Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.

domingo, 11 de outubro de 2015
O Rei Lear – William Shakespeare
Bukharin: uma biografia política (1888-1938) (Parte II), de Stephen Cohen
Editora: Paz &
Terra
ISBN: 978-85-2190-551-6
Tradução: Maria Inês
Rolim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 572
Sinopse: Ver Parte I
“Nenhuma das outras funções, contudo, comparava-se à atividade
mais importante de Bukharin: a de principal teórico do bolchevismo, e por vezes
seu teórico oficial. Naquela época e nos anos seguintes era importantíssimo
elaborar teorias e até mesmo a ideologia. Processavam-se rápidas mudanças na
composição do partido, mas seus líderes ainda se consideravam intelectuais.
Avaliavam-se as argumentações políticas, pelo menos em parte, por sua
consistência teórica e por sua força de persuasão; os bolcheviques
orgulhavam-se do que escreviam e publicavam, e Lênin ainda se definia
profissionalmente como “literato”. Bukharin dava a si próprio e a Lênin a
classificação de “ideólogos comunistas”.93 A tão alardeada unidade
de teoria e prática não se tornara ainda confusão vulgar. Os bolcheviques
respeitavam teorias e ideias com o mesmo ardor com que respeitavam a verdade —
para eles, esses conceitos eram uma coisa só, e residia na percepção dessa
identidade sua força de liderança. Achavam, como Marx, que “ser radical é
aprender as coisas pela raiz”.94”
93. Leninskii sbornik, Moscow,
1924-40, vol. XIII, p. 31; Ataka, p.
203.
94. BUKHARIN in Tretii
vserossiiskii s’’ezd RKSM 2-10 oktiabria 1920 goda: stenograficheskii otchet.
Moscou e Leningrado, 1926, p. 126.
“Certa vez, falando sobre a obra histórica de Pokrovsvi, Bukharin
disse o seguinte: “Quem não comete erros, não faz nada”.”
“Existem nas ciências sociais dois ramos importantes que não
analisam apenas um campo da vida social, mas toda a vida social em seu
conjunto. (...) Um é a história, outro é a sociologia. (...) A
história pesquisa e relata a vida social em determinada época e determinado
lugar. (...) A sociologia tenta responder a questões mais amplas, como
por exemplo: como se relacionam entre si os vários grupos de fenômenos sociais
(econômicos, legais, científicos, etc.)? Como é possível explicar sua evolução?
Quais são as formas históricas da sociedade?, etc. Das ciências sociais, a
sociologia é a mais geral (abstrata). (...) A história fornece material
para que se chegue a conclusões sociológicas e a generalizações sociológicas. (...)
A sociologia, por sua vez, formula (...) um método para a
história.” (Bukharin — Materialismo Histórico)
“O cerne de materialismo histórico é a assertiva
bukharinista de que a dialética, e consequentemente a mudança social,
explicam-se pela teoria do equilíbrio. Interessa-nos aqui essa concepção ampla,
e não os inumeráveis argumentos secundários também apresentados.34
Para Bukharin, o ponto de vista dialético (ou dinâmica) mostra que todas as
coisas, materiais e sociais, estão em movimento, e que o movimento se origina
do conflito ou da contradição interna de um dado sistema. É também verdade que
qualquer sistema, seja material, seja social, tende a um estado de equilíbrio
(análogo ao da adaptação na biologia):
“Em outras
palavras, o mundo consiste de forças que atuam de várias maneiras e se opõem
umas às outras. Só em casos excepcionais tais forças se mantém em equilíbrio
durante certo tempo. Temos então um estado de ‘repouso’, isto é, o ‘conflito’
não está aparente. Mas basta que se altere uma só destas forças para que logo
se revelem as ‘contradições internas’ e rompa-se o equilíbrio. E caso venha a
se estabelecer um novo equilíbrio, será em novas bases, ou seja, numa nova
combinação de forças, etc. Logo, o ‘conflito’, a ‘contradição’, isto é, o
antagonismo de forças que atuam em diversas direções são os determinantes do
movimento do sistema.
Transferindo a origem do movimento — do “alto desenvolvimento”
para o conflito de forças — Bukharin acreditava ter depurado da célebre tríade
hegeliana (tese-antítese-síntese) seus elementos idealistas. Em substituição,
propunha a fórmula de equilíbrio original-rompimento de
equilíbrio-restabelecimento do equilíbrio em novas bases.35
Em todo o sistema, prossegue Bukharin, há dois estados de
equilíbrio: o interno e o externo. O primeiro concerne à relação entre os
diversos componentes do sistema; o segundo, ao sistema como um todo em sua
relação com o meio. Jamais existe um “equilíbrio absoluto e imutável”; há
sempre “fluxos” — o equilíbrio dinâmico, ou em movimento. O ponto básico da
teoria de Bukharin é a relação entre o equilíbrio interno e o externo:
“(...) A
estrutura interna do sistema (...) tem de se alterar em função da relação entre
o sistema e seu meio. Esta relação é o fator decisivo (...) o equilíbrio (estrutura)
interno é uma quantidade que depende do equilíbrio externo (é ‘função’ deste
equilíbrio externo).”36
Aplicada à sociedade, a teoria de Bukharin pode ser entendida
assim: uma sociedade supõe certo equilíbrio entre seus três elementos sociais
mais importantes — coisas, pessoas e ideias. É este o equilíbrio interno. Mas
“é impossível imaginar uma sociedade sem o meio”, ou seja, a natureza. A
sociedade adapta-se à natureza, esforça-se para equilibrar-se em relação a ela,
e dela retira energia mediante o processo de produção social. No processo de
adaptação, a sociedade cria “um sistema artificial de órgãos”, que Bukharin
denomina tecnologia e que constitui “um indicador material preciso da relação
entre a sociedade e a natureza”. Identificando tecnologia social com forças
produtivas (“as combinações dos instrumentos de trabalho”) e considerando a
estrutura interna função do equilíbrio externo, Bukharin pode — apesar de sua
análise pluralista do desenvolvimento social — preservar a causalidade monista
do determinismo econômico. Ou em suas próprias palavras:
“(...) as
forças produtivas determinam o desenvolvimento social porque expressam a
inter-relação da sociedade (...) e seu meio. (...) E a inter-relação do meio
com o sistema é a quantidade que determina, em última análise, o movimento de
qualquer sistema”.37
Neste modelo teórico está contido o materialismo histórico de
Bukharin, sistematizando o desenvolvimento social. O equilíbrio social é
constantemente rompido e tende a restaurar-se de duas maneiras: quer pela
“adaptação gradual dos vários elementos no todo social (evolução)”, quer por
“convulsões violentas (revolução)”. Enquanto o contexto do equilíbrio social —
basicamente as relações de produção materializadas nas classes que participam
diretamente da produção — for suficientemente amplo e duradouro, tem-se a
evolução. Assim se deu o progresso do capitalismo ao longo de várias fases
históricas. Mas, quando as forças produtivas chegam ao conflito com “o
invólucro fundamental destas forças, isto é, as relações de propriedade”, então
ocorre a revolução. O “invólucro se rompe”. Cria-se um novo equilíbrio social;
“isto é, um contexto novo e duradouro de relações de produção (...) capaz de
atuar como forma evolucionária das forças produtivas...”.38”
34. A argumentação central aparece em vários capítulos de Historical Materialism, especialmente
III, V, o VI e VII.
35. Historical Materialism,
pp. 64, 72-5; Ataka, pp. 117-18.
36. Historical Materialism,
pp. 74, 78-9, 239-41.
