domingo, 21 de maio de 2023

A elite do atraso (Parte I), de Jessé Souza

Editora: Estação Brasil

ISBN: 978-85-5608-042-4-3

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 352

Sinopse: Quem é a elite do atraso? Como pensa e age essa parcela da população que controla grande parte da riqueza do Brasil? Onde está a verdadeira e monumental corrupção, tanto ilegal quanto “legalizada”, que esfola tanto a classe média quanto as classes populares? A elite do atraso se tornou um clássico contemporâneo da sociologia brasileira, um livro fundamental de Jessé Souza, o sociólogo que ousou colocar na berlinda as obras que eram consideradas essenciais para se entender o Brasil. Por meio de uma linguagem fluente, irônica e ousada, Jessé apresenta uma nova visão sobre as causas da desigualdade que marca nosso país e reescreve a história da nossa sociedade. Mas não a do patrimonialismo, nossa suposta herança de corrupção trazida pelos portugueses, tese utilizada tanto à esquerda quanto à direita para explicar o Brasil. Muito menos a do brasileiro cordial, ambíguo e sentimental. No âmago da interpretação de Jessé não está a corrupção política. Para ele, a questão a partir da qual se deve explicar a história passada e atual do Brasil – e de suas classes, portanto – não é outra senão a escravidão. Sob uma perspectiva inédita, ele revela fatos cruciais sobre a vida nacional, demonstrando como funcionam as estruturas ocultas que movem as engrenagens do poder e de que maneira a elite do dinheiro exerce sua força invisível e manipula a sociedade – com o respaldo das narrativas da mídia, do judiciário e de seu combate seletivo à corrupção.



“A primeira coisa a se fazer quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como o mundo social é perceber as hierarquias das questões a serem esclarecidas. Sem isso, nos perdemos na confusão. O poder é a questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ele que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é uma mera convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais. Assim, para se conhecer uma sociedade, é necessário reconstruir os meandros do processo que permite a reprodução do poder social real.

O exercício do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem razão. No mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social, que será a chave de acesso a todos os privilégios, são os intelectuais. Pensemos na Lava Jato e em sua avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política” que o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o país é uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro, como veremos em detalhe mais adiante. Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente de suas virtudes pessoais, são suas ideias – de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampiriza a nação – que legitimam toda a ação predadora do direito e das riquezas nacionais comandada pela Lava Jato. O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, fez, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos e principalmente levando à eliminação de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem para que se repassem, a baixo custo, empresas estatais e nossas riquezas do subsolo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.

A construção de uma elite todo-poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não vejamos a elite real, que está fora do Estado, ainda que sua captura seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os “aviõezinhos” do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros.”

 

 

“Onde reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente no aspecto principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe. Iremos, no decorrer deste livro, usar o termo “racismo” não apenas no seu sentido mais restrito de preconceito fenotípico ou racial. Iremos utilizá-lo também para outras formas de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o mesmo procedimento e a mesma função de legitimação de uma distinção ontológica entre seres humanos sejam aplicados. Afinal, essas hierarquias existem para servir de equivalente funcional do racismo fenotípico, realizando o mesmo trabalho de legitimar pré-reflexivamente a suposta superioridade inata de uns e a suposta inferioridade inata de outros.

Quando os teóricos da modernização de ontem e de hoje dizem que o protestantismo individualista, tipicamente americano, cria seres excepcionais, mais inteligentes, produtivos e moralmente superiores, esvai-se qualquer diferença entre essa visão e o racismo científico que separa as pessoas pela cor da pele. Pior ainda. Ao substituir a raça pelo estoque cultural, cria-se uma impressão de cientificidade, reproduzindo-se os piores preconceitos. Os seres superiores seriam mais democráticos e mais honestos do que os inferiores, como os latino-americanos, por exemplo. Tornam-se invisíveis os processos históricos de aprendizado coletivo e criam-se distinções tão naturalizadas e imutáveis quanto a cor da pele ou supostos atributos raciais.

O culturalismo, cientificamente falso como é, cumpre, assim, exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele. Presta-se a garantir uma sensação de superioridade e de distinção para os povos e países que estão em situação de domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação. Hoje em dia, na Europa e nos Estados Unidos, absolutamente ninguém deixa de se achar superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o esforço politicamente correto de se tratar um africano ou um latino-americano como se este fosse efetivamente igual. Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. A desigualdade ontológica efetivamente sentida, na dimensão mais imediata das emoções, tem que ser negada por um esforço do intelecto que se policia. Os rituais do politicamente correto são explicáveis em grande medida por esse fato.

