terça-feira, 19 de março de 2024

Sobrados e mucambos (Parte III), de Gilberto Freyre

Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano

Editora: Global

Opinião: ★★★★☆

ISBN: 978-85-260-0835-9

Páginas: 976

Sinopse: Ver Parte I


 

“Francisco de Sierra Y Mariscal em suas “Ideas geraes sobre a revolução do Brasil e suas consequencias”, chegou a escrever, sob a impressão, ainda quente, da independência política do Brasil, que aqui o “Commercio se se quer he quem he o unico corpo aristocrata. Os previlegios dos senhores d’engenho, do unico que lhes servem he de os dezacreditar, por que estão auctorisados até serto ponto para não pagar a ninguem...”. E contra a ideia geral de serem os senhores de engenho uma classe só, e esta opulenta e bem nutrida, observava: “[...] qualquer pode ser senhor d’engenho e ha muitas qualidades d’engenho...”. Acrescentando: “[...] tem chegado a maior parte d’elles a tal estado que para comerem carne de vacca duas vezes por semana e terem hum cavallo d’estrebaria se faz necessario que morrão 200 pessoas de fome, que são os escravos do engenho, aquem lhes dão unicamente o Sabbado livre para com seu producto sustentarem-se e trabalharem o resto da semana para seus senhores”.307

Daí terem os senhores de engenho – a maior parte deles – chegado aos princípios do século XIX elemento de perturbação, e não de defesa, da ordem: “esta classe não forma Ordem”, isto é, ordem aristocrática no sentido de conservadora. Ao contrário: pertenciam, em grande parte, à ordem democrata dos que “nada tem a perder [...]. Os senhores d’engenho estão nesta ordem por que he o partido das Revoluções e com ellas se vem livres dos seus credores”. Na mesma situação estava “a maior parte do clero, pela mesma razão”; e também “os empregados publicos que ambecionão os restos da fortuna dos europeos”. Todos instáveis: mesmo os aparentemente ricos pois raros cuidavam de conservar ou desenvolver as riquezas.

O resultado é que muitos, nascidos ricos, chegavam à velhice melancolicamente pobres. Mas sempre desdenhosos de ofícios mecânicos que abandonavam a europeus e a escravos. Daí o violento contraste entre europeus que aqui chegavam pobres e morriam ricos e brasileiros nascidos ricos que envelheciam e morriam pobres.

Sierra y Mariscal fixou o contraste entre o filho de brasileiro rico que, apenas saído da infância, “porque o carinho paternal lhe da Rendas soltas”, degradava-se, e o filho de português que chegava ao Brasil tendo deixado a “Caza Paternal” apenas com “suas proprias e fracas forças”; na falta de conhecido ou parente no Brasil, fazia do “portico d’huma Igreja [...] o seu primeiro leito e a sua primeira morada”; recebido “ou de Caixeiro ou de Aprendiz não há nada a que elle se não sugeite”; “com a economia e o trabalho” chegava a ter “grandes cabedaes”; uma vez rico, chegava a ter “consideração”; desprezado pelos brasileiros por ter chegado aqui pobre ou miserável, depois de rico, ele é que desprezava os brasileiros por serem “fracos, immoraes, preguiçozos e pobres”; e tendo, na sua mocidade de pobre, contraído relações com “mulheres pobres” – muitos, poderia Sierra y Mariscal ter acrescentado, com mulheres pobres de cor, enquanto outros, com filhas mestiças e ricas de patrões também portugueses – “isto tambem tem sido hum ellemento de reproxes mutuos”. E ainda não tendo sido o portuguesinho aqui chegado aos dez ou doze anos, bem-educado na mocidade, raramente sabia educar bem os filhos.

Mesmo assim, tornara-se o comércio, no Brasil, para observadores como Sierra y Mariscal, “o único corpo aristocrata”, por ser o mais estável na sua condição e o mais interessado na manutenção do Estado tal como o concebia no Brasil o patriarcalismo da época, isto é, um patriarcalismo já um tanto mais urbano do que rural nas suas tendências decisivas. Para esse patriarcalismo o Estado era o pai dos pais de família. Principalmente dos mais ricos, dos mais conformados com a ordem estabelecida, dos mais ordeiros; e só dentro da ordem, mais progressistas. Estes amigos da ordem e, apenas em segundo lugar, do progresso, já não eram, no século XVIII, senão em número pequeno, os senhores de engenho, os senhores de terras, os fazendeiros, tantos deles endividados e, como todos os endividados, predispostos à inquietação, à revolta, à desordem; e sim os grandes do comércio, da indústria e das próprias artes mecânicas consideradas ingresias em contraste com as francesias (que significavam principalmente novidades em matéria de governo e de organização social e não apenas de trajo).

Principalmente os grandes do comércio e da indústria das grandes cidades tornaram-se os defensores por excelência da “ordem”. Novos comendadores, novos barões, novos viscondes em cujo champanha de dia de festa podia sentir-se, como no champanha de certo negociante opulento do Recife enriquecido no comércio de peixe seco, sentiu um humorista boêmio do fim do século XIX “gosto de bacalhau”; mas que passaram a constituir uma força mais sólida, na economia nacional, do que a nobreza da terra com todo o aroma de mel de cana que irradiava de suas terras, de suas plantações, de suas fábricas, de seus tachos, de suas casas, de suas próprias pessoas, outrora quase sagradas. Tão sagradas que na era colonial se julgavam com o direito de não pagar dívidas, de insultar credores, de adulterar produtos, embora considerando-se sempre superiores aos “vilões”, aos “traficantes”, aos “taverneiros”, aos “mecânicos”. Não imaginavam então que viria época de mendigarem crédito, esse crédito que, em 4 de dezembro de 1875, escrevia na Província “Um negociante”, em “Breves considerações sobre a praça comercial de Pernambuco”, ter desaparecido para os senhores de terras da velha província agrária.

