terça-feira, 19 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte I), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

Páginas: 976

Sinopse: Em excepcional apresentação gráfica, a presente edição de “Sobrados e Mucambos” vem enriquecida com um excelente prefácio de Roberto DaMatta. Com a mesma ousadia de estilos de Casa-Grande & Senzala, esta obra é um atestado de como o estudo clássico de Gilberto Freyre sobre a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano continua atual, instigante e insuperável.


 

“Aqueles momentos de confraternização entre os extremos sociais, a que nos referimos – a procissão, a festa de igreja, o entrudo – é que foram fazendo das ruas e praças mais largas – da rua em geral – zonas de confraternização. Marcaram um prestígio novo no nosso sistema de relações sociais: o prestígio da rua.”

 

 

“É tempo de procurarmos ver na formação brasileira a série de desajustamentos profundos, ao lado dos ajustamentos e dos equilíbrios. E de vê-los em conjunto, desembaraçando-nos de pontos de vista estreitos e de ânsias de conclusão interessada. Do estreito ponto de vista econômico, ora tão em moda, como do estreito ponto de vista político, até pouco tempo quase o exclusivo. O humano só pode ser compreendido pelo humano – até onde pode ser compreendido; e compreensão importa em maior ou menor sacrifício da objetividade à subjetividade. Pois tratando-se de passado humano, há que se deixar espaço para a dúvida e até para o mistério: a história de uma instituição, quando feita ou tentada sob critério sociológico que se alongue em psicológico, está sempre nos levando a zonas de mistério, onde seria ridículo nos declararmos satisfeitos com interpretações marxistas ou explicações behavioristas ou paretistas; com puras descrições semelhantes às da história natural de comunidades botânicas ou animais.”

 

 

“Desse complexo a amplitude pode ser apenas sugerida, nunca perfeitamente definida, com os qualificativos de que vimos nos utilizando desde a publicação do nosso primeiro estudo sobre o sistema patriarcal brasileiro: patriarcal, monocultor, latifundiário, escravocrático e, sociologicamente, feudal, embora já misto, semifeudal, semicapitalista, em sua economia. A interpenetração desses vários característicos até formarem um conjunto predominantemente patriarcal, e, por conseguinte, com tendências a monossexual ao mesmo tempo que a monocultor – tal a importância atribuída ao sexo nobre e ao artigo, também nobre, de exploração agrária, acreditamos ter sido o primeiro a esboçar, numa tentativa menos de descrever que de fixar e interpretar, tanto quanto possível dentro de uma sistemática nova – antes psicossociológica, socioecológica e histórico-social, que puramente sociológica –, a formação brasileira. Interpretação em termos, também, dialéticos, sugeridos pelos títulos simbólicos por nós atribuídos às fases que nos parecem histórica, ecológica e, ao mesmo tempo, psicossociologicamente, mais expressivas do desenvolvimento social da gente brasileira no vasto território em que Portugal, primeiro, e depois o próprio Brasil, pelo esforço principalmente do bandeirante, se expandiu na América: Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Ordem e progresso. (...)

Daí o método – ou a pluralidade de métodos ou de técnicas – de indagação e estudo, adotado pelo autor neste ensaio, como no que o precedeu. Sob o critério psicossociológico, e, ao mesmo tempo, histórico-social, de estudo, várias técnicas, e não uma só, de tentativa de revelação, compreensão e interpretação do assunto foram utilizadas: a ecológica, a sociológica, a psicológica, a antropológica, a folclórica. O sobrado patriarcal brasileiro, procuramos retratá-lo por todos os meios que nos facilitassem o conhecimento de sua realidade; e não apenas pelo convencionalmente objetivo ou o cientificamente fotográfico. Pois o que nos interessa nos nossos estudos da sociedade patriarcal no Brasil não é darmos prova de ser possível a alguém estudar este ou outro assunto sob critério único e por meio de um só método – o sociológico, por exemplo; ou o histórico. O que nos interessa é o máximo de revelação do assunto: assunto, na sua generalidade, independente de tempo e de espaço, e, nas suas peculiaridades, limitado no tempo e no espaço. Daí não nos repugnar, quando necessário, o próprio impressionismo: aquele que, em literatura, mesmo histórica, é, como o empregado na pintura, tentativa de surpreender a vida em movimento e, por conseguinte, diversa segundo o critério interpretativo com que for surpreendida. Devemos nos guardar do impressionismo fácil e irresponsável, que é o jornalístico ou o beletrista, sem desprezo pelo que ilumine de visão direta e como que imediata, um fato visto ou reconstituído quase a olho nu; e confirmado ou não por técnicas de verificação. Do passado se pode escrever o que Proust escreveu do mundo: que está sendo sempre recriado pela arte. E quase como a arte pode ser a ciência, busca ou procura de realidade complexa que adormeça em fatos aparentemente mortos tanto como em naturezas chamadas igualmente mortas: uns e outros valorizados e incorporados ao conhecimento humano pelo impressionismo revelador de aspectos esquivos ou fugazes de realidade ostensivamente viva ou aparentemente morta.”

 

 

“Se das ciências, em geral, não é possível afastar o hipotético, a necessidade de hipóteses aumenta nas chamadas ciências sociais, sempre que nelas se empreenda obra de compreensão e não apenas de descrição; tentativa de interpretação e não apenas de mensuração do comportamento de um grupo humano. Em qualquer obra dessas é também maior que nas de ciências chamadas exatas a necessidade de história; pois como salienta, com a lucidez de sempre, o professor Morris R. Cohen, “necessita-se de mais história para compreender-se a reação de um búlgaro a um sérvio que para compreender-se a reação da água a uma corrente elétrica”. Necessita-se igualmente de muita história – de história total mas principalmente de história orientada pela psicologia – para compreender-se a reação de um brasileiro de hoje – produto de quatro séculos de Brasil, isto é, de quatro séculos de interpenetração de influências de culturas diversas, dentro de condições peculiares a determinado espaço geométrico, e não apenas social – a um sueco ou a um belga, produtos de outros espaços, de outras experiências, de outras combinações de cultura.

A sociologia que se faça sem história e sem psicologia, esta sim, é uma sociologia vã ou, pelo menos, precária; não há “eloquência de números” que lhe dê solidez ou autenticidade. Sempre lhe faltará o apoio que vem do conhecimento das raízes que prendem à terra, à carne e ao espírito dos homens qualquer instituição. Pois considerados no vácuo, instituições ou grupos humanos podem ter extraordinário interesse como curiosidades etnográficas ou aparências estéticas mas não como realidades sociológicas. A realidade sociológica é das que não prescindem de história. O conhecimento sociológico do brasileiro não é possível sem o conhecimento de suas origens e do seu desenvolvimento considerados sociologicamente: sociologia genética. A sociologia genética sendo principalmente a sociologia da família, desta seria erro básico separar o estudo sociológico da casa que corresponde ao tipo dominante de família, inseparável, por sua vez, das condições físicas e sociais de ocupação ou dominação do espaço por grupo humano: ecologia. E não apenas das técnicas de produção: economia. Sempre eco, isto é, casa.”