Isso ajuda as camadas dominantes dos países centrais a legitimar seu próprio sistema social para seu povo, que não deve reclamar do sistema dele, posto que seria superior aos outros. E ajuda as mesmas camadas superiores internacionalmente, já que é mais fácil expropriar riquezas de povos que se acham mesmo inferiores e desonestos. O raciocínio do tipo “entregar a Petrobras para os estrangeiros é melhor que deixá-la para nossos políticos corruptos” se torna justificável precisamente nesse contexto – apesar de absurdo.

Cria-se, com isso, uma mentalidade de “senhor”, nos países que mantêm uma divisão internacional do trabalho que os beneficia como “merecimento”, e uma mentalidade de “escravo”, naqueles povos criados para a obediência e para a subordinação. Esse dado da superioridade dos outros é percebido por todos como tão óbvio quanto o fato de que o Sol se põe todos os dias para nascer de novo no dia seguinte. É um pressuposto tão óbvio para os indivíduos comuns como o é para os especialistas.

O racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento social, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um mesmo país. Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista também se sente, em relação às camadas populares do próprio país, como um alemão ou um americano se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem gente igual a ele. O que antes era ciência passa a ser, por força dos meios de aprendizado, como escolas e universidades, e dos meios de divulgação, como jornais, televisão e cinema, crença compartilhada socialmente. Em razão tanto da legitimidade e do prestígio da ciência quanto do poder de repetição e convencimento midiático, as pessoas passam a pensar o mundo de tal modo que favorece a reprodução de todos os seus privilégios.”

 

 

“Como não percebemos essas hierarquias, elas mandam em nós todos de modo absoluto e silencioso. O fato de não as notarmos facilita enormemente seu efeito perverso. No caso das mulheres, das quinhentas maiores empresas do mundo, 492 são dirigidas por homens. De algum modo, essa hierarquia perversa está na cabeça também dos que escolhem os CEOs das grandes corporações, fazendo com que os homens sejam maioria esmagadora.

Se essa hierarquia moral é invisível para nós, seus efeitos, ao contrário, são muitíssimo visíveis. O mesmo esquema possibilita que o branco se oponha ao negro como superior também pré-reflexivamente. Até as supostas virtudes do negro são ambíguas, posto que o animalizam com a força física e o apetite sexual. O grande problema dessas hierarquias que se tornam invisíveis e pré-reflexivas é sua enorme eficácia para colonizar a mente e o coração também de quem é inferiorizado e oprimido.

Nos Estados Unidos e na Europa, essas ideias que os elevam e dignificam servem para espalhar um sentimento de superioridade difuso que abrange toda a sociedade. Elas funcionam, portanto, como legitimação interna nesses países e são uma espécie de equivalente do colonialismo anterior: servem para justificar e sacralizar todas as relações fáticas de dominação na ordem mundial. O culturalismo do mais forte serve também, muito especialmente nos Estados Unidos, a prestar o mesmo serviço que o racismo contra os negros sempre possibilitou por lá: dotar a classe baixa dos brancos do Sul do país de um orgulho racial para compensar a sua pobreza material relativa se comparada aos brancos mais ricos do Norte.

A vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que, como não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse racismo ocultado, que é o culturalismo para os países dominantes e, muito especialmente, para suas classes dominantes, é muito maior que a do racismo explícito que vigorava antes.

Como se deu a construção do paradigma racista/culturalista entre nós? Como é possível que alguns de nossos indivíduos mais inteligentes tenham construído concepções de mundo que nos humilham, nos rebaixam e nos animalizam? Isso tudo pensado como se fosse destino imutável? Que americanos e europeus se deixem colonizar por esse tipo de concepção de mundo que os dignifica é lamentável, mas compreensível. Afinal, conseguem vantagens bem concretas a partir desse fato. Que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular tenham se deixado e ainda se deixem, até os dias de hoje, colonizar por uma concepção racista e arbitrária que os inferioriza e lhes retira a autoconfiança e a autoestima não é apenas lamentável. É uma catástrofe social de grandes proporções. Como as ideias são fundamentais para a ação prática, jamais seremos um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimas indefesas desse preconceito absurdo.

Não se teria realizado tamanho ataque midiático baseado nesse racismo contra si mesmo, na noção de corrupção como dado cultural brasileiro, como fundamento de todos os golpes de Estado, e jamais se teria realizado um embuste de proporções gigantescas como a operação Lava Jato, sem esse pressuposto conferido pelas ideias dominantes contra as quais não temos defesa consciente. Afinal, é preciso convencer todo um povo de que ele é inferior não só intelectualmente, mas, tão ou mais importante, também moralmente. Que é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utilizá-las, já que outros são honestos de berço, enquanto nós seríamos corruptos de berço.