Não foi, entretanto, o plantador ou lavrador na fase de transição da sede do domínio patriarcal no Brasil das casas-grandes do interior para os sobrados das capitais – isto é, nas áreas do País social e culturalmente mais importantes na época decisiva dessa transição – vítima passiva ou inerme dos novos poderosos. Ele próprio concorreu para sua degradação.

Como observava um cronista do meado do século XIX, se era certo que os “desgovernos” do Império vinham fazendo a agricultura definhar com o excesso de “tributos”, dela exigidos em benefício da Corte e das cidades, por outro lado, “os lavradores dos nossos campos são ainda mais culpados e dignos da mais aspera censura pelo desleixo e estupida miseria com que trabalhão”. Ao trabalho escravo juntavam-se pragas como as de “formigas, bezouros, gafanhotos”: “mas accresce a tudo isto a mandreisse orgulhosa em que vivem a maior parte dos nossos proprietarios de lavouras, respondendo com fofa basofia a tudo...”, julgando-se “os fidalgos da provincia”, “os ricos da terra”, os “protectores do commercio” quando “da forma em que vão são os impostores da provincia, são os pobres da terra, são os sanguesugas do commercio”: “os tributos que pagão á nação não equivalem aos calotes que pregão aos particulares, salvas algumas excepções que são tão poucas como dias de sol em tempo de inverno”. Acrescentava o cronista, referindo-se principalmente à província da Bahia: “Falla-se em machinas, falla-se em apparelhos”. Mas em vez de chegarem os agricultores a soluções concretas, dos problemas de substituição de escravos e animais por máquinas, ficavam tontos com palavras e cálculos em torno de máquinas e aparelhos; e continuavam explorando os negros e os bois, embora sem cuidarem de sua conservação como os antigos agricultores. O que primeiro deviam fazer era “dar estimação aos escravos e aos bois, principais moveis ou utencilios da lavoura...”. Em vez disso, o que se via agora “por este desalmado reconcavo”? Negros alimentados com “uma triste ração de carne secca podre”, surrados e “tendo por botica e medico, purgante de sal e vomitorio de Leroy, applicados estes remedios loucamente por uma negra chamada enfermeira que por ser bruta no serviço do engenho é removida para directora do hospital; os bois, esses dão alguns passos e puxão os carros opprimidos pelas cangas e fustigados pelas espetadelas do ferrão: findo o trabalho são elles atirados ao campo e ahi ficão ao desamparo de dia e de noite, expostos á chuva, sol e sereno; e se por maior desgraça o boi é novato no sitio e não pode saber dirigir-se a um certo charco chamado tanque que ha no pasto, ahi morre elle berrando damnado de sede. E ainda se queixão da morte de escravos e da falta de gado!”. E sarcástico, caricaturesco, exagerado, notava que se resguardavam nos engenhos e fazendas da Bahia “os objectos ou obras materiais de ferro e de madeira, porque podem se estragar”. Mas não se resguardava o corpo dos bois: “o boi que morre ao desamparo do campo devia ser immediatamente esfolado e o couro ser vestido no Sr. de engenho para andar de quatro pés e outros animaes vivos fazerem delle o bumba meu boi”.

Assim se expressava desabusado crítico do estado da lavoura na província da Bahia em artigo, “A agricultura”, que A Marmota Pernambucana publicou a 30 de julho de 1850, naturalmente por se aplicar parte da crítica à situação de outras áreas do Império, tão desintegradas ou minadas nas suas antigas bases patriarcais de economia quanto o recôncavo. Era artigo em que também se criticava a “agricultura dos quintaes”, ou das “roças” ou “sitios” em torno das casas de chácaras dos arredores de Salvador: roças, em geral, “reduzidas a plantar capim tão somente, o que dá muito má idéa da cidade aos observadores de fora...”. Entretanto, por essas casas e pelas ruas, era grande o número de “escravos ociozos e desnecessarios”, fora “um milhão de negras africanas e creoulas” ocupadas em vender “mamões entupidos” e “cocadas remellosas que o lucro que dão não serve nem para o concerto do taxo”. E sem contar os crioulinhos vadios – “crias de vóvó” que levavam os dias inteiros a quebrar telhados – as “cevadas creoulas [...] intituladas costureiras, rendeiras e bordadeiras” das quais havia então em Salvador “um quarteirão em cada casa”.308 Pois o crítico não deixava de salientar que, em contraste com os negros de eito do recôncavo – um recôncavo já perturbado nas suas antigas e doces condições de economia patriarcal pela introdução de máquinas em outras áreas tropicais – os domésticos e os suburbanos e urbanos viviam no ócio ou quase no ócio, muitos deles bem alimentados e até cevados pelos senhores dos sobrados. Sobrados – acentue-se sempre – já burgueses e ainda patriarcais onde o luxo tomou relevos raramente atingidos pelas casas-grandes que, para alguns dos senhores de engenho mais ricos do Rio de Janeiro, da Bahia, de Pernambuco, desde a primeira metade do século XIX passaram à condição de casas de campo, enquanto os sobrados de cidade se elevaram à de palacetes onde os mesmos senhores residiam mais tempo do que no interior. “Proporcionalmente ás nossas circumstancias creio que não ha no mundo cidade onde o luxo tenha chegado a tão alto ponto como em o nosso Pernambuco”, escrevia o padre d’O Carapuceiro em artigo “O luxo no nosso Pernambuco”, transcrito pelo Diário de Pernambuco de 31 de outubro de 1843. Era o luxo de senhores de engenho, residentes principalmente em sobrados urbanos, a rivalizar com o dos negociantes fortes, seus comissários e armazenários, donos de sobrados igualmente suntuosos.”

307 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1920-21, vol. XLIII-IV, p. 62.