37. Ibid., caps. V-VI; Ataka, p. 119.
38. Historical Materialinn,
pp. 242-9, 261-2.
“O que levava os marxistas a esperarem uma revolução socialista
era o fato histórico de o capitalismo ter nascido do feudalismo. Já que o
capitalismo amadurecera dentro da sociedade feudal, era de se esperar que o
socialismo amadurecesse dentro da antiga ordem capitalista. Centrando seu
raciocínio num argumento muito simples, Bukharin demonstrou o completo equívoco
dessa analogia: na sociedade feudal, a burguesia nascente possuía nas cidades
uma base autônoma, onde podia crescer independente dos senhores feudais e à
revelia deles, criando seus próprios alicerces culturais, materiais e técnicos,
e formando suas próprias elites administrativas. A burguesia não era explorada
nem destituída de direitos, e portanto, dispôs de meios para se erigir em
classe capaz de organizar-se e governar, antes mesmo de ocorrer a revolução
política. Bukharin fazia ver que a situação do proletariado na sociedade
capitalista é inteiramente diversa. A massa proletária, que não possui uma base
econômica independente, é sempre uma classe cultural e economicamente oprimida
e explorada, apesar de representar um princípio cultural potencialmente
superior. A burguesia monopolizara não só os meios de produção, mas também os
de educação (aspecto que, segundo Bukharin, não fora percebido). Ao longo de
sua história pré-revolucionária, como não podia deixar de ser, o proletariado é
sempre uma classe atrasada no seio de uma sociedade desenvolvida. Por isso, ao
contrário da burguesia, não pode “preparar-se para organizar a sociedade.
Tem condições de se preparar para ‘destruir o mundo anterior’”, mas “só no
período de sua própria ditadura se torna maduro a ponto de organizar a
sociedade”.59 Logo, a imaturidade da classe proletária não era
um fenômeno tipicamente russo, mas uma característica das revoluções
proletárias em geral.”
59. Ataka, pp. 219-32.
Ver também Proletarskaia revoliutsiia i kul’tura (Petrogrado, 1923), pp. 17-22;
e Problema kul’tury v epokhu proletarskoi revoliutsii. Izvestiia, 15 out. 1922, p. 3.
“Nos anos 20, a ideia de um regime revolucionário vir a gerar um
Estado burocrático explorador foi para Bukharin o mesmo que era para a esquerda
bolchevique a ideia da “degeneração pequeno-burguesa”. Bukharin afirmava que os
programas econômicos da esquerda institucionalizavam a “arbitrariedade” oficial
do comunismo de guerra e o surgimento de “grupos comunistas privilegiados” — um
“novo Estado de chinovnikis” — alheios às necessidades das massas e
“absolutamente imunes” à demissões. O possível retorno da exploração preocupava
mais a Bukharin que, por si só, o destino das massas urbanas. Para ele,
programas que saqueassem o campo não levariam à sociedade socialista sem
classe, mas “ao eterno ‘domínio do proletariado’” e a sua “transformação
negativa em verdadeira classe exploradora” do campesinato. Enquanto muitos
perscrutavam o horizonte à cata dos fantasmas da Revolução Francesa, atentos às
“pegadas da história”, Bukharin temia um tipo de degeneração sem precedente
histórico.67
Não por acaso, dedicou-se durante o primeiro ano de vigência da
NEP a refletir sobre esta sombria possibilidade. Kronstadt e os levantes rurais
levaram-no a perceber o isolamento em que se achava o partido; via que os
bolcheviques no poder representavam uma minoria muito pequena, amparavam-se na
força armada e não contavam sequer com o apoio da classe que diziam
representar.68 O partido, antes líder e porta voz dos operários e
camponeses revolucionários, estava agora “alienado das massas”. No X Congresso
do Partido, Bukharin fez menção ao que corria entre o povo: “Não há pão nem
carvão — e a culpa é do Partido Comunista”. Em julho de 1921, manifestava
dúvidas quanto à sobrevivência do regime — fato quase inimaginável em 1917,
quando “todos os soldados e operários estão conosco” e “é bom estar vivo...”69
Embora não deixasse de elogiar a ditadura do partido, por vezes de modo até
arrogante, o elitismo causava-lhe certo mal-estar; agora suas concepções eram
ditadas pela necessidade de superar o isolamento gerado pela guerra civil, de
recuperar o apoio popular e garantir o maior número possível de aliados para o
programa do partido.
De 1921 em diante, Bukharin concentrou sua atenção nas “massas
não-partidárias”; o entusiasmo que antes demonstrara pela coação revolucionária
demonstrava agora pela persuasão e pela educação.70 Passou a ver na
“colossal” burocracia gerada pelo comunismo de guerra o maior sinal do
isolamento do partido, e atribuiu ao crescimento dessa burocracia o “vazio” que
se abrira entre o governo bolchevique e o povo. Daí nasceu uma de suas ideias
básicas: o antídoto para a burocracia seria preencher esse vazio com “centenas
e milhares de sociedades, círculos e associações” voluntários, pequenos e
grandes, que se expandissem depressa e funcionassem como “vínculos com as
massas”. Surgiriam assim “iniciativas descentralizadas” e se criaria um
“mecanismo de transmissão” mediante o qual o partido não só influenciaria a
opinião pública como também receberia sua influência. A proliferação desses
mecanismos seria o que Bukharin chamava de “crescimento (...) da estrutura
social soviética (sovetskaia obshchestvennost)” e restauraria o “tecido
social” rompido.71 A confiança nas organizações voluntárias e na
“iniciativa das massas a partir dos níveis mais baixos” — que se opunha à
estatização — foi uma das características da reavaliação bukharinista do
bolchevismo.”
67. Ver, por exemplo, BUKHARIN, O rabkore i sel’kore: stat’i i rechi, Moscow, 1926, pp. 75-7; Za leninizism: sbornik statei, Moscow
and Leningrad, 1925, p. 292; XIV s’’ezd,
p. 824; e sua obra Put’ k sotsializmu i
rabocbe-krest’ianskii soiuz (Moscou e Leningrado, 1925), p. 71. Quanto ao
ceticismo em relação à analogia com o Termidor, ver Na poroge desiatogo goda. Pravda, 7 Nov. 1926, p. 2.
68. Nas poucas observações públicas de Bukharin acerca da revolta
de Kronstadt, sente-se mais consternação que malícia, embora sejam denunciadas
as forças políticas que ele considerava implicadas. Ver Desiatyi s’’ezd, RKP(b). Mart 1921 goda: stenograficheskii otchet, Moscow,
1963, pp. 224-5; e os editoriais não assinados no Pravda, 25 mar. 1921, p. 1, e 22 maio 1921, p. 1 (em Soch., XXVI, pp. 661, 671, Lenin atribui
a autoria dos editoriais a Bukharin). Afirma-se que ainda em 1921 Bukharin
teria dito aos delegados do Terceiro Congresso do Comintern o seguinte: “Como
se pode dizer que Kronstadt foi um levante dos Brancos? Em absoluto. Tendo em
vista os ideais, tendo em vista nossa missão, fomos obrigados a reprimir a
revolta de nossos irmãos desencaminhados. Não podemos ver os marinheiros de Kronstadt
como inimigos. Nós os amamos como a verdadeiros irmãos, nossa carne e sangue
...” ABRAMOVICH, Raphael. The Soviet
revolution 1917-1929. New York, 1962, p: 203.
