domingo, 21 de maio de 2023

A elite do atraso (Parte I), de Jessé Souza

Editora: Estação Brasil

ISBN: 978-85-5608-042-4-3

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 352

Sinopse: Quem é a elite do atraso? Como pensa e age essa parcela da população que controla grande parte da riqueza do Brasil? Onde está a verdadeira e monumental corrupção, tanto ilegal quanto “legalizada”, que esfola tanto a classe média quanto as classes populares? A elite do atraso se tornou um clássico contemporâneo da sociologia brasileira, um livro fundamental de Jessé Souza, o sociólogo que ousou colocar na berlinda as obras que eram consideradas essenciais para se entender o Brasil. Por meio de uma linguagem fluente, irônica e ousada, Jessé apresenta uma nova visão sobre as causas da desigualdade que marca nosso país e reescreve a história da nossa sociedade. Mas não a do patrimonialismo, nossa suposta herança de corrupção trazida pelos portugueses, tese utilizada tanto à esquerda quanto à direita para explicar o Brasil. Muito menos a do brasileiro cordial, ambíguo e sentimental. No âmago da interpretação de Jessé não está a corrupção política. Para ele, a questão a partir da qual se deve explicar a história passada e atual do Brasil – e de suas classes, portanto – não é outra senão a escravidão. Sob uma perspectiva inédita, ele revela fatos cruciais sobre a vida nacional, demonstrando como funcionam as estruturas ocultas que movem as engrenagens do poder e de que maneira a elite do dinheiro exerce sua força invisível e manipula a sociedade – com o respaldo das narrativas da mídia, do judiciário e de seu combate seletivo à corrupção.


 

“A primeira coisa a se fazer quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como o mundo social é perceber as hierarquias das questões a serem esclarecidas. Sem isso, nos perdemos na confusão. O poder é a questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ele que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é uma mera convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais. Assim, para se conhecer uma sociedade, é necessário reconstruir os meandros do processo que permite a reprodução do poder social real.

O exercício do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem razão. No mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social, que será a chave de acesso a todos os privilégios, são os intelectuais. Pensemos na Lava Jato e em sua avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política” que o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o país é uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro, como veremos em detalhe mais adiante. Certamente Faoro não seria tão primário e oportunista, mas, independentemente de suas virtudes pessoais, são suas ideias – de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampiriza a nação – que legitimam toda a ação predadora do direito e das riquezas nacionais comandada pela Lava Jato. O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, fez, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos e principalmente levando à eliminação de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem para que se repassem, a baixo custo, empresas estatais e nossas riquezas do subsolo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.

A construção de uma elite todo-poderosa que habitaria o Estado só existe, na realidade, para que não vejamos a elite real, que está fora do Estado, ainda que sua captura seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os “aviõezinhos” do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza social de todos em proveito de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e atravessadores financeiros.”

 

 

“Onde reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente no aspecto principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de primeira classe e seres humanos de segunda classe. Iremos, no decorrer deste livro, usar o termo “racismo” não apenas no seu sentido mais restrito de preconceito fenotípico ou racial. Iremos utilizá-lo também para outras formas de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o mesmo procedimento e a mesma função de legitimação de uma distinção ontológica entre seres humanos sejam aplicados. Afinal, essas hierarquias existem para servir de equivalente funcional do racismo fenotípico, realizando o mesmo trabalho de legitimar pré-reflexivamente a suposta superioridade inata de uns e a suposta inferioridade inata de outros.

Quando os teóricos da modernização de ontem e de hoje dizem que o protestantismo individualista, tipicamente americano, cria seres excepcionais, mais inteligentes, produtivos e moralmente superiores, esvai-se qualquer diferença entre essa visão e o racismo científico que separa as pessoas pela cor da pele. Pior ainda. Ao substituir a raça pelo estoque cultural, cria-se uma impressão de cientificidade, reproduzindo-se os piores preconceitos. Os seres superiores seriam mais democráticos e mais honestos do que os inferiores, como os latino-americanos, por exemplo. Tornam-se invisíveis os processos históricos de aprendizado coletivo e criam-se distinções tão naturalizadas e imutáveis quanto a cor da pele ou supostos atributos raciais.

O culturalismo, cientificamente falso como é, cumpre, assim, exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele. Presta-se a garantir uma sensação de superioridade e de distinção para os povos e países que estão em situação de domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação. Hoje em dia, na Europa e nos Estados Unidos, absolutamente ninguém deixa de se achar superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o esforço politicamente correto de se tratar um africano ou um latino-americano como se este fosse efetivamente igual. Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. A desigualdade ontológica efetivamente sentida, na dimensão mais imediata das emoções, tem que ser negada por um esforço do intelecto que se policia. Os rituais do politicamente correto são explicáveis em grande medida por esse fato.