308 Marmota Pernambucana, 30 de julho de 1850.

 

 

“Andrew Grant observou que a atividade dos homens de prol do Brasil dos começos do século XIX com relação às atividades industriais vinha alterando-se nos “últimos poucos anos”. Até mesmo os “inveterados preconceitos” contra o comércio, da parte dos nobres, vinham modificando-se sob a “crescente liberalidade” – ou libera-lismo – da época. Vários deles, nobres, estavam ligados a manufaturas estabelecidas no Rio de Janeiro. Um “gentleman of high rank” levantara uma casa de beneficiar arroz, empregando aí cerca de cem escravos.315

Era pena – para o observador inglês – que, ao lado do desenvolvimento das indústrias, das artes e do comércio, continuasse o Brasil a importar negros como se importasse gado. O que sucedia era o senhor branco, mesmo quando morador de “mansões” suntuosas – isto é, casas-grandes e sobrados – ser criatura mais degradada e infeliz que o escravo.

Realmente sucedeu, no Brasil, verificar-se a transigência da parte intelectualmente mais avançada da nobreza rural com as indústrias, com as artes, com o próprio comércio – com ingresias e até com francesias essencialmente burguesas – sem que se verificasse o abandono do sistema de trabalho escravo. Nessa combinação de contrastes, anteciparam-se Minas Gerais e, de certo modo, Pernambuco, no século XVIII e no próprio século XVII. Mas onde o contraste tornou-se mais evidente, cremos que foi no Maranhão dos princípios do século XIX – ao mesmo tempo tão rotineiro e tão progressista.

“Instrumentos agrarios não ha, senão a simples enxada, e machina, senão o miseravel escravo... As conduções em geral são feitas pelos rios e algumas que se fazem por terra são em carros de bois, ainda mais defeituosos que os que se usão em Portugal...” Assim escrevia em livro publicado em Lisboa em 1822 – Estatistica historica-geographica da provincia do Maranhão offerecida ao soberano congresso das cortes geraes – Antônio Bernardino Pereira do Lago.316 Observava mais haver naquela área colonial brasileira, apesar do alvará de 5 de janeiro de 1785 que proibira fábricas ou indústrias no Brasil, “fabricas de descascar arroz, de descaroçar algodão, de fazer assucar, de distillações e de tecer pano de algodão”. Fábricas movidas antes a braço de escravo que a máquina: “[...] podemos dizer que a força motriz de todas he só a resultante de muitos braços de escravos, parecendo aquellas fabricas mais huma masmorra d’Africa que interessante e agradavel edifício de industria”.317

Vê-se por depoimentos como este que a área maranhense – enobrecida desde o começo do século XIX por sobrados rivais dos baianos e dos pernambucanos – antecipou-se à paulista, do café – que só mais tarde seria enobrecida por tais sobrados – e acompanhou de perto a da mineração – desde o século XVIII famosa por cidades bem edificadas – como área de precoce ou prematura industrialização, mas não de mecanização, de sua economia, que continuou a basear-se, tanto quanto a agrária, ou ainda mais que a rusticamente agrária, na energia ou no trabalho do escravo. Perdeu, entretanto, sua organização social, com aquela antecipação, alguns dos traços mais doces de familismo tutelar ou de patriarcalismo benevolente. Explica-se assim terem sido aquelas três áreas caracterizadas, nas suas fases de precoce industrialização da economia, por um abandono do escravo pelo senhor ou por uma exploração do operário – reduzido à condição de substituto de máquina – pelo patrão, que não caracterizaram nem o nordeste agrário nem o Rio Grande do Sul e os sertões pastoris, nas suas relações entre senhores e escravos ou servos: entre senhores de engenho tutelares e escravos quase pessoas da família; entre fazendeiros e estancieiros, igualmente tutelares, e servos quase pessoas de casa.

Tais relações teriam de refletir-se, como se refletiram, na alimentação dos escravos que, nas áreas industrializadas, alterou-se quase sempre no sentido de sua degradação, desde que ao industrial precoce – como foram o mineiro, desde o século XVIII, e o maranhense e o paulista, desde o começo do século XIX – interessava mais esgotar rápida, comercial e eficientemente a energia moça do escravo (substituto de máquina e não apenas de animal) que prolongar-lhe a vida de pessoa servil e útil – mas pessoa ou, no mínimo, animal – através de alimentação farta e protetora – embora com aparência de rude – e de habitação igualmente protetora – embora com característicos de prisão: as senzalas de pedra e cal.

Foram estes os escravos – evidentemente a maioria da população escrava da época colonial e dos primeiros decênios do Império, dado o fato de que o Brasil ortodoxamente patriarcal foi antes agrário e pastoril que industrial e urbano como na área de mineração – que impressionaram os observadores estrangeiros mais penetrantes e mais objetivos nos seus reparos sobre condições de vida e de alimentação que pareceram a vários deles – Tollenare, Pfeiffer e Hamlet Clark – superiores às dos operários ou camponeses europeus e livres da mesma época.

O que conhecemos, por outras fontes de informação, do regime alimentar daqueles escravos que foram os típicos – e não os atípicos – do nosso sistema patriarcal, autoriza-nos a generalizar ter sido o escravo de casa-grande ou sobrado grande, de todos os elementos da sociedade patriarcal brasileira, o mais bem nutrido. Nutrido com feijão e toucinho; com milho ou angu; com pirão de mandioca; com inhame; com arroz – dado pelo geógrafo alemão A. W. Sellin como, em algumas regiões brasileiras, “alimento fundamental”318 “para os escravos” e não apenas para os senhores.