69. Desiatyi s’’ezd, pp.
322-3; Tretii vsemirnyi kongress
kommunistichesnogo internatsionala, p. 382; “Iz rechi t. Bukharina na
vechere vospominanii v 1921 g. Proletarskaia revoliutsiia, nº 10, 1922, pp.
321-2.
70. Para um exemplo inicial, ver Pravda, 28 Aug. 1921, p. 3.
“Em 1921 Bukharin dissera irreverentemente: “A história da
humanidade se divide em três períodos — o matriarcado, o patriarcado e o
secretariado”.104”
104: Citado por Trotski em The
Stalin School of Falsification, New
York, 1962, p. XIV. Ver também as observações de Bukharin sobre as normas
do partido em Desiatyi s’’ezd, p.
217-33; e suas teses, pp. 644-51.
“Percebendo que a luta pessoal derivava da luta de tendências
políticas, Bukharin dedicou-se ao que considerava a questão principal e não
levou em conta as queixas legítimas da oposição quanto a burocracia e
burocratização da vida partidária. Talvez não tivesse opções, dada sua
concepção da NEP e as propostas econômicas da esquerda. Cinco anos mais tarde,
porém, quando se tornou ele próprio vítima do aparelho stalinista, repetiria as
acusações feitas por Trotsky em 1923 — como anteriormente de Zinoviev e
Kamenev. Parte da tragédia dos velhos bolcheviques reside aí: durante sete anos
brigaram entre si por causa de princípios, enquanto um intrigante ia se
fortalecendo cada vez mais, até ter força suficiente para destruir a todos.”
“Era uma antiga tradição do Marxismo original e do bolchevismo não
inserir valores morais em avaliações sociais.
A tradição vinha do próprio Marx. Embora grande parte de sua obra
esteja imbuído de indisfarçável moralismo, Marx sempre fez questão de afirmar
que o estudo da sociedade e da história em geral deveria evitar qualquer forma
de abordagem ética. Recusava-se a raciocinar em quaisquer termos a não ser leis
de determinada época, como se evidencia em sua famosa frase: “O direito jamais
pode estar acima da estrutura econômica da sociedade e de seu desenvolvimento
cultural assim condicionado”. Esta era, a seu ver, a distinção entre seu
socialismo científico e as fantasias dos socialistas utópicos. Marx desprezava e achava
ridículo o programa de Gotha de 1875 — cujas reivindicações de “direitos
iguais” e “distribuição equitativa” considerava “baboseira” e “contrassenso
ideológico em torno de direitos e outros disparates tão comuns entre os
democratas e os socialistas franceses”. Este preconceito contra julgamentos
éticos influenciou muito os primeiros marxistas, que o conheciam bastante bem.19
Mais tarde, o revisionismo de Bernstein tentou a conciliação do socialismo
marxista depurado de certezas “científicas” com a ética kantiana, patenteando a
estreita conexão das hipóteses antiéticas e científicas do marxismo original e
avançando ainda mais naquela direção duplamente suspeita.
Sob este aspecto, a posição de Bukharin antes de Outubro era
absolutamente ortodoxa. Em 1914 ele escrevera: “Nada mais ridículo (...) que
tentar fazer da teoria de Marx uma teoria ‘ética’. A teoria de Marx é regida
por uma única lei natural, a lei de causa e efeito; e é inadmissível que possa
ser regida por qualquer outra lei”. “A retórica ética”, prosseguia Bukharin, é
algo “que não precisamos levar a sério”.20 Após 1917, a tradição
antiética mesclou-se ao processo bolchevique de tomada de decisões,
revelando-se muitas vezes sob a forma de desdém para com interdições morais
acaso opostas a “condições objetivas”. Este tipo de raciocínio foi muito comum
durante a guerra civil, quando os excessos cometidos pelo partido foram
classificados de necessidade histórica, ou vistos como meios que os fins
socialistas justificavam (racionalização, aliás, para qual Bukharin muito
contribuiu na obra A Economia Mundial e o Imperialismo). O término da
guerra civil, contudo, não alterou esta perspectiva. Em 1922, atuando como
defensor no julgamento dos socialistas-revolucionários, Bukharin negou-se a
basear sua tese de defesa em premissas “morais”. Preferiu apoiar-se no único
critério admissível, o da “conveniência política”. E em 1924, redarguindo a declarações
antibolcheviques de Ivan Pavlov, Bukharin afirmaria mais uma vez que não era
fiel “ao imperativo categórico de Kant nem ao mandamento moral cristão, mas à
“conveniência revolucionária”. Um ano mais tarde, lamentaria que “se
substituíssem com demasiada frequência os arrazoados sensatos por arrazoados
morais, absolutamente alheios à política”.21
Ainda nos anos 20, Bukharin também seria vítima de igual tipo de
queixa, uma vez que assumiu uma posição na política interna em que o padrão
ético se destacava, contrariando a antiga tradição e até algumas de suas
próprias assertivas anteriores. Na oposição de Bukharin à política
anticampesinato, a “retórica ética” esteve sempre presente — desde dezembro de
1924, quando chamou pela primeira vez a lei de Preobrajenski de “analogia
monstruosa” e de “sonho assustador”, até 1929 quando acusou o programa
stalinista de ser uma “exploração feudo-militar do campesinato”. Com base
nisto, Preobrajenski imputou a Bukharin “explosões de indignação moral”.22
Referindo-se à classe operária, Marx dissera certa vez: “Ela não tem ideais a
realizar...”. Para Bukharin, a necessidade de realizar um ideal estava no
centro da missão histórica do bolchevismo.”
19. Marx e Engels, Selected
Works, II, pp. 24-5. Para uma análise, ver Tucker, Robert C. Philosophy and Myth in Karl Marx
Cambridge, England, 1961, especialmente pp. 11-27.
20. Economic Theory of the
Leisure Class, pp. 158, 168; ver também Ataka,
p. 69.
21. Protsess eserov: rechi
zashchimikov i obviniaemykh. Moscou, 1922, pp. 139, 144; Ataka, p. 215; Put' k sotsializmu, p. 92.
22. Za leninizm: sbornik
statei. Moscow and Leningrad, 1925, pp. 292, 297; a citação de Bukharin em KPSS v rezoliutsiiakh, II, p. 558 e
Preobrajenski, New Economics (London,
1965), pp. 228-9.
“O que Bukharin concebia como exemplo de capitalismo atroz fora
exposto por Marx. Ocorrera no período da “acumulação capitalista primitiva” e
da expropriação impiedosa dos produtores não-capitalistas, quando “campeavam a
conquista, a escravização, o roubo, o assassinato, em suma, a força”. Tudo
isto, que no capitalismo equivalia ao “pecado original”, constituía “o processo
histórico de separar o produtor dos meios de produção”, a “transformação da
exploração feudal em exploração capitalista”, que segundo Marx “fazia o
capitalismo pingar sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés”.”
“Os combates intrapartidários de 1923-29 foram tentativas
prolongadas de recompor o poder e a autoridade antes exercidos por Lênin,
embora fosse inimaginável a ideia de um sucessor de Lênin — um “Lênin de hoje”.
Lênin exercera na liderança e no partido uma autoridade ímpar, que provinha,
entre outras coisas, da sua condição de criador e impulsionador do partido, da
propriedade de tantos de seus juízos políticos (mesmo diante de fortes
oposições) e da força de sua personalidade, capaz de unir e convencer os
companheiros rebeldes. Sua autoridade não provinha de cargos oficiais. Como fez
ver Sokolnikov: “Lênin não era presidente do Politburo, nem secretário-geral;
mesmo assim (...) cabia ao camarada Lênin a palavra política decisiva no
partido”. Lênin possuía, como se disse recentemente, uma espécie de autoridade
carismática inseparável de sua pessoa e independente de respaldos
constitucionais ou institucionais”.56 (...)