 

 

“É claro que, morto o sistema, seu tipo de residência não deve ser caprichosa ou arbitrariamente perpetuado numa sociedade que se coletiviza, por um lado, e por outro se individualiza, em oposição ao privativismo da economia ou da organização patriarcal, a um tempo personalista e solidarista, dada a absorção do indivíduo pela família e a subordinação do Estado à pessoa nobre. Mas nem por isso se deve deixar de reconhecer no sobrado, como na casa-grande patriarcal brasileira, fontes de sugestões valiosas para o arquiteto que deseje fazer arquitetura coletivista, que seja também personalista, no Brasil, dentro das lições da experiência brasileira; e não, por paixão política ou sectarismo estético, sistematicamente contrária à mesma experiência; ou no vácuo.

Pois o que, no Brasil, se exprimiu em tipos de residência harmonizados com a terra e com o meio como a casa-grande, o sobrado ou o próprio mucambo, não foi apenas um sistema de economia ou de família ou de cultura; foi também o homem brasileiro, isto é, o homem de várias origens que aqui precisou vencer a hostilidade do trópico àquelas formas já altas de civilização cristã e de civilização muçulmana trazidas para a colônia americana de Portugal, não só por europeus como, em muito menor escala, por africanos. Essas formas já altas de civilização aqui se amoleceram, é certo, ou se deturparam. Mas é extraordinário que tantas delas tenham se generalizado, mesmo amolecidas ou impuras, sobre espaço fisicamente tão extenso e socialmente tão árido como o Brasil dos primeiros tempos de colonização.

Dessa disseminação de formas altas de civilização em tão vasta terra tropical, resultou a primeira grande civilização moderna nos trópicos: a brasileira. E imensa como foi a obra dos missionários carmelitas, beneditinos, jesuítas, franciscanos e dos agentes da coroa ou do governo, a verdade é que essa disseminação parece que se fez, principalmente, através das casas patriarcais ou tutelares e de suas capelas; e não tanto através dos puros conventos ou das puras catedrais, nem das fortalezas ou estabelecimentos del-Rei ou, já independente o Brasil, de S.M. o imperador.”

 

 

“Ao intérprete do desenvolvimento ou da formação brasileira cujo critério dominante de interpretação for o sociológico, o que principalmente interessa é descobrir e revelar sob que predominâncias de forma ou de processo se realizou tal desenvolvimento; e não, que diferenças de substâncias econômica ou de composição étnica ou de conteúdo cultural separam uns grupos dos outros para efeito de outros estudos ou de outras considerações de ordem prática, administrativa ou estatística.

A nós, parece, hoje, evidente – depois de estudos já longos da formação brasileira – que o Brasil teve no complexo ou sistema patriarcal, ou tutelar, de família, de economia, de organização social, na forma patriarcal de habitação – a casa-grande completada simbioticamente pela senzala, o sobrado em oposição extrema ao mucambo, à palhoça ou ao rancho – e na forma patriarcal de devoção religiosa, de assistência social e de ação política – seu principal elemento sociológico de unidade. Mais do que a própria igreja, considerada elemento independente da família e do Estado, foi a família patriarcal ou tutelar o principal elemento sociológico de unidade brasileira. Daí nos parecer aquele complexo, de todas as chaves de interpretação com que possa um sociólogo aproximar-se do passado ou do caráter brasileiro, a capaz de abrir maior número de portas; a capaz de anicular maior número de passados regionais brasileiros num passado compreensivamente nacional: caracteristicamente luso-afro-ameríndio em seus traços principais – e não únicos – de composição cultural e de expressão social.”

 

 

“O que houve de região para região, de área para área, de subárea para subárea, dentro do complexo patriarcal no Brasil, repita-se que foi diferença antes de intensidade que de qualidade de característicos comuns aos vários tipos de sociedades baseadas sobre a monocultura latifundiária e patriarcal. Dentro desses característicos comuns é que se formou e se desenvolveu a sociedade brasileira nas áreas mais antigas de colonização portuguesa da América: a do açúcar, a do couro, a do cacau. Depois, nas do café, do ouro, da borracha, houve zonas ou áreas de exceção: porém insignificantes do ponto de vista sociológico ou histórico-social que não deve ser confundido nunca – acentue-se mais uma vez – com o etnográfico.

Sob o critério de generalidade de formas sociológicas – e não de peculiaridades etnográficas – é que vimos procurando estudar e interpretar a mesma sociedade; é que vimos acompanhando seu desenvolvimento até os nossos dias: época de franca desintegração do sistema patriarcal se não em todas as áreas brasileiras, nas mais expostas ao impacto das influências individualistas, estatistas ou coletivistas mais particularmente hostis às antigas hierarquias sociais dominantes entre nós – país de quase tanto familismo quanto à China – e às antigas formas de domínio do Estado pela pessoa ou pela família economicamente poderosa; e da própria religião pela família patriarcal e semipatriarcal. Estudo por nós empreendido desde a mocidade com um pouco daquela esperança que o inglês Lecky confessou certa vez, em carta a um amigo, ter animado suas pesquisas de historiador: “[...] to detect in the slow movements of the past the great permanent forces [...]”.

A família, sob a forma patriarcal, ou tutelar, tem sido no Brasil uma dessas “grandes forças permanentes”. Em torno dela é que os principais acontecimentos brasileiros giraram durante quatro séculos; e não em torno dos reis ou dos bispos, de chefes de Estado ou de chefes de igreja. Tudo indica que a família entre nós não deixará completamente de ser a influência se não criadora, conservadora e disseminadora de valores, que foi na sua fase patriarcal. O personalismo do brasileiro vem de sua formação patriarcal ao mesmo tempo que cristã – um cristianismo colorido pelo islamismo e por outras formas africanas de religiosidade inseparáveis da situação familial da pessoa; e dificilmente desaparecerá de qualquer de nós.

Sob forma nova, que lhe permita resistir à pressão de forças hoje mais poderosas do que ela, e adaptar-se a novas circunstâncias de convivência humana, a família, no Brasil, tende a desenvolver-se com a igreja, a cooperativa, a comuna, o sindicato, a escola, num dos órgãos de renovação e de descentralização de poder, numa sociedade, como a nossa, ainda impregnada de sobrevivências feudais e tutelares. Como família patriarcal, ou poder tutelar, porém a energia da família está quase extinta no Brasil; e sua missão bem ou mal cumprida.