Além disso, se juntarmos o preconceito do suposto patrimonialismo congênito com o Estado como lugar da elite corrupta e com a noção antipopular e preconceituosa de “populismo” – também produto de intelectuais, que diz que nosso povo é desprezível e indigno de ajuda e redenção, contaminando toda a política feita em seu favor –, explicamos em boa parte a miséria da população brasileira. A colonização da elite brasileira mais mesquinha sobre toda a população só foi e ainda é possível pelo uso, contra a própria população indefesa, de um racismo travestido em culturalismo que possibilita a legitimação de todo ataque contra qualquer governo popular.

Todo racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa escravizar o oprimido no seu espírito, e não apenas no seu corpo. Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso. De nada adianta americanos e europeus proclamarem suas supostas virtudes inatas se africanos, asiáticos e latino-americanos não se convencerem disso. Do mesmo modo, de nada adianta nossa elite do dinheiro construir uma concepção de país e de nação para viabilizar seus interesses venais se a classe média e a população como um todo não se convencerem disso.

É aí que entram os intelectuais com seu prestígio e a mídia com seu poder de amplificar e reproduzir mensagens com duplo sentido: mensagens que fazem de conta que esclarecem o mundo como ele é, mas que, no fundo, existem para retirar das pessoas toda compreensão e toda defesa possível.

Ninguém na mídia cria nenhuma ideia. Falo aqui, obviamente, de ideias-força, aquele tipo de pensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é restrito a intelectuais e especialistas treinados. A mídia retira seu poder de fogo desse reservatório de ideias dominantes e consagradas. Ela é limitada no seu alcance pelo prestígio que essas ideias e seus autores, que ela veicula, desfrutam em uma sociedade.

Daí que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de ideias. Novamente, não somos formigas. Em vez de um código genético que define por antecipação nosso comportamento, nós só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. Como não somos abelhas nem formigas, mas um tipo de animal que interpreta a própria ação, toda a nossa atuação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela.

Por conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. E também por isso, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo com seus interesses.”

 

 

“Buarque, ao localizar a “elite maldita” no Estado, torna literalmente invisível a verdadeira elite de rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por oligopólios e atravessadores financeiros. Como a elite que vampiriza a sociedade está, segundo ele, no Estado, abre-se caminho – vazio esse que foi logo preenchido por seus discípulos – para uma concepção do mercado que é o oposto do Estado corrupto. Com isso, não só o poder real, do mercado e dos endinheirados, é tornado invisível, como o Estado é tornado o suspeito preferido – como os mordomos nos filmes policiais – de todos os malfeitos. Essa ideia favorece os golpes de Estado baseados no pretexto da corrupção seletiva, mote que sempre é levado à baila quando o Estado hospeda integrantes não palatáveis pelo mercado ávido de capturá-lo apenas para si.

Não existe ideologia melhor para os interesses da elite econômica. A leitura de Sérgio Buarque foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país – como acontece até hoje – e tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite à elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo.”

 

 

“No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa autointerpretação dominante nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão, a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de autodesconhecimento foi possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista nunca tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o nome não significa compreender o conceito.

A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar de escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o país e seus conflitos reais, mas sim para reproduzir todo tipo de privilégio escravista, ainda que sob condições modernas. E, com um toque satânico, demonizar o Estado como repositório da suposta herança maldita portuguesa e, sempre que ele for ocupado pela esquerda, reverberar seletivamente a acusação moralista já pronta.”

 

 

“Como todo processo de escravidão pressupõe a animalização e humilhação do escravo e a destruição progressiva de sua humanidade, como a negação do direito ao reconhecimento e à autoestima, da possibilidade de ter família, de interesses próprios e de planejar a própria vida, libertá-lo sem ajuda equivale a uma condenação eterna. E foi exatamente isso que aconteceu entre nós.”

 

 

“Em países como o nosso, não há como separar – a não ser analiticamente, para separar o joio do trigo e evitar as armadilhas das políticas identitárias falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro –61 o preconceito de classe do preconceito de raça. É que as classes excluídas em países de passado escravocrata tão presente como o nosso, mesmo que existam minorias de todas as cores entre elas, são uma forma de continuar a escravidão e seus padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e superexploradas.

O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos.

Mais ainda. Como a produção da desigualdade de classe desde o berço é reprimida tanto consciente quanto inconscientemente, é o estereótipo do negro, facilmente reconhecível, que identifica de modo fácil o inimigo a ser abatido e explorado. O “perigo negro” usado como senha para massacrar indefesos e quilombolas durante séculos é continuado por outros meios no massacre aberto, e hoje aplaudido sem pejo, de pobres e negros em favelas e presídios. E não só isso. Como houve continuidade sem quebra temporal entre a escravidão – que destrói a alma por dentro, humilha e rebaixa o sujeito, tornando-o cúmplice da própria dominação – e a produção de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade de se defender.