Assim, o chefe morto deveria ser substituído por um grupo de herdeiros.
A princípio, o conceito de liderança coletiva era excludente, e dele não
constavam necessariamente todos os bolcheviques mais destacados, nem sequer
todos os membros do Politburo. Incluía-se apenas o “núcleo básico de
leninistas”59, cinco dos seis nomes citados no “testamento” de
Lênin: Trotsky, Stalin, Zinoviev, Kamenev e Bukharin. Embora quase não se
fizessem referências abertas ao fato, era de conhecimento geral que cada um
destes nomes representava parte do legado de Lênin, e que seu conjunto
personificava a autoridade legítima do partido; deveriam portanto governar
coletivamente, todos ou alguns deles. Rykov e Kalinin, para dar dois exemplos
de peso, não eram essenciais no caso, mesmo sendo figuras do alto escalão. Não
encarnavam a gestalt bolchevique ou a autoridade do partido. Ficava
implícito, embora não se declarasse, que poucos membros do Politburo eram primio
inter pares. Estes, como diziam às vezes os observadores, constituíam o
“Olimpo bolchevique”60. Stalin, que percebia tais distinções com
rudeza, mas bastante bem, usou em 1928 uma metáfora semelhante para aludir ao
fato. Conversando com Bukharin sobre os nove componentes do Politburo, entre os
quais já não se contavam Trotsky, Zinoviev e Kamenev, disse: “Você e eu somos
os Himalaias; os outros são nada”.61
Mas em 1925 havia cinco “Himalaias” que poderiam ser vistos como
herdeiros autorizados de Lênin.62 Cada um deles apresentava certa
combinação dos elementos que conferiam legitimidade, a saber: 1) ter sido
membro do círculo íntimo de Lênin, antes e depois de 1917; 2) ter um histórico
heroico-revolucionário, cuja prova de fogo fosse 1917; 3) ter envergadura de
internacionalista revolucionário; e 4) ser reconhecido como “marxista
destacado”, ou seja, como teórico. Nenhum oligarca apresentava suas credenciais
em perfeita ordem. A posição de Zinoviev e Kamenev (considerados uma só
entidade) era confortável no primeiro item, porém menos firme no segundo, pois
ambos se haviam oposto à insurreição em 1917; Trotsky, por sua vez, não tinha
rivais nos itens dois e três, perdia apenas para Bukharin no item quatro, mas
era muito vulnerável no item um, pois demorara a ingressar no partido. Nenhuma
das credenciais de Bukharin era insuficiente: ele superava a todos no campo da
teoria, tinha grande prestígio como participante de 1917 e como
internacionalista, mas não podia alegar, como Zinoviev, ter integrado o grupo
de Lênin antes de 1917 ou ter mantido a mesma fidelidade depois. Em pior
situação encontrava-se Stalin: nada tinha a apresentar em relação aos itens
três e quatro; no item dois, classificava-se atrás de Trotsky e Bukharin.
Tais considerações, ainda que cada vez mais quiméricas (pois quem
detinha maior poder era quem menos o merecia) foram levadas muito a sério, como
demonstram não só a grande quantidade de biografias políticas e histórias do
partido lançadas durante os anos 20, como também as tentativas de vários
oligarcas para enriquecerem suas credenciais. Zinoviev e Kamenev queriam
desesperadamente redimir seu opróbrio de 1917; os adversários não permitiam. Em
1925, Zinoviev procurou assumir uma posição de teórico; só conseguiu ser
humilhado por Bukharin. Trotsky tentou compensar seu passado menchevique; seus
adversários usaram esse passado contra eles e contestaram a ortodoxia de suas
ideias anteriores a 1917. Aos poucos, Stalin ganhava algum reconhecimento no
Comintern, porque superava seus rivais; como teórico, porém, era inteiramente
desconhecido. Tinha uma atormentada consciência do fato, como Bukharin
descobriu em 1928: “Consome-o o desejo de ser reconhecido como um teórico. Ele
pensa que isto é a única coisa que lhe falta”.63”
56. Bol’shevik, nº 9-10,
1925, p. 4; Tekushcii moment i osnovy,
p. 13; Nekotorye voprosy, pp. 9-10. Ver
também Erlich, Soviet Industrialization,
pp. 1 3-14.
59. Za leninizm, pp. 308-9; Nekotorye voprosy, p. 77.
60. Partiia i oppozitsionnyi
blok, pp. 57-8; ver também Za
leninizm, pp. 306-10.
61. Za leninizm, p. 307;
Inprecor, VII (1927), p. 199; “Organizovannyi kapitalizm,” p. 191; Pravda,
June 12, 1929, p. 3.
62. Ver, por exemplo, Za
leninizm, p. 305; Nekotorye voprosy,
pp. 77-84; Doklad, pp. 32-3; and Partiia i oppozitsionnyi blok, pp. 62-4.
63. VII s’’ezd vsesoiuznogo
leninskogo kommmisticheskogo soiuza molodezhi: 11-12 marta 1926 goda. Moscou
e Leningrado, 1926, p. 255.
“Ao contrário do que ocorreria mais tarde, quando Stalin destituiu
de sentido todas as credenciais deste tipo, atribuindo-as exclusivamente a si
próprio (fenômeno depois chamado de “culto da personalidade”), a teoria do
partido era muito importante. Os rivais que reivindicavam a ortodoxia
bolchevique viam-na como a orientação mais segura para a política apropriada e
como o indicador mais válido da correção revolucionária. Na opinião de todos,
política e teoria eram a mesma coisa. Ou como disse em 1929 o stalinista Lazar
Kaganovitch: “A traição na política começa com a revisão da teoria”73.”
73. Bol’shevik, nº 2,
1925, p. 5, e nº 8, 1925, p. 9; N. Bukharin and A. Thalheimer, Report on the Program Question. Moscou, 1924,
p. 24; Nekotorye voprosy, p. 3; Rasshirennyi plenum ispolkoma (1925), p.
374; Partiia i oppozitsionnyi blok,
p. 47; Pravda; July 3, 1926, pp. 2-3.
Bukharin: uma biografia política (1888-1938) (Parte I), de Stephen Cohen
Editora: Paz &
Terra
ISBN: 978-85-2190-551-6
Tradução: Maria Inês
Rolim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 572
Sinopse: O historiador norte-americano Stephen F. Cohen remove a cortina
de calúnias e difamações que encobria a trajetória política de um dos líderes
mais importantes da Revolução Russa e chega à conclusão de que era Bukharin — e
não Trotski — o articulador de uma “alternativa programática viável” para o
stalinismo.
Esta
biografia, que despertou muita celeuma quando apareceu em inglês, no começo dos
anos setenta, já se tornou um livro clássico, uma contribuição decisiva à
necessária revisão crítica na história do comunismo.
