Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano
Editora: Global
Opinião: ★★★★☆
ISBN: 978-85-260-0835-9
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Páginas: 976
Sinopse: Ver Parte I
“Interessante
para o leitor brasileiro o capítulo “Índole de la economía colonial” que dedica
à interpenetração de feudalismo e de capitalismo na economia colonial da
América Latina, inclusive na do Brasil, o Sr. Sérgio Bagu, no seu recente
Economía de la sociedad colonial – Ensayo de historia comparada de la América
Latina, Buenos Aires, 1949. Para esse economista “hay una etapa en la historia capitalista en la cual
renacen ciertas formas feudales con inusitado vigor: la expansión del
capitalismo colonial”.
Foi o
que sucedeu, de modo geral, na América Latina, e no Brasil, em particular, onde
os engenhos tornaram-se a base feudal da sociedade colonial, com sobrevivências
na imperial: a interpenetração de feudalismo e capitalismo. Exigindo o escravo,
o feudalismo brasileiro apoiou-se em um tráfico que o Sr. Bagu considera, com
razão, do ponto de vista estritamente econômico em que se coloca, de base
capitalista.
Mesmo,
porém, separando-se, um tanto arbitrariamente o aspecto econômico do todo
social, é preciso reconhecer-se, como reconhece o Sr. Bagu, que o chamado
“capitalismo colonial presenta reiteradamente en los distintos continentes
ciertas manifestaciones externas que lo assemejan al feudalismo.” Daí o seu
“perfil equívoco”, como escreve à página 143. O que é inegável é que, através
do comércio internacional, que madrugou entre nós, a América Latina contribuiu,
como contribuiu a África, para “el deslumbrante florecimento del capitalista
europeo”. Mas sem deixarem de ser, em várias áreas, feudalistas a seu modo.
Equívoca
na sua economia a ponto de parecer ora feudal, ora capitalista, a sociedade
brasileira da época colonial, e até certo ponto da imperial, foi, nas suas
formas, predominantemente feudal: um neofeudalismo penetrado por influências
capitalistas com as quais chegou a entrar em “conflitos armados”, como
reconhece o Sr. Bagu, para emergir, desses conflitos, uma sociedade complexa em
que – como já salientamos mais de uma vez – “mascates” como Fernandes Vieira
tornaram-se, pelo casamento, senhores feudais, imitadas as formas feudais de
vida dos elementos economicamente vencidos pelos economicamente vencedores.
Aspecto que tem escapado à observação dos estudiosos menos profundos do
assunto.
Sobre
as revivescências de feudalismo, veja-se principalmente o estudo de Wilhelm
Röpke, Die Gesellschafterkrisis der Gegenward (1942), traduzido ao espanhol e
publicado em Madri em 1947 sob o título La crisis social de nuestro tiempo.
Salienta o professor Röpke à página 145 do seu ensaio que “os característicos
feudal-absolutistas” de organização social podem apresentar-se em diferenças
extremas sobre poderosos e fracos que correspondem a razões extraeconômicas,
explicando-se assim, segundo ele, a sobrevivência do feudalismo dentro do
próprio capitalismo.
Em
1822, em Memórias econopolíticas sobre a administração pública no Brasil (Rio
de Janeiro, 1822-1823), escrevia à página 4 da “Primeira memoria” “Hum
portuguez” que a organização colonial no Brasil “não diferia do feudalismo”
senão na substituição dos “pequenos senhorios” pelo “pretos escravos” que
lavravam para si e não apenas para os senhores. “Hum portuguez” percebia que
dentro das mesmas formas podem variar os conteúdos, sem alteração sociológica
das formas.”
“Mas a
educação do jesuíta, enquanto pôde fazer sombra à autoridade do senhor da
casa-grande sobre o menino, foi a mesma que a doméstica e patriarcal nos seus
métodos de dominação, embora visando fins diversos dos patriarcais. A mesma no
empenho de quebrar a individualidade da criança, visando adultos passivos e
subservientes. Passivos perante o Senhor do Céu e da Terra e a Santa Madre
Igreja e não tanto diante do pai nem da mãe simplesmente de carne.
Daí a
tática terrível, porém sutil, dos educadores jesuítas, de conseguirem dos
índios que lhes dessem seus culumins, dos colonos brancos que lhes confiassem
seus filhos, para educarem a todos nos seus internatos, no temor do Senhor e da
Madre Igreja, lançando depois os meninos, assim educados, contra os próprios
pais. Tornando-os filhos mais deles, padres, e dela, Igreja, do que dos
caciques e das mães caboclas, dos senhores e das senhoras de engenho ou de
sobrado.
Os
padres esforçaram-se em fazer dos meninos, o mais depressa possível, homens ou
adultos, que fizessem frente ao caciquismo das tabas e ao patriarcalismo dos
velhos das casas-grandes. Regozijavam-se diante dos meninos mais precoces que,
logo cedo, amadurecidos à força, cantassem em latim, pregassem a Paixão,
discutissem teses, parecessem aos pais criaturas superiores, sem nenhum jeito
ou modo de menino. Visando, ao que parece, aquele domínio social, estimularam a
precocidade literária, que se tornou tão caraterística do menino brasileiro, no
regime de vida patriarcal de nossa formação.
Uma
carta enviada do Espírito Santo em 1562, “para o padre doctor Torres por
commissão do padre bras Lourenço” refere o caso de “hu Indiosinho da Baya”,
menino de seus treze anos, que já pregava a Paixão em português a gente de
fora; e com tanto fervor que movia muito os ouvintes. Desses alunos precoces,
aliados dos padres contra os próprios pais, deve ter havido também brancos ou
mestiços. As cartas dos jesuítas82 constituem
precioso documentário do esforço dos padres no sentido de subtraírem os meninos
mais inteligentes ao domínio dos pais, em idade ainda angélica.
Essa precocidade
era conseguida não só por uma série de estímulos à vitória do indivíduo mais
brilhante, e não do mais profundo em coisas intelectuais – estímulos muito
caraterísticos da antiga pedagogia jesuítica: a maior responsável, talvez,
pelas escolas campos de batalha, com os alunos desafiando-se em latim para as
competições em que vencia justamente o melhor polemista, o argumentador de
palavra mais fácil e de memória mais fértil – como também à custa de vara. A
vara, já o bom do Anchieta a considerava a melhor pregação entre caboclos. Deve
ter sido também o auxiliar mais poderoso dos padres-mestres, nos primeiros
colégios que a Companhia fundou no Brasil.
Do
irmão Antônio Rodrigues, tutor em um desses primeiros colégios, sabe-se por uma
carta de Antônio Blasquez, que era tão camarada dos alunos que andava no meio
deles pescando pelas praias; e quando os meninos tinham vergonha de dizer a
doutrina “lh’a tirava elle a seu exemplo dizendo que pois elle era mais antigo
e como pae de todos, e com isto não tinha pejo, quanto mais elles que eram
ainda moços”; mas fosse algum interno comportar-se mal durante as aulas ou
exercícios de religião que Rodrigues “lhe ia á mão, e lhe fazia estar quedo”.
