: os filhos que tomaram os nomes ilustres e bonitos das mães – Castelo Branco, Albuquerque e Melo, Rocha Wanderley, Holanda Cavalcanti, Silva Prado, Argôlo, Osório – e não os dos pais. O elemento de decoração social não podia deixar de repercutir moral ou psicologicamente, em tais casos, a favor da mulher.”

 

 

“O fato, alegado por Proudhon, de que a mulher nem a roca inventou, não tem a significação que à primeira vista parece ter para justificar teorias de “inferioridade” do sexo feminino, tão frágeis como a maior parte das teorias de “inferioridade” da raça africana ou das “raças de cor”. Explica-o, em grande parte, o constrangimento em que viveu o sexo chamado fraco durante a fase da indústria doméstica, correspondente ao patriarcalismo. O homem, pelo seu domínio sobre a cultura acumulada dentro de sistemas de civilização masculinos, tem desfrutado – salientam os antropólogos e os sociólogos – melhores oportunidades de expressão e de realização cultural. Quase o mesmo caso das raças consideradas superiores, cuja maior riqueza de expressão ou de realização cultural se prende, pelo menos até certo ponto, a melhores oportunidades históricas de acumulação de cultura pelo contato, pela imitação, pela assimilação.”

 

 

“Em 1865, o médico Manuel da Gama Lobo observava que a alimentação dos escravos – e podia acrescentar que a dos senhores também, embora em menor escala – variava não só das cidades para as fazendas, como das regiões do açúcar e do café para as de relativa variedade de produção: Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Pará, Amazonas. Nas províncias de monocultura, cuja população – principalmente a dos mucambos – raramente comia carne e peixe, eram mais frequentes os abortos; comuns as úlceras crônicas e a cegueira noturna. Naquelas de produção mais variada onde até fruta entrava na dieta dos negros em quantidade apreciável, as moléstias pareciam mais raras, a reprodução abundante, a duração de vida mais longa.199

Muita gente imagina que a alimentação nas casas-grandes de engenho era sempre superior à dos sobrados da cidade. Mas já sugerimos que não. Muito sobrado recebia da Europa uma variedade de alimentos finos que faltavam à mesa patriarcal dos engenhos e das fazendas menos opulentas. E a esses alimentos finos podiam juntar frutas e legumes dos seus próprios sítios ou quintais, consumidos também pelos negros das senzalas urbanas e suburbanas.

Quanto a esses negros das senzalas, as evidências, ou pelo menos os indícios são de que, como nos engenhos e fazendas, eles foram beneficiados por uma alimentação mais regular e por um passadio mais fano que o da gente livre dos cortiços, dos mucambos e das casas térreas das cidades; e que os moradores aparentemente livres das próprias fazendas e engenhos. Isto de modo geral, sem nos esquecermos de que havia fazendas ou engenhos de proprietários que apenas começavam a fazer fortuna: homens ansiosos de lucros rápidos. Fazendas ou engenhos onde se explorava o escravo do modo mais rude: espremendo-se o coitado até o último pingo de rendimento. E o mesmo sucedia nas engenhocas de senhores mais pobres. Estes, na falta de outros recursos, procuravam tirar todo o proveito do seu capital-homem. Daí fazendas onde os senhores davam apenas aos escravos feijão cozido com angu, um bocado de toucinho, jerimum ou abóbora cozida; e esta comida rala, a homens que na região cafeeira tinham de levantar-se às três da madrugada para trabalharem até nove ou dez da noite. Homens que trabalhando tanto só dormiam cinco ou seis horas por dia. Porque mesmo no tempo de chuva, o negro de fazenda tinha de levantar-se durante a noite para recolher o café. “O trabalho excessivo, a alimentação insufficiente, os castigos corporaes em excesso” – escreveu um observador do regime de trabalho escravo nas fazendas de café: o Dr. David Jardim – “transformam estes entes miseraveis em verdadeiras machinas de fazer dinheiro [...] sem laço algum de amisade que os ligue sobre a terra...”.200

O surto do café representou no Brasil a transição da economia patriarcal para a industrial, com o escravo menos pessoa da família do que simples operário ou “machina de fazer dinheiro” – assunto que voltaremos a ferir em outro capítulo. O Dr. David Gomes Jardim, indagando de um fazendeiro, dos tais em que se encarnava o espírito dessa fase de escravidão mais industrial que patriarcal que foi se desenvolvendo no Sul, porque lhe adoeciam e morriam tantos negros, ficou surpreendido com a resposta: “Respondeu-nos pressuroso que [a mortandade], pelo contrario, não dava damno algum, pois que quando comprava um escravo era só com o intuito de desfructal-o durante um anno, tempo alem do qual poucos poderiam sobreviver, mas que não obstante fazia-os trabalhar por um modo que chegava não só para recuperar o capital que nelles havia empregado, porem ainda a tirar lucro consideravel”.201

