Editora: Estação Brasil
ISBN: 978-85-5608-042-4-3
Opinião: ★★☆☆☆
Análise em
vídeo: Clique
aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 352
Sinopse: Quem é
a elite do atraso? Como pensa e age essa parcela da população que controla
grande parte da riqueza do Brasil? Onde está a verdadeira e monumental
corrupção, tanto ilegal quanto “legalizada”, que esfola tanto a classe média quanto
as classes populares? A elite do atraso
se tornou um clássico contemporâneo da sociologia brasileira, um livro
fundamental de Jessé Souza, o sociólogo que ousou colocar na berlinda as obras
que eram consideradas essenciais para se entender o Brasil. Por meio de uma
linguagem fluente, irônica e ousada, Jessé apresenta uma nova visão sobre as
causas da desigualdade que marca nosso país e reescreve a história da nossa
sociedade. Mas não a do patrimonialismo, nossa suposta herança de corrupção
trazida pelos portugueses, tese utilizada tanto à esquerda quanto à direita
para explicar o Brasil. Muito menos a do brasileiro cordial, ambíguo e
sentimental. No âmago da interpretação de Jessé não está a corrupção política.
Para ele, a questão a partir da qual se deve explicar a história passada e
atual do Brasil – e de suas classes, portanto – não é outra senão a escravidão.
Sob uma perspectiva inédita, ele revela fatos cruciais sobre a vida nacional,
demonstrando como funcionam as estruturas ocultas que movem as engrenagens do
poder e de que maneira a elite do dinheiro exerce sua força invisível e
manipula a sociedade – com o respaldo das narrativas da mídia, do judiciário e
de seu combate seletivo à corrupção.
“A primeira
coisa a se fazer quando se reflete sobre um objeto confuso e multifacetado como
o mundo social é perceber as hierarquias das questões a serem esclarecidas. Sem
isso, nos perdemos na confusão. O poder é a questão central de toda sociedade.
A razão é simples. É ele que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica
com os privilégios e quem é abandonado e excluído. O dinheiro, que é uma mera
convenção, só pode exercer seus efeitos porque está ancorado em acordos
políticos e jurídicos que refletem o poder relativo de certos estratos sociais.
Assim, para se conhecer uma sociedade, é necessário reconstruir os meandros do
processo que permite a reprodução do poder social real.
O
exercício do poder social real tem de ser legitimado. Ninguém obedece sem
razão. No mundo moderno, quem cria a legitimação do poder social, que será a
chave de acesso a todos os privilégios, são os intelectuais. Pensemos na Lava
Jato e em sua avassaladora influência na vida do país. A “limpeza da política”
que o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da operação, preconiza para o
país é uma mera continuidade da reflexão de Sérgio Buarque e Raymundo Faoro,
como veremos em detalhe mais adiante. Certamente Faoro não seria tão primário e
oportunista, mas, independentemente de suas virtudes pessoais, são suas ideias
– de que o Estado abriga uma elite corrupta que vampiriza a nação – que
legitimam toda a ação predadora do direito e das riquezas nacionais comandada
pela Lava Jato. O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de
Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional
ávido por “privatizar” a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras,
como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, fez,
significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em
troca, resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos e
principalmente levando à eliminação de qualquer estratégia de reerguimento
internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem
para que se repassem, a baixo custo, empresas estatais e nossas riquezas do
subsolo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza
que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e
tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade
e seus mecanismos de poder funcionam.
A
construção de uma elite todo-poderosa que habitaria o Estado só existe, na
realidade, para que não vejamos a elite real, que está fora do Estado, ainda
que sua captura seja fundamental para seus fins. É uma ideia que nos
imbeciliza, já que desloca e distorce toda a origem do poder real. Nesse
esquema, se fizermos uma analogia com o narcotráfico, os políticos são os
“aviõezinhos” do esquema e ficam com as sobras do saque realizado na riqueza
social de todos em proveito de uma meia dúzia. Combater a corrupção de verdade
seria combater a rapina, pela elite do dinheiro, da riqueza social e da
capacidade de compra e de poupança de todos nós para proveito dos oligopólios e
atravessadores financeiros.”
