quinta-feira, 8 de novembro de 2018

A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo (Parte II) – Manoel Luiz Malaguti, Marcelo D. Carcanholo e Reinaldo A. Carcanholo (org.)

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-598-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 266
Sinopse: Ver Parte I

“O desastre do sistema de saúde americano e a atual batalha para reformá-lo contêm valiosas lições para se levar em conta no debate sobre a privatização na saúde. Optar por satisfazer as necessidades de saúde no âmbito privado levou ao estabelecimento de um poderoso complexo médico-industrial que saiu caro e ineficiente para os EUA. Nenhum outro país gasta tanto em saúde — 13% do PIB — com resultados tão ruins na cobertura dos serviços — 15% da população não tem acesso a eles e outros 10% têm uma cobertura incompleta — e com tão baixo impacto sobre os indicadores de saúde — os EUA ocupam o segundo lugar em renda per capita, mas o décimo oitavo em indicadores de saúde. A deficiente cobertura deve-se ao fato de que a forma principal de acesso aos serviços médicos (58% da população) ocorre mediante um seguro coletivo privado concedido como vantagem trabalhista e cujas características dependem da capacidade de negociação em cada caso. Existem seguros públicos paralelos, “Medicare” e “Medicaid”, que dão certa cobertura à outra parte (20%) da população: os velhos e famílias pobres que reúnem certos requisitos.
Os altos custos do sistema e o aumento implacável de preços são explicados essencialmente por dois elementos. Um deles é que o financiamento mediante seguros privados encarece de múltiplas maneiras o sistema (altos custos de administração 35,5% contra 2,3% no seguro público — obtenção de lucro, impossibilidade de controlar os preços e tendência ao crescimento irracional da indústria hospitalar). Foi estimado que a introdução de um seguro nacional público significaria uma economia de 69 bilhões de dólares por ano.
Existe uma vasta literatura sobre a influência determinante do complexo médico-industrial privado na fixação de políticas de saúde nos EUA por meio de um intenso lobby. Seu sucesso em impedir a socialização do setor de saúde explica-se pelo poder econômico de seus integrantes, principalmente das companhias de seguro e das corporações hospitalares. Desse modo, as companhias de seguro concentram ativos que superam os ativos mundiais das cinquenta maiores corporações industriais americanas. As quatro maiores corporações hospitalares, por seu lado, cresceram sem interrupção nos últimos quinze anos e controlam 70% dos hospitais privados. Elas detêm ativos de cerca de 19 bilhões, vendas de 17 bilhões e lucros de 610 milhões de dólares. Seu afã de ampliar os próprios lucros levou-as a afinar os mecanismos para transferir os pacientes de alto custo e de baixo rendimento para os hospitais públicos, provocando assim uma crônica descapitalização destes últimos.
Em suma, a produção e o financiamento dos serviços de saúde é uma das atividades econômicas mais importantes nos EUA e a existência do complexo “médico-industrial” é a causa fundamental da crise de custos e de cobertura, e, ao mesmo tempo, o principal obstáculo para a racionalização do setor. Os enormes custos em saúde precária, as mortes prematuras e vontade de dezenas de milhões de americanos parecem ser pouco importantes diante da defesa inescrupulosa das seguradoras das corporações hospitalares, que estão canalizando milhões de dólares por meio do sistema legal de corrupção, o lobby, impedir a reforma sanitária e para proteger seus lucros.”
(Asa Cristina Laurell)


“Não existe projeto nacional viável em face do neoliberalismo caso não se reformule um projeto alternativo para o espaço público. Pode-se até dizer que não existe utopia social possível dentro dos limites do que conhecemos no mundo moderno se ela for concebida à margem do espaço público. A existência de tal suposição e sua vitalidade, como condição de toda sociedade moderna humanamente civilizada, depende em boa medida de que o espaço público seja altamente valorizado pela comunidade em seu conteúdo ético, político, democrático e funcional, inclusive no campo econômico e, portanto, de que as forças políticas fomentem e façam sua essa valorização até o ponto de incluí-la em seu itinerário programático.”
(Adrián Gurza Lavalle)


“O espaço público é uma dimensão imposta ao Estado pela sociedade sob determinada correlação de forças, por meio da qual esta consegue colocar à margem da lógica do mercado um complexo de tarefas socialmente necessárias à reprodução e ao desenvolvimento da sociedade como um todo”4. Ao considerar como um dever a proteção de certas atividades, funções ou espaços considerados como socialmente valiosos, a comunidade decide financiá-los coletivamente. O considerado valioso, como produto direto de uma ética social sob determinada correlação de forças entre possuidores e despossuídos, implica geralmente a defesa de certos fatores nacionais necessários para um melhor destino comum, ou a universalização de certas possibilidades de progresso que igualam um padrão comum para todos como membros de uma mesma pátria. Claro está que o consenso sobre esses “comuns”, em um primeiro momento, não é senão o produto de um conflito social e das lutas em que este se manifesta; mas, com o passar do tempo, alguns desses consensos impregnam-se de tal maneira no tecido social que terminam por perder seu caráter político, transformando-se em normas culturais de convivência civilizada. (...)
O espaço público como dimensão social torna-se impotente se não conta com uma sólida esfera pública que o acompanhe e torne-o possível. Dependendo das diferenças históricas, cada sociedade que estruturou sua reprodução com a ajuda do espaço público como “princípio civilizado de convivência”7, desenvolveu ao mesmo tempo uma esfera pública que organiza o conjunto das atividades e processos por meio dos quais determina-se o que deve ser considerado como interesse público e a maneira de satisfazê-lo. Por seu lado, a esfera pública é um espaço vazio se não se assegura que a sociedade a inunde, enchendo-a de vida; esse objetivo participativo, que deve ser fomentado na medida em que constitui em si mesmo uma necessidade pública, tem sido chamado de vida pública. O espaço público perde seu conteúdo essencial sem a efetiva existência de uma esfera pública e de uma intensa vida pública; em outras palavras, essa dimensão erigida pela sociedade como autoproteção escapa-lhe das mãos, aliena-se.”
4: Adrián Gurza Lavalle, La Reestrutucturacion de lo Público y el Caso Conasupo. México, Ed. UNAM/ENEP Acatlán, 1994, pp. 62-69.
7: Aguilar Villanueva, op. cit., p. 130.
(Adrián Gurza Lavalle)


“Não é um excesso retórico afirmar que no espaço público, por meio de inúmeras batalhas, sedimentou-se a ética da humanidade em sua larguíssima evolução. País por país, o espaço público recolhe a eticidade ancestral de seus primeiros povos e ao mesmo tempo vai se modificando para incorporar as peculiaridades dos diferentes desenvolvimentos históricos nacionais. A presença do espaço público se faz mais necessária se contemplamos que o mundo moderno privatizou uma parte medular da sociedade, a economia, e ao fazê-lo erradicou seu caráter comunitário e excluiu definitivamente dela o relativo ao bem comum. Como nem tudo de que a sociedade necessitava para reproduzir a si mesma podia ser livremente convertido à economia moderna, o relativo ao interesse geral, que a partir desse momento começaria a opor-se ao interesse privado, seria excluído da privatização mediante sua inscrição no espaço público. Assim, o espaço público, ao contrário do mercado e do capital que se regem pelas leis do lucro, é socialmente sustentado por princípios deontológicos, isto é, do dever-ser: a educação deve ser pública porque as sociedades, ao desejarem que sua descendência tenha uma vida melhor e com maiores oportunidades igualmente distribuídas, elevaram-na à categoria de direito universal (dever ser universal); também a saúde tornou-se direito universal, não só por razões médicas ou técnicas, mas fundamentalmente por razões humanas. Falamos novamente de um dever ser histórico, conquistado e defendido, respeitado e normativo. A ruptura de certos conteúdos desse pacto ético, tal como sucede atualmente no México graças à ofensiva neoliberal, decorre do rompimento do pacto político que os sustentava e de um profundo desgarramento do tecido e da estrutura sociais. (...)
O espaço público tem mais virtudes do que seu conteúdo ético-político e do que sua funcionalidade político-ética; é também um espaço de democracia no amplo sentido da palavra, de democracia social, daquela que o artigo terceiro da Constituição mexicana denomina uma forma de vida e da qual a democracia política é só uma parte. O espaço público, nos mais diversos terrenos, é um espaço de reconhecimento dos direitos à igualdade entre desiguais: no educativo, no cultural, no recreativo, no alimentício, no econômico e, obviamente, no político. Adicionalmente, o espaço público é uma dimensão na qual a pluralidade social é reconhecida e permitida. Em um mundo em que a mercantilização absorve tudo e só se aceitam as diferenças toleradas pelo mercado, não existe lugar para o diferente, para o que pertence a outra natureza, a outro passado. Algumas das grandes modernizações que pretenderam mudar o velho mundo com que se enfrentaram, uma vez triunfantes tiveram de reconhecer a inconveniência ou impossibilidade de aniquilar o derrotado; algo dos restos de sua cultura devia ser respeitado, e para tal efeito, protegido e remetido ao espaço público. Assim o espaço público converteu-se em garantia do direito à sobrevivência do diferente, acolhendo certa pluralidade. Tal é o caso, por exemplo, do índio nas sociedades surgidas sob o estigma da colonização.
Isso não quer dizer que o espaço público seja a panaceia moderna e que elimine a exploração e a dominação; em boa medida, mantém-se graças a elas e aos conflitos que delas surgem. Mas sem o espaço público inexistiria toda a possibilidade de convivência civilizada e a sociedade ficaria submersa em um perpétuo desgarramento em que a violência seria convertida em regra e motor da vida social. Entre a indiferença ou o cinismo e a paciência milenária exigida pelos reinos imaginados, o de Deus, por um lado, e o da abolição da propriedade privada e com ele da luta de classes, o outro, o espaço público é a única utopia ao alcance dos que querem desenvolver com seriedade um projeto alternativo ao neoliberalismo. Não se necessita de uma memória histórica demasiado extensa para recordar nossos próprios desgarramentos, os que deram corpo e sangue à nação mexicana; tampouco faz falta uma agudeza especial para intuir que o desprezo pelo espaço público, ou seu descuido, pode acarretar lamentáveis consequências a longo prazo. Bastaria concluir com uma acertada afirmação de Lezek Kolakowski:
“A musa da história é amável, discreta e douta,
mas vinga-se e cega aquele que a despreza”.”
(Adrián Gurza Lavalle)