À mesma fase de industrialização, do trabalho negro, refere-se Sebastião Ferreira Soares, quando escreve nas suas já citadas Notas estatísticas: “[...] sou informado que o fazendeiro que comprava 100 captivos, calculava tirar no fim de tres annos 25 escravos para seu serviço”. O resto ou tinha morrido ou fugido. O horror dos escravos do Nordeste mais docemente patriarcal, ou mesmo do recôncavo da Bahia, ao castigo, de que os ameaçavam os senhores nos seus dias mais terríveis de zanga, de os venderem para as fazendas de São Paulo, para as minas, para as engenhocas do Maranhão e do Pará, representava, evidentemente, o pavor do negro ao regime de escravidão industrial, ao trabalho sob senhores pobres ou de fortuna apenas em começo.

Havia escravos que fugiam de engenhos de senhores pobres ou sovinas para os senhores mais abonados, moradores de casas-grandes assobradadas e homens quase sempre mais liberais nas suas relações com os escravos e nas suas exigências de trabalho que os menos opulentos. É que nesses engenhos grandes o trabalho era mais dividido e portanto menos áspero.

Quanto à fuga de negros, e sobretudo mulatos, dos engenhos para as cidades, tinha provavelmente outro fim: o de passarem por livres. Os mais peritos em ofícios – funileiro, marceneiro, ferreiro – às vezes ganhavam com a aventura, não só a liberdade, como o sucesso profissional e social. As mulatas e as negras mais jeitosas se amigavam com os portugueses e italianos recém-chegados da Europa aos quais convinham mulheres de cor capazes de ajudá-los com os lucros de suas atividades de lavadeiras, engomadeiras, boleiras, quitandeiras. E algumas, sempre fiéis a esses primeiros amantes, acabaram esposas de negociantes ricos e até de “senhores comendadores”: senhores de sobrados.

Quando não tinham sorte, no ofício ou no amor, o destino dessas mulatas e daqueles mulatos não seria melhor que o dos escravos das senzalas de engenho, muitas delas, casas de pedra e cal, com janela e alpendre; casas superiores a habitações de trabalhadores rurais na França, como notou Tollenare em Pernambuco;202 e onde a comida podia ser sempre a mesma ou variar pouco, mas não faltava nunca. Nem comida, nem mel de furo, nem cachaça.

A liberdade não era bastante para dar melhor sabor, pelo menos físico, à vida dos negros fugidos que simplesmente conseguiam passar por livres nas cidades. Dissolvendo-se no proletariado de mucambo e de cortiço, seus padrões de vida e de alimentação muitas vezes baixaram. Seus meios de subsistência tornaram-se irregulares e precários. Os de habitação às vezes degradaram-se. Muito ex-escravo, assim degradado pela liberdade e pelas condições de vida no meio urbano, tornou-se malandro de cais, capoeira, ladrão, prostituta e até assassino. O terror da burguesia dos sobrados.

Os ex-escravos bem-sucedidos é que aos poucos iam melhorando de vida. As negras e mulatas, amigadas com portugueses ou italianos, repita-se que chegaram às vezes até aos sobrados; algumas tornaram-se senhoras de escravos. E os negros e mulatos marceneiros, ferreiros, funileiros, chegaram às vezes à pequena burguesia. A moradores de casas térreas de porta e janela.”

199 Manuel da Gama Lobo, “Ophtalmia Brasiliana”, Anais Brasilienses de Medicina, Rio de Janeiro, 1865, vol. XXX, p. 16. Gama Lobo foi um dos primeiros estudiosos dos problemas brasileiros de alimentação a se aproximarem de um critério regional de exame do mesmo problema, partindo de investigações de médico sobre os males de subnutrição acentuados nas áreas de monocultura.

Já Sebastião Ferreira Soares (op. cit.) chegara à conclusão de que a carestia dos gêneros alimentícios, acentuada no Brasil no meado do século XIX, “não tinha por principal causa a cessação do tráfico” e sim “o monopólio dos especuladores”, visto que nas províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina (isto é, nas províncias mais livres da monocultura) os dados da estatística oficial mostraram ter aumentado a produção dos mesmos gêneros alimentícios. Sendo estas províncias as que “abastecião as cidades do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, nem mesmo nas epocas das colheitas esses generos baixavão de preço nos seus mercados, ao mesmo passo que se observavam os depositos repletos de farinha, feijão e milho”. De modo que, estudado objetivamente o assunto, descobre-se por trás da alta de preços, favorecida pelo sistema monocultor, escravocrático e latifundiário de economia patriarcal do Brasil, “o mais revoltante e immoral monopolio [...] flagelando o misero povo brasileiro”. Muito, nas áreas de intensa monocultura, e menos nas de policultura, como era no meado do século XIX grande parte do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de São Paulo e de Minas Gerais.

200 David Gomes Jardim, Algumas considerações sobre a higiene dos escravos (tese apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, 1842, p. 10.