Se
eram assim os irmãos, imaginem-se os padres. Representantes do Senhor e
ensinando gramática e latim para maior glória de Deus, eles não deixavam que o
ensino sofresse o menor desrespeito da parte de meninos desatentos ou de
estudantes vadios. As aulas tinham alguma coisa de religioso naqueles primeiros
colégios de padres, alguns funcionando – o da Bahia, pelo menos – em sobrado
que Gabriel Soares chama “sumptuoso”: casarão de pedra e cal com todas as
escadas, portas e janelas de pedraria com varanda; “grandes dormitorios e muito
bem acabados, parte dos quaes ficão sobre o mar com grande vista”; “cubiculos
mui bem forrados, e os claustros por baixo lageados com muita perfeição”;
grandes cercas até o mar “com agua muito boa por dentro”.83
Na
arquitetura escolar parece ter se antecipado entre nós a arquitetura urbana
mais grandiosa que não foi assim a propriamente eclesiástica – catedral ou
igreja – nem a puramente civil: as casas de governo, as casas de Câmara, as
casas chamadas de função. Nem mesmo os grandes sobrados dos ricos. Os colégios
dos padres, como o da Bahia, com seus cubículos para 80 religiosos, seus
dormitórios para 200 meninos, foram talvez as massas mais imponentes de
edificação urbana no Brasil dos primeiros séculos coloniais. Urbana e
talássica. Alguns daqueles edifícios mais grandiosos, como o próprio colégio
dos jesuítas na Bahia, eram sobrados “com humas terracenas onde recolhem o que
lhe vem embarcado de fora”.84
O que
lhes vinha por mar era quase tudo: sementes, ferramentas, livros. Tudo da
Europa. E drogas de todo o mundo. Havia sempre um Antônio Pires pedindo que lhe
mandassem de Portugal ferramentas; um Vicente Rodrigues pedindo que lhe
enviassem sementes; mas principalmente padres Nóbrega, padres Navarros,
padres-mestres, gramáticos, teólogos, insistindo nos livros cuja falta não se
cansavam de lamentar. “Porque nos fazem muita mingua para as duvidas que cá ha
que todas se preguntam a mim”, escrevia em 1549 o padre Nóbrega ao padre-mestre
Simão. E muitas dessas coisas essenciais – sementes, ferramentas, livros – não
chegaram ao Brasil pelo desembarcadouro geral que havia nas cidades, mas pelas
tais terracenas particulares dos colégios de padres.
Nesses
sobradões de pedra e cal, em que se expandiram as primeiras escolas dos
jesuítas, algumas tão miseráveis nos seus começos – a de Piratininga, por
exemplo, mucambo de palha com o pobre do padre Anchieta magro, corcunda, um ar
de velho aos trinta anos, mal se podendo mover entre os meninos, um frio
horrível a torturá-lo e aos pequenos de manhã cedo, todos tiritando de frio, e
o próprio padre tendo de escrever, um a um, os livros para os alunos estudarem,
em vez de recebê-los impressos da Europa, em caixotes, nas terracenas dos
sobrados; nesses enormes sobrados de pedra e cal, prepararam-se no Brasil os
primeiros letrados, que seriam os primeiros bacharéis, os primeiros juízes,
padres, desembargadores, homens mais da cidade que da “roça” ou da “mata”.
Muito lhe deve a cultura literária com que o Brasil dos primeiros tempos
coloniais adornou-se precocemente.
Os
organizadores ou consolidadores da nossa vida civil e intelectual, os
revolucionários da Bahia e de Vila Rica, os poetas, oradores, escritores dos
tempos coloniais foram quase todos alunos de jesuítas. O gosto pelo diploma de
bacharel, pelo título de mestre, criaram-no bem cedo os jesuítas no rapaz
brasileiro. No século XVI já o brasileiro se deliciava em estudar a retórica e
latim para receber o título de bacharel ou de mestre em artes.
Já a
beca dava uma nobreza toda especial ao adolescente pálido que saía dos “pátios”
dos jesuítas. Nele se anunciava o bacharel do século XIX – o que faria a
Abolição e a República, com a adesão até dos bispos, dos generais e dos barões
do Império. Todos um tanto fascinados pelo brilho dos bacharéis.
Mas
toda aquela cultura precoce e um tanto tristonha, saliente-se mais uma vez que
os jesuítas a impuseram aos filhos mais inteligentes dos colonos e aos
culuminzinhos arrancados às tabas, à força de muita disciplina e de muito
castigo. Tradição que se perpetuaria nos colégios de padre até os fins do
século XIX.
Os
jesuítas – repita-se – deram no século XVI valor exagerado ao menino
inteligente, com queda para as letras, tornando-o mesmo criatura um tanto
sagrada aos olhos dos adultos, que se admiravam de ver os filhos tão
brilhantes, tão retóricos, tão adiantados a eles em conhecimentos. Mas essa
valorização artificial era conseguida, sacrificando-se na criança sua meninice,
abafando-se sua espontaneidade, secando-se antes de tempo sua ternura de
criança. E por meio de castigos e privações é que, mais tarde, os outros
padres, também mestres de meninos, tornaram seus colégios ainda mais sombrios
que os da S. J. Os jesuítas em parte falharam na sua brava oposição ao sistema
patriarcal das casas-grandes: aos seus excessos de absorção do filho pelo pai,
do indivíduo pela família. Mas esses outros colégios vieram no momento certo de
concorrerem para o declínio do pátrio poder no Brasil. Ou para a sua
desintegração em benefício do maior poder da Igreja.”
82 São várias as cartas
dos jesuítas, escritas no século XVI, que revelam o esforço dos padres no
sentido de oporem ao poder patriarcal absoluto dos pais a superioridade moral e
intelectual dos meninos, educados por eles, padres, nos seus colégios, que
foram, naquele século e mesmo no seguinte, sistema rival ao formado pelos
patriarcas.
83 A descrição do colégio
levantada pelos jesuítas na capital da Bahia, feita por Gabriel Soares, mostra
que a arquitetura dos colégios de padres – padres, ao nosso ver, decididos,
desde o início, a enfrentarem, como rivais, o poder supremo dos pais de família
e a reduzirem-no em benefício da Santa Madre Igreja – foi, para a época,
monumental, mesmo em comparação com as grandes casas-grandes patriarcais como a
da Torre. Diz, com efeito, Gabriel Soares: “E occupa este terreiro e parte da
rua da banda do mar um sumptuoso collegio dos padres da Companhia de Jesus
[...]. Tem este collegio grandes dormitorios e muito bem acabados, parte dos
quaes ficão sobre o mar com grande vista; cuja obra é de pedra e cal, com todas
as escadas, portas e janelas de pedrarias, com varandas e cubiculos mui bem
forrados, e os claustros por baixo lageados com muita perfeição [...]” (Gabriel
Soares de Sousa, Notícia do Brasil, São Paulo, s. d., I, p. 260).
84 É ainda de Gabriel
Soares de Sousa a informação: “[...] o qual collegio tem grandes cercas até o
mar, com agua muito boa por dentro, e ao longo do mar humas terracenas onde
recolhem o que lhe vem embarcada de fora”. (Ibid., I, p. 260: Terracenas
informa o anotador da edição, professor Pirajá da Silva, serem “tulhas,
celeiros ou armazéns à beira do rio ou perto do cais”, que completavam, então,
as casas-grandes e sobrados mais importantes.)