Isso ajuda as camadas dominantes dos países centrais a legitimar seu próprio sistema social para seu povo, que não deve reclamar do sistema dele, posto que seria superior aos outros. E ajuda as mesmas camadas superiores internacionalmente, já que é mais fácil expropriar riquezas de povos que se acham mesmo inferiores e desonestos. O raciocínio do tipo “entregar a Petrobras para os estrangeiros é melhor que deixá-la para nossos políticos corruptos” se torna justificável precisamente nesse contexto – apesar de absurdo.

Cria-se, com isso, uma mentalidade de “senhor”, nos países que mantêm uma divisão internacional do trabalho que os beneficia como “merecimento”, e uma mentalidade de “escravo”, naqueles povos criados para a obediência e para a subordinação. Esse dado da superioridade dos outros é percebido por todos como tão óbvio quanto o fato de que o Sol se põe todos os dias para nascer de novo no dia seguinte. É um pressuposto tão óbvio para os indivíduos comuns como o é para os especialistas.

O racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento social, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um mesmo país. Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista também se sente, em relação às camadas populares do próprio país, como um alemão ou um americano se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para tratar essas pessoas como se fossem gente igual a ele. O que antes era ciência passa a ser, por força dos meios de aprendizado, como escolas e universidades, e dos meios de divulgação, como jornais, televisão e cinema, crença compartilhada socialmente. Em razão tanto da legitimidade e do prestígio da ciência quanto do poder de repetição e convencimento midiático, as pessoas passam a pensar o mundo de tal modo que favorece a reprodução de todos os seus privilégios.”

 

 

“Como não percebemos essas hierarquias, elas mandam em nós todos de modo absoluto e silencioso. O fato de não as notarmos facilita enormemente seu efeito perverso. No caso das mulheres, das quinhentas maiores empresas do mundo, 492 são dirigidas por homens. De algum modo, essa hierarquia perversa está na cabeça também dos que escolhem os CEOs das grandes corporações, fazendo com que os homens sejam maioria esmagadora.

Se essa hierarquia moral é invisível para nós, seus efeitos, ao contrário, são muitíssimo visíveis. O mesmo esquema possibilita que o branco se oponha ao negro como superior também pré-reflexivamente. Até as supostas virtudes do negro são ambíguas, posto que o animalizam com a força física e o apetite sexual. O grande problema dessas hierarquias que se tornam invisíveis e pré-reflexivas é sua enorme eficácia para colonizar a mente e o coração também de quem é inferiorizado e oprimido.

Nos Estados Unidos e na Europa, essas ideias que os elevam e dignificam servem para espalhar um sentimento de superioridade difuso que abrange toda a sociedade. Elas funcionam, portanto, como legitimação interna nesses países e são uma espécie de equivalente do colonialismo anterior: servem para justificar e sacralizar todas as relações fáticas de dominação na ordem mundial. O culturalismo do mais forte serve também, muito especialmente nos Estados Unidos, a prestar o mesmo serviço que o racismo contra os negros sempre possibilitou por lá: dotar a classe baixa dos brancos do Sul do país de um orgulho racial para compensar a sua pobreza material relativa se comparada aos brancos mais ricos do Norte.

A vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que, como não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir superiores, por exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse racismo ocultado, que é o culturalismo para os países dominantes e, muito especialmente, para suas classes dominantes, é muito maior que a do racismo explícito que vigorava antes.

Como se deu a construção do paradigma racista/culturalista entre nós? Como é possível que alguns de nossos indivíduos mais inteligentes tenham construído concepções de mundo que nos humilham, nos rebaixam e nos animalizam? Isso tudo pensado como se fosse destino imutável? Que americanos e europeus se deixem colonizar por esse tipo de concepção de mundo que os dignifica é lamentável, mas compreensível. Afinal, conseguem vantagens bem concretas a partir desse fato. Que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular tenham se deixado e ainda se deixem, até os dias de hoje, colonizar por uma concepção racista e arbitrária que os inferioriza e lhes retira a autoconfiança e a autoestima não é apenas lamentável. É uma catástrofe social de grandes proporções. Como as ideias são fundamentais para a ação prática, jamais seremos um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimas indefesas desse preconceito absurdo.

Não se teria realizado tamanho ataque midiático baseado nesse racismo contra si mesmo, na noção de corrupção como dado cultural brasileiro, como fundamento de todos os golpes de Estado, e jamais se teria realizado um embuste de proporções gigantescas como a operação Lava Jato, sem esse pressuposto conferido pelas ideias dominantes contra as quais não temos defesa consciente. Afinal, é preciso convencer todo um povo de que ele é inferior não só intelectualmente, mas, tão ou mais importante, também moralmente. Que é melhor entregar nossas riquezas a quem sabe melhor utilizá-las, já que outros são honestos de berço, enquanto nós seríamos corruptos de berço.