201 Ibid., p. 12. Sobre cuidados de senhores com escravos, são expressivos os testamentos da época patriarcal, como – para citar documento típico – o de Da. Ana Maria de Assunção Vieira, Maranhão, 1798, manuscritos, Registro da Sé: “... Ordeno que logo depois da minha morte separem cartas de alforria a preta Eufrazia e a seus dois filhos o mulatto Clemente e a mulatta Eugenia e da mesma sorte ao cosinheiro João da Costa Preto Angola...”.

202 Tollenare, loc. cit., p. 118.

 

 

A casa-grande de cidade e de subúrbio – o sobrado com a porta e a varanda para a rua, a chácara, a casa de sítio – tem tido, como a de engenho, seus detratores, do mesmo modo que apologistas líricos ou sentimentais. Quem é que às vezes não se lembra da casa, às vezes feia, onde nasceu e brincou menino, repetindo o poeta: “A minha casa, a minha casinha, não há casa como a minha?” E é mais fácil de perdoar-se o tradicionalista sentimental que o modernista sem sentimentos: o que pretende sentenciar sobre o passado, sem se colocar no ambiente ou nas condições do passado.

Para criticar o sobrado ou a casa de sítio patriarcal – no sentido de discriminar suas qualidades dos seus defeitos e não no outro, de detratá-lo puramente – devemos considerar seu plano de arquitetura em relação não somente com o clima mas com as necessidades e exigências sociais do tipo de cultura, de família e de economia então predominante. Também quanto ao material empregado não apenas por imposição do meio físico como pela maior ou menor pressão dos estilos europeus de vida sobre a fidalguia das cidades.

Ainda se deve atentar no fato de que, dentro do ambiente de desonestidade nas transações e nos negócios que costuma criar em torno de si o sistema escravocrático, quando menos feudal e mais comercial, muitas vezes se adulterou e falsificou entre nós o material usado na construção dos sobrados e de outras casas urbanas. De modo que alguns defeitos dos velhos sobradões atribuídos ao plano de arquitetura resultavam do material inferior, desonestamente empregado em lugar do bom.

Não que o plano de arquitetura das velhas casas urbanas fosse no Brasil um ideal de higiene doméstica para os trópicos. A higiene dificilmente se conciliava com as exigências, mais graves para a época, de ordem moral e de natureza econômica. O sistema patriarcal de família queria as mulheres, sobretudo as moças, as meninotas, as donzelas, dormindo nas camarinhas ou alcovas de feitio árabe: quartos sem janela, no interior da casa, onde não chegasse nem sequer o reflexo do olhar pegajento dos donjuans, tão mais afoitos nas cidades do que no interior. Queria que elas, mulheres, pudessem espiar a rua, sem ser vistas por nenhum atrevido: através das rótulas, das gelosias, dos ralos de convento, pois só aos poucos é que as varandas se abriram para a rua e que apareceram os palanques, estes mesmos recatados, cobertos de trepadeiras. Queria a gente toda da casa, especialmente as senhoras e os meninos, resguardados do sol, que dava febre e fazia mal; do sereno; do ar encanado; das correntes de ar; do vento; da chuva; dos maus cheiros da rua; dos cães danados; dos cavalos desembestados; dos marinheiros bêbados; dos ladrões; dos ciganos. Dentro das paredes grossas dos sobrados não nos esqueçamos de que se enterravam dinheiro, ouro, joia – valores cobiçados pelos ciganos, pelos ladrões, pelos malandros.

Daí a fisionomia um tanto severa dos sobrados; seu aspecto quase de inimigo da rua; os cacos de garrafa de seus muros; as lanças pontudas dos seus portões e das suas grades de ferro (onde às vezes os molecotes, simples ladrões de manga ou de sapoti, perseguidos pelos cachorros, deixavam fiapos de carne); a grossura de suas paredes; sua umidade por dentro; seu ar abafado; sua escuridão; o olhar zangado das figuras de dragão, de leão ou de cachorro nos umbrais dos portões, defendendo a casa, da rua, amedrontando os moleques que às vezes se afoitavam a pular o muro para roubar fruta; ou simplesmente sujá-lo com palavras ou figuras obscenas. Contra este último abuso a Câmara Municipal de Salvador pronunciava-se de modo severo nas posturas de 17 de junho aprovadas pelo Conselho Geral da Província, de acordo com o artigo 71 da lei de 1º de outubro de 1828: “Todo aquelle que escrever nos muros ou paredes de qualquer edifício palavras obscenas ou sobre elles pintar figuras deshonestas, soffrerá quatro dias de prisão”.”