“Onde
reside o racismo implícito do culturalismo? Ora, precisamente no aspecto
principal de todo racismo, que é a separação ontológica entre seres humanos de
primeira classe e seres humanos de segunda classe. Iremos, no decorrer deste
livro, usar o termo “racismo” não apenas no seu sentido mais restrito de
preconceito fenotípico ou racial. Iremos utilizá-lo também para outras formas
de hierarquizar indivíduos, classes e países sempre que o mesmo procedimento e
a mesma função de legitimação de uma distinção ontológica entre seres humanos
sejam aplicados. Afinal, essas hierarquias existem para servir de equivalente
funcional do racismo fenotípico, realizando o mesmo trabalho de legitimar
pré-reflexivamente a suposta superioridade inata de uns e a suposta
inferioridade inata de outros.
Quando
os teóricos da modernização de ontem e de hoje dizem que o protestantismo
individualista, tipicamente americano, cria seres excepcionais, mais
inteligentes, produtivos e moralmente superiores, esvai-se qualquer diferença
entre essa visão e o racismo científico que separa as pessoas pela cor da pele.
Pior ainda. Ao substituir a raça pelo estoque cultural, cria-se uma impressão
de cientificidade, reproduzindo-se os piores preconceitos. Os seres superiores
seriam mais democráticos e mais honestos do que os inferiores, como os
latino-americanos, por exemplo. Tornam-se invisíveis os processos históricos de
aprendizado coletivo e criam-se distinções tão naturalizadas e imutáveis quanto
a cor da pele ou supostos atributos raciais.
O
culturalismo, cientificamente falso como é, cumpre, assim, exatamente as mesmas
funções do racismo científico da cor da pele. Presta-se a garantir uma sensação
de superioridade e de distinção para os povos e países que estão em situação de
domínio e, desse modo, legitimar e tornar merecida a própria dominação. Hoje em
dia, na Europa e nos Estados Unidos, absolutamente ninguém deixa de se achar
superior aos latino-americanos e africanos. Entre os melhores americanos e
europeus, ou seja, aqueles que não são conscientemente racistas, nota-se o
esforço politicamente correto de se tratar um africano ou um latino-americano como
se este fosse efetivamente igual. Ora, o mero esforço já mostra a eficácia do
preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. A
desigualdade ontológica efetivamente sentida, na dimensão mais imediata das
emoções, tem que ser negada por um esforço do intelecto que se policia. Os
rituais do politicamente correto são explicáveis em grande medida por esse
fato.
Isso
ajuda as camadas dominantes dos países centrais a legitimar seu próprio sistema
social para seu povo, que não deve reclamar do sistema dele, posto que seria
superior aos outros. E ajuda as mesmas camadas superiores internacionalmente,
já que é mais fácil expropriar riquezas de povos que se acham mesmo inferiores
e desonestos. O raciocínio do tipo “entregar a Petrobras para os estrangeiros é
melhor que deixá-la para nossos políticos corruptos” se torna justificável
precisamente nesse contexto – apesar de absurdo.
Cria-se,
com isso, uma mentalidade de “senhor”, nos países que mantêm uma divisão
internacional do trabalho que os beneficia como “merecimento”, e uma
mentalidade de “escravo”, naqueles povos criados para a obediência e para a
subordinação. Esse dado da superioridade dos outros é percebido por todos como
tão óbvio quanto o fato de que o Sol se põe todos os dias para nascer de novo
no dia seguinte. É um pressuposto tão óbvio para os indivíduos comuns como o é
para os especialistas.