“Tollenare
achou no seminário de Olinda certo aspecto de liceu francês – dos
departamentais, não dos metropolitanos – com alunos que se destinavam não só às
ordens sacras, mas a outras carreiras: rapazinhos desejosos de fazer os estudos
de Humanidades; e estudando não só latim e filosofia, mas matemáticas, física,
desenho. Era a orientação de Azeredo Coutinho que assim rompia com os restos da
tradição jesuítica de ensino colonial.
Já
outra era a fisionomia dos colégios que pela mesma época – fins do século
XVIII, princípios do XIX – substituíram no Rio de Janeiro as antigas escolas
dos jesuítas. Luccock, pelo menos, teve impressão má do seminário de São
Joaquim. E um dos aspectos que mais o impressionaram foi o atraso com relação
às ciências: o ensino era ainda todo literário e eclesiástico. Jesuiticamente
literário. Outro aspecto que o horrorizou foi a tristeza dos meninos. Meninos
calados, doentes, de olhos fundos.
Era a
precocidade. Era a opressão da pedagogia sádica, exercendo-se sobre o órfão,
sobre o enjeitado, sobre o aluno com o pai vivo mas aliado do mestre, no
esforço de oprimir a criança. Todos – o pai e o mestre – inimigos do menino e
querendo-o homem o mais breve possível. O próprio menino, inimigo de si mesmo e
querendo ver-se homem antes do tempo.
É bem
expressiva a alcunha que o povo do Rio de Janeiro pôs nos meninos de São
Joaquim: carneiros. Carneirinhos. Calados, olhos tristes, sem vontade própria,
eram mesmo uns carneiros. E o trajo ainda lhes dava mais o ar de carneiros: uma
batina branca com uma cruz vermelha no peito; um cinto de cadarço preto.
No
tempo do Império, passada já a época do colegial andar de batina, os meninos de
colégio continuaram meninos tristes, agora de sobrecasaca preta, roupa de
homem, alguns já viciados no fumo, diz o padre Gama que até no rapé. O ensino
nos colégios menos eclesiástico, mas a vida de internato ainda triste. E a
tendência da pedagogia, ainda a colonial, de amadurecer a criança à força e
animar a precocidade. O próprio D. Pedro II foi um precoce que aos quinze anos
já era imperador, cercado de ministros provectos, de titulares de barba longa
entre os quais, ele, logo que pôde, apareceu também com grande barba loura a
escorrer-lhe pelo peito.”
“A
transição do patriarcalismo absoluto para o semipatriarcalismo, ou do
patriarcalismo rural para o que se desenvolveu nas cidades, alguém já se
lembrou de comparar à transição da monarquia absoluta para a constitucional. A
comparação é das melhores e abrange alguns dos aspectos mais característicos do
fenômeno jurídico, tanto quanto do moral e social, daquela transição. (...)
O
absolutismo do pater famílias na vida brasileira – pater famílias
que na sua maior pureza de traços foi o senhor de casa-grande de engenho ou de
fazenda – foi se dissolvendo à medida que outras figuras de homem criaram prestígio
na sociedade escravocrática: o médico, por exemplo; o mestre-régio; o diretor
de colégio; o presidente de província; o chefe de polícia; o juiz; o
correspondente comercial. À medida que outras instituições cresceram em torno
da casa-grande, diminuindo-a, desprestigiando-a, opondo-lhe contrapesos à
influência: a Igreja pela voz mais independente dos bispos, o governo, o banco,
o colégio, a fábrica, a oficina, a loja. Com a ascendência dessas figuras e
dessas instituições, a figura da mulher foi, por sua vez, libertando-se da
excessiva autoridade patriarcal, e, com o filho e o escravo, elevando-se
jurídica e moralmente. Também o casamento de bacharel pobre ou mulato ou de
militar plebeu com moça rica, com branca fina de casa-grande, com iaiá de
sobrado, às vezes prestigiou a mulher, criando entre nós – já o acentuamos –
uma espécie de descendência matrilinear: os filhos que tomaram os nomes
ilustres e bonitos das mães – Castelo Branco, Albuquerque e Melo, Rocha
Wanderley, Holanda Cavalcanti, Silva Prado, Argôlo, Osório – e não os dos pais.
O elemento de decoração social não podia deixar de repercutir moral ou
psicologicamente, em tais casos, a favor da mulher.”
“O
fato, alegado por Proudhon, de que a mulher nem a roca inventou, não tem a
significação que à primeira vista parece ter para justificar teorias de
“inferioridade” do sexo feminino, tão frágeis como a maior parte das teorias de
“inferioridade” da raça africana ou das “raças de cor”. Explica-o, em grande
parte, o constrangimento em que viveu o sexo chamado fraco durante a fase da
indústria doméstica, correspondente ao patriarcalismo. O homem, pelo seu
domínio sobre a cultura acumulada dentro de sistemas de civilização masculinos,
tem desfrutado – salientam os antropólogos e os sociólogos – melhores
oportunidades de expressão e de realização cultural. Quase o mesmo caso das
raças consideradas superiores, cuja maior riqueza de expressão ou de realização
cultural se prende, pelo menos até certo ponto, a melhores oportunidades
históricas de acumulação de cultura pelo contato, pela imitação, pela
assimilação.”
“Em
1865, o médico Manuel da Gama Lobo observava que a alimentação dos escravos – e
podia acrescentar que a dos senhores também, embora em menor escala – variava
não só das cidades para as fazendas, como das regiões do açúcar e do café para
as de relativa variedade de produção: Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Pará,
Amazonas. Nas províncias de monocultura, cuja população – principalmente a dos
mucambos – raramente comia carne e peixe, eram mais frequentes os abortos;
comuns as úlceras crônicas e a cegueira noturna. Naquelas de produção mais
variada onde até fruta entrava na dieta dos negros em quantidade apreciável, as
moléstias pareciam mais raras, a reprodução abundante, a duração de vida mais
longa.199
Muita
gente imagina que a alimentação nas casas-grandes de engenho era sempre
superior à dos sobrados da cidade. Mas já sugerimos que não. Muito sobrado
recebia da Europa uma variedade de alimentos finos que faltavam à mesa
patriarcal dos engenhos e das fazendas menos opulentas. E a esses alimentos
finos podiam juntar frutas e legumes dos seus próprios sítios ou quintais,
consumidos também pelos negros das senzalas urbanas e suburbanas.
Quanto
a esses negros das senzalas, as evidências, ou pelo menos os indícios são de
que, como nos engenhos e fazendas, eles foram beneficiados por uma alimentação
mais regular e por um passadio mais fano que o da gente livre dos cortiços, dos
mucambos e das casas térreas das cidades; e que os moradores aparentemente livres
das próprias fazendas e engenhos. Isto de modo geral, sem nos esquecermos de
que havia fazendas ou engenhos de proprietários que apenas começavam a fazer
fortuna: homens ansiosos de lucros rápidos. Fazendas ou engenhos onde se
explorava o escravo do modo mais rude: espremendo-se o coitado até o último
pingo de rendimento. E o mesmo sucedia nas engenhocas de senhores mais pobres.