Também o quiabo, o dendê, a taioba e outras “folhas”, outros “verdes” ou “matos” de fácil e barato cultivo, e desprezados pelos senhores, entravam na alimentação do escravo típico. São “matos” cuja introdução na cozinha brasileira – em geral indiferente ou hostil à verdura – se deve ao africano: como quituteiro ou cozinheiro, contribuiu ele – principalmente através da chamada “cozinha baiana” – para o enriquecimento da alimentação brasileira no sentido do maior uso de óleos, de vegetais, de “folhas verdes”. E até – com os Malês – de leite e de mel de abelha. Escravo, o africano foi, de modo geral, elemento mais bem nutrido que o negro ou o mestiço livre e que o branco pobre de mucambo ou palhoça do interior ou das cidades, cuja alimentação teve de limitar-se, de ordinário, ao charque ou ao bacalhau com farinha. Mais bem nutrido que o próprio senhor de engenho ou o fazendeiro ou o dono de minas quando meão ou médio nos seus recursos – e os fazendeiros ou senhores de engenho desse tipo foram, entre nós, a maioria – de alimentação também caracterizada pelo uso excessivo do charque e de bacalhau mandados vir das cidades, junto com a bolacha, o peixe seco e a farinha de mandioca. Enquanto à mesa do estancieiro, farta de carne fresca ou sangrenta, parecem ter sempre faltado o legume, e, por muito tempo, o arroz, ausente também da mesa do sertanejo do Norte, farta apenas de queijo e de carne chamada de sol ou de vento; e tão pobre de legume quanto as outras mesas de patriarcas.

Quanto à mesa dos ricos senhores de casas-grandes e dos sobrados mais opulentos, não nos esqueçamos de que foi ela quase sempre prejudicada pelo excesso de conservas importadas da Europa, em condições de transporte que estavam longe de comparar-se, do ponto de vista da higiene ou da técnica de conservação de alimentos, com as dominantes no século atual. De onde muito alimento deteriorado ou rançoso consumido pela gente nobre dos sobrados que desdenhava das verduras ou matos frescos, comidos pelos negros ou pelos escravos.

São pontos, estes, que devem ser recordados com insistência contra a generalização, baseada quase sempre no sentimentalismo antiescravocrático ou no furor doutrinário dos que desejam acomodar a história das sociedades patriarcais a este ou aquele ismo, de que, em tais sociedades, o escravo foi sempre e sob todos os aspectos, um “mártir”, um “sofredor”, um “mal-alimentado”. A verdade é que houve sociedades, como a brasileira, nas quais, de modo geral, o escravo das áreas ortodoxamente patriarcais – as caracterizadas pelo maior domínio de família tutelar – tiveram um tratamento, um regime de alimentação, um gênero de vida superiores aos dos escravos em áreas já industriais ou comerciais, embora ainda de escravidão, caracterizadas pela tendência à impersonalização ou despersonalização das relações de senhor com escravo, reduzido à condição impessoal de máquina e não apenas de animal.”

315 Andrew Grant, History of Brazil, Londres, 1809, p. 151.

316 Página 56.

317 Página 64.

318 Geografia geral do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, 1889, p. 146.

 

 

Dizem que D. João VI quando chegou à Bahia em 1808 foi logo mandando iluminar a cidade: era “para o inglês ver”. Outros dizem que a frase célebre data dos dias de proibição do tráfico de escravos, quando no Brasil se votavam leis menos para serem cumpridas do que para satisfazerem exigências britânicas. Foi a versão colhida no Rio de Janeiro por Emile Allain que a apresenta como equivalente do francês “pour jeter de la poudre aux yeux”.357 De qualquer modo a frase ficou. E é bem característica da atitude de simulação ou fingimento do brasileiro, como também do português, diante do estrangeiro. Principalmente diante do inglês, em 1808, não mais o herege nem o “bicho” que era preciso salpicar de água benta, para se receber dentro de casa, mas, ao contrário, criatura considerada, em muitos respeitos, superior.

Sob o olhar desse ente superior, o brasileiro do século XIX foi abandonando muitos de seus hábitos tradicionais – como o de dançar dentro das igrejas no dia de São Gonçalo, por exemplo – para adotar as maneiras, os estilos e o trem de vida da nova camada de europeus que foram se estabelecendo nas nossas cidades. Desde as dentaduras postiças ao uso – até o contato maior com os ingleses quase insignificante – do pão e da cerveja.”

357 Émile Allain, Rio de Janeiro. Quelques données sur la capitale et sur l’administration du Brésil, 2ª ed., Rio de Janeiro-Paris, 1886, p. 147.

Afirma Pereira da Costa (Vocabulário pernambucano, cit.), a propósito da expressão “para inglês ver”, que sua origem é a seguinte: “Tocando na Bahia na tarde de 22 de janeiro de 1808 a esquadra que conduzia de Lisboa para o Rio de Janeiro a fugitiva família real portuguesa e não desembarcando ninguém pelo adiantado da hora, à noite, a geral iluminação da cidade, acompanhando a todas as suas sinuosidades, apresentava um deslumbrante aspecto. Extasiado e entusiasmado o príncipe regente D. João, ao contemplar do tombadilho da nau capitânia tão belo espetáculo, exclama radiante de alegria, voltando-se para a gente da Corte que o rodeava: ‘Está bem para o inglês ver’, indicando com um gesto o lugar em que fundeava a nau Bedford, da marinha de guerra britânica, sob a chefia do Almirante Jervis, de comboio à frota real portuguesa”.

 

 

No Brasil dos princípios do século XIX e fins do XVIII, a reeuropeização se verificou (perdoe o leitor os muitos mas inevitáveis “ão”) pela assimilação, da parte de raros, pela imitação (no sentido sociológico, primeiro fixado por Tarde), da parte do maior número; e também por coação ou coerção, os ingleses, por exemplo, impondo à colônia portuguesa da América – através do Tratado de Methuen, quase colônia deles, Portugal só fazendo reinar politicamente sobre o Brasil – e mais tarde ao Império, uma série de atitudes morais e de padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos brasileiros. Pelo menos com a rapidez com que foram seguidos pelas maiorias decisivas nessas transformações sociais.

A reconquista, porém, teve de seguir suas cautelas. De tomar suas precauções. Porque houve resistências, de ordem natural, umas, outras de ordem cultural. O clima, por exemplo, resistiu ao nórdico. E sob o favor do clima, a malária e a febre amarela agiram contra o europeu. À sombra das condições precárias de higiene, agiram contra ele a peste bubônica, a sífilis, a bexiga, o bicho-de-pé. Elementos, todos esses, de resistência antieuropeia; alguns de origem terrivelmente asiática ou africana. Operaram eles no sentido de moderar a reeuropeização do Brasil e de conservar o mais possível, no País, os traços e as cores extraeuropeias, avivadas durante séculos profundos de segregação.