O
racismo culturalista passa a ser uma dimensão não refletida do comportamento
social, seja na relação entre os povos, seja na relação entre as classes de um
mesmo país. Um brasileiro de classe média que não seja abertamente racista
também se sente, em relação às camadas populares do próprio país, como um
alemão ou um americano se sente em relação a um brasileiro: ele se esforça para
tratar essas pessoas como se fossem gente igual a ele. O que antes era ciência
passa a ser, por força dos meios de aprendizado, como escolas e universidades,
e dos meios de divulgação, como jornais, televisão e cinema, crença
compartilhada socialmente. Em razão tanto da legitimidade e do prestígio da
ciência quanto do poder de repetição e convencimento midiático, as pessoas
passam a pensar o mundo de tal modo que favorece a reprodução de todos os seus
privilégios.”
“Como
não percebemos essas hierarquias, elas mandam em nós todos de modo absoluto e
silencioso. O fato de não as notarmos facilita enormemente seu efeito perverso.
No caso das mulheres, das quinhentas maiores empresas do mundo, 492 são
dirigidas por homens. De algum modo, essa hierarquia perversa está na cabeça
também dos que escolhem os CEOs das grandes corporações, fazendo com que os
homens sejam maioria esmagadora.
Se
essa hierarquia moral é invisível para nós, seus efeitos, ao contrário, são
muitíssimo visíveis. O mesmo esquema possibilita que o branco se oponha ao
negro como superior também pré-reflexivamente. Até as supostas virtudes do
negro são ambíguas, posto que o animalizam com a força física e o apetite
sexual. O grande problema dessas hierarquias que se tornam invisíveis e
pré-reflexivas é sua enorme eficácia para colonizar a mente e o coração também
de quem é inferiorizado e oprimido.
Nos
Estados Unidos e na Europa, essas ideias que os elevam e dignificam servem para
espalhar um sentimento de superioridade difuso que abrange toda a sociedade.
Elas funcionam, portanto, como legitimação interna nesses países e são uma
espécie de equivalente do colonialismo anterior: servem para justificar e
sacralizar todas as relações fáticas de dominação na ordem mundial. O
culturalismo do mais forte serve também, muito especialmente nos Estados
Unidos, a prestar o mesmo serviço que o racismo contra os negros sempre
possibilitou por lá: dotar a classe baixa dos brancos do Sul do país de um
orgulho racial para compensar a sua pobreza material relativa se comparada aos
brancos mais ricos do Norte.
A
vantagem comparativa do culturalismo racista sobre o racismo clássico é que,
como não se vincula à cor da pele, até os negros americanos podem se sentir
superiores, por exemplo, aos latinos e estrangeiros. A utilidade prática desse
racismo ocultado, que é o culturalismo para os países dominantes e, muito
especialmente, para suas classes dominantes, é muito maior que a do racismo
explícito que vigorava antes.
Como
se deu a construção do paradigma racista/culturalista entre nós? Como é
possível que alguns de nossos indivíduos mais inteligentes tenham construído
concepções de mundo que nos humilham, nos rebaixam e nos animalizam? Isso tudo
pensado como se fosse destino imutável? Que americanos e europeus se deixem colonizar
por esse tipo de concepção de mundo que os dignifica é lamentável, mas
compreensível. Afinal, conseguem vantagens bem concretas a partir desse fato.
Que os latino-americanos em geral e os brasileiros em particular tenham se
deixado e ainda se deixem, até os dias de hoje, colonizar por uma concepção
racista e arbitrária que os inferioriza e lhes retira a autoconfiança e a
autoestima não é apenas lamentável. É uma catástrofe social de grandes
proporções. Como as ideias são fundamentais para a ação prática, jamais seremos
um povo altivo e autoconfiante enquanto permanecermos vítimas indefesas desse
preconceito absurdo.
Não
se teria realizado tamanho ataque midiático baseado nesse racismo contra si
mesmo, na noção de corrupção como dado cultural brasileiro, como fundamento de
todos os golpes de Estado, e jamais se teria realizado um embuste de proporções
gigantescas como a operação Lava Jato, sem esse pressuposto conferido pelas
ideias dominantes contra as quais não temos defesa consciente. Afinal, é preciso
convencer todo um povo de que ele é inferior não só intelectualmente, mas, tão
ou mais importante, também moralmente. Que é melhor entregar nossas riquezas a
quem sabe melhor utilizá-las, já que outros são honestos de berço, enquanto nós
seríamos corruptos de berço.