“A principal característica do pensamento neoliberal é a ideia da liberdade do indivíduo, a soberania das preferências e gostos de cada pessoa. Como o próprio Hayek afirma:
“...as características essenciais do individualismo... são o respeito pelo homem individual na sua qualidade de homem, isto é, a aceitação dos seus gostos e opiniões como sendo supremos dentro de sua esfera, por mais estreitamente que isso se possa circunscrever, e a convicção de que é desejável o desenvolvimento dos dotes e inclinações individuais por parte de cada um”1.
A questão é que, apesar de o indivíduo possuir gostos e opiniões que são supremos, a sociedade imprime-lhe limites que coíbem suas manifestações. Por mais liberal que a sociedade seja, na melhor das hipóteses para os neoliberais, a soberania de um indivíduo encontraria seu limite justamente na soberania do outro2.
Mas isso não é nenhum problema, já que a concorrência e o mercado resolvem esses conflitos individuais. Aliás, a principal vantagem da concorrência, para Hayek, é que ela dispensa a existência de um “controle social”, fazendo com que os indivíduos possam decidir por si mesmos sobre os benefícios e desvantagens de determinada atividade. A própria noção de escolha individual para Hayek já embute essa solução para os conflitos pessoais. Para ele, em um sistema de escolha individual, as remunerações dos indivíduos não são proporcionais aos seus méritos subjetivos, mas correspondem à utilidade do indivíduo para o resto da sociedade3. É justamente aqui que se encontra a principal falha metodológica da concepção neoliberal. Embora defenda a soberania do indivíduo, os conflitos entre soberanias conflitantes resolvem-se em uma instância social, o mercado. Desta feita, o que seria o reino da liberdade individual torna-se o império da subordinação dos indivíduos às leis do mercado. (...)
As políticas neoliberais começaram a ser implementadas, de forma intensa, no final da década de 70 na Inglaterra de Thatcher e pela reaganomics nos Estados Unidos. Durante o governo da “dama de ferro”, a economia inglesa passou por um processo acentuado de liberalização ou, como afirmam os arautos do neoliberalismo, de adequação à “nova” realidade. Operou-se uma forte contração monetária, que elevou as taxas de juros. Os impostos sobre grandes fortunas foram drasticamente reduzidos.
Os fluxos financeiros tiveram seus controles abolidos. Concebeu-se um amplo processo de privatização, nem sempre implementado integralmente. As greves foram duramente combatidas pela imposição de uma legislação antissindical e os gastos sociais foram cortados. Do outro lado do Atlântico, a reaganomics, ou economia da oferta, como ficou conhecida, implementou o mesmo tipo de política, com a singularidade de que se elevou o déficit público em demasia, graças a uma corrida armamentista ensandecida, A variante americana do neoliberalismo provocou um enorme déficit no balanço de pagamentos. A única forma que a economia americana encontrou para financiá-lo foi por meio de uma alta das taxas de juros, que teve efeitos nada desprezíveis na economia mundial.
Durante a década de 80, o receituário neoliberal tornou-se hegemônico no mundo globalizado. O resultado desse tipo de política é cultuado como a melhor prova de sua adequação às “novas” condições. A taxa de inflação, nos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico) caiu de 8,8% nos anos 70 para 5,2% nos anos 80. A taxa de lucro das indústrias da mesma região também melhorou sensivelmente.
Nos anos 70, ela caiu 4,2%, enquanto nos anos 80 ela aumentou em 4,7%. Aparentemente, a política neoliberal produziu excelentes resultados.
No entanto, a taxa média de desemprego dos países da OCDE quadruplicou na década de 80. No mesmo período, a tributação dos salários mais altos caiu em 20% e o crescimento dos valores negociados nas bolsas equivale a quatro vezes o crescimento dos salários. Em outras palavras, a política neoliberal produziu um elevado desemprego e uma impressionante concentração de renda. Como se não bastasse isso, o crescimento econômico no conjunto dos países capitalistas mais desenvolvidos também foi afetado. Se nos anos 60, o crescimento anual era de 5,5%, nos anos 70 ele caiu para 3,6% e nos anos 80 para 2,9%4.
Um balanço das políticas neoliberais demonstra, portanto, que elas conseguiram reduzir a inflação, mas o custo que isso proporcionou é sentido até hoje: elevados níveis de desemprego, concentração da renda e redução das taxas de crescimento. É difícil entender como as pessoas que acreditam que os benefícios da redução da inflação — queda de 3,6 pontos percentuais! — superam os custos do desemprego, da concentração da renda e da redução do crescimento econômico são consideradas ilustres membros da “inteligência”.
Pode-se argumentar que a comparação entre os custos da inflação e os do ajustamento faz parte da especulação política. Aliás, é isso o que se escuta das pessoas que aplicam a política neoliberal, geralmente envergonhadas de a denominarem dessa forma. Afinal, afirmam eles, não há nada pior para um trabalhador do que ter seu salário corroído pela inflação. Apesar de toda formalização e verborragia técnica, o fato é que quando se tem um emprego, ao menos se tem algum salário para ser corroído pela inflação.
Sem querer desmerecer a discussão política que norteia o debate do neoliberalismo, já que, decididamente, não se trata de uma questão técnica, deve-se desmitificar alguns dos pretensos axiomas do neoliberalismo. São eles que fornecem essa aparência técnica ao debate.”
1. Friedrich Hayek. O Caminho da Servidão, São Paulo, Ed. Globo, 1977, p. 15.
2. Isso sem falar no fato de que, na sociedade capitalista, a soberania individual se subordina aos “gostos” e “opiniões” do capital, que determinam a dinâmica da sociedade. Mas isso já seria uma crítica proveniente daquela parcela de analistas que não se encontra na “inteligência” deste país. Deixemo-la então de lado, por enquanto.
3. Hayek, op. cit., p. 116.
4. Esses dados são analisados minuciosamente por Perry Anderson e, “Balanço do Neoliberalismo”, in Sader & Gentili. Pós-Neoliberalismo — As Políticas Sociais e o Estado Democrático. São Paulo, Paz e Terra, 1995.
(Marcelo Dias Carcanholo)