Houve mesmo nativistas que se regozijaram com a ação violentamente antieuropeia da febre amarela. Febre terrível que, poupando o nativo, não perdoava o estrangeiro. Principalmente o louro, de olhos azuis, sardas pelo rosto.

Mas o estrangeiro louro insistiu em firmar-se em terra tão sua inimiga com um heroísmo que ainda não foi celebrado. Só visitando hoje alguns dos velhos cemitérios protestantes no Brasil – o do Recife ou o de Salvador ou o do Rio de Janeiro – que datam dos princípios do século XIX, e vendo quanta vítima da febre apodrecer por esses chãos úmidos e cheios de tapuru, debaixo de palmeiras gordas, tropicalmente triunfantes sobre o invasor nórdico, faz alguém ideia exata da tenacidade com que o inglês, para conquistar o mercado brasileiro e firmar nova zona de influência para o seu imperialismo, se expôs a morrer de febre tão má nesta parte dos trópicos. As inscrições se sucedem em uma monotonia melancólica: “James Adcock – architect of civil engineer who after nearly three years of residence died here of yellow fever in the 39th year of his age”; “in memory of Robert Short – fifth son of William Short of Harrogate – died of yellow fever – aged 19 years”; “in loving memory of my beloved husband Ernest Renge Williams who died of yellow fever – age 26...””

 

 

A parte estritamente médica das palavras do Dr. Aquino Fonseca – que, aliás, estudara medicina na França – tem o pitoresco das terminologias arcaicas; mas não lhe falta sua nota de bom senso. “Outrora os vestuarios” – dizia o dr. Aquino – “eram ligeiros e feitos com amplidão; e isto estava inteiramente em harmonia com o clima quente da cidade, e facilitava não só os movimentos respiratórios, e por consequencia a hematose, como vedava que se estabelecesse a transpiração, evitando por este modo que qualquer viração, tão frequente aqui, désse causa a sua suppressão, donde resultam males incontestáveis; mas as modas francezas, trazendo a necessidade de arrocho, para que se possam corrigir as formas irregulares de certos individuos ou fazer sobresahir as regulares, embaraçam o jogo respiratorio das costellas e diaphragma, e influem sobre a hematose; e os pannos espessos de lan, reduzindo os vestuarios a verdadeiras estufas, tornam os homens sempre dispostos a contrahir affecções do systema respiratorio, pela suppressão da transpiração, que por muitas vezes e com facilidade tem logar”.360 Daí, ao seu ver, o aumento alarmante da tuberculose coincidir com o período de reeuropeização ou europeização dos hábitos de comer e de vestir: ou com as modas francesas e inglesas de roupa a que se refere quase furioso.

No século XVIII – que foi, talvez, quanto aos costumes, o mais autônomo, o mais agreste, o mais brasileiro na história social do País – Vilhena rebatera as críticas de alguns viajantes europeus, com relação ao trajo solto, à vontade, chamado “á fresca”, dos brasileiros, quando na intimidade de suas casas. Mostrara que esse relaxamento, tão repugnante para quem vinha de climas mais frios, correspondia às condições de clima tropical da colônia.361 Luccock, crítico tão severo das nossas maneiras nos últimos tempos de vida propriamente colonial, associou o fato de as crianças andarem em casa nuas, algumas só de roupa de baixo “nothing but under linen garment”, os antigos sunga-nenens – ao clima quente, inimigo das roupas de pano grosso.362

Mas com a reeuropeização do País, as próprias crianças tornaram-se martirezinhos das modas europeias de vestuário. Os maiores mártires – talvez se possa dizer. As meninas, sobretudo. Os figurinos do meado do século XIX vêm cheios de modelos de vestidos para meninas de cinco, sete, nove anos, que eram quase camisinhas de força feitas de seda, de tafetá ou de “poil de chèvre”. Meninas de cinco anos que já tinham de usar duas, três saias, por cima das calçolas, as de baixo bordadas com “ponto de espinhos” e guarnecidas com franja Tom-Pouce. Ou então saias guarnecidas com três ordens de fofos. E não só excesso de saias: gorra de veludo preto. Botinas de pelica preta até o alto da perna. Penas de perdiz enfeitando a gorra.

Em vão clamavam os Aquino Fonseca, os Correia de Azevedo, anos mais tarde, os Torres Homem. Correia de Azevedo dizendo que no caso do menino brasileiro, o vestuário devia “apenas resguardar-lhe o corpo das variedades da temperatura”. Que as crianças, num país tropical, não podiam nem deviam “ser criadas nem à inglesa, nem à alemã, nem à russa”.363 Os pais brasileiros, principalmente nas cidades, não queriam saber dessas advertências de médicos esquisitos. Vestiam seus filhos ortodoxamente à europeia. Os coitados que sofressem de brotoejas pelo corpo, assaduras entre as pernas. A questão é que parecessem inglesinhos e francesinhos.

Mas não foi só o vestuário da criança: a educação toda reeuropeizou-se, ao contato maior da colônia e, mais tarde, do Império, com as ideias e as modas inglesas e francesas. E aqui se observe um contraste: o contato com as modas inglesas e francesas operou, principalmente, no sentido de nos artificializar a vida, de nos abafar os sentidos e de nos tirar dos olhos o gosto das coisas puras e naturais; mas o contato com as ideias, ao contrário, nos trouxe, em muitos pontos, noções mais exatas do mundo e da própria natureza tropical. Uma espontaneidade que a educação portuguesa e clerical fizera secar no brasileiro.