Além
disso, se juntarmos o preconceito do suposto patrimonialismo congênito com o
Estado como lugar da elite corrupta e com a noção antipopular e preconceituosa
de “populismo” – também produto de intelectuais, que diz que nosso povo é
desprezível e indigno de ajuda e redenção, contaminando toda a política feita
em seu favor –, explicamos em boa parte a miséria da população brasileira. A
colonização da elite brasileira mais mesquinha sobre toda a população só foi e
ainda é possível pelo uso, contra a própria população indefesa, de um racismo
travestido em culturalismo que possibilita a legitimação de todo ataque contra
qualquer governo popular.
Todo
racismo, inclusive o culturalismo racista dominante no mundo inteiro, precisa
escravizar o oprimido no seu espírito, e não apenas no seu corpo. Colonizar o
espírito e as ideias de alguém é o primeiro passo para controlar seu corpo e
seu bolso. De nada adianta americanos e europeus proclamarem suas supostas
virtudes inatas se africanos, asiáticos e latino-americanos não se convencerem
disso. Do mesmo modo, de nada adianta nossa elite do dinheiro construir uma
concepção de país e de nação para viabilizar seus interesses venais se a classe
média e a população como um todo não se convencerem disso.
É
aí que entram os intelectuais com seu prestígio e a mídia com seu poder de
amplificar e reproduzir mensagens com duplo sentido: mensagens que fazem de
conta que esclarecem o mundo como ele é, mas que, no fundo, existem para
retirar das pessoas toda compreensão e toda defesa possível.
Ninguém
na mídia cria nenhuma ideia. Falo aqui, obviamente, de ideias-força, aquele
tipo de pensamento que conduz uma sociedade em um sentido ou em outro e é
restrito a intelectuais e especialistas treinados. A mídia retira seu poder de
fogo desse reservatório de ideias dominantes e consagradas. Ela é limitada no
seu alcance pelo prestígio que essas ideias e seus autores, que ela veicula,
desfrutam em uma sociedade.
Daí
que seja fundamental perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na
forma como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia,
mas também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática,
quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo repositório de
ideias. Novamente, não somos formigas. Em vez de um código genético que define
por antecipação nosso comportamento, nós só podemos construir e reproduzir um
padrão de comportamento por força de ideias que nos ajudam a interpretar o
mundo. Afinal, são essas ideias que irão esclarecer os indivíduos e as classes
sociais acerca de seus objetivos, interesses e conflitos. Como não somos
abelhas nem formigas, mas um tipo de animal que interpreta a própria ação, toda
a nossa atuação no mundo é influenciada, quer saibamos disso ou não, por
ideias. São elas que nos fornecem o material que nos permite interpretar nossa
própria vida e dar sentido a ela.
Por
conta disso, quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo. E
também por isso, as ideias dominantes são sempre produto das elites dominantes.
É necessário, para quem domina e quer continuar dominando, se apropriar da
produção de ideias para interpretar e justificar tudo o que acontece de acordo
com seus interesses.”
“Buarque,
ao localizar a “elite maldita” no Estado, torna literalmente invisível a
verdadeira elite de rapina que se encontra no mercado. Um mercado capturado por
oligopólios e atravessadores financeiros. Como a elite que vampiriza a
sociedade está, segundo ele, no Estado, abre-se caminho – vazio esse que foi
logo preenchido por seus discípulos – para uma concepção do mercado que é o
oposto do Estado corrupto. Com isso, não só o poder real, do mercado e dos
endinheirados, é tornado invisível, como o Estado é tornado o suspeito
preferido – como os mordomos nos filmes policiais – de todos os malfeitos. Essa
ideia favorece os golpes de Estado baseados no pretexto da corrupção seletiva,
mote que sempre é levado à baila quando o Estado hospeda integrantes não
palatáveis pelo mercado ávido de capturá-lo apenas para si.