“OS MITOS DA “NOVA” REALIDADE
A globalização da economia tem sido apresentada como um fenômeno totalmente novo. Os mercados não possuem mais fronteiras. A nova base técnica flexível modificou completamente o processo de trabalho e produção, existindo até quem chegue a falar em terceira Revolução Industrial. Entretanto, a novidade é mera aparência. Se a globalização é uma intensa internacionalização dos capitais e das mercadorias, o que há de novo? Por acaso, as expansões ultramarinas dos séculos XVI e XVII, que tanto contribuíram para a acumulação primitiva do capital, já não eram indícios de que a dinâmica do capitalismo pressupõe sua expansão além das fronteiras nacionais? Será que o neocolonialismo da virada do século passado que, no limite, levou a um conflito mundial entre as nações mais ricas também não faz parte dessa internacionalização do capital? Evidentemente, sim. Se existe algo novo na expansão dos capitais em termos internacionais, esse algo não passa de uma forma mais acelerada da expansão do capital, que é uma característica do capitalismo desde o seu princípio.
É verdade que a base técnica se alterou. Ela se estrutura agora em uma maior integração e flexibilização do fluxo produtivo, mas isso não nos permite afirmar que houve uma Terceira Revolução Industrial e, muito menos, que o processo de produção capitalista tenha se modificado por completo. No que alguns chamam de Primeira Revolução Industrial, o processo teria sido revolucionado pela produção de motores a vapor por meio de máquinas. Já no que chamam de Segunda Revolução Industrial seria representada pela aplicação do motor elétrico e do motor à explosão. Vale ressaltar que, independentemente da denominação, uma Revolução Industrial caracteriza-se tanto pela generalização do processo revolucionário quanto por profundas alterações das relações sociais. Os efeitos da nova base técnica parecem não estar nem tão generalizados assim nem ter provocado expressivas modificações sociais. Quanto à pretensa alteração do processo produtivo e das relações de classe que se estabelecem a partir dele, convém perguntar: não existem mais capitalistas para contratar trabalhadores? O operário não trabalha mais em troca de um salário? O objetivo do capitalista deixou de ser a apropriação de lucros, quando compra máquinas e matérias-primas e contrata trabalhadores? Os capitalistas deixaram de concorrer entre si por maiores lucros, por meio da produtividade? Esta última deixou de ser obtida por uma diminuição relativa do fator subjetivo da produção? Se a resposta a todas essas perguntas for afirmativa, somos obrigados a concluir que a sociedade capitalista acabou e que vivemos em uma sociedade “pós-industrial”, como querem alguns. No entanto, não parece ser este o caso5.
Pode-se concluir, portanto, que: “Ao contrário do que se divulga, a globalização é um fenômeno antigo na história econômica”6.
A principal tese do neoliberalismo é a de que o mercado, via mecanismo de preços, é a forma mais eficiente de alocar os recursos e, portanto, qualquer intervenção governamental é prejudicial. É a famosa tese do Estado mínimo, retratada na seguinte afirmação de Hayek: “Foi a submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma civilização que, sem isso, não se teria desenvolvido”7.
Em primeiro lugar, o argumento de que o mercado garante a alocação ótima dos recursos só vale em um mundo de concorrência perfeita e com livre mobilidade dos fatores8. Que a economia capitalista não tende a se desenvolver estruturada em concorrência perfeita, trata-se de um fato do qual a própria teoria econômica convencional já se convenceu. Esta última já constrói seus modelos mais atuais com a hipótese de concorrência imperfeita9. Quanto à livre mobilidade dos fatores, a tese é válida para os capitais que estão cada vez mais internacionalizados e, portanto, a desregulamentação dos mercados de capitais poderia, em tese, garantir essa livre movimentação. Entretanto, por mais desregulamentado que seja, o mercado de trabalho não pode ser globalizado. Quem pensa o contrário vê-se na árdua tarefa de explicar as restrições americanas à entrada de latinos, especialmente mexicanos, em seu mercado de trabalho, todos os problemas que os imigrantes turcos enfrentam para trabalhar na Alemanha, que os africanos enfrentam para conseguir empregos na Europa em geral e assim por diante.
Em segundo lugar, afirmar que o desenvolvimento do capitalismo só foi possível mediante a subordinação às leis do mercado é, no mínimo, desconhecer a história. Não existe nenhum caso, em toda a história do capitalismo, de uma nação que tenha conseguido industrializar-se, desenvolver-se, sem a ajuda, e até a iniciativa, do Estado. Ele foi o responsável pelo desenvolvimento em vários momentos: na acumulação primitiva do capital, que possibilitou a industrialização dos países da primeira geração; no desenvolvimento industrial, mediante medidas protecionistas, das principais potências de hoje (Estados Unidos, Alemanha, Japão); no desenvolvimento industrial dos países de terceira e quarta gerações (Brasil, México, Argentina, Tigres Asiáticos) por meio de gastos e investimentos públicos, aliados a medidas protecionistas; garantia de mercados no pós-guerra; proteção industrial na concorrência entre nações; produção industrial nos setores e momentos em que a iniciativa privada não tem condições de financiar o investimento.
Como resposta a algumas lições de história, um neoliberal mais honesto poderia afirmar que o Estado teve o seu papel no desenvolvimento capitalista, mas, nesta nova fase de globalização, deve-se priorizar a livre iniciativa e os investimentos privados. Daí a importância das políticas neoliberais. No entanto, não é isso o que ocorre mesmo nos países que mais advogam a supremacia do neoliberalismo. Considerando apenas barreiras não-tarifárias, os países desenvolvidos aumentaram a proteção de suas economias contra o comércio de produtos industrializados de 5%, em 1966, para 51% em 1986. No Japão, cerca de 30% das importações oriundas dos países em desenvolvimento são atingidas por proteções não-tarifárias. Essas barreiras nos Estados Unidos, em 1986, chegavam a 79% nos produtos têxteis, 64% nos equipamentos de transporte, 41% nas matérias-primas agrícolas e 40% nos alimentos. O subsídio da Comunidade Europeia na área dos cereais era, na mesma época, de 38%10.
Dessa forma, o livre mercado e a concorrência perfeita nunca foram os responsáveis pelo desenvolvimento de nenhuma das nações capitalistas, e as políticas neoliberais, apesar de toda a propaganda, não parecem ser a estratégia de desenvolvimento das principais potências econômicas, como demonstram os dados.
O terceiro grande mito do neoliberalismo é que, dado que o mundo vive em uma “aldeia global”, em que os mercados estão internacionalizados e o livre mercado é o meio mais eficiente para se alocar os recursos, a única política eficaz para os países em desenvolvimento, que garantiria a competitividade, é a neoliberal. Assim sendo, a desregulamentação dos mercados de trabalho e de capitais, a privatização de empresas estatais falidas11, a contenção salarial e a elevação das taxas de juros sob o pretexto de estabilização, a abertura comercial e a drástica redução dos gastos sociais seriam as únicas medidas capazes de garantir, aos países em desenvolvimento, a inserção na “nova” realidade da globalização.
Acreditando em todas essas recomendações e aceitando a imposição feita pelos principais órgãos internacionais, a grande maioria dos países latino-americanos implementou essas medidas durante a década de 80. O resultado foi desastroso. Enquanto as economias latino-americanas, contaminadas pela doença do “estatismo”, cresceram a uma taxa anual de 5,7% na década de 60, e de 5,6% na década seguinte (com todos os problemas que caracterizaram o período), essa mesma taxa passou a ser de 1,3% ao ano a partir do momento em que foram adotadas as políticas neoliberais, na década de 80.
Esses dados parecem não seduzir os apologistas da nova ordem. Afirmam eles que a privatização é a única forma de saldar o enorme déficit público originado pela incompetência administrativa do Estado. Isso possibilitaria a quebra do monopólio estatal e, portanto, uma maior concorrência, o que levaria a preços mais baixos e maior qualidade dos produtos ofertados.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que, no Brasil, a falência de algumas estatais é resultado tanto do controle dos preços públicos — praticado pelas mesmas pessoas que hoje defendem outros métodos para reduzir a inflação, quanto do excessivo endividamento externo dessas mesmas estatais, fruto de exigências anteriores da política econômica nacional. As empresas públicas estão, portanto, falidas porque subsidiaram empresas privadas que se utilizaram dos produtos das estatais a preços baixos, e porque possibilitaram a entrada de capitais privados externos. Em outras palavras, o problema das estatais deve-se muito mais a uma apropriação privada dos recursos públicos do que a uma incompetência administrativa inerente ao Estado. Além do mais, a privatização das estatais não garante a preservação do sistema de livre concorrência. O caso brasileiro é muito ilustrativo. Depois da privatização das estatais petroquímicas e siderúrgicas, o grupo Bozzano Simonsen domina o setor de aços planos, o grupo Gerdau o de não-planos e a Odebrecht possui o controle do setor petroquímico. Existe alguma diferença relevante entre um monopólio estatal e oligopólios privados? Existe sim! Toda a apropriação de recursos gerados por essas atividades agora é privada. E a tão propagandeada concorrência? Fica no discurso.
Como último recurso para justificar as privatizações, o neoliberalismo tupiniquim garante que nossa economia possui uma participação do Estado muito alta por comparação à que existe em outras nações; o discurso em outros países latino-americanos é muito parecido. Ele desconhece, ou omite, que grande parte das economias industrializadas mais importantes do planeta destinou em 1985 mais da metade de seu PIB ao gasto público e, nem por isso, deixaram de crescer. No final da década de 80, o gasto público em relação ao PIB era de 52,8% na Argentina, 31,2% no Brasil, 56,4% no Chile, 31,1% no México e 27% na Venezuela. Além disso, a pressão tributária, em 1989, nos países mais desenvolvidos da América Latina era de 17% do PIB, na África era de 15,4% do PIB, na Ásia de 14,6% e no conjunto de países industrializados, assombrosamente, a pressão tributária era de 37,5%!12.
Essa política neoliberal também defende a abertura comercial como forma de confrontar as empresas nacionais com a competição internacional, obrigando-as a elevar a produtividade para garantir certa competitividade. Tudo em nome da concorrência. No entanto, a mesma política prega a manutenção de altas taxas de juros para reduzir a demanda interna, controlando importações e inflação, e para atrair os capitais externos que podem financiar investimentos. Ora, como é possível obrigar as empresas nacionais a aumentar sua produtividade, o que requer investimentos, com taxas reais de juros exorbitantes? Promete-se a competitividade, mas impede-se seu financiamento. Além disso, beira o cinismo defender privatizações para saldar as dívidas do Estado quando se praticam taxas de juros elevadas, que fazem acelerar o crescimento dessas dívidas.”
5. Os autores que anunciam a mudança do processo produtivo, na verdade, não conseguem diferenciar o processo material de trabalho do processo de produção, que é algo mais complexo. Assim, qualquer alteração do processo material de trabalho é vista como modificação do processo produtivo.
6. Essa afirmação não seria levada a sério se fosse formulada por um crítico. Entretanto, seu autor é um dos homens mais bem-sucedidos do capitalismo contemporâneo, um dos homens que mais lucrou com a globalização financeira: George Soros. A frase foi formulada em entrevista concedida à revista Veja de 01/05/96.
7. Hayek, op. cit., pp. 191-192.
8. Além do mais, esse argumento é construído pressupondo-se toda uma distribuição da renda e as relações sociais como dadas, ou seja, o mercado, ao alocar eficientemente os recursos, não atua sobre elas. Muito pelo contrário, o mercado tende a perpetuar essa distribuição e essas relações.
9. George Soros afirmou, na mesma entrevista, que “reconhecer a imperfeição dos mercados é o primeiro passo. É equivocada a noção de que pessoas buscando livremente seus interesses acabam gerando prosperidade geral”.
10. Para uma análise desses dados, veja-se Stat Studies for the World Economic Outlook, setembro de 1990; FMI, Relatório da Economia Mundial, 1991, ONU; e Nilson Araújo de Souza, O Colapso do Neoliberalismo, Ed. Global, São Paulo, 1995.
11. É, no mínimo, curioso que a defesa da privatização se alastre para estatais lucrativas e competitivas- No caso do Brasil, a Petrobrás e a Companhia. Vale do Rio Doce são um bom exemplo disso.
12. Para uma análise minuciosa dos dados da participação do setor público no PIB em diversos países, cf. CEPAL, Transformación Productiva con Equidad. Santiago, 1990; CEPAL, Equidad y Transformación Productiva: un enfoque integrado. Santiago, 1992; e Atílio Borón, “A Sociedade Civil depois do Dilúvio Neoliberal”. Sader & Gentilli, op. cit.
(Marcelo Dias Carcanholo)

A quem pertence o amanhã? Ensaios sobre o neoliberalismo (Parte I) – Manoel Luiz Malaguti, Marcelo D. Carcanholo e Reinaldo A. Carcanholo (org.)

Editora: Loyola
ISBN: 978-85-1501-598-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 266
Sinopse: Esta coletânea pretende constituir-se em um espaço de divulgação de ideias críticas ao neoliberalismo. A ortodoxia liberal radicalizada impõe-se hoje como a única expressão possível das práticas sociais e as políticas econômicas condizentes com a modernidade. É bem verdade que seu sucesso deve-se muito mais a apatia das elites, das universidades e dos meios de comunicação do que ao conteúdo e à propriedade de suas propostas. Na realidade, os novos liberais apenas ratificam acriticamente as imposições do mercado: para melhor impulsionar suas potencialidades, o funcionamento do mercado tem sido libertado de todos os “entraves”, de todo e qualquer mecanismo regulador, de tudo que possa impedir sua livre expressão.