O resumo dessa passagem dramática entre duas formas de escravidão pode ser visto deste modo: como a escravidão exige a tortura física e psíquica cotidiana como único meio de dobrar a resistência do escravo para fazê-lo abdicar da própria vontade, as elites que comandaram esse processo foram as mesmas que abandonaram os seres humilhados, sem autoestima e autoconfiança e os deixaram à própria sorte.

Depois, como se não tivessem nada a ver com esse genocídio de classe, buscaram imigrantes com um passado e um ponto de partida muito diferente para contraporem o mérito de um e de outro, aprofundando ainda mais a humilhação e a injustiça. Esse esquema funciona até os dias de hoje sem qualquer diferença. Esse abandono e essa injustiça flagrante são o real câncer brasileiro e a causa de todos os reais problemas nacionais.”

61 O tema da diversidade como forma de proteger as minorias identitárias foi utilizado para tornar invisível a desigualdade de classe no acesso a riqueza e poder. Com isso, tanto o capitalismo financeiro quanto a Rede Globo podem “tirar onda” de emancipadores. Para o capital, é irrelevante se ele está explorando homem ou mulher, branco ou preto, homossexual ou heterossexual.

 

 

“Com a ajuda preciosa de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, ainda que parcialmente criticados e reconstruídos, temos a embocadura geral tanto de uma nova percepção do Brasil moderno quanto de suas raízes. A escravidão e seus efeitos passam a ser o ponto central, e não mais a pretensa continuidade com Portugal. Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamente herdada de Portugal, para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas. As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre classes sociais, desde que não utilizemos o mote da corrupção para esconder a verdade nem reduzamos as classes à mera dimensão econômica.”

 

 

“Afinal, o capital econômico se torna cada dia mais concentrado e é transmitido “pelo sangue” – a marca mais perfeita do privilégio injusto – desde tempos imemoriais. Como o conhecimento, daí seu caráter de capital impessoal, é tão indispensável à reprodução do capitalismo quanto o próprio capital econômico,63 o capital impessoal e fundamental que sobra para a disputa das outras classes entre si é o cultural. Se entendermos isso, entenderemos também a situação da classe média brasileira como tropa de choque dos poderosos de plantão. Ela vai tender – do mesmo modo como os ricos fazem com o dinheiro – a perceber o conhecimento valorizado como algo que deve ser exclusivo à sua classe social. Sua participação nos golpes contra as classes populares tem muito a ver, portanto, com estratégias de reprodução de privilégios e muito pouco com moralidade e combate à corrupção.

Esse autoengano tende a ser, inclusive, maior na classe média que na elite econômica. É que o capital cultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo, exige sempre esforço para sua assimilação. Por isso, a incorporação de conhecimento arduamente obtido pelo esforço disciplinado aparece ao indivíduo como interna e inata, como fazendo parte da sua personalidade mesma e, portanto, indissociável de si, ao contrário do dinheiro, que é percebido como algo externo à personalidade. Por conta disso, a classe média é a classe por excelência da falácia da meritocracia.

Isso comprova também que as relações de classe, ou seja, a luta de classes no sentido da obtenção de uma melhor posição na competição de todos contra todos pelos recursos escassos, exige também justificativa para os privilégios. Não existem apenas capitais em disputa, mas também uma disputa pelas interpretações, legitimações e justificativas das posições alcançadas. O estudo da reprodução dos privilégios da classe média talvez nos dê o melhor ponto de partida para entender a luta de classes e seu ocultamento sistemático.”

63 E, hoje em dia, na sociedade do conhecimento, a posse de conhecimento aplicado à produção é a base para inovações tecnológicas que se transformam em capital econômico de enorme valorização. Pensemos em Bill Gates ou Steve Jobs.

sábado, 15 de abril de 2023

Clube da luta, de Chuck Palahniuk

Editora: LeYa

ISBN: 978-85-8044-449-0

Tradução: Cassius Medauar

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 272

Sinopse: Considerado um clássico desde a sua publicação em 1996, Clube da luta é hoje reconhecido como um dos romances mais originais e provocativos de sua década. O humor negro de Chuck Palahniuk narra a história de um jovem funcionário que descobre que sua frustração e ira não podem ser acalmadas com o consumo desenfreado que a mídia oferece. Ele encontra alívio e redenção após horas de luta em pequenos clubes escondidos nos porões de bares da cidade. O clube da luta é idealizado por Tyler Durden, que acredita ter encontrado uma maneira de viver fora dos limites da sociedade e de suas regras sem sentido. Mas o que está por vir de sua mente pode piorar muito daqui para a frente.



“Primeiro Tyler me arruma um emprego de garçom, depois enfia um revólver na minha boca e diz que o primeiro passo para a vida eterna é morrer.”

 

 

“Onde estaria Jesus se ninguém tivesse escrito os evangelhos?”

 

 

“O primeiro clube da luta foi apenas Tyler e eu trocando socos.