A monocultura, devastando a paisagem física, em torno das casas, o ensino de colégio de padre jesuíta devastando a paisagem intelectual em torno dos homens, para só deixar crescer no indivíduo ideias ortodoxamente católicas, que para os jesuítas eram só as jesuíticas, quebrara no brasileiro, principalmente no da classe educada, não só as relações líricas entre o homem e a natureza – rotura cujos efeitos ainda hoje se notam em nossa ignorância dos nomes de plantas e animais que nos cercam e na indiferença pelos seus hábitos ou pelas suas particularidades – como a curiosidade de saber, a ânsia e o gosto de conhecer, a alegria das aventuras de inteligência, de sensibilidade e de exploração científica da natureza. Essa curiosidade, esse gosto, essa alegria nos foram comunicados nos fins do século XVIII, e através do XIX, pelos enciclopedistas e pelos revolucionários franceses e anglo-americanos. Através do século XIX, também por mestres franceses e ingleses que aqui estabeleceram colégios, para grande indignação dos padres.

Esses mestres, como aqueles enciclopedistas, fizeram ao brasileiro um bocado de mal, comunicando-lhe um liberalismo falso; mas fizeram-lhe também algum bem. Abriram-lhe nova zona de sensibilidade e de cultura, refazendo um pouco da espontaneidade intelectual, em tantos pontos abafada, não tanto pelo Santo Ofício, como pelo ensino uniformizador dos padres da Companhia. Ensino uniformizador útil, utilíssimo à integração social do Brasil, como já foi acentuado em capítulo anterior; mas que nos retardou e quase nos feriu de morte a inteligência, a capacidade de diferenciação, de iniciativa, de crítica, de criação.

Nada mais amolecedor da inteligência que o ensino exclusivo ou quase exclusivo do latim ou de qualquer língua morta. Foi o ensino que se desenvolveu entre nós sob a influência dos colégios de padre.

À proporção que o ensino dos jesuítas foi criando pelas cidades da colônia elitezinhas de letrados, quase todos simples latinistas untuosos, seráficos, de livro de missa no bolso – dos quais, entretanto, se desgarraram alguns temperamentos agrestes como o de Gregório de Matos – a leitura dos livros latinos tornou-se a única leitura nobre e digna: Virgílio, Tito Lívio, Horácio, Ovídio. Quem lesse Diana ou alguma novela ou romance em língua popular tinha o olhar desconfiado do Santo Ofício e do jesuíta dentro de casa. O único prazer intelectual dos bacharéis e mestres em artes formados pelos jesuítas era ler e decorar os velhos poetas latinos. Sabendo de cor trechos enormes dos autores clássicos alguns rivalizavam com os padres no conhecimento da língua oficial da Igreja que, dando-lhe acesso a tão grandes riquezas antigas, segregava-os da literatura viva, moderna, atual.

Também nos seminários fundados no Rio de Janeiro nos princípios do século XVIII e no de Mariana e no de Olinda – estabelecimentos de orientação pedagógica já diversa da dos jesuítas e até em antagonismo com o ensino da S. J. – continuou-se a dar importância quase exclusiva ao estudo do latim, embora no de Olinda cuidando-se já do estudo das ciências e das letras vivas. Sistematizado pelo padre Pereira na sua gramática – o Novo Método – e começando com a leitura das Fábulas de Fedro, o ensino do latim ia até Ovídio e Horácio. Era uma disciplina severa; e teria sido ótimo, se não fosse exclusivo. O aluno atravessava a fase mais dura das declinações e dos verbos sob a vara de marmelo e a palmatória do padre-mestre. Mas acabava não sabendo escrever um bilhete, senão com palavras solenes e mortas; e evitando as palavras vivas até na conversa.

A retórica se estudava nos autores latinos – lendo Quintiliano, recitando Horácio, decorando as orações de Cícero. Lógica e Filosofia, também: eram ainda os discursos de Cícero que constituíam os elementos principais de estudo. A filosofia era a dos oradores e a dos padres. Muita palavra e o tom sempre o dos apologetas que corrompe a dignidade da análise e compromete a honestidade da crítica. Daí a tendência para a oratória que ficou no brasileiro, perturbando-o tanto no esforço de pensar como no de analisar as coisas, os fatos, as pessoas. Mesmo ocupando-se de assuntos que peçam a maior sobriedade verbal, a precisão, de preferência ao efeito literário, o tom de conversa em vez do de discurso, a maior pureza possível de objetividade, o brasileiro insensivelmente levanta a voz e arredonda a frase como se estivesse prestando exame de retórica em colégio de padre. Efeito do muito latim; da muita retórica de padre de que se impregnou entre nós o ensino; de que se deixou marcar a formação intelectual dos homens.”

360 Joaquim de Aquino Fonseca, cit. por Otávio de Freitas, A tuberculose em Pernambuco, Recife, 1896.

361 Vilhena, Cartas, cit., p. 89.

362 Luccock, op. cit., p. 127.

363 Para Correia de Azevedo o Brasil devia fugir do “moderno francesismo”, inclusive em relação ao vestuário das crianças: “O mesmo brasileiro, em consequência do clima e dos acidentes das localidades em que habita, tem de seguir uma higiene à parte, só para ele formulada. Nossas crianças não podem e não devem ser criadas nem à inglesa, nem à alemã, nem à russa [...]. O seu vestuário deve apenas resguardar-lhe o corpo das variedades da temperatura” (“Concorrerá o modo por que são dirigidos entre nós a educação e a instrução da mocidade para o benéfico desenvolvimento físico e moral do homem?”, Anais Brasilienses de Medicina, Rio de Janeiro, abril de 1872, tomo XXIII, p. 435).