“Há duas décadas novas Tábuas da Lei de Deus impõem-se progressivamente ao conjunto da humanidade: uma aliança foi feita. Na civilização cristã, a “antiga” aliança estabeleceu um pacto entre Deus e o Homem, centrado na ideia do amor entre Deus (o Criador, o Pai) e o Homem (sua criatura, o filho), e entre os próprios seres humanos (“Amarás teu próximo como a ti mesmo”). Por seu lado, o homem mantinha toda a sua liberdade. Ele podia pecar; o Pai, misericordioso, podia perdoar.
As Tábuas da Lei dos dias atuais consagram a aliança entre o mercado (e também a tecnologia) e o conjunto da humanidade. O mercado é o grande regulador da vida econômica, o guia dos homens e da sociedade, os quais devem a ele se adaptar por toda a eternidade, Impõe-se “dedicar toda nossa fé aos mecanismos do mercado”1, cujo motor principal é o preço, submetido constantemente às mudanças induzidas pelo progresso científico e técnico, assim como às inovações tecnológicas, cujas exigências e imposições não permitem que nenhum indivíduo e nenhuma sociedade possam escapar. Nesse contexto, a única liberdade que o mercado oferece ao homem é a de submeter-se. Se ele não o fizer, se cair em tentação e pecar, ele não será perdoado. Será simplesmente eliminado do mercado de trabalho, do mercado de bens, do mercado de capitais... As novas Tábuas da Lei exaltam a ideia da competitividade entre todos os homens, entre todos os grupos sociais constituídos e entre todas as comunidades territoriais (cidades, regiões, países), pois, proclamam elas, a saúde individual e coletiva passa pela conquista de partes do mercado, especialmente do mercado mundial2.”
1: Groupe Bangemann. “L’Europe et la société de l’information planétaire, recommandations au Conseil européen”. Relatório de Martin Bangemann. Bruxelas, Comission Européenne, 26 de maio de 1994.
2: Cf. Ricardo Petrella. “L’évangile de la compétitivité”. Le Monde Diplomatique, setembro de 1991.
(Ignacio Ramonet)


“A história dos séculos XIX e XX foi, fundamentalmente, a da redução, até mesmo da eliminação, dos excessos perversos do capitalismo e de suas pretensões de governar a sociedade. Contra a tendência do capitalismo de criar estruturas oligopólicas ou monopólicas, foram votadas as leis antitruste, limitando as concentrações financeiras e industriais. Contra sua lógica de exploração do trabalho humano, foram estabelecidas legislações proibindo o trabalho infantil, um máximo de horas de trabalho cotidiano foi fixado, um salário mínimo vital garantido etc. Contra sua inclinação natural a deixar por conta própria os inaptos para o trabalho, os excluídos ou os desafortunados, foram instaurados sistemas de proteção social. Contra sua propensão a tudo transformar em valor mercantil, foram afirmados os princípios de igualdade, de justiça social e de solidariedade e foi posta a primazia do político e, ainda mais, da ética. Hoje em dia, a mundialização da economia de mercado, privatizada, desregulamentada e liberalizada, está “liberando” o capitalismo das regras, procedimentos e instituições que permitiram, em escala nacional, que fosse construído o “contrato social” (o Estado de bem-estar ou Welfare State)6.”
6: Cf. Christian de Brie, “Feu sur l’etat-providence”, e os artigos de Corinne Gobin e Seumas Mine em Le Monde Diplomatique, janeiro de 1994.
(Ricardo Petrella)


“Citemos cinco (iniciativas que a OMC poderia adotar):
— reintroduzir, em bases coordenadas em escala mundial, medidas nacionais, europeias e internacionais de controle dos movimentos de capitais, lado a lado com a eliminação do sigilo bancário e a proibição dos paraísos fiscais;
— conceber um novo sistema de Bretton Woods (reforma do Fundo Monetário Internacional [FMI] do Banco Mundial e, eventualmente, da Organização Mundial do Comércio, chamada a tomar o lugar do GATT) com o objetivo de orientar a riqueza do mundo para a satisfação das necessidades básicas da população mundial mais desfavorecida;
— estabelecer um novo sistema fiscal que desloque o eixo predominante da taxação atual sobre o trabalho para o capital, os recursos energéticos, as matérias-primas, os equipamentos, com o objetivo de pôr a tecnologia a serviço da valorização dos saberes e das capacidades humanas e não de sua substituição pelas máquinas;
— interromper o crescimento irresponsável e suicida das grandes cidades, notadamente nos países da Ásia, da América Latina e da África, que estão se tornando “buracos negros” ingovernáveis e destruidores da sociedade;
— finalmente, revalorizar — em todos os níveis e de maneira difusa — o papel do legislativo diante do crescimento imperial das tecnocracias e da nova classe mundial da aristocracia da competência e da excelência.”
(Ricardo Petrella)


“O capitalismo industrial, simbolizado de 1850 a 1950 pela usina, suas chaminés de fumaça, seus ritmos de atividade, sua disciplina do trabalho, começa a desaparecer em face de uma nova realidade. E assim tende também a desaparecer a classe operária, o sindicalismo operário e certa forma de conflito e de relações sociais. Não é, por isso, um acaso se, com o passar do tempo, pereça toda uma concepção do socialismo: aquela que foi forjada na luta contra a exploração capitalista na indústria, que tinha feito da classe operária a força principal de emancipação humana e do proletariado industrial o messias dos tempos modernos.
Claro, os ideais fundadores do socialismo solidariedade, equidade, justiça social, fraternidade — sobrevivem6, mas duplamente enfraquecidos: fragilizados por ter perdido sua dinâmica de lutas e por ter de se recompor em capitalismos enfraquecidos pela crise. Mas recompor-se em relação a quê? Essa nova sociedade emergente foi classificada de diversas formas pelos mais variados analistas: terciária, pós-industrial, de serviço, da informação, da comunicação... Mas está aqui o essencial? A dinâmica maior de nosso tempo é a extensão das relações mercantis a quase todos os domínios: à diversão e ao bem-estar dos homens, assim como ao funcionamento das empresas e das organizações, à dinâmica dos sistemas de informação, à decisão como gestão do político e aos sistemas sociais e de gestão do meio ambiente e talvez mesmo de controle do planeta. É então uma nova fase da divisão do trabalho e da esfera das mercadorias, marcada pela multiplicação das mercadorias complexas, produzidas principalmente por grupos capitalistas ou instituições sob seu controle. Lembremos, ainda, que essa produção exige tanto a disponibilidade de um trabalho fundamentado em competências profissionais (jurídicas, médicas, financeiras, de gestão), como materiais e tecnologias quase sempre sofisticadas. Essas “mercadorias complexas” não se reduzem nem a objetos individualizáveis, nem a simples serviços. Elas são combinações do material e do imaterial, de intervenções diretas de competências e do uso de bens com forte conteúdo técnico implicando, então, investimentos pesados, tanto em pesquisa e na produção de equipamentos, quanto na formação de homens. De onde se deduz o papel central dos grandes grupos (como na informática, nas comunicações, nas telecomunicações, nos complexos de informação, nas biotecnologias, no espacial, nos lazeres, na antipoluição etc.) e o papel secundário da sociedade como simples auxiliar do mercado.
Assim, atrás da aparência de uma passagem da indústria para o terciário, o fenômeno decisivo é, segundo pensamos, a emergência de um capitalismo generalizado. Seu campo é a generalização da mercadoria, a mercantilização do próprio homem (saúde, comércio de sangue, de órgãos, da procriação e com a perspectiva da gestão genética de toda sua existência), das funções sociais (educação e informação, conhecimento e gestão da opinião e, provavelmente, com a perspectiva de gestão da decisão política, das tensões e dos conflitos), das atividades humanas superiores (pesquisa científica, elaboração dos saberes, das obras do intelecto e artísticas, com a perspectiva da gestão dos princípios e dos valores sociais), das relações com a natureza (antipoluição, produção e urbanização não-poluentes, com a perspectiva da gestão do planeta) etc.
Em domínios nos quais a reprodução não encontra resistências do mundo material (informação, conhecimento, cultura, criação) a abundância estava ao alcance de uma humanidade que teria hierarquizado seus fins e controlado suas necessidades. Mas as firmas souberam impor seus monopólios, exacerbar e multiplicar as necessidades, criar uma nova escassez. E estamos outra vez presos, em quase todos os momentos de nossas vidas, pela dependência de novos materiais, de novos programas de computador, de novas necessidades de informação, de novas esperas, de novas esperanças, novas alienações...”
6. Cf. Michel Beaud, “Le Socialisme à l’Epreuve de l'Histoire”, Le Seuil, Paris, 1982.
(Michel Beaud)