Não
existe ideologia melhor para os interesses da elite econômica. A leitura de
Sérgio Buarque foi ensinada nas escolas e nas universidades de todo o país –
como acontece até hoje – e tornou possível fazer do mote da corrupção apenas do
Estado o núcleo de uma concepção de mundo que permite à elite mais mesquinha
fazer todo um povo de tolo.”
“No
Brasil, desde o ano zero, a instituição que englobava todas as outras era a
escravidão, que não existia em Portugal, a não ser de modo muito tópico e passageiro.
Nossa forma de família, de economia, de política e de justiça foi toda baseada
na escravidão. Mas nossa autointerpretação dominante nos vê como continuidade
perfeita de uma sociedade que jamais conheceu a escravidão, a não ser de modo
muito datado e localizado. Como tamanho efeito de autodesconhecimento foi
possível? Não é que os criadores e discípulos do culturalismo racista nunca
tenham falado de escravidão. Ao contrário, todos falam. No entanto, dizer o
nome não significa compreender o conceito.
A
diferença entre nome e conceito é o que separa o senso comum da ciência.
Pode-se falar de escravidão e depois retirar da consciência todos os seus
efeitos reais e fazer de conta que somos continuação de uma sociedade não
escravista. É como tornar secundário e invisível o que é principal e construir
uma fantasia que servirá maravilhosamente não para conhecer o país e seus
conflitos reais, mas sim para reproduzir todo tipo de privilégio escravista,
ainda que sob condições modernas. E, com um toque satânico, demonizar o Estado
como repositório da suposta herança maldita portuguesa e, sempre que ele for
ocupado pela esquerda, reverberar seletivamente a acusação moralista já pronta.”
“Como
todo processo de escravidão pressupõe a animalização e humilhação do escravo e
a destruição progressiva de sua humanidade, como a negação do direito ao
reconhecimento e à autoestima, da possibilidade de ter família, de interesses
próprios e de planejar a própria vida, libertá-lo sem ajuda equivale a uma
condenação eterna. E foi exatamente isso que aconteceu entre nós.”
“Em
países como o nosso, não há como separar – a não ser analiticamente, para
separar o joio do trigo e evitar as armadilhas das políticas identitárias
falsamente emancipadoras muito bem-vindas pelo capital financeiro –61 o preconceito de classe do preconceito de raça. É
que as classes excluídas em países de passado escravocrata tão presente como o
nosso, mesmo que existam minorias de todas as cores entre elas, são uma forma
de continuar a escravidão e seus padrões de ataque covarde contra populações
indefesas, fragilizadas e superexploradas.
O
excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e
inferior e perseguido não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas
de polícia com licença para matar pobre e preto. Obviamente, não é a polícia a
fonte da violência, mas as classes média e alta que apoiam esse tipo de
política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido
e do excluído que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da
escravidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da
mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistência e a dignidade
dos excluídos.
Mais
ainda. Como a produção da desigualdade de classe desde o berço é reprimida
tanto consciente quanto inconscientemente, é o estereótipo do negro, facilmente
reconhecível, que identifica de modo fácil o inimigo a ser abatido e explorado.
O “perigo negro” usado como senha para massacrar indefesos e quilombolas
durante séculos é continuado por outros meios no massacre aberto, e hoje
aplaudido sem pejo, de pobres e negros em favelas e presídios. E não só isso.
Como houve continuidade sem quebra temporal entre a escravidão – que destrói a
alma por dentro, humilha e rebaixa o sujeito, tornando-o cúmplice da própria
dominação – e a produção de uma ralé de inadaptados ao mundo moderno, nossos
excluídos herdaram, sem solução de continuidade, todo o ódio e o desprezo
covarde pelos mais frágeis e com menos capacidade de se defender.