Estes, na falta de outros recursos, procuravam tirar todo o proveito do seu
capital-homem. Daí fazendas onde os senhores davam apenas aos escravos feijão
cozido com angu, um bocado de toucinho, jerimum ou abóbora cozida; e esta
comida rala, a homens que na região cafeeira tinham de levantar-se às três da
madrugada para trabalharem até nove ou dez da noite. Homens que trabalhando tanto
só dormiam cinco ou seis horas por dia. Porque mesmo no tempo de chuva, o negro
de fazenda tinha de levantar-se durante a noite para recolher o café. “O
trabalho excessivo, a alimentação insufficiente, os castigos corporaes em
excesso” – escreveu um observador do regime de trabalho escravo nas fazendas de
café: o Dr. David Jardim – “transformam estes entes miseraveis em verdadeiras
machinas de fazer dinheiro [...] sem laço algum de amisade que os ligue sobre a
terra...”.200
O
surto do café representou no Brasil a transição da economia patriarcal para a
industrial, com o escravo menos pessoa da família do que simples operário ou
“machina de fazer dinheiro” – assunto que voltaremos a ferir em outro capítulo.
O Dr. David Gomes Jardim, indagando de um fazendeiro, dos tais em que se
encarnava o espírito dessa fase de escravidão mais industrial que patriarcal
que foi se desenvolvendo no Sul, porque lhe adoeciam e morriam tantos negros,
ficou surpreendido com a resposta: “Respondeu-nos pressuroso que [a mortandade],
pelo contrario, não dava damno algum, pois que quando comprava um escravo era
só com o intuito de desfructal-o durante um anno, tempo alem do qual poucos
poderiam sobreviver, mas que não obstante fazia-os trabalhar por um modo que
chegava não só para recuperar o capital que nelles havia empregado, porem ainda
a tirar lucro consideravel”.201
À
mesma fase de industrialização, do trabalho negro, refere-se Sebastião Ferreira
Soares, quando escreve nas suas já citadas Notas estatísticas: “[...]
sou informado que o fazendeiro que comprava 100 captivos, calculava tirar no
fim de tres annos 25 escravos para seu serviço”. O resto ou tinha morrido ou
fugido. O horror dos escravos do Nordeste mais docemente patriarcal, ou mesmo
do recôncavo da Bahia, ao castigo, de que os ameaçavam os senhores nos seus
dias mais terríveis de zanga, de os venderem para as fazendas de São Paulo,
para as minas, para as engenhocas do Maranhão e do Pará, representava,
evidentemente, o pavor do negro ao regime de escravidão industrial, ao trabalho
sob senhores pobres ou de fortuna apenas em começo.
Havia
escravos que fugiam de engenhos de senhores pobres ou sovinas para os senhores
mais abonados, moradores de casas-grandes assobradadas e homens quase sempre
mais liberais nas suas relações com os escravos e nas suas exigências de
trabalho que os menos opulentos. É que nesses engenhos grandes o trabalho era
mais dividido e portanto menos áspero.
Quanto
à fuga de negros, e sobretudo mulatos, dos engenhos para as cidades, tinha
provavelmente outro fim: o de passarem por livres. Os mais peritos em ofícios –
funileiro, marceneiro, ferreiro – às vezes ganhavam com a aventura, não só a
liberdade, como o sucesso profissional e social. As mulatas e as negras mais
jeitosas se amigavam com os portugueses e italianos recém-chegados da Europa
aos quais convinham mulheres de cor capazes de ajudá-los com os lucros de suas
atividades de lavadeiras, engomadeiras, boleiras, quitandeiras. E algumas,
sempre fiéis a esses primeiros amantes, acabaram esposas de negociantes ricos e
até de “senhores comendadores”: senhores de sobrados.
Quando
não tinham sorte, no ofício ou no amor, o destino dessas mulatas e daqueles
mulatos não seria melhor que o dos escravos das senzalas de engenho, muitas
delas, casas de pedra e cal, com janela e alpendre; casas superiores a
habitações de trabalhadores rurais na França, como notou Tollenare em
Pernambuco;202 e onde a comida podia ser sempre a
mesma ou variar pouco, mas não faltava nunca. Nem comida, nem mel de furo, nem
cachaça.
A
liberdade não era bastante para dar melhor sabor, pelo menos físico, à vida dos
negros fugidos que simplesmente conseguiam passar por livres nas cidades.
Dissolvendo-se no proletariado de mucambo e de cortiço, seus padrões de vida e
de alimentação muitas vezes baixaram. Seus meios de subsistência tornaram-se
irregulares e precários. Os de habitação às vezes degradaram-se. Muito
ex-escravo, assim degradado pela liberdade e pelas condições de vida no meio
urbano, tornou-se malandro de cais, capoeira, ladrão, prostituta e até
assassino. O terror da burguesia dos sobrados.
Os
ex-escravos bem-sucedidos é que aos poucos iam melhorando de vida. As negras e
mulatas, amigadas com portugueses ou italianos, repita-se que chegaram às vezes
até aos sobrados; algumas tornaram-se senhoras de escravos. E os negros e
mulatos marceneiros, ferreiros, funileiros, chegaram às vezes à pequena
burguesia. A moradores de casas térreas de porta e janela.”
199 Manuel da Gama Lobo, “Ophtalmia Brasiliana”, Anais Brasilienses de Medicina,
Rio de Janeiro, 1865, vol. XXX, p. 16. Gama Lobo foi um dos primeiros
estudiosos dos problemas brasileiros de alimentação a se aproximarem de um
critério regional de exame do mesmo problema, partindo de investigações de
médico sobre os males de subnutrição acentuados nas áreas de monocultura.
Já
Sebastião Ferreira Soares (op. cit.) chegara à conclusão de que a carestia dos
gêneros alimentícios, acentuada no Brasil no meado do século XIX, “não tinha
por principal causa a cessação do tráfico” e sim “o monopólio dos
especuladores”, visto que nas províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina
(isto é, nas províncias mais livres da monocultura) os dados da estatística
oficial mostraram ter aumentado a produção dos mesmos gêneros alimentícios.
Sendo estas províncias as que “abastecião as cidades do Rio de Janeiro, Bahia e
Pernambuco, nem mesmo nas epocas das colheitas esses generos baixavão de preço
nos seus mercados, ao mesmo passo que se observavam os depositos repletos de
farinha, feijão e milho”. De modo que, estudado objetivamente o assunto, descobre-se
por trás da alta de preços, favorecida pelo sistema monocultor, escravocrático
e latifundiário de economia patriarcal do Brasil, “o mais revoltante e immoral
monopolio [...] flagelando o misero povo brasileiro”. Muito, nas áreas de
intensa monocultura, e menos nas de policultura, como era no meado do século
XIX grande parte do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de São Paulo e de
Minas Gerais.
200 David Gomes Jardim, Algumas
considerações sobre a higiene dos escravos (tese apresentada à Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, 1842, p. 10.
201 Ibid., p. 12. Sobre
cuidados de senhores com escravos, são expressivos os testamentos da época
patriarcal, como – para citar documento típico – o de Da. Ana Maria de Assunção
Vieira, Maranhão, 1798, manuscritos, Registro da Sé: “... Ordeno que logo
depois da minha morte separem cartas de alforria a preta Eufrazia e a seus dois
filhos o mulatto Clemente e a mulatta Eugenia e da mesma sorte ao cosinheiro
João da Costa Preto Angola...”.
202 Tollenare, loc.
cit., p. 118.
“A casa-grande de cidade e de subúrbio – o sobrado com a porta e a varanda
para a rua, a chácara, a casa de sítio – tem tido, como a de engenho, seus
detratores, do mesmo modo que apologistas líricos ou sentimentais. Quem é que
às vezes não se lembra da casa, às vezes feia, onde nasceu e brincou menino,
repetindo o poeta: “A minha casa, a minha casinha, não há casa como a minha?”