“Doravante, a economia domina a sociedade. Para numerosas questões que em outros tempos eram tratadas em termos políticos ou éticos, primam agora os argumentos econômicos. A melhoria das condições de vida de cada um, a elevação do nível de vida, a própria existência e até mesmo a felicidade parecem depender essencialmente da vitalidade da economia. No universo da Ciência Econômica, correntes cada vez mais poderosas pretendem trazer respostas a tudo, e isso graças ao simples cálculo econômico. Pois tudo, seria apenas um negócio de maximização ou de otimização11. Assim, a dominação crescente da economia sobre nossas sociedades tende a desdobrar-se em uma dominação crescente do raciocínio econômico sobre nossas mentalidades, nossas formas de pensar, nossos julgamentos e nossas decisões.
Ora, sociedades nacionais e sociedades humanas são cada vez mais dominadas pela esfera monetária e financeira que se desenvolve com a multiplicação das operações de câmbio, o inchaço das atividades financeiras e da bolsa de valores, as especulações incessantes e as arbitragens cada vez mais finas e precisas sobre as taxas de juros e as taxas de câmbio, os jogos cada vez mais etéreos sobre os “futuros”, os diferenciais, as opções...
Essa esfera monetária/financeira começa a inflar-se poderosamente e tende a autonomizar-se em relação ao funcionamento das economias produtivas e mercantis. As trocas nos mercados monetários, financeiros e na bolsa de valores, que representam duas vezes as trocas de mercadorias no tempo de Keynes, representam hoje cinquenta vezes seu valor12. Essa esfera monetária e financeira realiza, de uma forma espetacular, a tendência contemporânea à globalização; ela constitui o meio ideal para as atividades dos especuladores internacionais, das oligarquias e ditadores (enriquecidos em detrimento de seus países13), das finanças de todas as máfias e de todos os tráficos. Agitada pelas relações complexas entre moedas nacionais, finanças públicas dos Estados, estratégias financeiras das multinacionais e contas exteriores das nações, essa esfera também está sujeita a impulsos e lógicas que lhe são próprias; seus efeitos, que se transmitem em tempo real para toda a Terra, arriscam, em caso de crise14, levar na tormenta as moedas e as economias nacionais, com as sociedades humanas que, doravante, delas dependem.
Finalmente, com o duplo processo da mercantilização e da globalização, aparece no cenário uma situação completamente nova na história das sociedades: as sociedades cada vez mais dependentes da economia; economias cada vez mais tributárias das tensões e dos sobressaltos de uma esfera monetária e financeira mundial que nada nem ninguém está em condições de controlar sua dinâmica ou de impedir a espiral de uma crise.”
11. Pensa-se notadamente em Gary Becker. Cf. Michel Beaud e Gilles Dostaler, La Pensée Economique depuis Keynes. Paris, Seuil, 1995, pp. 16ss; pp. 238ss.
12. Outra avaliação: a relação entre o conjunto das compras e das vendas de moedas nos mercados de câmbio e o conjunto das operações ligadas ao comércio mundial eram de seis em 1979 e de vinte em 1986. Ct Michel Beaud, L'Economie Mondiale dans les Années 80. Paris, La Découverte, 1989, pp. 129-129.
13. Nos anos 80, para treze países fortemente endividados do Terceiro Mundo, os haveres no estrangeiro estimados como correspondendo a fugas de capitais representavam 40% a 50% do estoque da dívida externa desses países (United nations Conference on Trade and Development), International Monetary and Financial Issues for the 1990's. ONU, Nova York, vol. III, 1995, p, 66).
14. Dois alertas sérios apoiam nossa afirmação: a crise da bolsa de valores do outono de 1987, por um lado, e os ataques especulativos contra as moedas do sistema monetário no primeiro semestre e no verão de 1995, por outro. Os otimistas podem assim pensar que se poderá sempre evitar o pior; os pessimistas podem temer que uma outra vez todos os diques sejam arrastados pela cheia.
(Michel Beaud)


“Com valores desgastados, coerências fragilizadas, as sociedades contemporâneas não têm mais projetos globais: o crescimento econômico tornou-se sua principal finalidade. Nos países ricos, apresentado por longo tempo como meio de aumentar o bem-estar, o crescimento é, hoje, considerado o principal remédio para o desemprego e a pobreza — alguns preferem não refletir sobre as razões pelas quais, depois de um ou dois séculos de crescimento, os países capitalistas ainda sofrem desses males.”
(Michel Beaud)


“Mas quem não vê a trágica distorção entre a amplitude dos desafios de nosso tempo e a incapacidade de nossas sociedades para enfrentá-los? Não estaríamos entrando numa era de irresponsabilidade ilimitada? Porque, uma vez que o mercado provê tudo, é o consumidor que deve fazer sua escolha; desde que os mercados, principalmente o financeiro, são mundiais, os dirigentes nacionais encontram boas desculpas para o laissez-faire. Firmas, governos, profissionais (da saúde ou das finanças) ou especialistas não são indiferentes em relação aos apelos, às declarações, aos códigos (de boa conduta ou de ética): comprova-se isso, se necessário for, com a conferência do Rio de Janeiro. Mas, diante dos processos em curso que desestruturam nossas sociedades, põem em perigo a Terra, ameaçam a humanidade, nenhum lugar elabora ou põe em prática a estratégia pluridimensional da qual temos necessidade.
Assim, o pior está, talvez, preparando-se: que uma humanidade mais rica do que nunca aceita que um bilhão dos seus mergulhem na miséria; a intolerável desigualdade que caracteriza nosso tempo, nascida da combinação das diversas sociedades e do fosso existente entre elas, atingindo seus limites visto que, em todos os lugares, domina o dinheiro. Para a população mundial considerada em seu conjunto, os 20% mais pobres dispõem de 0,5% do rendimento mundial e os 20% mais ricos, de 79%16. Algumas famílias muito ricas têm como rendimentos o equivalente monetário ao que recebem centenas de milhares de famílias muito carentes. Ninguém ousa dizê-lo, mas o que está sendo instaurado, em estrito silêncio, é um novo apartheid de escala planetária.
O pior é também o sacrifício imposto às próximas gerações pela rapacidade e pelas omissões de hoje, por meio dos recursos desperdiçados e pilhados: água poluída, solos destruídos, lixo químico e radioativo lançados nas terras e nas águas, áreas nucleares (civis ou militares) a controlar. Eles serão vários bilhões a mais (outra irresponsabilidade daqueles que se opõem ao controle demográfico) e terão de gerir os estragos, os riscos e as carências que nós lhes teremos legado. Em vez de conhecer uma nova etapa da emancipação humana, eles estarão submetidos à pressão de novos limites e novas necessidades.
Levando em conta o poder das dinâmicas em curso, a força de aceleração que caracteriza praticamente todos os aspectos da evolução de nosso mundo e a ausência de alternativa crível, só resta o apego firme, é verdade — a umas poucas trincheiras. Assim fazendo, devemos 1) procurar impedir a dominação geral da mercadoria; 2) salvaguardar ou recriar espaços públicos gratuitos e vinculados à pequena produção familiar ou comunitária; 3) redefinir em todos os níveis (locais e mundiais) um espaço de bens públicos de responsabilidade dos poderes constituídos; 4) bloquear a emergência de um apartheid mundial; 5) interromper o agravamento das desigualdades e trabalhar para reduzi-las; 6) reafirmar, restaurar ou instaurar sistemas múltiplos de solidariedade, de redistribuição e de proteção social e, enfim, 7) conceber e colocar em prática estratégias que sejam respostas a necessidades urgentes (água, habitação, saúde) e que suscitem o desenvolvimento de atividades e de empregos, contribuindo para promover formas de produção e de vida não-destruidoras dos recursos e dos equilíbrios de nossa Terra.
Tudo isso na expectativa de que um ímpeto humanístico, ético, político permita melhores perspectivas.”
16. Programa das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento (PNUD). Relatório Mundial sobre o Desenvolvimento Humano, 1992. Paris, Econômica, 1992, P. 40.
(Michel Beaud)


“A partir do começo dos anos 80, uma grande parte das dívidas das grandes sociedades e bancos foi eliminada e transformada em dívida pública. Esse fenômeno de “conversão” é um elemento central da crise: as perdas foram sistematicamente transferidas para o Estado. Além disso, boa parte das subvenções públicas, em vez de estimular a criação de empregos, foi utilizada para financiar a concentração de empresas, tecnologias limitadoras de mão-de-obra, deslocamentos para o Terceiro Mundo. As despesas do Estado favoreceram desse modo a concentração da propriedade e uma diminuição sensível da força de trabalho industrial, enquanto o desaparecimento de médias e pequenas empresas e a produção de desemprego entre os assalariados (que também são contribuintes) aceleravam a diminuição dos ingressos fiscais6. A crise da dívida ainda favoreceu o estabelecimento de sistemas fiscais regressivos, que também contribuíram para o agravamento... da dívida. Enquanto baixava a imposição sobre as empresas, os impostos (entre eles a TVA, Taxe à la ValeurAjoutée (Imposto sobre valor adicionado]) que atingem a população assalariada eram utilizados para o pagamento da dívida pública. A crise fiscal também foi agravada pela transferência, favorecida pelas novas técnicas bancárias, de lucros de empresas para paraísos fiscais como Suíça, Luxemburgo, Bahamas etc. As ilhas Cayman, colônia caribenha da coroa britânica, constituem o quinto centro bancário do planeta em termos de depósitos anônimos ou de depósitos provindos de empresas de fachada7.
Desse modo, o agravamento do déficit americano está diretamente ligado a uma evasão fiscal maciça e à fuga de lucros não declarados. Em compensação, uma boa parte dos fundos depositados nas ilhas Cayman e nas Bahamas — alguns deles controlados por organizações criminosas — serve para o financiamento de investimentos nos Estados Unidos. Um círculo vicioso foi assim estabelecido. Os destinatários dos subsídios governamentais tornaram-se credores do Estado. Os bônus emitidos pelo Tesouro para financiar as grandes firmas são adquiridos pelos bancos e pelas instituições financeiras, que também são beneficiados pelos subsídios estatais. Movemo-nos no absurdo completo: o Estado financia, desse modo, seu próprio endividamento, subsídios são utilizados para a compra da dívida pública. Assim, o governo está imprensado entre ambientes de negócios que fazem pressão para obter subvenções e serem seus credores. E, como uma grande parte da dívida pública está nas mãos de instituições financeiras privadas, estas últimas estão em posição de influenciar os governos com o objetivo de controlar ainda mais os recursos públicos...
Além disso, em muitos países membros da OCDE, as práticas dos bancos centrais foram modificadas com o objetivo de responder às exigências dos mercados. Essas instituições tornaram-se cada vez mais “independentes” e foram “postas ao abrigo das influências políticas”. Com efeito, isso significa que o Tesouro está cada vez mais à mercê dos credores privados. Na verdade, o Banco Central (que não é responsável nem diante do governo, nem diante dos parlamentares) opera como burocracia autônoma sob a tutela dos interesses financeiros privados. São estes, mais que o governo, que determinam a política monetária. Um exemplo: os fortes aumentos das taxas de juros americanas em 1994-1995 foram ditadas por Wall Street, provocando um inchaço no pagamento de juros da dívida pública e cortes correspondentes nos gastos sociais, que também tinham sido solicitados pelos meios financeiros. A política monetária como meio de intervenção do Estado já existiu um dia; doravante, ela será em parte domínio do banco privado. Contrastando com a raridade crescente dos fundos públicos, a “criação de moeda” (que implica um controle dos recursos reais) é realizada no coração do sistema bancário internacional, com o único fim de enriquecer a ordem privada. Poderosos atores financeiros têm, além da possibilidade de criar e de fazer circular moeda, a de manipular as taxas de lucro e de precipitar a queda de divisas maiores, como aconteceu com a libra esterlina em setembro de 1992.”
6. A contribuição das firmas americanas nos ingressos federais passou de em 1980 para 8,3% em 1992. Cf. US Statistical Abstract, 1992.
7. Estimativas apresentadas por Jack A. Blum em Journées sur les drogues, Le développement et L'état de droit. Bilbao, outubro de 1994. Cf. também Alain Labrousse e Alain Wallon (sob a direção de), La Planite des Drogues. Le Seuil, Paris, 1995; e La Drogue, Nouveau Désordre Mondial. Observatoire Géopolitique des Drogues. Hachette, Paris, 1995.
(Michel Chossudovsky)