Suas sobrevivências terão, porém, vida longa e talvez eterna não tanto na paisagem quanto no caráter e na própria vida política do brasileiro. O patriarcal tende a prolongar-se no paternal, no paternalista, no culto sentimental ou místico do pai ainda identificado, entre nós, com as imagens de homem protetor, de homem providencial, de homem necessário ao governo geral da sociedade; o tutelar – que inclui a figura da mãe de família – tende a manifestar-se também no culto, igualmente sentimental e místico, da Mãe, identificada pelo brasileiro com imagens de pessoas ou instituições protetoras: Maria, mãe de Deus e senhora dos homens; a igreja; a madrinha; a mãe – figuras que frequentemente intervêm na vida política ou administrativa do país, para protegerem, a seu modo, filhos, afilhados e genros.

De maternalismo, ou maternismo, se mostra, na verdade, impregnado quase todo brasileiro de formação patriarcal ou tutelar. Era como se no extremo amor à mãe ou à madrinha ou à mãe-preta o menino e o próprio adolescente se refugiassem do temor excessivo ao pai, ao patriarca, ao velho – senhor, às vezes sádico, de escravos, de mulheres e de meninos.

Ainda há pouco estivemos relendo velha carta de Joaquim Nabuco conservada por Pedro Afonso Ferreira, senhor do Engenho Japaranduba e genro do visconde de Rio Branco – carta que o filho de Pedro Afonso destacou, há mais de vinte anos, do arquivo daquele engenho para que a guardássemos entre nossos papéis de estudo. “A perda da nossa Mãe” – escrevia Nabuco em 1885 – “é o maior golpe que pode ferir o coração de cada um de nós...”. Maternalismo do mais puro. E maternalismo manifestado por alguém que, dentro da estrutura patriarcal em que nasceu, teve formação um tanto diferente da comum, criado, como foi, com muito mimo, mais pela madrinha, senhora de engenho, que pela própria mãe ou pelo próprio pai, ao qual cedo passou, aliás, a admirar e não apenas a temer.

Entre as figuras paterna e materna parece que, no Brasil, se desenrolou o drama de muito menino de formação patriarcal ou tutelar, a figura materna servindo de refúgio ao temor e às vezes terror à figura do patriarca. Esse terror ao pai patriarcal e aquele refúgio à sombra da figura da mãe e quase sempre companheira de sofrimento ou experiências de opressão às vezes se prolongou em traços característicos de personalidade em alguns dos homens mais representativos da antiga ordem brasileira.”

 

 

“A extrema receptividade do brasileiro ao culto de Maria, mãe de Deus, da mãe dos homens, de Nossa Senhora que, em nosso cristianismo mais popular e mais lírico, chega a sobrepujar o culto de Deus Pai e de Cristo Nosso Senhor, talvez encontre sua explicação naquele maternalismo, moral e psiquicamente compensador dos excessos de patriarcalismo em nossa formação. Excessos identificados com o despotismo ou a tirania do homem sobre a mulher, do pai sobre o filho, do senhor sobre o escravo, do branco sobre o preto.”

 

 

“Seu ilustre biógrafo, o escritor Celso Mariz, recordando as atividades de Ibiapina como magistrado, descreve-o como “adepto convicto do sistema liberal; e, realmente, num ofício dirigido em 1835 ao presidente do Ceará o então juiz Ibiapina refere-se às “ideas do seculo XIX” que ele desejaria ver triunfantes sobre “antigos prejuisos que não podem casar com o nosso systema liberal”.

Num desses “prejuisos” talvez ele não tivesse cogitado no momento: o prejuízo das moças casarem não por amor, mas por conveniência – a conveniência dos pais ou da família. Neste particular, Ibiapina foi de certo modo vítima do nascente “sistema liberal” em conflito com o “feudal”. No Ceará, como em outras partes do Brasil, semelhante liberalismo se manifestou através de fugas de moças com os homens de sua predileção, ficando os noivos oficiais – ou seus pais, ou os pais das moças – frustrados na sua escolha ou nos seus planos; e quebrando-se num dos seus fundamentos a ortodoxia patriarcal: a absoluta obediência da filha ao patriarca, que era quem escolhia não só noivos para as filhas como profissões para os filhos. Já o pai de Ibiapina – o mesmo que em 1824 se rebelara contra o imperador – rebelara-se contra a decisão da família de fazê-lo padre, fugindo com uma moça, Teresa de Jesus, nas vésperas de partir de Sobral para o seminário de Olinda. Desintegração do patriarcado. Enfraquecimento do poder dos patriarcas. Rebelião dos filhos contra os pais, ao mesmo tempo que das mulheres contra os homens, dos indivíduos contra as famílias, dos súditos contra o rei. O que indica que, na história de uma família ou de uma personalidade caraterística, se resume muitas vezes a história de uma sociedade se procurarmos considerá-la e interpretá-la não só econômica como cultural e psicologicamente. E também ecologicamente: em termos de relação dos subgrupos com o grupo e deste com o meio ou com o espaço. Em termos de posição ou da situação de pessoas ou grupos no espaço social.”

 

 

“Dentro desse critério é que, no ensaio que se segue, procura-se considerar e interpretar a história da sociedade patriarcal brasileira na primeira fase da desintegração do poder ou do sistema patriarcal ou tutelar nas áreas econômica e politicamente mais expressivas do Brasil: como um processo de alteração de status em que o indivíduo, desprotegido pela família, torna-se desde adolescente uma espécie de protetor individual da mesma família, em começo de desintegração.

Essa desintegração seguiu ritmos diversos em áreas diferentes sem que tal diversidade nos obrigue a evitar falar em desintegração do patriarcado no Brasil desde o primeiro reinado por não ter o processo seguido o mesmo ritmo em todas as áreas; e ter-se antecipado nas agrárias às pastoris, por exemplo; ou nas semiurbanas, às puramente rurais. Constelação de áreas – como é socialmente o Brasil – o que nos deve orientar na classificação da sociedade brasileira é o ocorrido nas áreas econômica e politicamente decisivas que nem sempre têm sido as mesmas quanto a limites de espaço físico. Essas áreas decisivas ou esses espaços sociais preponderantes moveram-se do norte – de Pernambuco e da Bahia – para o centro mineiro e, depois, para o sul do café. Moveram-se, conservando uma constância de característicos sociais, de forma, ou psicossociais, de processo e função, que explicam, em grande parte, a unidade brasileira no meio de toda a diversidade que a contraria ou a dificulta. Dentre tais característicos é que se salienta, como forma ou estilo de organização social, o sistema patriarcal: o de dominação da família, da economia e da cultura pelo homem às vezes sádico no exercício do poder ou do mando, embora o poder ou o domínio ele o exerça menos como indivíduo ou como sexo chamado “forte” ou “nobre” do que como expressão ou representante do poderio familial. Daí o fato de ter sido esse poder exercido às vezes por mulher: mulher cuja função era a de patriarca e cuja forma de domínio era a patriarcal.