 

 

A casa de sítio, recordaremos mais uma vez que conservou, perto das cidades, quase dentro delas, farturas de casa de engenho ou de fazenda. Foi, quanto pôde, casa-grande rural. O que permitiu que em torno dela se espalhassem jardins extensos, quase parques, que purificavam ou perfumavam o ar das ruas ou estradas. Verdadeiras criações brasileiras de arquitetura paisagista que, segundo Araújo Viana, foram ensaiadas primeiro nos pequenos jardins dos quintais mais burgueses.253

O sítio foi o ponto de confluência das duas especializações de habitação patriarcal e de arquitetura paisagista no Brasil: a urbana – isto é, o sobrado, com a porta e a varanda para a rua – e a casa de engenho ou de fazenda, do tipo da de Elias José Lopes, no Sul, ou da de Caraúna, no Norte. Foi nas casas de sítio que Mansfield viu os jardins mais bonitos do Recife – “jardins e hortas”.254 Os arredores da cidade lhe pareceram formar “um grande jardim, um pouco descuidado”, o de uma casa quase emendando com o da outra; todos com suas bananeiras, suas palmeiras, seus coqueiros.

Na sua arquitetura, a casa de sítio ou a chácara parece que foi por muito tempo mais casa de fazenda do que de cidade. Mais horizontal do que vertical. Mais casa assobradada do que sobrado. Mesmo assobradada, sua massa era quase um cubo. (...)

O que é certo, entretanto, é que dentro de um velho sobrado urbano, mais ortodoxamente patriarcal, estava-se quase sempre, no Brasil do século XVIII ou da primeira metade do século XIX, como num interior de igreja. A luz só entrava pela sala da frente e um pouco pelo pátio ou pela sala dos fundos; pelas frinchas das janelas ou pela telha-vã dos quartos. Evitava-se o sol. Tinha-se medo do ar.

Os morcegos é que gostavam desse escuro de igreja: e eram íntimos amigos dos velhos sobrados e das casas-grandes mais sombrias. Eles, os camundongos, as baratas, os grilos, as próprias corujas. Todos os bichos que gostam do escuro. Os morcegos rondavam também as casas de sítio; mas por causa dos sapotis e dos cavalos. E não tanto pelo escuro do interior dos quartos. Os oratórios ou as capelas de casas-grandes ou de casas assobradadas é que principalmente atraíam as corujas.

As paredes grossas refrescavam o interior dos sobradões patriarcais, quando o material ruim não as tornava úmidas e pegajentas, como adiante veremos. Eram paredes, como notou Fletcher, quase de fortaleza; nas próprias casas de taipa – algumas construídas tão solidamente que atravessaram séculos – as paredes tinham uma grossura espantosa; dois, três palmos.

Naturalmente, a arquitetura patriarcal dos portugueses, na sua adaptação ao Brasil, teve de resolver o problema de excesso de luminosidade e de calor. O que os portugueses em parte conseguiram, valendo-se da experiência adquirida por eles na Ásia e na África. (...)

A proteção do interior da casa de cidade contra os excessos de luminosidade e de insolação direta foi grandemente exagerada no Brasil patriarcal, devido principalmente a preconceitos morais e sanitários da época e por imposição do regime social então dominante. Procurava-se a segregação da família contra uma série de inimigos exteriores: desde o ar e o sol até os raptores, os ladrões e os moleques. Dormia-se com as portas e as janelas de madeira trancadas, o ar só entrando pelas frinchas. De modo que os quartos de dormir impregnavam-se de um cheiro composto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata, de mofo. Porque nas alcovas também se guardavam roupas, às vezes penduradas do teto – como certas comidas na despensa – por causa dos ratos, dos bichos, da umidade. Quando a inhaca era maior, queimavam-se ervas cheirosas dentro dos quartos.

Só nos tempos como o do Correia – o terrível chefe de polícia do governador D. Thomaz de Mello, da capitania de Pernambuco, que embuçado num capote e empunhando uma espada rondava as ruas a noite inteira, atrás de gatunos e de malandros – os burgueses dos sobrados puderam dormir sossegados: de “janelas abertas ao refrigerio dos aliseos”, diz um cronista.259 O ar entrando, se não pelos quartos, pelas salas e desabafando-as.

Ao contrário da casa de engenho e da de sítio – protegidas dos exageros de insolação direta pelas mesmas paredes grossas e pelos mesmos telhados de beiral acachapado, mas com os oitões todos livres e às vezes com alpendres ou copiares rodeando a casa e vigias rondando-lhe as imediações durante a noite – o sobrado de rua, de tanto se defender do excesso de sol, do perigo dos ladrões e das correntes de ar, tornou-se uma habitação úmida, fechada. Quase uma prisão.