“O futuro terá retomado uma perspectiva positiva? Silêncio, entretanto, sobre o futuro do trabalho e do tempo livre nas sociedades ricas; silêncio sobre a evolução demográfica e os fulgurantes fenômenos de urbanização (incluídos em anexos estatísticos nos relatórios); silêncio sobre as relações entre emprego e modo de desenvolvimento; silêncio sobre os meios políticos para domar os “dragões” especulativos mundiais, que não são estranhos à escalada do desemprego. Por outro lado, podemos nos alegrar com a informação de que vários milhares de assalariados da Microsoft são milionários e de que dois dentre eles são bilionários. Para eles, ao menos, a “dura realidade” pertence em princípio, ao passado.”
(Jacques Decornoy)


“Ao contrário das expectativas de uma transição para a democracia depois das ditaduras militares, a ordem neoliberal tem se caracterizado por um recrudescimento das formas autoritárias de governo.
O efeito político e social dessas mudanças é a tendência a excluir da atividade política regular amplos setores da sociedade por uma das três seguintes vias: limitação do exercício do direito do voto (que não necessariamente é respeitado, sobretudo quando seus resultados não beneficiam os grupos dominantes); severa restrição ou eliminação do exercício da representação das organizações sociais realmente existentes (que só detêm espaços limitados através dos partidos políticos com registro estável); e descrédito geral das funções públicas exercidas pelas representações políticas opositoras.
Nessas condições, é cada vez maior o número de conflitos políticos que carecem de canais de negociação, bem como de formas institucionais estáveis de solução. De maneira superficial, a academia conservadora tende a denominar tal circunstância de “ingovernabilidade”, termo usado pelos estrategistas da segurança nacional norte-americana. Por nossa parte, acreditamos que é necessário referir-se, na verdade, ao predomínio de um regime de exclusão que coloca em risco a sobrevivência da ordem, salvo pelas ações de força que possam ser exercidas pelos aparelhos de poder. De todas as maneiras, tal regime de exclusão serve predominantemente para o objetivo de diminuir ainda mais a soberania nacional (entendida como exercício da capacidade de decisão política sobre uma população em um território determinado), com o consequente incremento do intervencionismo externo.”
(Raquel Sosa Elízaga)

A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal (Parte II) – Dany-Robert Dufour

Editora: Companhia de Freud
ISBN: 978-85-8571-793-3
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Ver Parte I



“A pós-modernidade não me parece analisável, pois, como a época do esclarecimento em relação aos ídolos imaginários, mas como a do desaparecimento da instância que, no sujeito, lhe diz: “Tu não tens o direito de...”. Digamos que, na pós-modernidade, o Pai é morto sem que se sigam a culpabilidade e a condenação do assassinato graças ao qual se constitui alguma figura do Outro. A pós-modernidade produz assim sujeitos sem consistência superegóica verdadeira, insensíveis à injunção simbólica, mas extremamente vulneráveis a todas as formas de trauma. Não recalcando mais, eles se tornam imunes à culpabilidade, mas sujeitos à vergonha. Esse desaparecimento da culpabilidade é hoje tão profundo que alcançou o meio dos responsáveis políticos – lembramo-nos da histórica e aterradora fala de um ministro da Saúde dos anos 1980 a propósito da questão do sangue contaminado: “responsável, mas não culpado”.
O universo simbólico do sujeito pós-moderno não é mais o do sujeito moderno: sem grande Sujeito, isto é, sem marcos em que possam se fundar uma anterioridade e uma exterioridade simbólicas, o sujeito não chega a se desdobrar numa espacialidade e numa temporalidade suficientemente amplas. Ele fica engolido num presente dilatado no qual tudo transcorre. A relação com os outros se torna problemática na medida em que sua sobrevivência pessoal se encontra assim sempre em causa.”


“O que acontece com a forma sujeito hoje, em período neoliberal? (...) Do lado da consciência reflexiva (processos ditos secundários), o neoliberalismo quer absolutamente acabar com o sujeito crítico (...). E do lado do inconsciente (processos ditos primários) o neoliberalismo não tem mais o que fazer com o velho sujeito herdado da modernidade, exposto por Freud, classicamente neurótico e assaltado pela culpabilidade. Ao invés desse sujeito duplamente determinado, ele quer dispor de um sujeito a-crítico e, tanto quanto possível, psicotizante. Isto é, um sujeito disponível para todas as conexões, um sujeito incerto, indefinidamente aberto aos fluxos de mercado e comunicacionais, em carência permanente de mercadorias para consumir. Um sujeito precário em suma, cuja precariedade mesma é exposta à venda no Mercado, que pode aí encontrar novos escoadouros, tornando-se grande provedor de kits identitários e de imagens de identificação.”


“O que produz, pois, o mais difundido desses meios, a televisão, nas crianças? A questão é ainda mais importante de ser levantada na medida em que o achatamento das crianças pela televisão começa muito cedo. As crianças que hoje chegam à escola são frequentemente crianças empanturradas de televisão desde sua mais tenra idade. Está aí um fato antropológico novo, cujo total alcance não se avaliou ainda: doravante os pequeninos frequentemente se encontram diante da tela antes mesmo de falar. Intuitivamente se compreende por quê: é o único instrumento que permite manter as crianças tranquilas sem se ocupar delas. O consumo de imagens, como todas as pesquisas mostram, atinge várias horas por dia. Segundo um estudo da Unesco, “as crianças do mundo passam em média três horas por dia diante da telinha, o que representa pelo menos 50% mais de tempo consagrado a esse meio que a qualquer outra atividade para-escolar, compreendidos aí os deveres, passar tempo com a família, amigos ou ler”4. Esse número, já considerável, é, no entanto, apenas uma média: perto de um terço das crianças olha a televisão 4 horas por dia ou mais (encontra-se, entre esse terço, uma maioria de crianças das classes e das minorias desfavorecidas).
A inundação do espaço familiar por essa torneira sempre aberta de onde corre um fluxo ininterrupto de imagens não deixa de ter, evidentemente, efeitos consideráveis na formação do futuro sujeito falante. Em primeiríssimo lugar, a televisão, pelo lugar preponderante ocupado por uma publicidade onipresente e agressiva, constitui um verdadeiro adestramento precoce para o consumo e uma exortação à monocultura da mercadoria5. Aliás, essa incitação excessiva não é desprovida de visadas ideológicas. Os mais agressivos publicitários entenderam perfeitamente que partido podiam tirar do desabamento pós-moderno de toda figura do Outro: eles também não hesitam em recomendar entranhar-se “na fragilidade da família e da autoridade para instalar marcas, novas referências” (...)
Além da publicidade, há a violência das imagens: em torno dos 11 anos, a criança “média” terá visto cerca de 100.000 atos de violência na televisão e terá assistido a cerca de 12.000 assassinatos8! Certo, as histórias contadas pelas supostas gentis avós de outrora continham uma porção considerável de horríveis histórias de ogros devoradores de crianças que literalmente nada deixam a invejar às usuais imagens gore* difundidas hoje. Mas não se deve esquecer duas diferenças cruciais: 1) a avó, ao mediatizar o horror, o integrava no circuito enunciativo e o tornava, de certo modo aceitável; 2) existe uma nítida dessemelhança entre o universo claramente imaginário do ogro no conto, obrigando a criança a pensar esse universo como um outro mundo (o da ficção) e o universo muito realista dos seriados, com brigas, violências, roubos assassinatos, sem distância do mundo real9. (...)
Assim, esquece-se frequentemente de mencionar que o tempo a mais para a televisão é tempo a menos para a família. De modo que, com a televisão, é a família, como lugar de transmissão geracional e cultural da vida, que se encontra de cara reduzida à porção compatível. Neste sentido, a expressão “filhos da televisão”, tomada ao pé da letra, ao invés de provocar risos, deveria verdadeiramente aparecer como o que ela é: antes patética, de tanto que ela verifica o fato de que a televisão efetivamente roubou o lugar educador dos pais em relação aos filhos, para tornar-se o que estudos quebequenses nomeiam como “terceiro parental” particularmente ativo, suplantando em muito os verdadeiros pais.”
*: Subgênero cinematográfico dos filmes de horror, que é caracterizado pela presença de cenas extremamente violentas, com muito sangue, vísceras e restos mortais de humanos ou animais.
4: Jo Groebel, “The Unesco Global Study on Media Violence”, em Children and Media Violence, Unesco, Stockholm, 1998.
5: Ver o artigo de Paul Moreira em Le Monde diplomatique de setembro de 1995: “Les enfants malades de la publicite”. Segundo a revista Consumer Report, uma criança americana vê em média 40.000 espotes de publicidade por ano. O poder de compra dos kids americanos interessa fortemente o marketing, já que ele é avaliado em cerca de 15 bilhões de dólares – sem contar a influência que eles têm nas compras de seus pais, estimadas em cerca de 130 bilhões de dólares por ano (números de 1991).
8: Wendy Josephson, Television Violence: A Review of the Effects on Children of Different Ages, Patrimoine canadien, 1995.
9: Um estudo conduzido pelo psicólogo Jeffrey Johnson da Columbia University, publicado na revista Science de 29 de março de 2002, nº 295, argumenta com uma nítida correlação entre o comportamento adolescente violento e o tempo passado diante da televisão.