Semelhante constância nos autoriza a falar de uma sociedade predominantemente patriarcal que, com substâncias diversas, foi, no Brasil, sociologicamente a mesma – a mesma nas formas, nas funções, nos processos – nas várias áreas por onde se expandiu. Como notas identificadoras dessa expansão – a do sistema patriarcal no Brasil – é que repetimos não conhecer melhores símbolos, do ponto de vista da caracterização social da paisagem, que as casas-grandes e os sobrados acompanhados de senzalas ou de mucambos ou dos seus equivalentes sociais; e completados por capelas, e, principalmente, por irmandades e túmulos correspondentes às diferenças de status entre os moradores dos vários tipos de casa.

Também a decadência moral e material dessas mesmas casas e sobrados e dos túmulos de família, às vezes monumentais, constitui índice valioso de desintegração do patriarcado nas diversas áreas onde sua presença foi um dia imperial. Sob esse critério poderia traçar-se mais de um mapa ilustrativo da formação e da desintegração da sociedade ou da família patriarcal no Brasil: trabalho em que colaborassem sociólogos, historiadores e arquitetos. Também dentro desse critério poderia empreender-se a classificação ou seleção de retratos de família – das famílias patriarcais em quem mais tipicamente se encarnou a família ou a sociedade patriarcal no Brasil – segundo áreas e épocas diversas quanto à integração ou a desintegração do sistema. Semelhante material revelaria, talvez, a unidade de tipo social e, até certo ponto, físico, da aristocracia brasileira da época patriarcal. Chamada, numa área, aristocracia do açúcar, noutra do café, noutra da banha, noutra disto, noutra daquilo, ela foi sempre a mesma em sua forma sociológica, e quase a mesma em sua composição étnica: predominância do elemento europeu e, dentre o elemento europeu, do lusitano, com presença às vezes acentuada do ameríndio e, acidental ou distante, do africano.”

 

 

“À importação de escravos do norte pelo sul correspondeu a importação, pela mesma região, magnificamente próspera, de bacharéis baianos, pernambucanos, maranhenses, cearenses, alagoanos, paraibanos, alguns dos quais, filhos de velhas famílias empobrecidas ou apenas moços pobres – e nem sempre louros – de extraordinário talento. Talento que às vezes atenuava a origem humilde e até a cor escura dos portadores de títulos acadêmicos. E ambas as importações – a de massa e a de élite levaram do norte para o sul rebelados contra a ordem dominante com os quais transferiram-se também de uma região para a outra velhas insatisfações contra o governo e contra a Igreja – ou pelo menos, contra os bispos ou contra os padres; e contra a grande propriedade. Velhas insatisfações responsáveis por movimentos por longo tempo mais característicos do norte que do sul: Palmares, a Guerra dos Mascates, a Revolução dos Alfaiates, a dos Malés, a de 17, a de 24, a de 48, a Balaiada, a Cabanada, o Quebra-quilos. Luiz Gama – filho de africana, nascido na Bahia – foi um desses rebelados desde moço radicado no sul. Saldanha Marinho foi outro. E poucos indivíduos tiveram ação mais vigorosa do que esses dois mestiços do norte, transferidos para o sul, contra o sistema patriarcal brasileiro em suas formas ortodoxas de exploração do homem pelo homem: do escravo pelo senhor, do preto pelo branco, da mulher pelo homem, do súdito pelo rei.

Da mãe de Luiz Gama se sabe que fora uma africana livre da Bahia, chamada Luísa. O futuro abolicionista nascera dos amores dessa preta inquieta com “um moço de boa sociedade”. De dois “levantes de raça” participara Luísa; e tendo participado também da Sabinada fugira da Bahia num saveiro, diante da vitória do governo imperial sobre os rebeldes, para vir esconder-se no Rio de Janeiro onde, entretanto, a polícia a descobrira, embarcando-a, segundo se diz, para a África. Na ausência de Luísa é que o pai de Luís o teria vendido como escravo a bordo de um patacho a fazer-se de velas para São Paulo; e o teria feito “num instante de... depressão moral e financeira”. É o que conta Sud Menucci no seu estudo sobre Luiz Gama.

Enquanto o futuro Conselheiro Saldanha Marinho – que se considerava altivamente caboclo – vinha de Pernambuco. Nascera no mais eclesiástico dos burgos da velha capitania: Olinda. Descendente de revolucionário de 17, tivera talvez, no seu passado, drama semelhante ao de Luiz Gama e que também o predispusera à atividade revolucionária; à oposição à ordem estabelecida, responsável por injustiças que a igreja, pelos seus bispos, não desaprovava, tolerando-as da parte dos senhores patriarcais e dos governos despóticos. Daí o se anticlericalismo ao lado do seu antimonarquismo. Daí seu antiautoritarismo e seu ardente fraternalismo de líder maçônico. É possível que guardasse ressentimento particular de mestre ou de padrinho ou de algum padre, conhecido na meninice: talvez algum padre-mestre mais sádico nos seus métodos de ensino, principalmente tratando-se de menino pobre e escuro.

Embora deva-se observar que, de ordinário, os antigos padres brasileiros cuidavam, como bons patriarcas ou como bons mestres de primeiras letras e de latim, de seus discípulos, de seus afilhados, de seus descendentes, de seus aprendizes e de suas crias, não os abandonando nem os vendendo como escravos; e também que vários deles, padres ou padres-mestres, eram maçons e, por conseguinte, fraternalistas e não apenas paternalistas em visão do mundo, o fraternalismo maçônico tomou, entre nós, feição rasgadamente anticlerical. A verdade, porém, é que se os sacerdotes não se destacaram como abolicionistas, na campanha que se travou, no Brasil, contra o sistema patriarcal e escravocrático, poucos foram os padres mais caracteristicamente brasileiros que se celebrizaram como senhores maus ou insensíveis à sorte dos escravos a ponto de venderem os próprios filhos de cor. Mesmo porque, com a estabilidade que lhes dava sua condição de funcionários da coroa não eram tão frequentes em sua vida, como na dos fazendeiros ou filhos de fazendeiros, ou na dos negociantes ou filhos de negociantes menos sólidos, as “depressões financeiras” que se sobrepusessem a considerações de ordem sentimental, isto é, a sentimentos de pais para com filhos ou de padrinhos para com afilhados, tios para com sobrinhos, senhores para com crias, acima dos deveres de paternidade para com todos os descendentes e não apenas para com os legítimos; ou acima dos deveres de paternidade espiritual para com meninos pobres e filhos de escravos que se revelassem, pela inteligência, merecedora de proteção especial.