Além disso, se juntarmos o preconceito do suposto patrimonialismo congênito com o Estado como lugar da elite corrupta e com a noção antipopular e preconceituosa de “populismo” – também produto de intelectuais, que diz que nosso povo é desprezível e indigno de ajuda e redenção, contaminando toda a política feita em seu favor –, explicamos em boa parte a miséria da população brasileira. A colonização da elite brasileira mais mesquinha sobre toda a população só foi e ainda é possível pelo uso, contra a própria população indefesa, de um racismo travestido em culturalismo que possibilita a legitimação de todo ataque contra qualquer governo popular.

Todo racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa escravizar o oprimido no seu espírito, e não apenas no seu corpo. Colonizar o espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e seu bolso. De nada adianta americanos e europeus proclamarem suas supostas virtudes inatas se africanos, asiáticos e latino-americanos não se convencerem disso. Do mesmo modo, de nada adianta nossa elite do dinheiro construir uma concepção de país e de nação para viabilizar seus interesses venais se a classe média e a população como um todo não se convencerem disso.

É aí que entram os intelectuais com seu prestígio e a mídia com seu poder de amplificar e reproduzir mensagens com duplo sentido: mensagens que fazem de conta que esclarecem o mundo como ele é, mas que, no fundo, existem para retirar das pessoas toda compreensão e toda defesa possível.

Ninguém na mídia cria nenhuma ideia. Falo aqui, obviamente, de ideias-força, aquele tipo de pensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é restrito a intelectuais e especialistas treinados. A mídia retira seu poder de fogo desse reservatório de ideias dominantes e consagradas. Ela é limitada no seu alcance pelo prestígio que essas ideias e seus autores, que ela veicula, desfrutam em uma sociedade.

Daí que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de ideias. Novamente, não somos formigas. Em vez de um código genético que define por antecipação nosso comportamento, nós só podemos construir e reproduzir um padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. Como não somos abelhas nem formigas, mas um tipo de animal que interpreta a própria ação, toda a nossa atuação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa própria vida e dar sentido a ela.

Por conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. E também por isso, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes. É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo com seus interesses.”

 

 

“Buarque, ao localizar a “elite maldita” no Estado, torna literalmente invisível a verdadeira elite de rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por oligopólios e atravessadores financeiros. Como a elite que vampiriza a sociedade está, segundo ele, no Estado, abre-se caminho – vazio esse que foi logo preenchido por seus discípulos – para uma concepção do mercado que é o oposto do Estado corrupto. Com isso, não só o poder real, do mercado e dos endinheirados, é tornado invisível, como o Estado é tornado o suspeito preferido – como os mordomos nos filmes policiais – de todos os malfeitos. Essa ideia favorece os golpes de Estado baseados no pretexto da corrupção seletiva, mote que sempre é levado à baila quando o Estado hospeda integrantes não palatáveis pelo mercado ávido de capturá-lo apenas para si.

Não existe ideologia melhor para os interesses da elite econômica. A leitura de Sérgio Buarque foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país – como acontece até hoje – e tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite à elite mais mesquinha fazer todo um povo de tolo.”

 

 

“No Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro. Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada na escravidão. Mas nossa autointerpretação dominante nos vê como continuidade perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão, a não ser de modo muito datado e localizado. Como tamanho efeito de autodesconhecimento foi possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista nunca tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o nome não significa compreender o conceito.

A diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência. Pode-se falar de escravidão e depois retirar da consciência todos os seus efeitos reais e fazer de conta que somos continuação de uma sociedade não escravista. É como tornar secundário e invisível o que é principal e construir uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o país e seus conflitos reais, mas sim para reproduzir todo tipo de privilégio escravista, ainda que sob condições modernas. E, com um toque satânico, demonizar o Estado como repositório da suposta herança maldita portuguesa e, sempre que ele for ocupado pela esquerda, reverberar seletivamente a acusação moralista já pronta.”

 

 

“Como todo processo de escravidão pressupõe a animalização e humilhação do escravo e a destruição progressiva de sua humanidade, como a negação do direito ao reconhecimento e à autoestima, da possibilidade de ter família, de interesses próprios e de planejar a própria vida, libertá-lo sem ajuda equivale a uma condenação eterna. E foi exatamente isso que aconteceu entre nós.”

 

 

“Em países como o nosso, não há como separar – a não ser analiticamente, para separar o joio do trigo e evitar as armadilhas das políticas identitárias falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro –61 o preconceito de classe do preconceito de raça. É que as classes excluídas em países de passado escravocrata tão presente como o nosso, mesmo que existam minorias de todas as cores entre elas, são uma forma de continuar a escravidão e seus padrões de ataque covarde contra populações indefesas, fragilizadas e superexploradas.