“Hilferding expusera no livro O Capital financeiro a
relação entre a ascensão do imperialismo e as importantes mudanças estruturais
no âmbito dos sistemas nacionais capitalistas — isto é, a transformação do
capitalismo do laissez-faire em capitalismo monopolista. Ampliando a
análise marxista da concentração e centralização do capital, Hilferding aborda
a rápida proliferação de formas que combinam propriedade e controle, em
especial os trustes e cartéis que, numa escala sem precedentes, haviam
absorvido empresas menores. Examina com especial atenção a nova função desempenhada
pelos bancos no processo de monopolização, mostrando como a concentração e a
centralização do sistema bancário estimulavam a concentração correlata do
capital. “Os bancos modernos”, como observou Hilferding, “passaram a ser
proprietários de grande parte do capital utilizado pela indústria”. Hilferding
adotou um conceito analítico novo para situar o fenômeno — o conceito de
capital financeiro: “chamo de capital financeiro o capital bancário, ou
seja, o capital em forma monetária, que se transformou em capital industrial”.93
Para Hilferding, o capitalismo maduro era o capitalismo financeiro, sistema que
se distinguia do modelo do laissez-faire — como ficaria minuciosamente
demonstrado — pela forte tendência de organização. À medida que o capital financeiro
disseminava-se na economia nacional e os grandes grupos predominavam, a
regulamentação planejada ia gradativamente eliminando a anarquia econômica
anterior, gerada pela livre concorrência de pequenas empresas. Cada vez mais o
capitalismo nacional se tornava um sistema econômico regulamentado, ou, para
usar um termo intimamente associado com o Hilferding, “capitalismo organizado”.
Capital financeiro abordava principalmente a estrutura
nacional do neocapitalismo. A teoria de Hilferding acerca do imperialismo era
pouco mais que um subproduto da análise essencial.94 Depois de
monopolizar o mercado interno e estipular altas tarifas protecionistas contra a
concorrência externa, o capitalismo monopolista adotou uma política
expansionista, buscando maiores lucros: conseguia nas colônias as
matérias-primas e, acima de tudo, novos mercados para as exportações de
capital. Segundo a análise de Hilferding, o imperialismo era a política externa
lógica, do ponto de vista econômico, para o capitalismo financeiro. Hilferding
nos mostra sucintamente que a competição das potências capitalistas pelos
mercados coloniais derivava de razões bem semelhantes às que haviam levado as
empresas a competirem pelo mercado interno ‑ o que explicava a crescente
militarização do capitalismo moderno e à crescente hostilidade nas relações
internacionais. (Note-se se que o livro foi escrito bem antes da Primeira
Guerra)
Bukharin aproveitou a teoria de Hilferding sobre o imperialismo,
com o intuito de atualizá-la e até radicalizá-la sobre alguns aspectos
significativos.95 Também definiu o imperialismo como “a política do
capitalismo financeiro”. À diferença de Hilferding, porém, frisou que “o
capitalismo financeiro não pode adotar outra política senão a imperialista”
(...), e que, portanto, “o imperialismo, além de ser o sistema que se vincula
mais estreitamente ao capitalismo moderno, é também seu componente mais
fundamental”. Mais dogmaticamente que Hilferding, Bukharin conceitua o
imperialismo como “categoria histórica” inevitável, que surge necessariamente
numa etapa específica (a última) do desenvolvimento capitalista. As colônias —
fornecedoras de matérias-primas e mercados para produtos excedentes e capital —
eram essenciais à própria existência econômica do capitalismo monopolista: o
imperialismo “sustenta a estrutura do capitalismo financeiro”. Com esse
argumento, Bukharin contestava a opinião social-democrata dominante de que a
política imperialista, conquanto deplorável, não era indispensável à
configuração do capitalismo.96
Partindo da definição do imperialismo como manifestação orgânica e
inevitável do capitalismo monopolista, Bukharin chegou à questão da guerra,
como Hilferding também chegara. Mas ainda nesse ponto difere de Hilferding,
pela certeza de que as guerras seriam inevitáveis na era imperialista. Para
Bukharin, tratava-se de “fantasia” a hipótese, muito disseminada entre os
social-democratas, da coexistência pacífica das nações imperialistas, e também
a ideia de que a um estágio mais avançado do desenvolvimento capitalista
corresponderia uma organização pacífica da economia mundial (o
“ultra-imperialismo”, como sugeriu Kautsky). No período inicial da colonização,
as potências imperialistas se expandiram com um mínimo de conflitos,
simplesmente “apoderando-se de terras sem dono”. Mas já não havia áreas a serem
colonizadas e impunha-se a necessidade de “uma redivisão fundamental”. A
competição das nações imperialistas atinge sua forma mais aguda: a luta armada.
Na busca desesperada de novos mercados, as nações voltam-se uma contra as
outras, “a ferro e fogo”, e os fracos são colonizados pelos fortes.
Bukharin argumentava, é claro, que a Primeira Guerra Mundial não
fora uma infelicidade histórica nem uma conflagração isolada; fora a primeira
de uma série de guerras imperialistas “inevitáveis”. Mas concluiu que a era do
imperialismo, embora responsável pelos horrores da guerra, também mostrava a
intensificação das contradições sociais do capitalismo, e portanto, “a
maturidade das condições objetivas” para a revolução socialista.97 A
diferença substancial entre a argumentação de Bukharin e a de Hilferding é que
Bukharin apresentou as sugestões de Hilferding numa equação histórica,
sequencial e inevitável: capitalismo monopolista -> imperialismo ->
guerra -> revolução proletária.”
93 Finansovyi kapital:
noveishaia faza v razvitii kapitalizma, de Rudolf Hilferding. (3ª ed.
Petersburgo, 1918). O livro, publicado na Rússia em 1912, já estava na 4ª
edição em 1923. Apesar de ter assumido uma posição antibolchevique após 1917,
Hilferding exerceu grande influência sobre os estudiosos soviéticos do
imperialismo. Cf. p. 332.
94 Winslow, E. M. The
pattern of imperialism: a study in the teories. New York, 1948, p. 159. A
análise que Hilferding faz do imperialismo ficou restrita à parte final de Finansovyi kapital: noveishaia faza v
razvitii kapitalizma. 3rd ed. Petersburg, 1918, pp. 438-553.
95 Bukharin reconhecia plenamente o débito com Hilferding. Ver BUKHARIN,
N. Imperialism and world economy,
New
York, 1929, pp. 36, 64, 71, 107, 113, 135, 136, 142.
96. Ibid., pp. 84-5, 104, 114, 140, e cap. IX.
97. Ibid., pp. 95, 103, 121, 133, 139, 142, passim. Hilferding,
mesmo sustentando que política militarista era consequência inevitável do
imperialismo, parecia deixar em aberto a possibilidade de a ação política
radical evitar a guerra. Finansovyi
kapital, cap. XXV.
“Para Bukharin, a característica mais impressionante do
capitalismo moderno residia na função intervencionista que o Estado passara a
desempenhar. Como indicava a expressão “capitalismo de Estado”, o Estado deixara
de ser simples instrumento político da classe (ou classes) dominante(s),
árbitro desinteressado da concorrência econômica do laissez-faire entre grupos da burguesia. Tornara-se, mediante a
atuação do capital financeiro, organizador direto e proprietário na economia,
“acionista fortíssimo no truste do capitalismo estatal”, "ponto culminante
e mais abrangente de sua organização". O “poder formidável, quase monstruoso”100
do novo Estado burguês impressionou tanto Bukharin que tão logo ele terminou O imperialismo e a economia mundial
começou a escrever um longo artigo intitulado em julho de 1916, o artigo foi na
verdade um apêndice do livro.101 Apresentava, de modo mais
elaborado, a teoria do imperialismo e do capitalismo de Estado, e propunha uma
reinterpretação radical da concepção marxista do Estado.