Antes, se eu chegasse em casa nervoso, sabendo que minha vida não estava seguindo o plano de cinco anos que tinha traçado, bastava limpar o apartamento ou dar um trato no carro. Um dia eu morreria sem nenhuma cicatriz, mas teria um belo apartamento e um lindo carro. Muito belo mesmo e também muito lindo, até que a poeira se acumulasse neles ou então o novo dono os pegasse. Nada é estático. Até a Mona Lisa está caindo aos pedaços. Desde que o clube da luta começou metade dos meus dentes está mole.

Talvez o autoaperfeiçoamento não seja a resposta.

Tyler nunca conheceu o pai dele.

Talvez a autodestruição seja a resposta.

Tyler e eu ainda vamos juntos ao clube da luta, que fica no porão de um bar depois que ele fecha no sábado à noite, e a cada semana que você vai tem mais gente lá.

Tyler fica embaixo de uma luz bem no meio do porão de concreto escuro, e ele pode ver a luz refletindo em cem pares de olhos no escuro. A primeira coisa que ele grita é:

− A primeira regra do clube da luta é que você não fala sobre o clube da luta.

− A segunda regra do clube da luta é que você não fala sobre o clube da luta – Tyler grita.

Já eu convivi com meu pai por uns seis anos, mas não me lembro de nada. Ele começa uma vida nova com outra família em outra cidade a cada seis anos. Isso não parece muito com ele formando uma família, e sim com ele abrindo uma franquia.

O que você vê no clube da luta é uma geração de homens criados por mulheres.

Tyler fica ali parado embaixo da luz cercado pela escuridão de mais de meia-noite do porão cheio de homens e recita as outras regras: dois homens por luta, uma luta de cada vez, nada de sapatos ou camisas e as lutas duram o quanto tiverem que durar.

− E a sétima regra – Tyler grita −, é que se for sua primeira noite no clube da luta você tem que lutar.

O clube da luta não é como futebol americano na televisão. Você não está assistindo a um bando de homens que não conhece e que estão em alguma parte do mundo batendo uns nos outros ao vivo, mas com dois minutos de atraso na imagem por causa do satélite, comerciais de cerveja a cada dez minutos e uma pausa para a identificação do canal. Depois de ter estado no clube da luta, assistir ao futebol americano é como assistir a um filme pornô quando poderia estar transando de verdade e loucamente.

O clube da luta lhe dá uma razão para ir sempre à academia, para cortar cabelos e unhas bem curtos. Na academia há sempre um monte de caras tentando parecer homens, como se ser homem significasse parecer com o que um escultor ou um diretor de arte dizem que deve ser.”

 

 

“O que acontece no clube da luta não acontece em palavras. Alguns caras precisam de uma luta toda a semana. Nesta semana Tyler diz que serão apenas os primeiros cinquenta caras que passarem pela porta, e só. Não mais do que isso.

Na semana passada eu escolhi um cara e nós dois entramos na lista para uma luta. Ele deve ter tido uma semana ruim, pois prendeu meus braços atrás de minha cabeça e bateu meu rosto contra o chão de concreto até meus dentes cortarem as bochechas, o olho ficar inchado e sangrar, e, depois que eu disse para parar, olhei para baixo e vi metade do meu rosto impresso em sangue no chão.

Tyler ficou em pé ao meu lado e nós dois ficamos olhando para o grande O da minha boca pintado com sangue e a pequena fenda do meu olho olhando para nós lá do chão, e então Tyler diz:

− Legal.

Aperto a mão do outro cara e digo que foi uma ótima luta.

O cara responde:

− Que tal outra na semana que vem?

Tento sorrir por baixo de todos os inchaços e digo: olha só para mim. Que tal no mês que vem?

Você não se sente tão vivo em nenhum outro lugar do jeito que se sente no clube da luta. Quando é você e outro cara sob aquela única luz no meio e todos os outros assistindo. O clube da luta não tem a ver com ganhar ou perder as lutas. E não tem a ver com palavras. Você vê um cara vir aqui pela primeira vez e a bunda dele parece uma massa de pão branco. Quando o vê aqui seis meses depois, ele parece esculpido em madeira maciça. Esse cara acredita que pode lidar com qualquer coisa. Aqui há barulhos e grunhidos igual na academia, mas o clube da luta não tem a ver com ficar bonito. Há gritos histéricos em línguas diferentes igual em uma igreja, e quando acorda no domingo à tarde você se sente salvo.

Depois de minha última luta, o cara que me enfrentou passa um pano no chão enquanto ligo para meu convênio de saúde para liberar minha entrada no pronto-socorro. No hospital, Tyler diz que eu caí.

Às vezes Tyler fala por mim.

Eu fiz isso comigo mesmo.

Lá fora o sol começava a nascer.