E é mais fácil de perdoar-se o tradicionalista sentimental que o modernista sem
sentimentos: o que pretende sentenciar sobre o passado, sem se colocar no
ambiente ou nas condições do passado.
Para
criticar o sobrado ou a casa de sítio patriarcal – no sentido de discriminar
suas qualidades dos seus defeitos e não no outro, de detratá-lo puramente –
devemos considerar seu plano de arquitetura em relação não somente com o clima
mas com as necessidades e exigências sociais do tipo de cultura, de família e
de economia então predominante. Também quanto ao material empregado não apenas
por imposição do meio físico como pela maior ou menor pressão dos estilos
europeus de vida sobre a fidalguia das cidades.
Ainda
se deve atentar no fato de que, dentro do ambiente de desonestidade nas
transações e nos negócios que costuma criar em torno de si o sistema
escravocrático, quando menos feudal e mais comercial, muitas vezes se adulterou
e falsificou entre nós o material usado na construção dos sobrados e de outras
casas urbanas. De modo que alguns defeitos dos velhos sobradões atribuídos ao
plano de arquitetura resultavam do material inferior, desonestamente empregado
em lugar do bom.
Não
que o plano de arquitetura das velhas casas urbanas fosse no Brasil um ideal de
higiene doméstica para os trópicos. A higiene dificilmente se conciliava com as
exigências, mais graves para a época, de ordem moral e de natureza econômica. O
sistema patriarcal de família queria as mulheres, sobretudo as moças, as
meninotas, as donzelas, dormindo nas camarinhas ou alcovas de feitio árabe:
quartos sem janela, no interior da casa, onde não chegasse nem sequer o reflexo
do olhar pegajento dos donjuans, tão mais afoitos nas cidades do que no
interior. Queria que elas, mulheres, pudessem espiar a rua, sem ser vistas por
nenhum atrevido: através das rótulas, das gelosias, dos ralos de convento, pois
só aos poucos é que as varandas se abriram para a rua e que apareceram os
palanques, estes mesmos recatados, cobertos de trepadeiras. Queria a gente toda
da casa, especialmente as senhoras e os meninos, resguardados do sol, que dava
febre e fazia mal; do sereno; do ar encanado; das correntes de ar; do vento; da
chuva; dos maus cheiros da rua; dos cães danados; dos cavalos desembestados;
dos marinheiros bêbados; dos ladrões; dos ciganos. Dentro das paredes grossas
dos sobrados não nos esqueçamos de que se enterravam dinheiro, ouro, joia –
valores cobiçados pelos ciganos, pelos ladrões, pelos malandros.
Daí a
fisionomia um tanto severa dos sobrados; seu aspecto quase de inimigo da rua;
os cacos de garrafa de seus muros; as lanças pontudas dos seus portões e das
suas grades de ferro (onde às vezes os molecotes, simples ladrões de manga ou
de sapoti, perseguidos pelos cachorros, deixavam fiapos de carne); a grossura
de suas paredes; sua umidade por dentro; seu ar abafado; sua escuridão; o olhar
zangado das figuras de dragão, de leão ou de cachorro nos umbrais dos portões,
defendendo a casa, da rua, amedrontando os moleques que às vezes se afoitavam a
pular o muro para roubar fruta; ou simplesmente sujá-lo com palavras ou figuras
obscenas. Contra este último abuso a Câmara Municipal de Salvador
pronunciava-se de modo severo nas posturas de 17 de junho aprovadas pelo
Conselho Geral da Província, de acordo com o artigo 71 da lei de 1º de outubro
de 1828: “Todo aquelle que escrever nos muros ou paredes de qualquer edifício
palavras obscenas ou sobre elles pintar figuras deshonestas, soffrerá quatro
dias de prisão”.”
“A casa de sítio, recordaremos mais uma vez que conservou, perto das
cidades, quase dentro delas, farturas de casa de engenho ou de fazenda. Foi,
quanto pôde, casa-grande rural. O que permitiu que em torno dela se espalhassem
jardins extensos, quase parques, que purificavam ou perfumavam o ar das ruas ou
estradas. Verdadeiras criações brasileiras de arquitetura paisagista que,
segundo Araújo Viana, foram ensaiadas primeiro nos pequenos jardins dos
quintais mais burgueses.253
O
sítio foi o ponto de confluência das duas especializações de habitação
patriarcal e de arquitetura paisagista no Brasil: a urbana – isto é, o sobrado,
com a porta e a varanda para a rua – e a casa de engenho ou de fazenda, do tipo
da de Elias José Lopes, no Sul, ou da de Caraúna, no Norte. Foi nas casas de
sítio que Mansfield viu os jardins mais bonitos do Recife – “jardins e hortas”.254 Os arredores da cidade lhe pareceram formar “um
grande jardim, um pouco descuidado”, o de uma casa quase emendando com o da
outra; todos com suas bananeiras, suas palmeiras, seus coqueiros.
Na sua
arquitetura, a casa de sítio ou a chácara parece que foi por muito tempo mais
casa de fazenda do que de cidade. Mais horizontal do que vertical. Mais casa
assobradada do que sobrado. Mesmo assobradada, sua massa era quase um cubo.
(...)
O que
é certo, entretanto, é que dentro de um velho sobrado urbano, mais
ortodoxamente patriarcal, estava-se quase sempre, no Brasil do século XVIII ou
da primeira metade do século XIX, como num interior de igreja. A luz só entrava
pela sala da frente e um pouco pelo pátio ou pela sala dos fundos; pelas
frinchas das janelas ou pela telha-vã dos quartos. Evitava-se o sol. Tinha-se
medo do ar.
Os
morcegos é que gostavam desse escuro de igreja: e eram íntimos amigos dos
velhos sobrados e das casas-grandes mais sombrias. Eles, os camundongos, as
baratas, os grilos, as próprias corujas. Todos os bichos que gostam do escuro.
Os morcegos rondavam também as casas de sítio; mas por causa dos sapotis e dos
cavalos. E não tanto pelo escuro do interior dos quartos. Os oratórios ou as
capelas de casas-grandes ou de casas assobradadas é que principalmente atraíam
as corujas.
As
paredes grossas refrescavam o interior dos sobradões patriarcais, quando o
material ruim não as tornava úmidas e pegajentas, como adiante veremos. Eram
paredes, como notou Fletcher, quase de fortaleza; nas próprias casas de taipa –
algumas construídas tão solidamente que atravessaram séculos – as paredes
tinham uma grossura espantosa; dois, três palmos.
Naturalmente,
a arquitetura patriarcal dos portugueses, na sua adaptação ao Brasil, teve de
resolver o problema de excesso de luminosidade e de calor. O que os portugueses
em parte conseguiram, valendo-se da experiência adquirida por eles na Ásia e na
África. (...)