Bukharin começou por “resgatar” a interpretação original de Estado
feita por Marx e Engels. Explicou ser necessário reiterar essas “verdades
antigas” porque os socialdemocratas revisionistas, decididos a colaborar com o
Estado burguês e reformá-lo, haviam-nas esquecido ou apagado deliberadamente do
marxismo. Assim, traíram a proposição fundamental de Marx: “o Estado é
tão-somente a organização mais generalizada das classes dominantes, e sua
função básica é manter e ampliar a exploração das classes dominadas”. Ao
contrário dos reformistas, Marx não considera o Estado um fenômeno “eterno”,
mas uma “categoria histórica” típica das sociedades de classes e produto da
luta de classes. Uma sociedade comunista, sem classes, seria por definição uma
sociedade sem Estado. Cada era tem sua expressão específica: a do capitalismo
do laissez-faire foi o Estado liberal, não-intervencionista; a do
capitalismo financeiro (ou capitalismo de Estado) é o “Estado imperialista”.102”
100. Imperialism and World
Economy, p. 129; também pp. 124-9, 148-9, 151, 155.
101. Em 1916 e 1917 foram publicados excertos e resumos de seu
conteúdo, mas a íntegra do artigo — exceto a conclusão, que se perdeu — só foi
publicada em 1925. K teorii imperialisticheskogo gosudarstva. In Revoliutsiia prava: sbornik pervyi. Moscou,
1925, pp. 5-32.
102 Ibid., pp 6-14.
“No entanto, ao interpretar a guerra como a forma mais extrema e
final de concorrência econômica, Bukharin situa fora do sistema nacional o
catalisador definitivo da revolução. Os regimes inexpugnáveis do capitalismo de
Estado haviam utilizado previamente os “super lucros” coloniais para arrefecer
a luta de classes no país, aumentando os salários dos operários à custa dos
nativos explorados das colônias e dos povos conquistados. Como “o horror e a
vergonha” do imperialismo ficavam confinados a terras distantes, nasceu entre o
proletariado ocidental e o Estado imperialista um “vínculo de unidade”, como
fica patente através dos profundos sentimentos de pátria e patriotismo que
“penetraram na alma dos trabalhadores”. Mas a guerra mundial, mostrando à
“classe operária da Europa a verdadeira face” do imperialismo, prometia romper
“o último elo que unia os trabalhadores (...) ao Estado imperialista” e
mobilizá-los para a guerra revolucionária “contra o domínio do capital”. “Que
representam os tostões a mais pagos aos operários europeus (...) em comparação
com os milhões de trabalhadores chacinados, os bilhões devorados pela guerra, a
monstruosa pressão do militarismo desavergonhado, o vandalismo de forças
produtivas saqueadas, o alto custo de vida e à fome?”.116”
116 Imperialism and World
Economy, pp. 164-7; The Imperialist
Pirate State, Olga Hess Gankin and H. H. Fisher. The Bolsheviks and the World
War: The·Origin of the Third International; Stanford, California, p. 239.
“De fevereiro a outubro de 1917, período decorrido entre a queda
do Czar e a tomada da capital, Petrogrado, pelos bolcheviques, a Rússia viveu
uma revolução social de baixo para cima que não tem paralelo na história
moderna. Revoltadas por anos e anos de privilégios oficiais, exploração e
repressão, radicalizadas por três anos de guerra e estimuladas pelo repentino
colapso do czarismo, as massas — operários, soldados e camponeses — tomaram as
fábricas, as guarnições e as grandes propriedades do país. Esgotadas pela
guerra, ávidas por terra e movidas pelo igualitarismo, não se uniram num
levante espontâneo, plebeu e antiautoritário, que nenhum partido político
controlava. No verão de 1917, todas as formas políticas e econômicas
tradicionais de autoridade hierárquica e de privilégio ruíram ante ataques cada
vez mais violentos. Surgiram novas instituições, populares e descentralizadas:
sovietes locais que elegiam representantes para os sovietes mais importantes do
país; comitês de operários nas fábricas; comitês de soldados no exército; e nas
aldeias, comitês de camponeses, que procediam à redivisão dos latifúndios dos
senhores rurais
A cada mês, o sentimento popular se tornava mais radical e
turbulento; enquanto isso, em Petrogrado, o novo governo provisório estabelecia
um regime de moderação e legalidade. A princípio, o governo era uma coalizão de
políticos conservadores e liberais, à qual se opunha o Soviete de Petrogrado,
de esquerda, socialista — uma oposição leal encabeçada por
socialistas-revolucionários e por mencheviques. Na primavera, pressionada pelo
que ocorria no país, a oposição formou uma coalizão de democratas liberais e
socialistas moderados vindos dos Sovietes e liderados por Alexander Kerensky,
também um socialista-revolucionário. Mas apesar de sua nova feição, o governo
continuava a pregar contenção e ordem, a desaprovar a turbulência
revolucionária, e exigir a permanência da Rússia na guerra contra a Alemanha —
até que se obtivesse a vitória ou um acordo de paz — e a adiar a solução das
grandes questões sociais, principalmente a da terra — até que uma Assembleia
Constituinte fosse eleita esse reunisse até o final do ano.
No contexto de uma revolução de baixo para cima, é impossível um
regime de moderação — seja liberal, socialista ou de qualquer outro tipo.
Sujeito aos mesmos problemas sociais e militares que haviam derrubado a
autocracia, enfrentando crise após crise durante oito meses, o governo
provisório se tornou vítima dessa conjuntura. No outono de 1917, já não contava
com apoio popular, nem com tropas suficientes para manter a ordem nas cidades,
pôr fim às apropriações de terras, cuidar dos assuntos da guerra ou sequer resistir ao golpe bolchevique — tão débil — ocorrido em
Petrogrado no dia 25 de outubro. O mesmo confronto desigual entre a moderação oficial e o radicalismo popular transformou os socialistas
partidários do governo em defensores da lei e da ordem, e isolou-os de sua
turbulenta base de apoio. Por volta de setembro, os bolcheviques, em sua
maioria, já dispunham de mais força que os socialistas-revolucionários e os
mencheviques nos principais sovietes de Petrogrado e Moscou.
Não nos deteremos muito na espantosa ascensão do bolchevismo em
1917. O partido, que em fevereiro contava com 24 mil membros e tinha pouca
influência, tornara-se uma organização de massas de duzentas mil pessoas, e em
outubro governava a Rússia. É ilusório julgar que em 1917 o partido tenha sido
um usurpador pouco representativo. Os bolcheviques foram favorecidos pela
indecisão e pelas limitações de seus adversários, pela determinação de Lênin e
sua capacidade de levar o partido a uma atitude militante. Também a sorte os favoreceu.
Além disso, em 1917 o partido era a única força política em condições de
expressar e apoiar a opinião radical da massa. Os bolcheviques sempre
constituíram um partido minoritário (em novembro, só conseguiram 25% dos votos
para a Assembleia Constituinte) e não inspiraram, nem lideraram a revolução de
baixo para cima; foram porém os únicos a perceber os rumos dessa revolução e a
sobreviver a ela.1”
1. Apesar de se multiplicarem as monografias na União Soviética e
no Ocidente, ainda não existe boa história social da Revolução de 1917. Um
relato já desatualizado, mas ainda válido, é o de William Chamberlin, The Russian Revolution: 1917-1921 (2
vols. New York, 1960). Ver também PIPES, Richard (org.). Revolutionary Russia. Cambridge, Mass., 1968. Em relação ao
partido, DANIELS, Robert V. Red October: the
Bolshevik revolution of 1917. New York, 1967.