Você não fala sobre o clube da luta porque, a não ser durante cinco horas, das duas às sete da manhã do domingo, o clube da luta não existe.

Quando inventamos o clube da luta, nem eu nem Tyler havíamos estado em uma briga. Quem nunca esteve em uma luta pensa várias coisas. Pensa em se machucar, em sobre o que é capaz de fazer com outro homem. Fui o primeiro cara com que Tyler se sentiu seguro o bastante para perguntar sobre isso, quando estávamos bêbados em um bar onde ninguém ligava pra nós, então Tyler falou:

− Quero que me faça um favor. Quero que me de um soco o mais forte que conseguir.

Eu não queria fazer aquilo, mas Tyler me explicou tudo, falando sobre não querer morrer sem cicatrizes, de estar cansado de ver apenas os profissionais lutando e de querer saber mais sobre si mesmo.

E sobre autodestruição.

Naquela época a minha vida parecia completa demais, e talvez tenhamos que quebrar tudo para construir algo melhor em nós mesmos.”

 

 

“Meu pai sempre dizia:

− Case antes do sexo ficar tedioso, senão você nunca se casará.

Minha mãe dizia:

− Nunca compre nada com zíper de náilon.

Eles nunca disseram nada que valesse a pena ser bordado em uma almofada.”

 

 

“Tem um monte de coisas que não queremos saber sobre as pessoas que amamos.”

 

 

“Tenho me comportado muito mal.

Atendo o telefone e é Tyler, que diz:

− Saia agora. Tem uns caras te esperando no estacionamento.

Pergunto que caras.

− Eles estão esperando – Tyler responde.

Sinto cheiro de gasolina em minhas mãos.

Tyler continua:

− Pegue a estrada. Eles têm um carro lá fora. Um Cadillac.

Ainda estou dormindo.

Agora não tenho certeza se Tyler é um sonho.

Ou se sou parte de um sonho dele.”

 

 

“− Se você é homem, é cristão e vive na América, seu pai é o seu modelo de Deus. E se você não conheceu seu pai, se ele desapareceu, morreu ou quase nunca está em casa, no que você acredita em relação a Deus?

Isso tudo é o dogma de Tyler Durden. Rabiscado em pedacinhos de papel enquanto eu dormia e depois entregues a mim para que digitasse e fizesse cópias em meu trabalho. Já li tudo. Provavelmente até o meu chefe leu tudo.

− O que você acaba fazendo – o mecânico continua – é passar a vida procurando um pai e um Deus. O que precisa considerar é a possibilidade de Deus não gostar de você. Pode ser que Deus nos odeie. Isso não é a pior coisa que poderia acontecer.

Tyler achava que conseguir chamar a atenção de Deus sendo mau era melhor que não conseguir atenção nenhuma. Talvez porque seja melhor o ódio de Deus do que a indiferença Dele.

Se você pudesse ser o pior inimigo de Deus ou um nada, o que escolheria?

Somos os filhos do meio de Deus, de acordo com Tyler Durden, e não temos lugar especial na história nem atenção.

A menos que consigamos chamar a atenção de Deus, não teremos a menor chance de danação ou redenção.

O que é pior, o Inferno ou o nada?

Apenas se formos pegos e punidos é que poderemos ser salvos.

− Queime o Louvre – o mecânico diz – e limpe a bunda com a Mona Lisa. Dessa forma, Deus pelo menos saberá nosso nome.

Quanto mais fundo você descer, mais alto voará. Quanto mais longe correr, mais Deus vai o querer de volta.

− Se o filho pródigo nunca tivesse saído de casa, o bezerro cevado ainda estaria vivo.

Não é o suficiente ser apenas mais um dentre os grãos de areia da praia e as estrelas do céu.”

 

 

“− Creiam em mim e vocês morrerão para sempre.”

 

 

“− Eu vejo os homens mais fortes e inteligentes que já viveram – ele diz, o rosto delineado pelas estrelas que aparecem pela janela do motorista. – E esses homens estão enchendo tanques de carros e servindo mesas.

A inclinação da testa, as sobrancelhas, a linha do nariz, os cílios, a curva dos olhos, o contorno plástico da boca, o jeito de falar, tudo delineado em preto pelas estrelas.

− Se pudéssemos colocar esses homens em campos de treinamento e terminar de criá-los.”

 

 

“Pergunto sobre Tyler em todos os lugares para os quais eu vou.

Se eu o encontrar, as doze carteiras de motorista dos meus sacrifícios humanos estarão no meu bolso.

Em cada bar que entro, em todos eles mesmo, vejo caras detonados. Em cada bar eles me abraçam e querem me pagar uma cerveja. É como se eu já soubesse quais bares têm clubes da luta

Pergunto se eles já viram um cara chamado Tyler Durden.

É idiotice perguntar se eles conhecem o clube da luta.