A
proteção do interior da casa de cidade contra os excessos de luminosidade e de
insolação direta foi grandemente exagerada no Brasil patriarcal, devido
principalmente a preconceitos morais e sanitários da época e por imposição do
regime social então dominante. Procurava-se a segregação da família contra uma
série de inimigos exteriores: desde o ar e o sol até os raptores, os ladrões e
os moleques. Dormia-se com as portas e as janelas de madeira trancadas, o ar só
entrando pelas frinchas. De modo que os quartos de dormir impregnavam-se de um
cheiro composto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata, de mofo. Porque
nas alcovas também se guardavam roupas, às vezes penduradas do teto – como certas
comidas na despensa – por causa dos ratos, dos bichos, da umidade. Quando a
inhaca era maior, queimavam-se ervas cheirosas dentro dos quartos.
Só nos
tempos como o do Correia – o terrível chefe de polícia do governador D. Thomaz
de Mello, da capitania de Pernambuco, que embuçado num capote e empunhando uma
espada rondava as ruas a noite inteira, atrás de gatunos e de malandros – os
burgueses dos sobrados puderam dormir sossegados: de “janelas abertas ao
refrigerio dos aliseos”, diz um cronista.259 O ar
entrando, se não pelos quartos, pelas salas e desabafando-as.
Ao
contrário da casa de engenho e da de sítio – protegidas dos exageros de
insolação direta pelas mesmas paredes grossas e pelos mesmos telhados de beiral
acachapado, mas com os oitões todos livres e às vezes com alpendres ou copiares
rodeando a casa e vigias rondando-lhe as imediações durante a noite – o sobrado
de rua, de tanto se defender do excesso de sol, do perigo dos ladrões e das
correntes de ar, tornou-se uma habitação úmida, fechada. Quase uma prisão.
O
comandante Vaillant notou nas casas do Rio de Janeiro do tempo de Pedro I que
não eram bem construções para o clima dos trópicos. Ao contrário: mal
ventiladas. Não tinham a leveza que ao seu ver devia ser a primeira qualidade
das casas nos países quentes.260”
253 São muitos os anúncios
de casas – “casas-grandes”, “grandes casas”, “casas nobres”, “casas
assobradadas” – nas gazetas brasileiras da primeira metade do século XIX, nos
quais se salienta o fato de juntarem às casas baixas de capim, olhos-d’água,
arvoredo, cocheira, “formosos jardins”. Pode ser considerado típico o anúncio,
aparecido na Gazeta do Rio de Janeiro de 2 de outubro de l821: “...huma
casa assobradada” construída com “perfeição e fortaleza”, “com acommodações
para numeroza família”, “cavalherice”, “cocheira”, “jardim”, “horta”, “boa
agoa”, “duas cozinhas” etc.
254 Tanto quanto Ouseley
com relação aos jardins das chácaras mais elegantes do Rio de Janeiro,
Mansfield destaca o encanto dos jardins que conheceu no Recife do meado do
século XIX (Charles B. Mansfield, Paraguay, Brazil and the plate,
Cambridge, 1856, p. 95).
259 Segundo Alfredo de
Carvalho, nomeado chefe de polícia do capitão-general de Pernambuco, D. Tomás
de Melo, a valente e agigantado José Correia da Silva, alcunhado “o Onça” – que
“rondava noites inteiras no encalço de vagabundos e criminosos” – os moradores
dos sobrados ou das casas do Recife passaram a dormir sossegados, nas “noites
cálidas de estio [...] de janelas abertas ao refrigério dos alísios” (Frases
e palavras, cit., p. 53).
260 O comandante Vaillant,
cujos reparos sobre o Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX vêm
resumidos por C. de Melo Leitão (op. cit., p. 79), generalizou sobre as casas:
“... não procuraram apropriá-las às exigências particulares de um clima
diferente do da Europa, nada tendo sido previsto para a proteção contra o calor
excessivo. Aqui não se veem, como na maioria dos países quentes, essas
construções leves onde tudo é previsto para melhorar a ventilação”.
“Já Vaillant notara que no Rio tudo era europeu e, por consequência,
antitropical, casa, mobiliário, modo de vestir. Mas é Paula Cândido quem melhor
pormenoriza os inconvenientes da europeização das casas burguesas, algumas
delas construídas “sobre hum pavimento...”. E quanto ao plano: “huma fatal
alcova, dormitorio predilecto; escura e modesta sala com hum corredor escuro;
huma sala de jantar, de costura, de tudo, excepto de saude, pouco mais escura
que a sala da frente, mas munida de infallivel alcova, mediante ou não outro
corredor”, a “cozinha terrea”.265 Tal era a
habitação da família burguesa menos abastada.
A
gente mais rica, dos sobrados, não vivia em condições muito diversas: suas
casas eram também mal divididas e escuras. Nelas Paula Cândido não perdoava o
mau hábito de se reservarem os melhores salões das casas às visitas – “aos
outros”, dizia ele – enquanto a dormida era a pior possível, nas tais alcovas
entaipadas, nos quartos úmidos e sem janela. Aí, “envolvido em mosqueteiro”, o
burguês mais opulento do meado do século XIX passava pelo menos “huma quarta
parte da sua vida, depois das 11 da noite até às 6 da manhã...”. Isto quando
não se dava aos prazeres da “apopletica sesta”.266
Na
habitação do burguês intermediário, tanto quanto na do menos abastado e na do
mais opulento, o sistema de divisão de peças era o mesmo: sala da frente,
grande e às vezes bem arejada; o resto da casa, úmido, escuro. Alcova e
corredores sombrios. A cozinha, dada a sujeira que Luccock surpreendeu nas
casas do Rio de Janeiro e Mawe nas do sul do Brasil, devia ser igualmente suja
nos sobrados do Recife e da Bahia. Dos escravos que fugiam das casas burguesas,
salientavam alguns anúncios que estavam “imundos por serem cozinheiros” ou “se
ocuparem da cozinha”. Luccock diz que nas casas do Rio de Janeiro os fornos de
cozinha eram uns buracos de tijolo; não havia grelha;267
tudo muito rudimentar e muito sujo. O fogo se animava com abanos de folha;
tirava-se água das jarras com quengas de coco. Isto no maior número das casas;
nos sobrados patriarcais mais opulentos havia cocos de prata.
As
casas, levantavam-se quase todas ao sabor dos próprios donos, cada qual
“arvorado em engenheiro”; “cada proprietario traça o risco de seu predio”. Daí
erros grosseiros de construção. De Freycinet salientou as escadas – quase
sempre tão mal construídas que eram “verdadeiros quebra-costas...”.268
Quase
meio século depois de de Freycinet, já no Segundo Reinado, o Dr. Luís Correia
de Azevedo, em discurso na Academia Imperial de Medicina, dizia que a
construção das habitações no Rio de Janeiro era “a mais defeituosa que existe
no mundo”. E quase repetindo o velho Paula Cândido: “Ao examinal-as suppõe-se
serem construcções para o Esquimó ou Groenlandia; pequenas e estreitas
janellas, portas baixas e não largas, nenhuma condição de ventilação, salas
quentes e abafadas, alcovas humidas, escuras e suffocantes, corredores
estreitissimos, e sempre esse exgotto na cozinha, essa sujidade bem junto á
preparação dos alimentos quotidianos, tendo ao lado uma area, lugar infecto,
nauseabundo, onde os despejos agglomerados produzem toda a sorte de miasmas”.269 Os miasmas eram a obsessão dos higienistas da
época.