O comandante Vaillant notou nas casas do Rio de Janeiro do tempo de Pedro I que não eram bem construções para o clima dos trópicos. Ao contrário: mal ventiladas. Não tinham a leveza que ao seu ver devia ser a primeira qualidade das casas nos países quentes.260

253 São muitos os anúncios de casas – “casas-grandes”, “grandes casas”, “casas nobres”, “casas assobradadas” – nas gazetas brasileiras da primeira metade do século XIX, nos quais se salienta o fato de juntarem às casas baixas de capim, olhos-d’água, arvoredo, cocheira, “formosos jardins”. Pode ser considerado típico o anúncio, aparecido na Gazeta do Rio de Janeiro de 2 de outubro de l821: “...huma casa assobradada” construída com “perfeição e fortaleza”, “com acommodações para numeroza família”, “cavalherice”, “cocheira”, “jardim”, “horta”, “boa agoa”, “duas cozinhas” etc.

254 Tanto quanto Ouseley com relação aos jardins das chácaras mais elegantes do Rio de Janeiro, Mansfield destaca o encanto dos jardins que conheceu no Recife do meado do século XIX (Charles B. Mansfield, Paraguay, Brazil and the plate, Cambridge, 1856, p. 95).

259 Segundo Alfredo de Carvalho, nomeado chefe de polícia do capitão-general de Pernambuco, D. Tomás de Melo, a valente e agigantado José Correia da Silva, alcunhado “o Onça” – que “rondava noites inteiras no encalço de vagabundos e criminosos” – os moradores dos sobrados ou das casas do Recife passaram a dormir sossegados, nas “noites cálidas de estio [...] de janelas abertas ao refrigério dos alísios” (Frases e palavras, cit., p. 53).

260 O comandante Vaillant, cujos reparos sobre o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX vêm resumidos por C. de Melo Leitão (op. cit., p. 79), generalizou sobre as casas: “... não procuraram apropriá-las às exigências particulares de um clima diferente do da Europa, nada tendo sido previsto para a proteção contra o calor excessivo. Aqui não se veem, como na maioria dos países quentes, essas construções leves onde tudo é previsto para melhorar a ventilação”.

 

 

Já Vaillant notara que no Rio tudo era europeu e, por consequência, antitropical, casa, mobiliário, modo de vestir. Mas é Paula Cândido quem melhor pormenoriza os inconvenientes da europeização das casas burguesas, algumas delas construídas “sobre hum pavimento...”. E quanto ao plano: “huma fatal alcova, dormitorio predilecto; escura e modesta sala com hum corredor escuro; huma sala de jantar, de costura, de tudo, excepto de saude, pouco mais escura que a sala da frente, mas munida de infallivel alcova, mediante ou não outro corredor”, a “cozinha terrea”.265 Tal era a habitação da família burguesa menos abastada.

A gente mais rica, dos sobrados, não vivia em condições muito diversas: suas casas eram também mal divididas e escuras. Nelas Paula Cândido não perdoava o mau hábito de se reservarem os melhores salões das casas às visitas – “aos outros”, dizia ele – enquanto a dormida era a pior possível, nas tais alcovas entaipadas, nos quartos úmidos e sem janela. Aí, “envolvido em mosqueteiro”, o burguês mais opulento do meado do século XIX passava pelo menos “huma quarta parte da sua vida, depois das 11 da noite até às 6 da manhã...”. Isto quando não se dava aos prazeres da “apopletica sesta”.266

Na habitação do burguês intermediário, tanto quanto na do menos abastado e na do mais opulento, o sistema de divisão de peças era o mesmo: sala da frente, grande e às vezes bem arejada; o resto da casa, úmido, escuro. Alcova e corredores sombrios. A cozinha, dada a sujeira que Luccock surpreendeu nas casas do Rio de Janeiro e Mawe nas do sul do Brasil, devia ser igualmente suja nos sobrados do Recife e da Bahia. Dos escravos que fugiam das casas burguesas, salientavam alguns anúncios que estavam “imundos por serem cozinheiros” ou “se ocuparem da cozinha”. Luccock diz que nas casas do Rio de Janeiro os fornos de cozinha eram uns buracos de tijolo; não havia grelha;267 tudo muito rudimentar e muito sujo. O fogo se animava com abanos de folha; tirava-se água das jarras com quengas de coco. Isto no maior número das casas; nos sobrados patriarcais mais opulentos havia cocos de prata.

As casas, levantavam-se quase todas ao sabor dos próprios donos, cada qual “arvorado em engenheiro”; “cada proprietario traça o risco de seu predio”. Daí erros grosseiros de construção. De Freycinet salientou as escadas – quase sempre tão mal construídas que eram “verdadeiros quebra-costas...”.268

Quase meio século depois de de Freycinet, já no Segundo Reinado, o Dr. Luís Correia de Azevedo, em discurso na Academia Imperial de Medicina, dizia que a construção das habitações no Rio de Janeiro era “a mais defeituosa que existe no mundo”. E quase repetindo o velho Paula Cândido: “Ao examinal-as suppõe-se serem construcções para o Esquimó ou Groenlandia; pequenas e estreitas janellas, portas baixas e não largas, nenhuma condição de ventilação, salas quentes e abafadas, alcovas humidas, escuras e suffocantes, corredores estreitissimos, e sempre esse exgotto na cozinha, essa sujidade bem junto á preparação dos alimentos quotidianos, tendo ao lado uma area, lugar infecto, nauseabundo, onde os despejos agglomerados produzem toda a sorte de miasmas”.269 Os miasmas eram a obsessão dos higienistas da época.