“Até Lênin voltar à Rússia, os líderes do partido — Kamenev e
Stalin à frente — consideravam a república “burguesa” pós-czarista um regime
destinado a durar muito, e achavam que cabia aos bolcheviques fazer uma
oposição leal. Formularam a política do partido segundo essas diretrizes. As Teses
de Abril propunham orientação completamente diversa. Lênin afirmava que a
Revolução Russa já encerrava sua fase burguesa e “entrava em seu segundo
estágio, no qual o poder passaria às mãos do proletariado e dos estratos
sociais mais pobres do campesinato”; e exigia: “Nenhum apoio ao governo
provisório”, nem quanto ao esforço de guerra, nem quanto à política interna,
fosse qual fosse. Lênin conclamava à destruição do Estado existente — a
“eliminação da polícia, do exército e da burocracia” — e à criação de “um
governo revolucionário” de sovietes, um “Estado-Comuna”, o único que poderia
desencadear uma “guerra revolucionária” contra todas as forças imperialistas.
Os socialdemocratas que vissem essas propostas como anarquismo sem
peias ou como “o delírio de um louco” eram aconselhados a ler “o que
Marx e Engels disseram (...) sobre o tipo de Estado de que o
proletariado precisa” (Conselho que Bukharin já dera a Lênin). De modo enérgico
e drástico, as Teses de Abril antecipavam O
Estado e a Revolução, livro que Lênin escreveria em agosto e setembro
expondo seu programa político de 1917: Abaixo o Governo Provisório! Todo o
poder aos Sovietes!3
A argumentação de Lênin era omissa quanto à época, mas referia-se
a insurreição e revolução socialistas — o que deixou a maioria dos líderes
bolcheviques “confusos e perplexos”. Sete anos depois, Bukharin recordou:
“Parte de nosso partido, e uma parte nada pequena de nosso partido, viu nisto
quase uma traição a sua ideologia marxista!”4. Muitos dos velhos
líderes bolcheviques se mostraram pouco entusiasmados ou se opuseram
abertamente ao apelo insurrecional de Lênin. Fizeram-no quer por timidez, quer
por aceitarem tacitamente a democracia parlamentar após tantos anos de oposição
à autocracia, quer por tomarem ao pé da letra o marxismo que considerava as
condições sociais da Rússia camponesa ainda imaturas para a revolução
proletária ou socialista. A resistência ia desde a oposição pública de vários
dos colaboradores mais antigos de Lênin, como Zinoviev, Kamenev, Aleksei Rykov
e Viktor Nogin, até “hesitações” difusas e persistentes “na cúpula do partido,
o ‘temor’ de lutar pelo poder”. Para fazer a revolução socialista, Lênin
precisou primeiro radicalizar seu próprio partido, que se mostrava
recalcitrante — esforço árduo no qual se empenhou desde abril até o momento
decisivo, em outubro.5”
3. Quanto às Teses, que resumem discurso não publicado, proferido
por Lenin ao voltar à Rússia, ver V. I. Lenin, Sochineniia (Soch.), 3rd
ed.; Moscow, 1928-37, vol. XX, pp. 87-90. Quanto à reação social-democrata, ver
SUKHANOV, N. N. The Russian Revolution
1917: eyewitness accounte. 2 vols. New York. 1962. I, pp. 286-7.
4. SUKHANOV, Russian
Revolution, J, cap. XII; and BUKHARIN, Ataka:
sbornik teoreticheskikb statei.
Moscow, 1924. p. 269.
5. Citação de Lenin em DANIELS, Red October, p. 65, que relata detalhadamente os esforços do líder para
radicalizar e unir o partido em 1917. Quanto às diferentes perspectivas do
partido, ver também RABINOWITCH, Alexander. Prelude
to Revolution: The Petrograd Bolsheviks and the July 1917 Uprising
(Bloomington, Ind., 1968).
“Quando esperanças e sonhos estão soltos pelas ruas, que os
tímidos tranquem as portas, fechem as janelas e escondam-se até a irá passar.
Pois costuma haver uma incoerência monstruosa entre as esperanças, mesmo as
mais nobres e delicadas, e à ação que as acompanha. É como se donzelas coroada
de Hera e jovens engrinaldadas anunciassem os quatro cavaleiros do Apocalipse.”
(Eric Hoffer — The true believer)
“Desde 1918 até o fim da guerra civil, em 1921, os bolcheviques
tiveram de travar uma árdua luta contra a Rússia antirrevolucionária e os
exércitos estrangeiros, a fim de se manterem no governo da Rússia Soviética.
Essa experiência violenta contribuiu muito para o surgimento de um partido e um
sistema político de cunho autoritário. Foi responsável pela instauração de uma
nova autoridade burocrática centralizada, pela ampla militarização da vida
política soviética, e, além disso, deu origem ao que um bolchevique chamou de
“cultura soviético-militar”1, que permaneceu mesmo depois de a
guerra já ter acabado. É importante ressaltar ainda que em meados de 1918 a
sobrevivência política entrelaçava-se com outra meta quase igualmente
desgastante: transformar a sociedade soviética, segundo padrões socialistas, de
modo rápido e sob muitos aspectos forçado. Também essa experiência terminou,
mas sua influência se fez sentir por muitos anos sobre os fatos políticos.”
1. Osinskii in Deviatyi
s’’ezd RKP(b). Mart-aprel 1920 goda: protokoly, Moscou, 1960, p. 115.
“Ficavam menos bem definidas as posições de Lênin sobre disciplina
do trabalho, autoridade administrativa e controle operário. Tratava-se de
questões delicadas, que dois fatores vinham ainda agravar: primeiro o tom
peremptório do decreto original que revogava o controle operário e concedia
“poderes ditatoriais” aos respectivos comissários era tão extremado que
desafiava até o crítico mais moderado da autoridade centralizada.55
Segundo, a própria ambiguidade da expressão “controle operário”; significaria
isso deixar a administração a cargo dos comitês de fábrica, dos sovietes
locais, dos sindicatos, do Conselho Superior da Economia Nacional? Ou
significaria simplesmente a instauração de um “Estado operário”? As opiniões
dos bolcheviques eram tão variadas quantas as possibilidades, e até Bukharin
sustentou pontos de vista diferentes em diferentes ocasiões. (...)
A revolução prometera explicitamente destruir o monstruoso
Estado-Leviatã e tudo o que ele representava na sociedade moderna. Independente
das perspectivas de outros bolcheviques, Bukharin encarava com grande
sinceridade a ideia de um “Estado-Comuna” revolucionário — o Estado “sem
polícia, sem exército fixo, sem burocracia”, proposto por Lênin em O Estado
e a Revolução e entusiasticamente aprovado por Bukharin. Esse
“Estado-Comuna” se caracterizaria antes de tudo pelo repúdio à autoridade
burocrática, fosse política ou econômica. Seria um Estado sem burocratas, “ou
seja, sem cidadãos privilegiados que se alienam das massas e prevalecem sobre
as massas”. Seria, em suma, um Estado sem elites, e as próprias massas
administrariam a sociedade de modo que “todos se tornam ‘burocratas’ por
algum tempo, a fim de que ninguém se transforme em ‘burocrata’...”.58
Nesta perspectiva os sovietes funcionariam como estrutura política
do “Estado-Comuna”. Na vida econômica o controle operário desempenharia função
similar, criando uma espécie de democracia industrial de base.59
Eliminada a burocracia, a classe operária gozaria de liberdade e se
autogovernaria no nível mais básico — os locais de trabalho. Por isso, quando
Lênin começou a impor restrições aos comitês de fábrica e a restabelecer a
autoridade burocrática, Bukharin evocou uma imagem central de O Estado e a
Revolução— a do homem comum na posição de administrador. E disse: “Convém
que a cozinheira aprenda a governar o Estado; mas que acontecerá se um
comissário tiver posição superior à da cozinheira? Neste caso, ela nunca
aprenderá a governar o Estado”.60 Eis portanto o dilema: ou um
aparelho formado por homens comuns, ou então elites burocráticas. O dilema
nascia de dois temores constantes dos bolcheviques mais idealistas: o possível
surgimento de uma nova classe dominante e a possível “degeneração burocrática”
do sistema soviético.