“Primeiro, notemos que a exposição maciça à imagem televisiva desvia o sentido secular das relações texto-imagem. Antes da invasão das relações geracionais pela televisão, decerto existiam imagens, mas a iniciação à prática simbólica partia do texto através do qual eram inferidas as imagens. Entendo por “texto” tanto enunciados orais – fala cotidiana, contos, versões de mitos ou lendas – quanto enunciados registrados numa escrita (texto santo, folhetos, romances...). Esse primado do texto pode ser facilmente concebido a partir de certas situações simples. Por exemplo, a audição de um contador de histórias ou a leitura de um romance desencadeiam uma atividade psíquica durante a qual o ouvinte ou o leitor cria imagens mentais das quais ele se torna, de algum modo, o primeiro espectador. Era assim que os feácios, reunidos em torno do aedo que contava as proezas de Ulisses, assistiam “diretamente” e “viam” em seu foro interior as proezas narradas. Essa capacidade de presentificar o que está ausente refere, evidentemente, um ponto chave da simbolização. Aliás é a audição da narrativa de suas próprias proezas que permite a Ulisses “voltar a si” quando chega à ilha de Alkinoos, num retorno a si mesmo tão intenso que ele cobre o rosto, provavelmente para chorar de emoção, como Heidegger conjeturou14. (...)
O narrador grego fazia seus ouvintes penetrarem no mundo das forças vivas da Physis, abrindo-lhes uma janela para um mundo primeiro, um mundo divino, geralmente furtado à visão dos mortais, onde se tecem os acontecimentos do mundo segundo em que estes vivem. O narrador grego é exitoso no prodígio de fazer ver aos que habitam esse mundo das aparências um suposto verdadeiro mundo, um mundo real onde se organizam as coisas. Quanto ao leitor, ele imagina algo do mundo que o autor criou.
Aqui está o estatuto da imagem arcaica, tornada tão inteligível por J.- P. Vernant, e lá o estatuto da fábula, para o qual, segundo Umberto Eco, o leitor é convidado pela interpretação do texto e de seus não-ditos15.
Quanto ao fato de todos os ouvintes ou de todos os leitores verem as mesmas imagens, com certeza não. Aliás, conhecem-se as controvérsias que surgem a partir do momento em que um cineasta propõe-se rodar a adaptação de uma obra literária: como ninguém, nenhum leitor “viu” a mesma coisa, todo mundo protesta pelo escândalo e pela traição.”
14: M. Heidegger, Essais et conférences [1954], Gallimard, Paris, 1958; cf. artigo “Alètheia”.
15: J.-P. Vernant, Religions, histoires, raisons, Maspero, Paris, 1979: cf. cap. 8, “Naissance d’images”; U. Eco, Lector in fabula, Grasset, Paris, 1985.


“Nesse caso, cada vez mais e mais frequente, o uso da televisão é muito pernicioso, já que ele só pode afastar ainda mais o sujeito do domínio das categorias simbólicas de espaço, de tempo e de pessoa. A multiplicidade das dimensões oferecidas pode se tomar um obstáculo a mais para o domínio dessas categorias fundamentais, turvando sua percepção e se acrescentando à confusão simbólica e aos desencadeamentos fantasísticos. E nada menos que a capacidade discursiva e simbólica do sujeito que se encontra então posta em causa.
Sendo impotente para transmitir sozinha o dom da palavra, a televisão dificulta a antropofeitura simbólica dos recém-vindos, ela torna difícil o legado do bem mais precioso, a cultura.
É impossível dizer que não sabíamos. Nós temos sido advertidos do desastre civilizacional em curso. Nos anos 1980, numa obra divertida, nostálgica e visionária, Ginger e Fred, Fellini, como artista da imagem herdeiro da grande cultura, havia feito o balanço previsível da catástrofe em curso. Com a televisão, mostrava-nos ele, séculos de arte e de cultura estão indo rio abaixo num cenário chocante de niilismo mercantilista. Não digo que esse diagnóstico seja inelutável: a televisão pode, dissemos, eventualmente abrir para um mundo ampliado, contanto que a instalação simbólica mínima esteja assegurada. Mas seu uso não pode suprir as fraquezas na simbolização, como se poderia ingenuamente crer. Pior até: ele arrisca barrar mais ainda as vias de acesso a esse mundo.
Evidentemente, essa observação vale para todas as próteses sensoriais, não apenas para a tele-visão, mas para toda tele-mática que joga com a tele-presença, isto é, tudo o que transporta um aqui para acolá e um lá para aqui mesmo (os jogos de vídeo, o telefone celular que acompanha cada um 24 horas por dia, a internet...).
Poderíamos, pois, dizer que o uso das próteses sensoriais só pode permitir o desenvolvimento de novas aptidões para o gozo nos casos em que a função simbólica está quase fixada. Em caso contrário, ele só pode gerar novos sofrimentos. (...)
Vivemos, pois, num mundo no qual estamos vendo certos sujeitos se tornarem seres ubíquos, quase liberados das coações espaço-temporais ancestrais graças às próteses sensoriais, ao preço de ver alguns outros não mais poderem habitar nenhum espaço.”


“Uma violenta repressão de instintos poderosos exercida do exterior nunca traz como resultado a extinção ou a dominação destes, mas ocasiona um recalque que instala a propensão a entrar posteriormente na neurose. A psicanálise frequentemente teve a oportunidade de ensinar a que ponto a severidade indubitavelmente sem discernimento da educação participa da produção da doença nervosa, ou ao preço de qual prejuízo da capacidade de agir e da capacidade de gozar a normalidade exigida é adquirida.” (Freud, L’Intéret de la psychanalyse [1913], Retz, Paris, 1980.)


“É apenas quando essa primeira dominação (ontológica) está posta que se pode dizer que a dominação é também, para o homem, um fato sociopolítico. Marx permitiu compreender o quanto essa dominação sócio-política era complexa e sutil, já que ela se apresenta como uma realidade que se afirma dissimulando-se. Com efeito, a dominação sociopolítica é tanto o conjunto dos meios pelos quais certos grupos de indivíduos exercem um domínio econômico, político e/ou cultural sobre outros grupos quanto o conjunto dos meios pelos quais esses grupos dominantes dissimulam seus interesses particulares, tentando fazê-los passar por interesses universais. Essa segunda dominação apresenta, pois, a particularidade de ser contingente e de funcionar enquanto seus dominados continuem seus “patos”. Quando um grupo humano para de ser enganado pela dissimulação de uma dominação e o rei, como se diz, lhe aparece repentinamente nu, então, geralmente, esse grupo sai, num prazo relativamente curto, dessa dominação, para logo experimentar uma nova.”


“É a mais conquistadora de todas as dominações possíveis na hora atual que arrisca triunfar, o que se chama comumente de neoliberalismo. A enorme novidade do neoliberalismo por relação aos sistemas de dominação anteriores diz respeito a que estes últimos funcionavam com o controle, o reforço e a repressão institucionais, enquanto que o novo capitalismo funciona com a desinstitucionalização13. Provavelmente foi isso que Foucault não viu chegar. Entregue totalmente ao estudo das múltiplas formas de o poder encarregar-se da vida (nos cuidados, na educação, nas formas da punição...), ele não viu que uma novíssima dominação muito progressivamente se instalava após a Segunda Guerra Mundial. Os exemplares estudos de Foucault sobre as sociedades disciplinares vieram, com efeito, num momento em que essas sociedades já entravam em decadência. Com efeito, eles se aplicaram a um objeto já bem fragilizado no momento do estudo14. Foi por isso que, embora os estudos de Foucault sobre as sociedades disciplinares fossem fundados, eles não deixaram de gerar um imenso mal-entendido. Os muito vivos engajamentos militantes da época não perceberam que as instituições que eles tomavam como alvo eram exatamente os aparelhos que a fração mais conquistadora do capitalismo queria destruir. Então já não era mais pelo poder tomar, para si o encargo disciplinar da vida que a dominação queria continuar a impor-se, era por uma forma de dominação toda nova, cuja instalação os anos 1960 no mundo (na Califórnia, na Itália, na Inglaterra, na França em maio de 68...) precipitaram. O novo capitalismo estava descobrindo e impondo uma maneira muito menos constrangedora e menos onerosa de garantir a sua sorte: não mais continuar a reforçar a dominação segunda que produzia sujeitos submissos, mas quebrar as instituições e assim acabar com o tomar o encargo da dominação primeira de maneira a obter indivíduos dóceis, precários, instáveis, abertos a todos os modos e todas as variações do mercado.
É assim que, hoje, “as únicas coações justificáveis são as das trocas de mercadorias”15. O exclusivo e único imperativo admissível é que as mercadorias circulem. De modo que toda instituição, vindo interpor entre os indivíduos e as mercadorias suas referências culturais e morais, é doravante mal vinda. Em suma, o novo capitalismo muito rápido identificou o partido que podia tirar da contestação. É assim que o neoliberalismo promove hoje “um imperativo de transgressão dos interditos” que confere a esse discurso um “perfume libertário”, fundado na proclamação da autonomia de cada um e na “ampliação indefinida da tolerância em todos os campos”16. É por isso que ele porta com ele a desinstitucionalização: é preciso não apenas “menos Estado”, mas menos de tudo o que poderia entravar a circulação da mercadoria.
Ora, o que essa desinstitucionalização imediatamente produz é bem uma dessimbolização dos indivíduos. O limite absoluto da dessimbolizaçao é quando mais nada vem assegurar e assumir o encaminhamento dos sujeitos para a função simbólica encarregada da relação e da busca de sentido. Nunca se chega aí verdadeiramente, mas, enfim, quando a relação de sentido desfalece, é sempre em detrimento do próprio da humanidade, a discursividade, e em proveito da relação de forças. O que o novo capitalismo visa hoje é o núcleo primeiro da humanidade: a dependência simbólica do homem. Não é surpreendente, pois, que nosso espaço social se encontre cada vez mais invadido pela violência comum, pontuada por momentos de hiperviolência, acidentes catastróficos que as condições ambientes tornam, doravante, sempre possíveis. O círculo é assim fechado: a lógica neoliberal produz sujeitos que, funcionando precisamente na lei do mais forte, ainda reforçam essa lógica.”
13: É notável que seja pelas instituições asilares, ali onde o enquadramento era o mais forte, que essa desinstitucionalização tenha começado. O que Robert Castel havia perfeitamente identificado em seus estudos, notadamente em F. Castel, R. Castel, A. Lovell, La Société psychiatrique avance e, le modele américain, Paris, Grasset, 1979.
14: Nos Estados Unidos, o mesmo mal-entendido ocorreu com E. Goffman: tomou-se Asiles (publicado na França em 1968) por um estudo libertador, enquanto que ele se inscrevia num projeto de desinstitucionalização. Aliás, esse projeto foi implantado em 1 996 na Califórnia, depois que um certo Ronald Reagan foi eleito governador...
15: P.-A. Taguieff, Résister au bougisme, Mille et une nuits, Paris, 2001, p. 1 4.
16: Ibid., p. 15.