Deve-se notar, entretanto, a solidez de muitos dos sobrados do tempo do Império, sempre que o material era de primeira qualidade, e não de segunda; ou adulterado. A adulteração de material, como já sugerimos, foi praticada à grande nas construções urbanas. Os comerciantes de tijolo e de madeira impingiam aos proprietários incautos, ou forneciam-lhes por preços mais baixos, material ruim, só com a aparência de bom. Daí resultava se agravarem as condições de umidade das casas, determinadas pelo próprio plano dos edifícios. Estes tornavam-se “eterna morada de erysipelas” e de outras doenças, da descrição melancólica de Paula Cândido. Ou “tumulos em vida”. Resultado da desonestidade dos fornecedores de material de construção e não tanto da incompetência dos mestres de obras ou da ganância dos capitalistas.

Sem pretendermos inocentar os mestres de obras nem tampouco os capitalistas, construtores de sobrados, muito menos diminuir a importância do fato, que Correia de Azevedo já destacava em 1871, da arquitetura nas cidades do Império servir só e baixamente “à economia individual, que pretende haurir altos aluguéis de tugúrios mal levantados e, ainda mais, mal divididos” e construídos com o mínimo de gastos por “analfabetos mestres de obras, maus pedreiros ou péssimos carpinteiros”270 – tudo reflexo do sistema econômico de escravidão então dominante – devemos fixar a responsabilidade dos comerciantes de material de construção. O tijolo que vinha sendo empregado há anos nas construções da Corte, informava em memória apresentada ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império em 1884, o engenheiro Antônio de Paula Freitas, depois de estudo minucioso do assunto, que era “geralmente mal feito e de má qualidade, provindo este resultado não somente da má preparação do barro, que nem sempre é lavado ou expurgado de certas substâncias estranhas, prejudiciais à construção, como de os fabricantes empregarem frequentemente na confecção da pasta a areia, que além de não ser conveniente e necessária, não é escrupulosamente escolhida, pois quase sempre a extraem do mar”. Daí o fato de, demolindo-se um prédio antigo, encontrarem-se “as suas paredes carregadas de umidade até nas partes mais elevadas”.

Seria que o barro da região não fosse bom? Ao contrário: “do melhor que se pode imaginar”, escrevia no seu relatório o engenheiro Paula Freitas. E “muitas vezes ao lado da barreira encontra-se o rio que fornece água doce...”. O que sucedia era a má fabricação da pasta – defeito já notado por Freycinet – ou imperícia técnica do mestre de obras ou do operário, talvez escravo; por sovinice do proprietário (que desejava seus prédios construídos com o menor gasto possível, devendo-se ter na lembrança o fato de que grande parte do capital empregado em sobrados urbanos no Brasil foi o de capitalistas impossibilitados de continuarem a negociar com a importação legítima ou clandestina de africanos); ou ainda, por desonestidade do fornecedor de material, que vendia às vezes pelo preço da telha ou do tijolo de primeira, o de segunda ou de terceira. O que é certo é ter sofrido grande parte da população urbana dos maus efeitos de tanta casa construída ao sabor dos interesses da economia privada; material, o pior possível; tijolo, mal fabricado; argamassa de areia de água salgada; cal “contendo matérias deliquescentes em maior ou menor quantidade”, operários de terceira ordem ou simples escravos (que os de primeira e livres só trabalhavam por salários que os ricaços achavam exagerados). E o plano – o risco dos proprietários. A fiscalização do governo, nula. Poucos cogitavam “de obter bom material”, diz-nos Paula Freitas dos fornecedores e fabricantes de tijolo e cal: “tratam apenas de produzir muito e barato; porque geralmente os compradores fazem somente questão de preço”.271

O morador que suportasse a umidade das paredes, da telha, do tijolo ruim. Telhas que apodreciam sob uma crosta pegajenta de limo. Paredes de onde escorria sempre soro esverdinhado. Paredes que soravam sempre. E essa umidade envolvendo tudo o mais na estrutura como na superfície da casa: as madeiras, os metais, a camada de pintura a óleo ou o papel pintado das paredes. De fibrosa, a madeira ficava granulosa; e sob a ação dos parasitas vegetais – “certos protococos e os insetos xilófagos”, diz-nos o engenheiro Paula Freitas na sua linguagem dura de técnico – não tardava a madeira a danar-se, esfarelando-se. O cupim regalava-se nessas casas úmidas; esfuracava traves; das traves descia aos móveis, aos livros, às roupas guardadas nas arcas e nos armários ou penduradas nos caibros. Com a umidade, oxidavam-se os metais; o ferro perdia parte de sua resistência; alteravam-se o zinco, o chumbo e o cobre; e a família patriarcal, condenada a viver nesses sobrados úmidos, essa também sofria; que a sua carne não era mais forte que os metais; nem seus ossos mais resistentes que o ferro.