A primeira regra do clube da luta é não falar sobre o clube da luta.

Mas por acaso viram Tyler Durden?

Eles respondem que nunca ouviram falar dele, e me chamam de senhor.

Mas talvez possa encontrá-lo em Chicago, senhor.”

 

 

““Somos os filhos do meio da história, criados pela televisão para acreditar que algum dia seremos milionários, astros de filme ou da música, mas não seremos. E estamos entendendo isso agora – Tyler falou. – Então não venha foder com a gente.”

 

 

“Ah, que besteira. Isto é um sonho. Tyler é uma projeção. Ele é um transtorno dissociativo de identidade. Um estado de fuga psicogênica. Tyler Durden é minha alucinação.

− Que se foda essa merda toda – Tyler fala. – Talvez você seja minha alucinação esquizofrênica.

Eu estava aqui primeiro.

Ele responde:

− Sim, sim, claro. Bom, vamos ver quem estará aqui por último.”

 

 

“Tem um velho ditado que diz que você sempre mata aquilo que ama, bom, a recíproca também é verdadeira.

E a recíproca é muito verdadeira.”

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Robinson Crusoé, de Daniel Defoe

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-031-9

Tradução: José Roberto O’Shea

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 352

Sinopse: Misto de livro de aventura, autobiografia espiritual e tributo ao individualismo burguês, Robinson Crusoé continua insuperável, tão original e vívido como há trezentos anos. Edição com tradução, apresentação e notas de José Roberto O’Shea.

“30 de setembro de 1659. Eu, pobre e desgraçado Robinson Crusoé, depois de naufragar em alto-mar durante uma tempestade terrível, cheguei à costa desta ilha desoladora e infeliz, que denominei ‘Ilha do Desespero’, sendo que o restante da tripulação do navio afogou-se, e quase morri.”

Com uma prosa aparentemente despretensiosa, mas repleta de nuances, Daniel Defoe narra a vida atribulada de Crusoé a partir da decisão de abandonar o destino trivial no interior da Inglaterra para se tornar marinheiro. Após várias desventuras e uma crucial estada no Brasil, seu barco naufraga em meio a uma tempestade violenta, a tripulação morre e ele vai parar numa ilha deserta tendo apenas uma faca, um cachimbo e um pouco de tabaco, além de um formidável instinto de sobrevivência. Com disciplina, Crusoé aprende não apenas a construir uma canoa, fazer uma panela e assar pão, mas também a enfrentar seus medos, suas dúvidas e a solidão absoluta. Até que, depois de 24 anos excruciantes, ele descobre uma pegada humana na areia.



Meu pai, homem sábio e circunspecto, deu-me conselhos sérios e excelentes contra o que previu ser meu desígnio. Chamou-me certa manhã em seu quarto, onde padecia de gota,8 e protestou veementemente comigo. Perguntou quais motivos, além de uma simples inclinação errante, teria eu para deixar a casa paterna e meu país natal, onde seria bem-recebido, e onde havia perspectiva de aumentar minha fortuna por meio de dedicação e trabalho, e ter uma vida de conforto e satisfação. Disse-me que somente homens de fortunas arruinadas, por um lado, ou aspirantes a fazer fortuna, por outro, aventuravam-se em viagens ao exterior, para progredirem na vida por meio de empreendimentos e tornarem-se famosos à custa de negócios excêntricos; que essas coisas ou estavam muito acima de mim, ou muito abaixo de mim; que meu nível social era intermediário, ou poderia ser chamado de camada superior do nível mais baixo; condição que ele constatara, por longa experiência, ser a melhor do mundo, a mais adequada à felicidade humana, imune a infortúnios e privações, à labuta e à agrura do segmento laboral da humanidade, sem ser compelida pelo orgulho, pelo luxo, pela cobiça e pela inveja que afetam o segmento mais elevado da humanidade. Disse-me que eu poderia avaliar a felicidade dessa condição de vida com base num fator, a saber, que essa era a situação que todas as demais pessoas invejavam; que reis frequentemente lamentam as consequências desditosas de nascer destinados a realizar grandes feitos, e desejariam ter ocupado o meio dos dois extremos, ou seja, entre os pequenos e os grandes; que o sábio deu seu testemunho disso, como padrão justo de felicidade, quando orou para não ter nem riqueza nem pobreza.9