Deve-se notar que mesmo em homens eminentemente fraternalistas, como os Luiz Gama, os Saldanha Marinho, os Titos Lívios de Castro e, até certo ponto, os Rebouças, o amor à imagem materna parece não ter deixado de manifestar-se simbolicamente em apegos a instituições que substituíssem ou prolongassem as figuras de mães ou de mulheres maternais por eles recordadas como vítimas de pais ou, pelo menos, do paternalismo mais ou menos despótico então dominante. Daí, talvez, o carinho quase de filho por mãe, de alguns desses homens – mestiços e, vários deles, bacharéis – por imagens ideológicas femininas em suas expressões ou convenções simbólicas como “República”, “Justiça”, “América”, “França”, “Revolução Francesa”, “Ciência”, ligadas a sonhos fraternalistas que, mesmo ardentes, pareciam não lhes satisfazer de todo as solicitações sentimentais ou místicas de homens, psicologicamente ainda filhos ou ainda necessitados de mães e mesmo de pais que os protegessem. José do Patrocínio viria encontrar essa imagem substituta da materna numa figura de princesa imperial – Isabel, a Redentora – na qual milhares de brasileiros de cor, menos intelectualizados ou menos aliteratados que o famoso abolicionista, encontraram a idealização da figura de Mãe que outros, menos trepidantes, já haviam encontrado na pessoa da imperatriz Dona Teresa Cristina – a chamada “Mãe dos Brasileiros”. Os Rebouças mestiços, cujas relações com o velho Rebouças, seu pai, parecem ter sido sempre felizes ou saudáveis –, nunca resvalariam naquele antipaternalismo inimigo do monarca ou do governo imperial que caraterizou o fraternalismo de Saldanha Marinho. Ao contrário: neles a devoção pela pessoa do imperador só fez aumentar com a idade. O que neles se desenvolveu – neles e nesse outro mestiço admiravelmente lúcido que foi, no Brasil da primeira metade do século XIX, o socialista A. P. de Figueiredo – foi um fraternalismo socialmente mais adiantado que o democratismo republicano e maçônico de Saldanha Marinho. Um fraternalismo já socialista, embora sempre familista, o deles. E é significativo o fato, de nos Rebouças, nem o maternalismo nem o fraternalismo terem se exaltado em idealizações mórbidas que excluíssem o respeito ou a veneração pela figura paternal do imperador: o Pai dos Pais como a santa madre igreja foi, no Brasil patriarcal, a Mãe das Mães, à sombra da qual se refugiaram tantos revoltados contra o excesso de despotismo paternal ou imperial. Procura de compensação.”

 

 

“A ascensão de elementos dos sobrados e, até, das casas térreas ou dos casebres aos casarões dos grandes proprietários de terras, seria mais frequente no século XIX, com o maior prestígio das cidades; com o prestígio de um elemento novo e brilhante – os bacharéis e médicos, alguns filhos de mecânicos ou de mascates com negras ou mulatas; com a maior dependência dos senhores rurais de seus correspondentes e comissários de escravos, de açúcar e de café. Dependência que só veio a enfraquecer-se com o desenvolvimento das comunicações por estrada de ferro, já quase no fim da era imperial. Mas para acentuar-se outra: a da lavoura com relação aos bancos – ainda mais desprestigiadores da gente rural endividada ou necessitada de adiantamentos.

Os senhores rurais, pelas próprias condições sociologicamente feudais em que se iniciou a colonização agrária do Brasil – condições que vêm resumidas do modo mais claro no Regimento de Tomé de Sousa – como que se tinham habituado a um regime de responsabilidade frouxa, ou mesmo de irresponsabilidade, com relação aos financiadores de suas lavouras. Nisso os favoreceu por longo tempo a Coroa, interessada nos lucros dos grandes proprietários e necessitando deles e de seus cabras e índios de arco e flecha, para a segurança da colônia contra as tentativas de invasão de estrangeiros.

Mesmo cheio de riscos, o financiamento à grande lavoura colonial – a de açúcar – atraiu desde cedo agiotas, que parecem ter se dedicado ao mesmo tempo à importação de escravos para as plantações. E há indícios de haverem preponderado, entre esses negociantes, judeus com o espírito de aventura comercial aguçado como em nenhuma outra gente. Daí, talvez, o relevo que alguns historiadores – um deles Sombart – dão aos judeus na fundação da lavoura de cana e na indústria do açúcar no Brasil.

Com esses intermediários, talvez em grande número judeus, parece ter se iniciado a riqueza das cidades coloniais no Brasil. A capacidade de diferenciação que revelaram esses burgos, crescendo de simples pontos de armazenagem e embarque dos produtos da terra, em populações autônomas, com os senhores dos sobrados falando grosso e forte para os das casas-grandes do interior, ou perdoando-lhes as dívidas mediante os ajustes de casamento entre a moça burguesa e o filho de senhor de engenho, ou então entre o filho do mercador, ou o próprio mercador, e a sinhazinha fina da casa-grande – ajustes de que falam tantas tradições de família – parece ter sido, em grande parte, consequência das fortunas acumuladas pelos intermediários e negociantes, alguns de origem israelita.

A situação de endividados, dos senhores de engenho do Norte, é fato que vem indicado pelas primeiras crônicas: pela do padre Cardim, por exemplo, que aliás sugere a ligação entre esse estado de coisas e a base principal da riqueza colonial – o escravo. Riqueza, na verdade, em extremo corruptível, apodrecendo facilmente a um sopro mais forte de epidemia de bexiga ou de cólera.

De modo que a figura do intermediário – negociando principalmente com escravos – não podia deixar de assumir importância considerável dentro do regime mórbido de economia patriarcal. Este a exigiu pelas duas feridas sempre abertas da monocultura e da escravidão. Duas bocas enormes pedindo dinheiro e pedindo negro. O intermediário viveu, como médico de um doente a quem explorasse, dessas feridas conservadas abertas. E as cidades começaram a crescer à custa dos senhores de terras e de escravos, assim explorados.”

 

 

“A senhora de engenho quase nunca aparecia aos estranhos, é verdade; era entrar homem estranho em casa e ouvia-se logo o ruge-ruge de saias de mulher fugindo, o barulho de moças de chinelo sem meia se escondendo pelos quartos ou subindo as escadas. O que se dava tanto nos sobrados das cidades como nos engenhos. Nos princípios do século XIX, São Paulo já capital de certa importância, com alguns sobrados, sucursal do Banco do Brasil, teatro, boas chácaras, lojas tão bem sortidas quanto as da Corte – suas senhoras não apareciam às visitas. Do mesmo modo que no interior de Minas, as mulheres da cidade de São Paulo desapareciam, ao se anunciar visita de homem, nas sombras da camarinha ou entre as plantas ou as palmas dos jardins – os jardins por detrás das salas ou no centro das casas, que eram também lugares tabus, lugares da maior intimidade, onde as mulheres podiam tomar fresco sem ser vistas da rua ou por estranhos.