Deve-se
notar, entretanto, a solidez de muitos dos sobrados do tempo do Império, sempre
que o material era de primeira qualidade, e não de segunda; ou adulterado. A
adulteração de material, como já sugerimos, foi praticada à grande nas
construções urbanas. Os comerciantes de tijolo e de madeira impingiam aos
proprietários incautos, ou forneciam-lhes por preços mais baixos, material
ruim, só com a aparência de bom. Daí resultava se agravarem as condições de
umidade das casas, determinadas pelo próprio plano dos edifícios. Estes
tornavam-se “eterna morada de erysipelas” e de outras doenças, da descrição
melancólica de Paula Cândido. Ou “tumulos em vida”. Resultado da desonestidade
dos fornecedores de material de construção e não tanto da incompetência dos mestres
de obras ou da ganância dos capitalistas.
Sem
pretendermos inocentar os mestres de obras nem tampouco os capitalistas,
construtores de sobrados, muito menos diminuir a importância do fato, que
Correia de Azevedo já destacava em 1871, da arquitetura nas cidades do Império
servir só e baixamente “à economia individual, que pretende haurir altos
aluguéis de tugúrios mal levantados e, ainda mais, mal divididos” e construídos
com o mínimo de gastos por “analfabetos mestres de obras, maus pedreiros ou
péssimos carpinteiros”270 – tudo reflexo do sistema
econômico de escravidão então dominante – devemos fixar a responsabilidade dos
comerciantes de material de construção. O tijolo que vinha sendo empregado há
anos nas construções da Corte, informava em memória apresentada ao Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios do Império em 1884, o engenheiro Antônio de
Paula Freitas, depois de estudo minucioso do assunto, que era “geralmente mal
feito e de má qualidade, provindo este resultado não somente da má preparação
do barro, que nem sempre é lavado ou expurgado de certas substâncias estranhas,
prejudiciais à construção, como de os fabricantes empregarem frequentemente na
confecção da pasta a areia, que além de não ser conveniente e necessária, não é
escrupulosamente escolhida, pois quase sempre a extraem do mar”. Daí o fato de,
demolindo-se um prédio antigo, encontrarem-se “as suas paredes carregadas de
umidade até nas partes mais elevadas”.
Seria
que o barro da região não fosse bom? Ao contrário: “do melhor que se pode
imaginar”, escrevia no seu relatório o engenheiro Paula Freitas. E “muitas
vezes ao lado da barreira encontra-se o rio que fornece água doce...”. O que
sucedia era a má fabricação da pasta – defeito já notado por Freycinet – ou
imperícia técnica do mestre de obras ou do operário, talvez escravo; por
sovinice do proprietário (que desejava seus prédios construídos com o menor
gasto possível, devendo-se ter na lembrança o fato de que grande parte do
capital empregado em sobrados urbanos no Brasil foi o de capitalistas
impossibilitados de continuarem a negociar com a importação legítima ou
clandestina de africanos); ou ainda, por desonestidade do fornecedor de
material, que vendia às vezes pelo preço da telha ou do tijolo de primeira, o
de segunda ou de terceira. O que é certo é ter sofrido grande parte da
população urbana dos maus efeitos de tanta casa construída ao sabor dos
interesses da economia privada; material, o pior possível; tijolo, mal
fabricado; argamassa de areia de água salgada; cal “contendo matérias
deliquescentes em maior ou menor quantidade”, operários de terceira ordem ou
simples escravos (que os de primeira e livres só trabalhavam por salários que
os ricaços achavam exagerados). E o plano – o risco dos proprietários. A
fiscalização do governo, nula. Poucos cogitavam “de obter bom material”,
diz-nos Paula Freitas dos fornecedores e fabricantes de tijolo e cal: “tratam
apenas de produzir muito e barato; porque geralmente os compradores fazem
somente questão de preço”.271
O
morador que suportasse a umidade das paredes, da telha, do tijolo ruim. Telhas
que apodreciam sob uma crosta pegajenta de limo. Paredes de onde escorria
sempre soro esverdinhado. Paredes que soravam sempre. E essa umidade envolvendo
tudo o mais na estrutura como na superfície da casa: as madeiras, os metais, a
camada de pintura a óleo ou o papel pintado das paredes. De fibrosa, a madeira
ficava granulosa; e sob a ação dos parasitas vegetais – “certos protococos e os
insetos xilófagos”, diz-nos o engenheiro Paula Freitas na sua linguagem dura de
técnico – não tardava a madeira a danar-se, esfarelando-se. O cupim regalava-se
nessas casas úmidas; esfuracava traves; das traves descia aos móveis, aos
livros, às roupas guardadas nas arcas e nos armários ou penduradas nos caibros.
Com a umidade, oxidavam-se os metais; o ferro perdia parte de sua resistência;
alteravam-se o zinco, o chumbo e o cobre; e a família patriarcal, condenada a
viver nesses sobrados úmidos, essa também sofria; que a sua carne não era mais
forte que os metais; nem seus ossos mais resistentes que o ferro.
Daí o
brado de higienistas como Correia de Azevedo contra a indiferença das câmaras
municipais. As câmaras municipais cruzavam os braços diante da comercialização
criminosa da arquitetura pela economia privada, tão ansiosa de lucros
exagerados com a construção de sobrados como com a importação de africanos,
mesmo doentes.272 “Ella” – dizia Correia de Azevedo
referindo-se à Câmara do Rio de Janeiro imperial – “não diz ao constructor de
casas que exhiba documentos de sua capacidade, não exige garantias de
intelligencia e boa fé daquelles que edificam, não se occupa do risco interno,
nem da luz e da ventilação das habitações...”. Ainda mais: “consente que se
abrão janellas e portas das dimensões de jaulas e viveiros”. “E, no entretanto,
senhores da Academia” – bradava o médico – “é a vida nacional que atacão, é o
organismo brasileiro que destroem, é a educação que nullificão, é a moral
publica que violão”. De que valeria educar-se a população, deixando-se, por
outro lado, que a maior parte apodrecesse dentro daqueles sobrados úmidos, para
não falar em casas piores, da gente mais pobre nos sobrados reduzidos a
cortiços, por exemplo? Porque a casa, como lembrou-se de dizer o Dr. Correia de
Azevedo em palavras um tanto retóricas, mas meio freudianas, era o “segundo
utero” do homem: “Privar esse utero da circulação e da vida que o torna apto a
funccionar nesse grande corpo atmospherico e do solo, é o mesmo que dar a morte
ao filho adeantado na existencia, é tornal-o menos apto a viver, é prival-o de
suas condições de força no acto de sahir á luz das epocas da infancia”.273”
265 Ibid., p. 18. Ainda
sobre inconvenientes de casas térreas, vejam-se nossas notas às cartas do
engenheiro francês L. L. Vauthier, cit. Veja-se também sobre casas térreas,
Debret, cit., I, p. 214, que as caracteriza como “petites maisons à
rez-de-chaussée contiguës...”
266 Paula Cândido, op.
cit., p. 19.
267 Luccock, op. cit., p.
122. A Luccock, que tanto criticou as cozinhas das casas coloniais brasileiras,
teriam agradado anúncios como os que aparecem nos jornais do Rio de Janeiro dos
primeiros anos da Independência, relativos a “cosinhas de ferro inglezas” (Diário
do Rio de Janeiro, 13 de abril de 1830). No Diário do Rio de Janeiro
aparecia a 23 de fevereiro de 1822 o anúncio: “Vende-se hum fogão Inglez com
lugar para cinco panellas o qual conserva hum grao certo de calor, por cuja
razão he melhor o seu cosinhado, não gasta mais de hum feixe de lenha por
dia...”