Ele me pediu que observasse, pois sempre haveria de constatar que as calamidades da vida eram compartilhadas entre os segmentos superiores e inferiores da humanidade, mas que o segmento intermediário sofria menos desastres e não era exposto a tantas vicissitudes; na verdade os que viviam em condição mediana não estavam sujeitos a tantas mazelas e angústias, fosse de corpo ou mente, quanto aqueles que, por uma vida de dissipação, luxo e extravagância, num extremo, ou de trabalho árduo, carências básicas e uma dieta insalubre ou insuficiente, no outro, atraíam mazelas para si mesmos, como consequência natural de seu modo de vida; que a condição intermediária de vida foi calculada para ensejar todo tipo de virtude e todo tipo de satisfação; que a paz e a fartura eram servas da fortuna média; que a temperança, a moderação, o sossego, o bem-estar, a fraternidade, todas as diversões agradáveis e todas as alegrias desejáveis eram bênçãos atinentes à condição mediana de vida; que nesse meio os homens seguiam silenciosa e serenamente pelo mundo, e dele saíam com conforto, sem se importunarem com trabalho braçal nem cerebral, sem serem submetidos a uma vida de escravidão para ganhar o pão de cada dia, nem atormentados por circunstâncias perturbadoras, que privam a alma de paz e o corpo de repouso, nem se enfurecem com o arroubo da inveja, nem anseiam secreta e ardentemente por grandes coisas; mas seguem sob circunstâncias amenas, deslizando suavemente pelo mundo e saboreando sensatamente as doçuras da vida, sem amargor, sentindo-se felizes e aprendendo com a experiência de cada dia a constatar tal fato com crescente sensatez.”

8. Doença geralmente hereditária provocada pelo excesso de ácido úrico no organismo e caracterizada por dolorosos ataques inflamatórios, que ocorrem sobretudo nas articulações.

9. Alusão a Provérbios 30,8: “Afasta de mim a falsidade e a mentira. Não me dês riqueza nem pobreza. Concede-me apenas o meu pedaço de pão”. Todas as traduções de trechos bíblicos foram retiradas da Bíblia Sagrada, edição pastoral (Edições Paulinas).

 

 

Qualquer um pode avaliar a minha situação em meio a tudo aquilo, sendo eu apenas um jovem marujo, que antes tanto se assustara por tão pouco. Mas se puder expressar hoje em dia os pensamentos que tive àquela época, posso dizer que estava dez vezes mais apavorado por causa de minhas antigas convicções, e por haver delas me afastado e chegado às maldosas resoluções tomadas inicialmente, do que por temor à morte em si; e isso, somado ao pavor da tempestade, deixou-me em tal estado que não posso aqui descrever. No entanto, o pior estava por acontecer; a tormenta prosseguiu com tamanha fúria que os próprios marinheiros admitiram jamais terem visto coisa pior. Contávamos com um bom navio, mas estava tão carregado e tão tomado pela água que os marinheiros gritavam constantemente que haveria de soçobrar. Foi minha vantagem, em certa medida, não saber o que significava “soçobrar”, até que perguntei.”

 

 

“Desde aquela época, tenho observado, com frequência, quão incongruente e irracional é o temperamento da humanidade como um todo, especialmente dos jovens, diante de uma constatação que deveria servir para guiá-los, a saber: não têm vergonha de pecar, mas têm vergonha de mostrar arrependimento; não têm vergonha de insistir na ação pela qual, com toda justiça, deveriam ser considerados tolos, mas têm vergonha de retroceder, o que apenas faria com que fossem considerados sensatos.”

 

 

“Abusar da prosperidade é, muitas vezes, causa da maior adversidade.”

 

 

“Com o aumento dos negócios e o enriquecimento, minha cabeça começou a encher-se de projetos e empreendimentos que estavam fora do meu alcance, o que, de fato, costuma ser a causa da ruína dos melhores empreendedores.”

 

 

Aprendi a olhar mais o lado positivo da minha situação, e menos o lado negativo, e a levar em conta o que podia desfrutar, e não o que me faltava, e isso me propiciou tamanho conforto interior que mal posso expressar. E ressalto isso aqui pelo bem dos descontentes, incapazes de aproveitar o que Deus lhes oferece porque veem e desejam algo que Ele não lhes concedeu. Todo o nosso descontentamento diante do que não temos parecia-me resultar da falta de gratidão diante daquilo que temos.”

 

 

Ah, que decisões ridículas os homens tomam quando dominados pelo medo! O temor priva-os das faculdades que a razão oferece para aliviá-los. (...) O receio do perigo é dez mil vezes mais aterrorizante do que o perigo que está diante dos olhos, e o fardo da ansiedade é muito maior do que o mal que nos deixa ansiosos.”

 

 

Que ninguém despreze sinais e avisos misteriosos de perigo que às vezes nos chegam, mesmo quando duvidamos da possibilidade de terem fundamento. Que tais sinais e avisos nos sejam dados, creio que poucos observadores sensíveis possam negar; que sejam revelações de um mundo invisível e uma interação entre espíritos, não podemos duvidar; e se tendem a advertir-nos do perigo, por que não devemos supor que provenham de algum ente querido (se supremo ou inferior e subordinado não vem ao caso) e que sejam advertências oferecidas pelo nosso bem?”