Saint-Hilaire queixa-se quase amargo de não ter visto senhoras nas casas de São Paulo; de ninguém o haver convidado para jantar. Indo certo dia à casa de um aristocrata da cidade, encontrou-o quase à mesa e foi convidado para jantar; mas nem a mulher nem filha nenhuma apareceram. Em Vila Rica fora a um baile no palácio de D. Manuel de Castro e Portugal e aí dançara com mais de uma senhora ilustre. Mas durante todo o tempo que passou na cidade mineira não tornou a ver uma só das senhoras com quem dançara no baile do fidalgo. Visitou os maridos de muitas, mas nunca lhe aparecia a dona da casa.54 Tollenare, no Recife, nos princípios do século XIX55 teve a mesma experiência que Saint-Hilaire nas cidades do Sul: foi ele entrar na casa de certo morador da cidade, pessoa de importância, e as mulheres se sumiram como mouras-encantadas. Mas deixando bordados e trabalhos de agulha sobre a mesa. Saint-Hilaire, no sobrado do Alferes Machado, em São Nicolau, foi mais feliz: pôde ver as moças da casa fiando algodão e fazendo renda. Sinal de que nem todas passavam o dia inteiro de cabelo solto, a cabeça bamba no colo de alguma mucama perita no cafuné.

Foi no Rio de Janeiro, Corte, primeiro dos vicerreis, depois do regente e do rei, e finalmente do imperador, que a mulher começou a aparecer aos estranhos. Mas aos poucos. Em 1832 um viajante ainda se queixava das casas de “muros altos, janellas pequenas e portas ainda mais estreitas” onde um estrangeiro dificilmente conseguiria penetrar porque “lá dentro imperavam maridos ciumentos e brutaes”.56 Maria Graham notara, alguns anos antes, que moça solteira nem às festas de casamento comparecia.57 E o comandante La Salle debalde procurou mulheres da sociedade nos passeios públicos e nas ruas do Rio de Janeiro.58 Elas principiaram a aparecer de rosto descoberto nos bailes e nos teatros.

Nas ruas só se encontravam as escravas negras e as mulatas com quem às vezes, de noite, os velhotes do Recife namoravam, na ponte da Boa Vista. La Salle diz que também os homens pouco saíam de casa. No Rio de Janeiro dessa época talvez saíssem pouco: no Recife como em São Luís do Maranhão é tradição que viviam quase a tarde inteira na rua. No Recife, namorando com as mulatas, falando do governo e da vida alheia sentados nos bancos das pontes, combinando pacatamente negócios debaixo das gameleiras de cais. Às vezes negócios importantes: transações de contos de réis. Os burgueses de sobrado foram naquelas cidades do norte do Brasil homens de praça ou de rua como, outrora, os gregos, da ágora, ao contrário dos do Rio de Janeiro e da Bahia que raramente deixavam o interior dos sobrados. Pensando decerto nestes é que escrevia em 1855 o médico Lima Santos nos seus “Conselhos Hygienicos” transcritos pelo Diário de Pernambuco de 18 de agosto:

“De facto: os Brasileiros, quer sejam por natureza, quer pelo clima, he de observação, que não fazem exercicio sufficiente ao desenvolvimento de sua energia physica, e espiritual; mettidos em casa, e sentados a mor parte do tempo, e entregues a uma vida inteiramente sedentaria não tardam que não caiam em um estado de preguiça mortal. Verdade he que o grande luxo da terra – um dos signaes de fidalguia, de grandeza e de grande distincção – he, o sahir á rua o menos possivel, ser o menos visto possivel e se confundir o menos possivel com essa parte da população que os grandes chamam povo, e que tanto abominam. Bem certo, que não fallamos em geral; muitos não terão essa miseravel monomania, sobre tudo em certas provincias como, por exemplo, na de Pernambuco; mas em certas outras provincias, na Bahia, por exemplo, uma grande parte de homem (não fallamos nas Sr.as porque essas vivem como aves nocturnas, que só apparecem com as trevas) não só não sahem ás ruas por inercia, como por distincção e gravidade. Estes exemplos são nocivos e tristes, e delles o homem de senso deve fugir para não condemnar o seu corpo, e á sua vida a um habito tão abominavel. Para que se fuja pois destes inconvenientes que trazem a queda do corpo, que afugentam as forças e a energia, he mister uma vontade forte, e que resistindo ao clima e ao calor, despreze os habitos maus e os maus exemplos, promovendo um exercicio necessario, moderado e regulado por uma boa hygiene; pois que a energia moral sempre foi de um grande recurso para que sahia-se victoriosamente da lucta travada com o clima de um paiz quente e os habitos da molleza.” E concluía o higienista do meado do século XIX:

“Debaixo do ponto de vista da hygiene geral, o Brasil deve confessar-se, ha vinte cinco annos tem feito algum progresso, mas isto só se observa nas grandes cidades; sendo para lamentar que o systema de encanamento esteja ainda no maior atrazo possivel, quando delle dependeria a hygiene das cidades. A hygiene privada, esta sim, tem-se conservado em grande atrazo”.

Noite de escuro, é que sair de casa, nas cidades brasileiras dos princípios do século XIX, tinha seu quê de aventura. Tudo escuro; becos estreitos; poças de lama; “tigres” estourados no meio da rua; bicho morto. Na Bahia, em Vila Rica, em Olinda, ladeiras por onde o pé escorregando em alguma casca de fruta podre, a pessoa corria o risco de ir espapaçar-se nas pedras e até perder-se em despenhadeiros. De modo que o prudente era sair-se com um escravo, levando uma luz de azeite de peixe que alumiasse o caminho, a rua esburacada, o beco sujo.

As ruas, parece que tiveram nas cidades mais antigas do Brasil seu vago caráter sindicalista ou medievalista, em umas se achando estabelecidos, se não exclusivamente, de preferência, certa ordem de mecânicos, em outras, os negociantes de certo gênero – carne ou peixe, por exemplo. Ou de certa procedência: judeus ou ciganos. Os nomes mais antigos de ruas acusam sobrevivência, no Brasil, do sindicalismo ou do medievalismo das cidades portuguesas. Rua dos Toneleiros. Beco dos Ferreiros. Rua dos Pescadores. Rua dos Judeus. Rua dos Ourives. Rua dos Ciganos.