Na ideia de um “Estado-Comuna” refletiam-se as aspirações utópicas
do bolchevismo. Mas a ideia estava desde o início fadada ao insucesso, pois
supunha que uma sociedade industrial moderna (como queriam os bolcheviques, na
qualidade de socialistas marxistas) pudesse ser simples do ponto de vista
administrativo, e pessoas não especializadas fossem capazes de geri-la. Na
verdade, a modernização econômica desencadeou na União Soviética — como
ocorreria, aliás, onde quer que fosse — um processo exatamente oposto, que
propiciou a especialização e a formação de elites administrativas. Em 1918, tal
contradição ainda não estava clara para inúmeros bolcheviques, inclusive
Bukharin. O sonho de um “Estado-Comuna” ainda era acalentado por muitos, aos
quais bens se poderiam aplicar as palavras escritas por Goethe acerca de outro
cruzado: “Napoleão partiu em busca da Virtude; mas como não é possível
encontrar a Virtude, encontrou o Poder”.”
55. E. H. Carr, Bolshevik
Revolution, New York, 1951-3, vol. II, p. 396.
58. Ver a resenha de O
Estado e a revolução feita por Bukharin em Kommunist. Nº 1, 1918, p. 19.
Ver Soch, XXI, pp. 446, 451. E ver
também Sed’ moi ekstrennyi s’’ezd,
pp. 143-4.
59. Bukharin, The Communist
Program, p. 26; and DANIELS, Conscience
of the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia (Cambridge, 1960),
p. 86.
60. Protokoly zasedanii
vserossiiskogo tsentral’nogo ispolnitel’nogo komiteta. 4-go sozyva. Moscow,
1920, p. 234.
“Mais importante porém foi a irrupção da guerra civil, com a
intervenção militar estrangeira, o que se verificou em junho/julho de 1918. Nos
dois anos e meio seguintes, os bolcheviques estiveram cercados pelos exércitos
dos Brancos, pelas tropas japonesas e de potências ocidentais. Ficaram
bloqueados, e apenas parte do território russo continuou sob seu controle. Para
sobreviver, precisaram impor o controle do partido sobre todos os recursos
disponíveis.
Daí resultou o comunismo de guerra, exemplo extremo da economia
absoluta de guerra. A fim de poder utilizar todos os recursos para conseguir a
vitória, o partido-Estado assumiu o controle de todas as instituições autônomas
intermediárias, quando não as extinguiu. Os sindicatos foram incumbidos de
acelerar a produção, e o controle da distribuição ficou a cargo da ampla rede
de cooperativas de consumo. O comércio normal foi substituído por racionamento,
por requisições e pela prática primitiva do escambo; o mercado, com exceção do
mercado negro, deixou de existir. A inflação, estimulada pelo próprio Estado,
entrou em espiral ascendente, fazendo da Rússia Soviética um “país de pobres
milionários”: o dinheiro deixou de ter valor e utilidade. Um ex-bolchevique
definiu o comunismo de guerra como uma economia de cerco militar e
sobrevivência política: “Primeiro, as requisições nas áreas rurais; segundo, o
rígido racionamento para as populações das cidades, divididas em categorias;
terceiro, a ‘socialização’ absoluta da produção e do trabalho; quarto, um
sistema de distribuição complicadíssimo...”71.
O período 1918-21 caracterizou-se principalmente pela ampla
“estatização” da vida econômica, termo muito empregado e que definia bem o que
estava ocorrendo. O Estado apropriava-se de todos os recursos econômicos a que
pudesse ter acesso; e começava a florescer uma incômoda burocracia.
Cooperativas, sindicatos e toda a rede de sovietes econômicos locais
transformavam-se em apêndice burocráticos do aparelho estatal. O Conselho
Superior de Economia Nacional — agora praticamente o único responsável por toda
a produção industrial — criava cada vez mais agências. Entre 1913 e 1920 o
número de burocratas cresceu duas vezes mais que o de pessoas empregadas em
atividades produtivas.72 A guerra civil matou o sonho de um
“Estado-Comuna”, e a única semelhança que restou entre a república soviética e
a Comuna de Paris foi o fato de estarem sitiados.
A guerra civil e o comunismo de guerra introduziram profundas
alterações no partido e no incipiente sistema político. As normas democráticas
de 1917 e a feição reformista quase libertária do início de 1918 cederam lugar
a um fanatismo implacável, a um rígido autoritarismo e à “militarização” em todos
os níveis. Não apenas a democracia interna do partido foi atingida, mas o foram
também as normas descentralizadas de controle popular criadas no país em 1917 —
desde os sovietes locais até os comitês de fábrica. Os bolcheviques alegavam
não ter outra opção; como disse Bukharin, “a república é uma praça de guerra”.73
O processo alterou também a atitude do partido para com seus rivais — tornou se
impossível a relutante tolerância que existira no princípio, e os outros
partidos socialistas foram expulsos dos sovietes em junho de 1918. Após o
assassinato de vários bolcheviques e o atentado contra a vida de Lênin, a 30 de
agosto de 1918, a explosão do terrorismo chegou ao auge. A repressão
desencadeada pela tcheka, a polícia de segurança, imprimiu à vida política
soviética uma configuração nova. Muitos anos depois, citando Saint Just,
Bukharin enunciou uma analogia perfeita: “Quando não se pode governar pela lei,
é preciso governar a ferro”.74
Esses anos traumáticos constituíram um novo ponto de referência para
futuras discussões políticas. Aquela época em que uma derrota aparentemente
inevitável se transformou em vitória passou a ser motivo de orgulho para todos
os bolcheviques, inclusive os que mais tarde repudiaram as medidas do comunismo
de guerra. Bukharin captou muito bem o sentimento então dominante: “O
proletariado encontra-se completamente isolado; todos os punhos se erguem
contra ele”. Daí em diante, os anos 1918-21 seriam considerados “um período
histórico”, marco da tradição guerreira de desafiar o que parecia impossível e
de mobilizar o “levante das massas e o entusiasmo revolucionário”.75
Dez anos depois, Stalin recorreria a essa tradição para investir contra outras
fortalezas.”
71. Victor Serge, Memoirs of
a Revolutionary: 1901-1941 (London, 1963), p. 117. Ver também CARR, Bolshevik Revolution, II, pp. 147-268.
72. Leonard Schapiro, The
Communist Party of the Soviet Union (New York, 1960), p. 191.
73. BUCHARIN (sic) N. e PREOBRAJENSKI, E. The ABC of communism. London, 1922, pp. 196-7. Ver também o
discurso publicado em Vos’maia
konferentsiia RKP (b): protokoly.
Moscou, 1961, p. 165; e Deviatyi s’’ezd,
pp. 137-8.
74. The International Bourgeoisie and Karl Kautsky, its Apostle. Inprecor, V, 1925, p. 921.
75. BUKHARIN, Historical
Materialism: A System of Sociology. New York, 1925, p. 260; Pravda, 23 de mar. 1929, p. 3. O período
heroico da Grande Revolução de Russa, de Kristman, é o melhor estudo soviético
acerca desses anos; foi publicado pouco tempo depois.