 

 

“Se, em grande número de casos, a cristianização ou a europeização de ameríndios e de africanos e de seus descendentes foi obra de superfície, não os arrancando senão aparentemente de seus hábitos de “raças inferiores” transformadas em classes servis, noutros casos resultou em fazer de descendentes de selvagens ou primitivos uns quase fanáticos das ortodoxias – a política, a moral e a religiosa – por eles mal assimiladas dos primeiros europeus. Nessas ortodoxias – talvez mais por fidelidade ou apego à região mais propícia aos homens de cultura primitiva e de economia antes rústica que urbana, isto é, o senão, que por motivos principalmente de “raça” ou de classe – alguns grupos se fixaram com unhas e dentes, contra desvios ou invasões dos próprios brancos do litoral. Daí o seu modo nem sempre lógico de participação em lutas civis travadas no Brasil, depois de já aqui estabelecidas formas patriarcais de convivência. Em vez de investirem contra as ordens estabelecidas pelos brancos, a atitude de caboclos e homens de cor foi, mais de uma vez, a de defesa de valores europeus ortodoxos, ou já tradicionais, no Brasil. Valores que julgavam ameaçados por inovações.

Não foi outro o modo de se justificarem os cabanos e os papa-mel do Norte – grande número dos quais, sertanejos e matutos com sangue ameríndio, a quem se juntaram negros e pardos de engenhos, atraídos pela possibilidade de se libertarem – de sua guerra de morte a liberais, progressistas e inovadores dos sobrados do litoral ou das cidades. “Os liberaes não querem mais desigualdade, quando desde que Christo se humanisou que ha desigualdade”, diziam os papa-mel de Alagoas em resposta à proclamação legalista de 11 de setembro de 1832. Justificavam-se assim esses homens quase de mucambos do seu monarquismo absolutista e do seu patriarcalismo severo e a seu modo hierárquico de rústicos. E acrescentavam: “querem os liberaes que os filhos não obedeçam aos paes, os sobrinhos aos tios, os afilhados aos padrinhos: querem, si agradar, a filha dos outros, carregal-a e da mesma sorte a mulher mais bonita... o mais a proporção como estão obrando contra a lei de Nosso Senhor Jesus Christo. Finalmente não querem obedecer ao monarcha e o mesmo Deus disse ao rei que quando os povos lhe faltassem com a obediencia que elle os destruirá com peste, fome e guerra”.412

Ora, desse movimento a um tempo patriarcalista e monarquista, de homens rústicos contra liberais e progressistas das cidades, não participaram só pequenos agricultores e criadores de gado, dos quais muitos, descendentes de caboclos; nem apenas negros e homens de cor, escravos de engenhos da região – região de engenhos pequenos. Também participaram dele ameríndios recém-civilizados como os do Jacuípe, com seu capitão-mor,413 envolvidos na luta – luta de absolutistas contra constitucionalistas, de restauradores de D. Pedro I contra nacionalistas partidários de Pedro II – talvez por solidariedade com a região ou por “consciência de espécie” regional – sertanejos contra o litoral – talvez por vago sentimento de lealdade à monarquia, sabido como é que, no Brasil, os reis de Portugal deixaram bem estabelecida a tradição de ser a Coroa amiga dos indígenas, em particular, e das gentes de cor, em geral. E na verdade mais de uma vez defendeu a Coroa as gentes de cor, contra os interesses dos particulares ricos ou contra a exploração ou os excessos de religiosos poderosos. Contra a própria discriminação de raça ou de cor da parte de jesuítas contra pardos.

Da crise de Pedra Bonita – onde sertanejos de Pajeú das Flores, na província de Pernambuco, na sua maioria caboclos, dominados por um místico que foi uma espécie de esboço traçado a sangue do fanático ou monge de Canudos, chegaram ao sacrifício humano414 – não nos esqueçamos de que foi a seu modo sebastianista: expressão de sentimento ou desejo de regresso à monarquia absoluta e, ao mesmo tempo, de repúdio àquelas formas dominantes de grande propriedade – a das casas-grandes – que não se conciliavam com a independência das “casas de caboclos”, donos apenas de cabras de leite. Antes de haver no Brasil uma “guarda negra”, de defesa à monarquia paternalista ou maternalista dos Braganças e composta de africanos e descendentes de africanos – capoeiras, capadócios, capangas – que grandemente dificultaram a ação antimonárquica de bacharéis brancos como Silva Jardim ou a de propagandistas da República mestiços como Saldanha Marinho e Glycerio, houve caboclos e descendentes de caboclos, mestiços e cafuzos que, em grupos numerosos, se puseram ao lado das instituições mais antigas para aqui transplantadas da Europa – mesmo as mais duramente hierárquicas, como a monarquia absoluta ou a forma mais severamente patriarcal de família – e contra as inovações, mesmo as igualitárias: igualitarismo que, praticado, tenderia a beneficiá-los. É que, como raças subjugadas, se sentiam necessitados menos de liberdades abstratas que da proteção efetiva que reis e papas pareciam ser os mais aptos a lhes conceder contra senhores brancos e padres católicos desabusados no exercício, ou na perversão, do domínio econômico, político ou religioso sobre as gentes de cor. Dos reis e dos papas, na verdade, é que mais de uma vez tiveram os nativos do Brasil e mesmo os negros vindos da África, proteção efetiva contra abusos de particulares e até de religiosos; e essa proteção é natural que tenha criado nos ameríndios e nos seus descendentes e nos negros e descendentes de negros sentimentos de classe capazes de superar os de raça: vermelhos, pretos ou pardos eram tão filhos de Deus e de Maria Santíssima como qualquer branco; vermelhos ou pardos eram tão súditos del-Rei como qualquer português. Nem a colonização portuguesa do Brasil – já o acentuamos em outras páginas – se fez sobre outra base: a da importância capital ser a do status religioso e não a do de raça; a do status político e não a do de cor.

O que desde cedo resultou na transferência de valores e sentimentos, em outras áreas presos principalmente à condição de raça, para a condição, quase pura, de classe: o homem de cor, civilizado e cristianizado, podia ser socialmente tão português como qualquer português e tão cristão como qualquer cristão, desde anos remotos tendo se aberto aos ameríndios o próprio sacerdócio, franqueado também, em casos excepcionais, a descendentes de africanos como o grande Antônio Vieira; desde anos remotos tendo se aberto aos dois elementos extraeuropeus, por imposição de necessidades de defesa militar da colônia, a própria carreira das armas, na qual podiam chegar a postos elevados da confiança especial del-Rei. O caso de Camarão e o de Henrique Dias, entre outros.