A localização de ofícios e atividades industriais e comerciais obedecia principalmente a preocupações de urbanismo; mas também a de higiene. Com essas preocupações é que a Câmara Municipal do Recife, nos primeiros anos do Império, limitava à rua da Praia a venda de carnes salgadas e peixes secos; é que a Câmara Municipal de Olinda proibia que se lavasse roupa ou qualquer coisa imunda nas Bicas Poço do Conselho, Baldo e Varadouro, desde o lugar do Pisa, sob pena de 2$000 ou 4 dias de prisão, obrigando ao mesmo tempo a indústria de peles a só deitar couros de animais para enxugar, à praia de São Francisco e continuação pelo muro de São Bento; é que a Câmara Municipal de Salvador proibia fábricas de curtir couros, salgá-los e fazer cola na cidade e povoados do seu termo.59

A cidade, com todas as suas deficiências de higiene, foi se tornando superior às zonas rurais, se não no saneamento das casas, em certas medidas de profilaxia e em uns tantos recursos médicos, de modo a poder socorrer aos moradores de engenhos, de fazendas e de povoações do interior, quando atingidos pela bexiga e por outras doenças devastadoras. Os líricos da vida rural não têm o direito de acusar as nossas cidades do século XIX de focos de epidemias e de inocentar os engenhos, as fazendas, os povoados do interior, onde às vezes se expandiram as doenças mais terríveis – a bexiga e a peste bubônica, por exemplo – mais bem combatidas nas cidades.

Foi a cidade que, aliada à Igreja, desenvolveu entre nós não só a assistência social, representada pelos hospitais, pelos hospícios, pelas casas de expostos, pelas santas-casas, pelas atividades das Ordens Terceiras e confrarias, como a medicina pública, geralmente desprezada pela família patriarcal. Esta se revelou também desdenhosa das boas estradas, cujo desenvolvimento o esforço reunido de vários grandes proprietários poderia ter realizado, não se limitasse a economia patriarcal a produzir quase exclusivamente para o seu próprio consumo, desinteressando-se dos meios de expansão dos produtos ou de intercomunicação das pessoas; contentando-se com simples caminhos para o escoamento, durante alguns meses, do seu açúcar ou do seu café. Este fato, mais do que o empenho político dos capitães-mores, nos tempos coloniais, em dificultar a solidariedade entre os colonos, nos parece explicar o vagaroso desenvolvimento das comunicações no Brasil. O patriarcalismo mesmo, criando economias autônomas, ou quase autônomas, aguçando o individualismo dos proprietários e o privativismo das famílias, enfraqueceu na gente das casas-grandes o desejo de solidariedade – ainda hoje tão fraco no brasileiro de origem rural, quase que sensível apenas ao parentesco próximo e à identidade da religião.60 Quando em 1822 – no Diário do Rio de Janeiro de 6 de março daquele ano – os moradores de Maruí rogavam aos “Senhores herdeiros da chacara do Murundu” que derribassem o mato e limpassem a parte da estrada que estava nas suas terras, “afim de que haja livre tranzito a todos os moradores daquelle lugar pois que se acha intranzitavel não só pelas crescidas e copadas arvores e espinhos como ainda pelas emboscadas que amplamente offerece aos malfazejos dezertores e escravos fugidos”, por eles falavam centenas, milhares, de outros moradores de cidades, vilas, povoados, prejudicados em seus interesses de intercomunicação de pessoas e de produtos pelo privativismo das grandes famílias patriarcais, donas de engenhos, fazendas e chácaras e indiferentes àqueles interesses.

Tanto que, excetuada a confraria católica, foi no escravo negro que mais ostensivamente desabrochou no Brasil o sentido de solidariedade mais largo que o de família sob a forma de sentimento de raça e, ao mesmo tempo, de classe: a capacidade de associação sobre base francamente cooperativista e com um sentido fraternalmente étnico e militantemente defensivo dos direitos do trabalhador. Para não falar na forma quase socialista de vida e de trabalho que tomou a organização dos negros concentrados nos mucambos de Palmares. Mais do que simples revolta de escravos fugidos, essa república de mucambos ou palhoças parece ter sido verdadeiro esforço de independência baseado no prolongamento de um tipo parassocialista de cultura, inclusive de economia, em oposição ao sistema patriarcal e de monocultura latifundiária, então dominante.

Os negros reunidos nos Palmares sob uma ditadura parassocialista, que, segundo os cronistas,61 fazia recolher ao celeiro comum as colheitas, o produto do trabalho nas roças, nos currais, nos moinhos, para realizar-se então, em plena rua, na praça, a distribuição de víveres entre os vários moradores dos mucambos, puderam resistir durante meio século aos ataques do patriarcalismo dos senhores de engenhos, aliados aos capitães-mores. O sistema socialista de vida, organizado pelos ex-escravos em Palmares, pôde resistir à economia patriarcal e escravocrática, então em toda a sua glória. Viu-se uma cidade de mucambos de palha erguer-se sozinha, do meio do mato, contra as casas-grandes e os sobrados de pedra e cal de todo o norte do Brasil. E só dificilmente as casas-grandes, os sobrados e o governo colonial conseguiram esmagar a cidade de mucambos.

Foi a primeira cidade a levantar-se contra o engenho – essa cidade parassocialista de negros; do mesmo modo que foi em sua técnica de exploração da terra um esboço de policultura em contraste com a monocultura predominante nos latifúndios dos senhores brancos. Por conseguinte, a primeira reação de pluralidade ou diversidade de produção contra o regime mórbido de sacrificar-se a cultura de víveres à produção de um só produto, e este de exportação; de sacrificar-se a concentração das populações à sua disseminação por latifúndios improdutivos de outro artigo se não o destinado a mercados estrangeiros ou remotos.

Outro exemplo de sentido cooperativista deram os negros em Ouro Preto, organizando-se sistematicamente para fins de alforria e de vida independente. Um historiador mineiro enxerga no fato a antecipação de socialismo cristão entre nós.62 Chefiados pelo preto de nome Francisco, grande número de escravos das minas de Ouro Preto foram se alforriando, pelo trabalho, primeiro do velho, que forrou o filho, depois do pai e filho reunidos, que forraram um estranho, seguindo-se, por esse processo, a libertação de dezenas de negros. E os negros forros, operários da indústria do ouro, terminaram donos da mina da Encardideira ou Palácio Velho.

O caráter de socialismo cristão que Diogo de Vasconcelos vê nesse esforço admirável de cooperação prende-se antes à forma que à essência da organização dos negros forros de Ouro Preto: esta seria religiosa, mas não católica. Os negros reuniram-se que nem os negociantes e artífices brancos, em uma irmandade: a de Santa Ifigênia. E levantaram uma igreja – a do Rosário. Aí, Dia de Reis, celebravam com muita assuada sua festa, antes africana do que católica, presidida pelo velho chefe vestido de rei. Ouviam missa cantada, é certo; mas o principal eram as danças, aos sons de instrumentos africanos. Danças de rua, defronte da igreja. Danças de negro. Como muito antes do professor Nina Rodrigues, observou Mansfield, os pretos no Brasil, em vez de adotarem os santos católicos, esquecendo ou abandonando os seus, substituíram os africanos pelos portugueses, exagerando pontos de semelhança e conservando reminiscências dos africanos.63 Às vezes quase criando novos santos com elementos das duas tradições religiosas. Uns como santos mestiços, pode-se dizer.