“Tudo o que remete à esfera transcendente dos princípios e dos ideais, não sendo conversível em mercadorias e em serviços, se vê doravante desacreditado. Os valores “morais” não têm valor (mercadológico). Por não valerem nada, sua sobrevivência não se justifica mais num universo que se tornou integralmente mercantil. Além do mais, eles constituem uma possibilidade de resistência à propaganda publicitária, que exige, para ser plenamente eficaz, um espírito “livre” de todo aprisionamento cultural. A dessimbolização tem, pois, um objetivo: ela quer erradicar, nas trocas, o componente cultural, sempre particular.”


“A dificuldade de inserção num mundo do trabalho cada vez mais hipotético e enigmático, o embaralhamento da referência histórica e geracional reagrupam a juventude em agregações seriais sem de jeito nenhum lhe conferir a estrutura e as bases de uma classe social. Tratar-se-ia, antes, de uma fora de classe, definida negativamente pelo que ela não é. O que, aliás, diz muito bem o termo “exclusão”: uma parte da juventude com efeito se vê excluída de fato da atividade social. É por isso que uma análise da violência juvenil em termos de luta das classes parece inadequada. Essa violência não é uma reviravolta contra a exploração (sem emprego, sem mais-valia), não visa nenhuma emancipação (nenhuma ideologia da salvação está operando), ela adere sem reserva ao consumo e aos valores do mercado, não denuncia nenhuma alienação (entregue a ela mesma, ela mais sofreria de uma dobra identitária e gregária que os fenômenos de “bandos” antagonistas ilustram à porfia). Os ilícitos cometidos não têm, politicamente, sentido, causados que são precisamente pela queda do sentido. “Ter ódio” exprime um humor, tão imperioso quanto vago, não uma reivindicação social. (...)
Nada permite transformar a revulsão em revolta, porque a força do neocapitalismo reside, paradoxalmente, na fraqueza de seus governos. A governança neoliberal é uma vontade de não-governo, segundo a ideia de que a um mínimo de governo político corresponde um máximo de rendimento econômico. Desse estiolamento voluntário e técnico do poder resulta um efeito perverso, que não havia escapado à sagacidade de Hannah Arendt: “todo enfraquecimento do poder é um convite à violência”27. Trata-se aqui do “poder” como expressão de um “querer”. Ora, o poder atual não “quer” mais nada, nada mais que a melhor adaptação possível a uma conjuntura e a uma evolução que o ultrapassem. A “modernização” (das empresas, da escola, das instituições...) se apresenta como um gigantesco tropismo em escala planetária, uma espécie de lei natural, um empurrão surdo e irreprimível da evolução. É aqui a “força das coisas” que exige submissão e adaptação vitais e não os detentores de um poder que se tornou frouxo, mole, secundário e gestionário. A ausência de um verdadeiro governo, isto é, de uma instituição cuja legitimidade é necessariamente exterior aos interesses econômicos, abole a autoridade, ao mesmo tempo que torna oculto o poder. O enfraquecimento do Estado não anuncia, longe disso, o da dominação sociopolítica, mas a passagem para uma nova forma de dominação, dissimulada e maligna, pela qual o poder verdadeiro se torna anônimo, informe e não localizável: “estamos diante de uma tirania sem tirano”28. É, abertamente, a promoção da anomia, a suspensão dos interditos e de tudo o que pode impô-los à pura impetuosidade dos apetites. O esmagamento da cidadania sobre a sociedade civil, constituída apenas do conjunto conflitual dos interesses particulares29, torna impossível a necessária dialética entre o corpo social e sua representação política. Definitivamente, o completamento da antropologia neoliberal, cuja ausência de princípio a célebre palavra de ordem “laissez-faire” confessava antecipadamente, abre um novo espaço societário, completamente depurado, prosaico, trivial, niilista, marca de um novo e poderoso darwinismo social no qual o valor, doravante único, passa de uma mão a outra sem outra forma de processo e quaisquer que sejam as modalidades: os “mais adaptados” podem legitimamente tirar proveito de todas as situações, enquanto os “ menos adaptados” são muito simplesmente abandonados, até mesmo convocados a desaparecer. Está aí um profundo requestionamento da civilização, já que se encontra abandonado o tradicional dever biopolítico, que cabe a todo Estado, de proteção de suas populações.
É esse espaço hiper-realista do valor nu na troca direta que alguns se recusam a integrar. Eles então se engajam na via ditada pelo abandono, que os leva à violência “gratuita”, puramente reativa30. É preciso rebater-se em algum derivativo quando o lugar e os representantes do poder são invisíveis. Xerxes fazia flagelar o mar para puni-lo por suas tempestades, os jovens delinquentes queimam, saqueiam, agridem com a mesma raiva impotente, por não poderem atingir os responsáveis por sua relegação. Estamos diante de um círculo vicioso do niilismo: a anomia como condição de possibilidade do neocapitalismo faz cair no niilismo tanto os que dele se aproveitam quanto os que dele padecem.”
27: Hannah Arendt, Du mensonge à la violence, Calmann-Lévy, Paris, 1972, p. 187.
28: Ibid, p. 181.
29: Definição da sociedade civil lembrada por Bernard Cassen, citando Hegel, em Le Monde diplomatique, n° 567, de junho de 2001, p. 28.
30: A exemplo desses quatro jovens rapazes, com idade de treze a vinte e sete anos, que feriram nove pessoas jogando uma carga de explosivos num salão de festas. Motivo invocado: “Era para chatear as pessoas”. Cf. Le Monde, 4 de janeiro de 2002.


“A pós-modernidade não é a simples queda dos ideais do eu, nem um levante em massa contra os ídolos. Os que creem que vivemos uma época de um abrir de olhos doloroso mas salvador se tranquilizam barato. Com efeito, estamos na época da fabricação de um “novo homem”, de um sujeito a-crítico e psicotizante, por uma ideologia também conquistadora, mas provavelmente muito mais eficaz do que o foram as grandes ideologias (comunistas e nazistas) do século passado. O que o neoliberalismo quer é um sujeito dessimbolizado, que não esteja mais nem sujeito à culpabilidade, nem suscetível de constantemente jogar com um livre arbítrio crítico. Ele quer um sujeito incerto, privado de toda ligação simbólica; ele tende a instalar um sujeito unissexo e “não-engendrado”, isto é, sem o arrimo de seu fundamento exclusivamente no real, o da diferença sexual e da diferença geracional. Sendo recusada toda referência simbólica suscetível de garantir as trocas humanas, há apenas mercadorias que são trocadas num fundo ambiente de venalidade e de niilismo generalizados no qual somos solicitados a tomar lugar. O neoliberalismo está realizando o velho sonho do capitalismo. Não apenas ele estende o território da mercadoria até os limites do mundo (o que está em curso sob o nome de mundialização), no qual tudo se tornou passível de ser mercadoria (a água, o genoma, o ar, as espécies vivas, a saúde, os órgãos, os museus nacionais, as crianças...). Ele também está recuperando velhas questões privadas, até agora deixadas à maneira de cada um (subjetivação, personação, sexuação...), para fazê-las entrar na órbita da mercadoria.
Vivemos, nesse sentido, uma virada capital, porque, se a forma sujeito construída com grande luta pela história é atingida, não serão mais somente as instituições que temos em comum que estarão em perigo, será também, e sobretudo, o que somos. Não é apenas nosso ter cultural que está em perigo, é nosso ser. O que testemunha, com clareza, um grau de gravidade bem superior, já que, se a perda de bens comuns é sempre compensável pela produção de novos bens, a perda de seu ser próprio é praticamente irremediável. Provavelmente é nesse ponto que entram em jogo o possível triunfo absoluto do neoliberalismo e, pois, as grandes batalhas a ocorrer: se a forma-sujeito é debilitada, então mais nada poderá constituir obstáculo para o desdobramento sem limite dessa forma política – estágio último do capitalismo, o do capitalismo-total, no qual tudo, até nosso próprio ser, terá entrado na órbita da mercadoria.”


“Da minha parte, de jeito nenhum estou decidido a empregar esse lazer para praticar uma das numerosas artes da desistência, mas para tentar compreender todos os detalhes da nova ideologia que se instala. Aparece, de ora em diante, que, sob ventos propícios, ela é provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que se desencadearam no Ocidente no século XX. Com efeito, não é impossível que, depois do inferno do nazismo e do terror do comunismo, uma nova catástrofe se perfile. Só teríamos saído de uns para entrar na outra. Porque o neoliberalismo, como as duas ideologias já citadas, também quer fabricar um homem novo. De ora em diante, as mudanças nos grandes campos da atividade humana – a economia de mercado, a economia política, a economia simbólica e a economia psíquica – convergem suficientemente para indicar que um novo homem, subtraído de sua faculdade de julgar e empurrado a gozar sem desejar, está aparecendo.”
A hora não é, para mim, nem para um otimismo idiota, o do impaciente que se regozija muito rápido com a desterritorialização operada pela mercadoria e pela queda dos ídolos, nem para um pessimismo nostálgico pelos tempos definitivamente acabados. Se há um imperativo categórico hoje, é o da resistência diante da instalação do capitalismo total.”