268 Louis de Freycinet (op.
cit., p. 181) refere-se, escandalizado, às escadas dos sobrados brasileiros:
“... a parte mais defeituosa da casa, às vezes verdadeiro quebra-costas, em
falta de bons arquitetos...”. Muitos seriam os acidentes, nos mesmos sobrados,
em consequência das escadas mal construídas. Em compensação os soalhos
repousavam sobre vigas de desmesurada grossura e muito aproximadas, o que –
notou o francês – os proprietários faziam por ostentação: para mostrar que nada
poupavam. Anúncios nos jornais brasileiros dos primeiros decênios do século XIX
nos deixam acompanhar a crescente ostentação, da parte dos proprietários ou
moradores de sobrados no Rio de Janeiro, de ferros nas varandas e vidros nas
janelas, em vez de gelosias de madeira, como outrora. Assim, “hum predio
edificado na rua do Sabão [...] sobrado”, no Rio de Janeiro, em 1822 ostentava
“3 janellas, sacadas de cantaria da Pedreira da Gloria com grades de ferro”;
seu pé-direiro era “de mais de 21 palmos bem construidos e boas paredes
mestras”; por baixo tinha “boa entrada para sege” (Diário do Rio de Janeiro,
4 de abril de 1822). Outro anúncio típico: “[...] huma morada de casas de
sobrado, de quatro janellas a frente, grades de ferro, muitos commodos...” (Diário
do Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1825). Ainda outro: “[...] huma morada
de cazas boas, de grade de ferro, muito decente para huma família, com commodos
para muitos escravos e animaes” (Diário do Rio de Janeiro, 14 de janeiro
de 1825).
269 Além de Correia de
Azevedo que se ocupou inteligentemente do problema das habitações no Rio de
Janeiro ainda patriarcal, outro médico do século XIX versou o assunto de modo
notável: o então conselheiro Dr. José Pereira Rego em discurso na sessão solene
da Academia Imperial de Medicina de 30 de junho de 1871. São deste as palavras,
ainda impregnadas de concepção patriarcal de administração urbana (“gerir os
negócios de uma grande família constituída por uma cidade, uma vila, um
município...”) com que o ilustre higienista do meado do século XIX levantava-se
contra o domínio da Câmara Municipal da Corte por “interesses individuais:
[...] o desejo de apadrinhar alguns interesses individuais que tanta proteção
encontram sempre nas deliberações daquele corpo” (Anais Brasilienses de
Medicina, Rio de Janeiro, julho de 187l, tomo XXIII, nº 2, p. 54-55). E
particularizando: “Aí estão como exemplos vivos deste asserto o estado da
limpeza pública, a construção dos edifícios, muito particularmente os da classe
pobre, o aterro da cidade com o lixo e imundices removidos de uns para outros
pontos...” (p. 56). Quanto a habitações: “... cumpre não deixar ao arbítrio de
cada construir casas como lhe convier, torna-se indispensável adotar um plano
geral de edificações...”. A seu ver “os preceitos estatuídos para garantir a
salubridade e asseio das habitações devem ser prescritos por lei e não
unicamente recomendados...”. (p. 59). É que há 33 anos fora publicado o Código
de Posturas, ainda em vigor sem que aí se cuidasse das condições higiênicas das
habitações ou se impedisse construção dos cortiços, “hoje tão favoráveis à
ganância em virtude dos excessivos lucros que com prejuízo da saúde e bem-estar
de seus habitantes, proporcionam a seus edificadores...” (p. 60). Apenas se
haviam estabelecido preceitos relativos ao alinhamento, largura das ruas,
alturas dos prédios etc. Segundo estatística citada por Pereira Rego, os
cortiços abrigavam em 1870 no Rio de Janeiro, 20.000 almas. Eram habitações não
só anti-higiênicas como “construídas em sua maior parte em lugares insalubres”,
aterro feito com “imundices de toda a espécie” (p. 62).
271 Paula Freitas, Saneamento
da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1884. Vejam-se também
Francisco Lopes de Oliveira Araújo, Considerações gerais sobre a topografia
físico-médica da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1852; Charles
Hanbury, Limpeza da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1854;
Vieira Souto, Melhoramentos da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
1875; Tomás Delfino Santos, Melhoramentos para tornar a cidade mais salubre,
Rio de Janeiro, 1882; Relatório da comissão de melhoramentos da cidade do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1875; Pedro Soares Caldeira, O corte do
mangue, Rio de Janeiro, 1884; Gama Rosa, Algumas ideias sobre o
saneamento do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1879.
272 Parece que em nenhum
ponto o interesse privado, cruamente representado no Brasil de economia
escravocrática pelo importador de negros, chocou-se mais violentamente com o
interesse público, representado principalmente pela higiene urbana, do que
neste; a importação de negros doentes. Desembarcados dos negreiros, eram de
ordinário as cidades como Salvador, Rio de Janeiro, Recife, os pontos mais
perigosamente contaminados por eles que também ofendiam a moral europeia ou o
pudor cristão da burguesia ou da fidalguia dos sobrados, andando nus ou quase
nus pelas ruas; fazendo das cidades brasileiras, aldeias africanas. Aos ciganos
ou gringos, quase sempre encarregados de administrarem esse comércio de homens
ou escravos, pouco incomodava a ofensa que a nudez dos negros causasse aos
moradores cristãos dos burgos por onde se fazia a importação de operários para
as indústrias e de trabalhadores para as lavouras do Brasil. De onde as
reclamações que, ainda nos últimos tempos do Brasil-Reino, foram aparecendo nos
jornais, contra o escândalo: “Roga-se a alguns dos senhores negociantes de
escravos da rua do Valongo queirão ter a bondade de vestirem os escravos que
dezembarcão para os armazens; pois he inteiramente indecorozo em huma Corte
civilizada andarem pelas ruas publicas individuos de hum e outro sexo nus e
outros quasi nus, com tanta offença da modestia e escandalo das famílias que
tem a infelicidade de morarem naquella rua...”. Mas ao problema moral da nudez
juntava-se o da doença, comum como era a importação ou a venda de negros
doentes, alguns dos quais os ciganos tratavam de fazer passar por bons e
válidos aos olhos dos compradores menos meticulosos ou menos perspicazes:
“Roga-se tãobem aos ditos senhores que por caridade queirão ter a bondade de
preferir a vida, e saude dos seus concidadãos aos mesquinho valor dos escravos
infestados e moribundos, porque, devendo estes ficar a bordo dos navios depois
da vizita da Saude como empestados, logo que se auzenta a vizita, e sem irem ao
lazareto, são passados das lanchas dos navios para os armazens”. Havia, a mais,
o problema dos negros mortos: “E finalmente os cadaveres desses infelizes sejão
cobertos com mortalhas para não ver-se com vergonha nossa, e admiração dos
extranhos huma continuada provisão de defuntos nus... conduzidos quasi a rastro
para o malfadado sitio da Gamboa” (Diário do Rio de Janeiro, 21 de março
de 1822).
273 Correia de Azevedo,
trabalho apresentado à Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, Anais
Brasileiros de Medicina, tomo XXIII, nº 11, p. 426, abril de 1872.
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