Era o que dava brilho ou ruído de festa às ruas das antigas cidades do Brasil: a religião. A religião dos pretos com suas danças; a dos brancos, com suas procissões e suas semanas santas.”

54 Saint-Hilaire, op. cit., I, p. 151.

55 Tollenare, no Norte, e Saint-Hilaire, no sul do Brasil, chegaram, nos princípios do século XIX, à mesma conclusão: que – como generaliza Saint-Hilaire – “l’intérieur de maisons, reservé pour les femmes, est un sanctuaire où l’étranger ne pénètre jamais [...] les jardins toujours placés derrière les maisons sont pour les femmes un faible dédommagement de leur captivité et comme les cuisines on les interdit scrupuleusement aux étrangers” (Voyage dans l’intérieur du Brésil, Paris, 1830, I, p. 210).

56 Vários foram os observadores estrangeiros, que durante os séculos XVII e XVIII e a primeira metade do XIX, ficaram impressionados com o modo despótico dos brasileiros tratarem as esposas. No meado do século XIX, o norte-americano Stewart escreveu: “The native female of the better classes is still to be regarded as a kind of house prisoner [...]” (C. S. Stewart, Brazil and la Plata: the personal record of a cruise, Nova York, 1856, p. 148).

57 Também impressionou aos observadores estrangeiros da sociedade brasileira, quer durante a época colonial quer durante a primeira metade do século XIX, a reclusão das moças solteiras nas camarinhas das casas-grandes e nas alcovas dos sobrados, quando não nos conventos. O geógrafo-historiador A. W. Sellin, escrevendo já na segunda metade do século XIX, notou que o tratamento das mulheres pelos maridos tornara-se, no Brasil, “muito mais atencioso que entre nações que lhe são superiores em civilização”. Mas destacando: “Outrora as mulheres, particularmente as filhas solteiras, eram muito vigiadas. Só saíam às ruas escoltadas por parentes, eram retiradas mui cuidadosamente das vistas do estrangeiro, tinham de consentir que nas janelas de seus quartos de dormir fossem postas grades para garanti-las de raptos” (Geografia geral do Brasil, trad., Rio de Janeiro, 1889, p. 105).

58 Veja-se o resumo das observações feitas no Brasil por De la Salle, que, durante os anos de 1837 e 1839 fez a volta do mundo na corveta La Bonite, por C. de Melo Leitão, Visitantes do Primeiro Império, São Paulo, 1934, p. 84. Reparou o comandante francês: “[...] se por seu aspecto, a cidade do Rio de Janeiro lembra as cidades da Europa, o povo que circula em seus quarteirões mui depressa destrói essa ilusão. Os homens e sobretudo as damas da sociedade brasileira saem pouco de casa. Não as vemos, como suas semelhantes em França, aparecer nas ruas ou nos passeios públicos”.

59 Livro Manuscrito da Câmara do Recife, 1828. Livro Manuscrito da Câmara de Olinda, 1833, Seção de Manuscritos da Biblioteca do Estado de Pernambuco; Posturas da Câmara de Salvador, 1844, Manuscrito segundo cópia que nos foi gentilmente fornecida pela Diretoria do Arquivo, Divulgação e Estatística da mesma cidade.

60 As casas-grandes até certo ponto continuadas pelos sobrados patriarcais das cidades, desempenharam funções de assistência social e médica no meio brasileiro, responsabilidade que foram aos poucos abdicando nas santas casas de misericórdia – aliás fundadas, no Brasil, nos primeiros anos da era colonial – nas Ordens Terceiras e nas instituições oficiais. Durante anos, os próprios senhores patriarcais juntaram às suas responsabilidades as de “médicos”, explicando-se, assim, a fácil aceitação que teve entre eles a homeopatia. Entretanto, anúncios de jornais da primeira metade do século XIX indicam que vários senhores de casas-grandes foram preferindo abdicar daquela responsabilidade nas mãos de cirurgiões que, como os capelães, se integrassem no sistema patriarcal, a serviço do patriarca e concorrendo com sua técnica para a melhor conservação da vida, da saúde e da energia dos escravos. Desde os primeiros anos do século XIX foram aparecendo, nas gazetas, anúncios como este, recolhido do Diário do Rio de Janeiro de 13 de março de 1822: “Necessita-se de hum cirurgião habil e que tambem cuide de Medicina, para huma Fazenda de Engenho [...]”.

61 O Sr. Edson Carneiro no seu estudo O quilombo dos Palmares (Rio de Janeiro, 1947) destaca que os aquilombados conseguiram retirar do solo e da mata regionais o necessário para seu sustento, fabricando com madeiras, fibras, barro, não só casas, potes, vasilhas, como vassouras, esteiras, chapéus, cestas, abanos e fazendo da diamba ou maconha ou “fumo da Angola” seu substituto do tabaco. Fumavam o “fumo da Angola” em cachimbos feitos com cocos de palmeira (p. 32). Pelas informações reunidas por esse e por outros pesquisadores do assunto, vê-se que os negros organizados em “república” em Palmares conseguiram ser saudavelmente ecológicos ao mesmo tempo que cooperativistas ou parassocialistas nos seus estilos de vida e na sua técnica de produção.

62 Não é sem razão que o historiador mineiro Diogo de Vasconcelos e, baseado nele, A. Teixeira Duarte em seu estudo sobre as origens do cooperativismo em Minas Gerais, veem na organização de Xico Rei para forrar “filhos” ou negros da sua “nação”, a antecipação, no Brasil, do cooperativismo ou do socialismo cristão. (A. Teixeira Duarte, “Catecismo da cooperação”, Rev. Arq. Púb. Min., Belo Horizonte, 1914, ano XVIII, nota às páginas 341-342).

Note-se, também, que enquanto as irmandades de brancos faziam-se notar, na época colonial, em mais de uma área, por extremos de rivalidade, cada uma cuidando exclusivamente dos seus interesses, na segunda metade do século XVIII a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, do Rio de Janeiro, procurava conseguir “a reunião de todas as irmandades dos homens pardos”, segundo ofício, de 8 de janeiro de 1765, sobre o assunto, que consta da correspondência dos vice-reis do Brasil no Rio de Janeiro (“Ofícios para os vicerreis do Brasil no Rio de Janeiro”, fls. 20, livro I-A, Manuscrito, no Arquivo Público Nacional, Rio de Janeiro).

63 Charles B. Mansfield, Paraguay, Brazil and the Plate, Cambridge, 1856, p. 91. Veja-se também sobre o assunto o estudo do professor Artur Ramos, A aculturação negra no Brasil, São Paulo, 1942.

Um comentário:

Doney disse...

Os trechos selecionados para postagem eram quase o triplo do que efetivamente veio para o blog - boa parte de qualidade similar ao que aqui está. Infelizmente deixei muitas passagens por falta de espaço.

Outro ponto, as notas têm, no livro, numeração distinta da que aqui estão postadas.