O
resumo dessa passagem dramática entre duas formas de escravidão pode ser visto
deste modo: como a escravidão exige a tortura física e psíquica cotidiana como
único meio de dobrar a resistência do escravo para fazê-lo abdicar da própria
vontade, as elites que comandaram esse processo foram as mesmas que abandonaram
os seres humilhados, sem autoestima e autoconfiança e os deixaram à própria
sorte.
Depois,
como se não tivessem nada a ver com esse genocídio de classe, buscaram
imigrantes com um passado e um ponto de partida muito diferente para
contraporem o mérito de um e de outro, aprofundando ainda mais a humilhação e a
injustiça. Esse esquema funciona até os dias de hoje sem qualquer diferença.
Esse abandono e essa injustiça flagrante são o real câncer brasileiro e a causa
de todos os reais problemas nacionais.”
61 O tema da diversidade como
forma de proteger as minorias identitárias foi utilizado para tornar invisível
a desigualdade de classe no acesso a riqueza e poder. Com isso, tanto o
capitalismo financeiro quanto a Rede Globo podem “tirar onda” de emancipadores.
Para o capital, é irrelevante se ele está explorando homem ou mulher, branco ou
preto, homossexual ou heterossexual.
“Com
a ajuda preciosa de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, ainda que
parcialmente criticados e reconstruídos, temos a embocadura geral tanto de uma
nova percepção do Brasil moderno quanto de suas raízes. A escravidão e seus
efeitos passam a ser o ponto central, e não mais a pretensa continuidade com
Portugal. Mais importante ainda, o problema central do país deixa de ser a
corrupção supostamente herdada de Portugal, para se localizar no abandono
secular de classes estigmatizadas, humilhadas e perseguidas. As contradições e
os conflitos centrais de uma sociedade são sempre relações de dominação entre
classes sociais, desde que não utilizemos o mote da corrupção para esconder a
verdade nem reduzamos as classes à mera dimensão econômica.”
“Afinal,
o capital econômico se torna cada dia mais concentrado e é transmitido “pelo
sangue” – a marca mais perfeita do privilégio injusto – desde tempos
imemoriais. Como o conhecimento, daí seu caráter de capital impessoal, é tão
indispensável à reprodução do capitalismo quanto o próprio capital econômico,63 o capital impessoal e fundamental que sobra para a
disputa das outras classes entre si é o cultural. Se entendermos isso,
entenderemos também a situação da classe média brasileira como tropa de choque
dos poderosos de plantão. Ela vai tender – do mesmo modo como os ricos fazem
com o dinheiro – a perceber o conhecimento valorizado como algo que deve ser
exclusivo à sua classe social. Sua participação nos golpes contra as classes
populares tem muito a ver, portanto, com estratégias de reprodução de privilégios
e muito pouco com moralidade e combate à corrupção.
Esse
autoengano tende a ser, inclusive, maior na classe média que na elite
econômica. É que o capital cultural, o conhecimento incorporado pelo indivíduo,
exige sempre esforço para sua assimilação. Por isso, a incorporação de
conhecimento arduamente obtido pelo esforço disciplinado aparece ao indivíduo
como interna e inata, como fazendo parte da sua personalidade mesma e,
portanto, indissociável de si, ao contrário do dinheiro, que é percebido como
algo externo à personalidade. Por conta disso, a classe média é a classe por
excelência da falácia da meritocracia.
Isso
comprova também que as relações de classe, ou seja, a luta de classes no
sentido da obtenção de uma melhor posição na competição de todos contra todos
pelos recursos escassos, exige também justificativa para os privilégios. Não
existem apenas capitais em disputa, mas também uma disputa pelas
interpretações, legitimações e justificativas das posições alcançadas. O estudo
da reprodução dos privilégios da classe média talvez nos dê o melhor ponto de
partida para entender a luta de classes e seu ocultamento sistemático.”
63 E, hoje em dia, na sociedade
do conhecimento, a posse de conhecimento aplicado à produção é a base para
inovações tecnológicas que se transformam em capital econômico de enorme
valorização. Pensemos em Bill Gates ou Steve Jobs.
Nenhum comentário:
Postar um comentário