O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas de polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluído que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escravidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade dos excluídos.

Mais ainda. Como a produção da desigualdade de classe desde o berço é reprimida tanto consciente quanto inconscientemente, é o estereótipo do negro, facilmente reconhecível, que identifica de modo fácil o inimigo a ser abatido e explorado. O “perigo negro” usado como senha para massacrar indefesos e quilombolas durante séculos é continuado por outros meios no massacre aberto, e hoje aplaudido sem pejo, de pobres e negros em favelas e presídios. E não só isso. Como houve continuidade sem quebra temporal entre a escravidão – que destrói a alma por dentro, humilha e rebaixa o sujeito, tornando-o cúmplice da própria dominação – e a produção de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade de se defender.

O resumo dessa passagem dramática entre duas formas de escravidão pode ser visto deste modo: como a escravidão exige a tortura física e psíquica cotidiana como único meio de dobrar a resistência do escravo para fazê-lo abdicar da própria vontade, as elites que comandaram esse processo foram as mesmas que abandonaram os seres humilhados, sem autoestima e autoconfiança e os deixaram à própria sorte.

Depois, como se não tivessem nada a ver com esse genocídio de classe, buscaram imigrantes com um passado e um ponto de partida muito diferente para contraporem o mérito de um e de outro, aprofundando ainda mais a humilhação e a injustiça. Esse esquema funciona até os dias de hoje sem qualquer diferença. Esse abandono e essa injustiça flagrante são o real câncer brasileiro e a causa de todos os reais problemas nacionais.”

61 O tema da diversidade como forma de proteger as minorias identitárias foi utilizado para tornar invisível a desigualdade de classe no acesso a riqueza e poder. Com isso, tanto o capitalismo financeiro quanto a Rede Globo podem “tirar onda” de emancipadores. Para o capital, é irrelevante se ele está explorando homem ou mulher, branco ou preto, homossexual ou heterossexual.

 

 

“Com a ajuda preciosa de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, ainda que parcialmente criticados e reconstruídos, temos a embocadura geral tanto de uma nova percepção do Brasil moderno quanto de suas raízes. A escravidão e seus efeitos passam a ser o ponto central, e não mais a pretensa continuidade com Portugal. Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a corrupção supostamente herdada de Portugal, para se localizar no abandono secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas. As contradições e os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre classes sociais, desde que não utilizemos o mote da corrupção para esconder a verdade nem reduzamos as classes à mera dimensão econômica.”

 

 

“Afinal, o capital econômico se torna cada dia mais concentrado e é transmitido “pelo sangue” – a marca mais perfeita do privilégio injusto – desde tempos imemoriais. Como o conhecimento, daí seu caráter de capital impessoal, é tão indispensável à reprodução do capitalismo quanto o próprio capital econômico,63 o capital impessoal e fundamental que sobra para a disputa das outras classes entre si é o cultural. Se entendermos isso, entenderemos também a situação da classe média brasileira como tropa de choque dos poderosos de plantão. Ela vai tender – do mesmo modo como os ricos fazem com o dinheiro – a perceber o conhecimento valorizado como algo que deve ser exclusivo à sua classe social. Sua participação nos golpes contra as classes populares tem muito a ver, portanto, com estratégias de reprodução de privilégios e muito pouco com moralidade e combate à corrupção.

Esse autoengano tende a ser, inclusive, maior na classe média que na elite econômica. É que o capital cultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo, exige sempre esforço para sua assimilação. Por isso, a incorporação de conhecimento arduamente obtido pelo esforço disciplinado aparece ao indivíduo como interna e inata, como fazendo parte da sua personalidade mesma e, portanto, indissociável de si, ao contrário do dinheiro, que é percebido como algo externo à personalidade. Por conta disso, a classe média é a classe por excelência da falácia da meritocracia.

Isso comprova também que as relações de classe, ou seja, a luta de classes no sentido da obtenção de uma melhor posição na competição de todos contra todos pelos recursos escassos, exige também justificativa para os privilégios. Não existem apenas capitais em disputa, mas também uma disputa pelas interpretações, legitimações e justificativas das posições alcançadas. O estudo da reprodução dos privilégios da classe média talvez nos dê o melhor ponto de partida para entender a luta de classes e seu ocultamento sistemático.”

63 E, hoje em dia, na sociedade do conhecimento, a posse de conhecimento aplicado à produção é a base para inovações tecnológicas que se transformam em capital econômico de enorme valorização. Pensemos em Bill Gates ou Steve Jobs.

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