Daí o brado de higienistas como Correia de Azevedo contra a indiferença das câmaras municipais. As câmaras municipais cruzavam os braços diante da comercialização criminosa da arquitetura pela economia privada, tão ansiosa de lucros exagerados com a construção de sobrados como com a importação de africanos, mesmo doentes.272 “Ella” – dizia Correia de Azevedo referindo-se à Câmara do Rio de Janeiro imperial – “não diz ao constructor de casas que exhiba documentos de sua capacidade, não exige garantias de intelligencia e boa fé daquelles que edificam, não se occupa do risco interno, nem da luz e da ventilação das habitações...”. Ainda mais: “consente que se abrão janellas e portas das dimensões de jaulas e viveiros”. “E, no entretanto, senhores da Academia” – bradava o médico – “é a vida nacional que atacão, é o organismo brasileiro que destroem, é a educação que nullificão, é a moral publica que violão”. De que valeria educar-se a população, deixando-se, por outro lado, que a maior parte apodrecesse dentro daqueles sobrados úmidos, para não falar em casas piores, da gente mais pobre nos sobrados reduzidos a cortiços, por exemplo? Porque a casa, como lembrou-se de dizer o Dr. Correia de Azevedo em palavras um tanto retóricas, mas meio freudianas, era o “segundo utero” do homem: “Privar esse utero da circulação e da vida que o torna apto a funccionar nesse grande corpo atmospherico e do solo, é o mesmo que dar a morte ao filho adeantado na existencia, é tornal-o menos apto a viver, é prival-o de suas condições de força no acto de sahir á luz das epocas da infancia”.273

265 Ibid., p. 18. Ainda sobre inconvenientes de casas térreas, vejam-se nossas notas às cartas do engenheiro francês L. L. Vauthier, cit. Veja-se também sobre casas térreas, Debret, cit., I, p. 214, que as caracteriza como “petites maisons à rez-de-chaussée contiguës...”

266 Paula Cândido, op. cit., p. 19.

267 Luccock, op. cit., p. 122. A Luccock, que tanto criticou as cozinhas das casas coloniais brasileiras, teriam agradado anúncios como os que aparecem nos jornais do Rio de Janeiro dos primeiros anos da Independência, relativos a “cosinhas de ferro inglezas” (Diário do Rio de Janeiro, 13 de abril de 1830). No Diário do Rio de Janeiro aparecia a 23 de fevereiro de 1822 o anúncio: “Vende-se hum fogão Inglez com lugar para cinco panellas o qual conserva hum grao certo de calor, por cuja razão he melhor o seu cosinhado, não gasta mais de hum feixe de lenha por dia...”

268 Louis de Freycinet (op. cit., p. 181) refere-se, escandalizado, às escadas dos sobrados brasileiros: “... a parte mais defeituosa da casa, às vezes verdadeiro quebra-costas, em falta de bons arquitetos...”. Muitos seriam os acidentes, nos mesmos sobrados, em consequência das escadas mal construídas. Em compensação os soalhos repousavam sobre vigas de desmesurada grossura e muito aproximadas, o que – notou o francês – os proprietários faziam por ostentação: para mostrar que nada poupavam. Anúncios nos jornais brasileiros dos primeiros decênios do século XIX nos deixam acompanhar a crescente ostentação, da parte dos proprietários ou moradores de sobrados no Rio de Janeiro, de ferros nas varandas e vidros nas janelas, em vez de gelosias de madeira, como outrora. Assim, “hum predio edificado na rua do Sabão [...] sobrado”, no Rio de Janeiro, em 1822 ostentava “3 janellas, sacadas de cantaria da Pedreira da Gloria com grades de ferro”; seu pé-direiro era “de mais de 21 palmos bem construidos e boas paredes mestras”; por baixo tinha “boa entrada para sege” (Diário do Rio de Janeiro, 4 de abril de 1822). Outro anúncio típico: “[...] huma morada de casas de sobrado, de quatro janellas a frente, grades de ferro, muitos commodos...” (Diário do Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1825). Ainda outro: “[...] huma morada de cazas boas, de grade de ferro, muito decente para huma família, com commodos para muitos escravos e animaes” (Diário do Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1825).