E tendo sido esta a tendência, em nosso país, desde dias remotos, é natural que as gentes de cor venham se comportando menos como duas raças oprimidas pela branca, que vária ou diversamente, segundo status de cada indivíduo ou de cada família na sociedade (classe) e no espaço físico-social ou físico-cultural (região). Pois não devemos nos esquecer da força com que, entre nós, a situação regional do indivíduo ou da família a tem impelido para integrar-se, independente da cor, da raça, da classe, e da própria condição de naturalizado ou de nato, em culturas, ou configurações regionais de cultura, como a sertaneja, a caipira ou a gaúcha. Que o diga, além dos exemplos já invocados, o de Canudos onde se reuniram, em torno do conselheiro, indivíduos e famílias de procedências e situações étnicas diversas, cuja “consciência de espécie” era principalmente a de sertanejos estagnados em sua concepção ao mesmo tempo pastoril e patriarcal de vida, em fase remota de transição de culturas primitivas para a europeia e católica. Que o diga, por outro lado, a situação do ameríndio e do próprio negro nas estâncias rústicas do Rio Grande do Sul, onde, segundo esclarecido historiador moderno da região, “o negro foi mais companheiro do que servo”.415 Situação que se acentuou quando o negro, numa área brasileira eminentemente militar como a sul-riograndense pastoril, encontrou na atividade bélica, ou no serviço de guerra a pé e a cavalo, o caminho para sua elevação social. O mesmo caminho que encontrara no Nordeste do século XVII, isto é, durante os dias de uma guerra de efeitos confraternizantes sobre portugueses e brasileiros de todas as classes, raças e até regiões – pois os próprios paulistas participaram da luta – reunidos contra o inimigo comum, que era o invasor holandês.416

412 M. Lopes Machado, “O 14 de abril de 1832, em Pernambuco”, Rev. do Inst. Arq. Hist. Geog. Pernambucano, XXXIII, p. 62. Para esse historiador os insurretos de 1832 deram provas de “heroicidade, de amor ao lar e à família...” (p. 65) supondo “defender a família, o lar e a religião” (p. 62). Foram uma espécie de antecipação e, ao mesmo tempo, de miniatura de Canudos: “Dos píncaros mais agrestes, dos alcantis mais escabrosos, das brenhas mais enredadas daqueles lugares, caíam de improviso sobre as avançadas do governo, ou os atraíam a veredas enguerrilhadas para os destruir e aniquilar e quando surpreendidos todos ou separados na refrega, morriam motejando, sem nunca se renderem” (p. 61). Note-se, ainda, que, “dividiam-se em bandos sem disciplina militar mas obedientes ao chefe” (p. 61), isto é, ao chefe de cada bando. São muitas as semelhanças entre o movimento chamado dos “cabanos”, no Nordeste, e os quase contemporâneos que ocorreram no Maranhão (“Balaiada”) e no extremo Norte do Império (“Cabanagem”), o primeiro estudado pelo Sr. Astolfo Serra no seu ensaio A Balaiada, Rio de Janeiro, 1946, o segundo pelo Sr. Ernesto Cruz, no seu trabalho Nos bastidores da Cabanagem, Belém, 1942.

413 Ibid., p. 63.

414 Note-se que em Pedra Bonita a superstição dominante foi a de que ali, depois do sacrifício de certo número de inocentes, se desencantaria um reino “onde o proletário [...] ressurgiria nobre, rico e poderoso”, como lembra o conselheiro Tristão de Alencar Araripe em prefácio a Fanatismo religioso – Memória sobre o reino encantado na comarca de Vila Bela, de Antônio Ático de Sousa Leite, 2ª edição por Solidônio Ático Leite, Juiz de Fora, 1898, p. 8. E pormenor significativo: além do sacrifício de criaturas humanas, houve “o sacrifício de cães, verdadeiros molossos, que no dia do grande evento levantar-se-iam como valentes e indômitos dragões para devorar os proprietários” (p. 9).

415 Dante de Laytano, O negro no Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1941, p. 8.

416 Em seu ensaio O banguê nas Alagoas (Rio de Janeiro, 1949), o Sr. Manuel Diegues Júnior recorda que na luta contra os holandeses o próprio escravo negro “acompanhou o senhor de engenho no seu sofrimento e na sua reação.” E acrescenta: “Moradores e cabras de engenho, gente do eito e da bagaceira, pessoal da moenda e da casa-grande, juntaram-se todos no mesmo sentimento de confraternização com os proprietários rurais, reagindo contra os holandeses”. Em comentário ao mesmo ensaio, já salientamos em trabalho publicado em Cultura, Rio de Janeiro, no I, setembro-dezembro de 1948, que o patriarcado no Brasil “não só tornou o senhor dependente do escravo e o escravo dependente do senhor como criou entre senhor e escravo, nos dias normais e não apenas nos de guerra, sentimentos de solidariedade mais de uma vez superiores aos de classe ou de raça de cada um daqueles elementos. Donde podermos concluir que tais elementos nem sempre foram antagônicos mas, ao contrário, sob mais de um aspecto, simbióticos.” E mais: “...não devemos nos esquecer de que nas Alagoas, como noutras partes do Brasil, a tendência dominante foi para o escravo sentir-se membro da família de que era escravo, a ponto de identificar-se com seus sentimentos, sua linguagem, seus gestos, seus deuses domésticos, suas devoções e seus símbolos. Sabe-se que houve escravos, por este vasto Brasil, de tal modo identificados com a política de seus senhores que, homens feitos, usavam, como os senhores, o cavanhaque ou a pera que se tornara insígnia dos membros do Partido Conservador” (p. 121).

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