269 Além de Correia de Azevedo que se ocupou inteligentemente do problema das habitações no Rio de Janeiro ainda patriarcal, outro médico do século XIX versou o assunto de modo notável: o então conselheiro Dr. José Pereira Rego em discurso na sessão solene da Academia Imperial de Medicina de 30 de junho de 1871. São deste as palavras, ainda impregnadas de concepção patriarcal de administração urbana (“gerir os negócios de uma grande família constituída por uma cidade, uma vila, um município...”) com que o ilustre higienista do meado do século XIX levantava-se contra o domínio da Câmara Municipal da Corte por “interesses individuais: [...] o desejo de apadrinhar alguns interesses individuais que tanta proteção encontram sempre nas deliberações daquele corpo” (Anais Brasilienses de Medicina, Rio de Janeiro, julho de 187l, tomo XXIII, nº 2, p. 54-55). E particularizando: “Aí estão como exemplos vivos deste asserto o estado da limpeza pública, a construção dos edifícios, muito particularmente os da classe pobre, o aterro da cidade com o lixo e imundices removidos de uns para outros pontos...” (p. 56). Quanto a habitações: “... cumpre não deixar ao arbítrio de cada construir casas como lhe convier, torna-se indispensável adotar um plano geral de edificações...”. A seu ver “os preceitos estatuídos para garantir a salubridade e asseio das habitações devem ser prescritos por lei e não unicamente recomendados...”. (p. 59). É que há 33 anos fora publicado o Código de Posturas, ainda em vigor sem que aí se cuidasse das condições higiênicas das habitações ou se impedisse construção dos cortiços, “hoje tão favoráveis à ganância em virtude dos excessivos lucros que com prejuízo da saúde e bem-estar de seus habitantes, proporcionam a seus edificadores...” (p. 60). Apenas se haviam estabelecido preceitos relativos ao alinhamento, largura das ruas, alturas dos prédios etc. Segundo estatística citada por Pereira Rego, os cortiços abrigavam em 1870 no Rio de Janeiro, 20.000 almas. Eram habitações não só anti-higiênicas como “construídas em sua maior parte em lugares insalubres”, aterro feito com “imundices de toda a espécie” (p. 62).

270 Ibid., p. 70.

271 Paula Freitas, Saneamento da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1884. Vejam-se também Francisco Lopes de Oliveira Araújo, Considerações gerais sobre a topografia físico-médica da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1852; Charles Hanbury, Limpeza da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1854; Vieira Souto, Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1875; Tomás Delfino Santos, Melhoramentos para tornar a cidade mais salubre, Rio de Janeiro, 1882; Relatório da comissão de melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1875; Pedro Soares Caldeira, O corte do mangue, Rio de Janeiro, 1884; Gama Rosa, Algumas ideias sobre o saneamento do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1879.

272 Parece que em nenhum ponto o interesse privado, cruamente representado no Brasil de economia escravocrática pelo importador de negros, chocou-se mais violentamente com o interesse público, representado principalmente pela higiene urbana, do que neste; a importação de negros doentes. Desembarcados dos negreiros, eram de ordinário as cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, os pontos mais perigosamente contaminados por eles que também ofendiam a moral europeia ou o pudor cristão da burguesia ou da fidalguia dos sobrados, andando nus ou quase nus pelas ruas; fazendo das cidades brasileiras, aldeias africanas. Aos ciganos ou gringos, quase sempre encarregados de administrarem esse comércio de homens ou escravos, pouco incomodava a ofensa que a nudez dos negros causasse aos moradores cristãos dos burgos por onde se fazia a importação de operários para as indústrias e de trabalhadores para as lavouras do Brasil. De onde as reclamações que, ainda nos últimos tempos do Brasil-Reino, foram aparecendo nos jornais, contra o escândalo: “Roga-se a alguns dos senhores negociantes de escravos da rua do Valongo queirão ter a bondade de vestirem os escravos que dezembarcão para os armazens; pois he inteiramente indecorozo em huma Corte civilizada andarem pelas ruas publicas individuos de hum e outro sexo nus e outros quasi nus, com tanta offença da modestia e escandalo das famílias que tem a infelicidade de morarem naquella rua...”. Mas ao problema moral da nudez juntava-se o da doença, comum como era a importação ou a venda de negros doentes, alguns dos quais os ciganos tratavam de fazer passar por bons e válidos aos olhos dos compradores menos meticulosos ou menos perspicazes: “Roga-se tãobem aos ditos senhores que por caridade queirão ter a bondade de preferir a vida, e saude dos seus concidadãos aos mesquinho valor dos escravos infestados e moribundos, porque, devendo estes ficar a bordo dos navios depois da vizita da Saude como empestados, logo que se auzenta a vizita, e sem irem ao lazareto, são passados das lanchas dos navios para os armazens”. Havia, a mais, o problema dos negros mortos: “E finalmente os cadaveres desses infelizes sejão cobertos com mortalhas para não ver-se com vergonha nossa, e admiração dos extranhos huma continuada provisão de defuntos nus... conduzidos quasi a rastro para o malfadado sitio da Gamboa” (Diário do Rio de Janeiro, 21 de março de 1822).

273 Correia de Azevedo, trabalho apresentado à Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, Anais Brasileiros de Medicina, tomo XXIII, nº 11, p. 426, abril de 1872.