Editora: Paz & Terra
ISBN: 978-85-2190-551-6
Tradução: Maria Inês Rolim
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 572
Sinopse: O historiador
norte-americano Stephen F. Cohen remove a cortina de calúnias e difamações que encobria
a trajetória política de um dos líderes mais importantes da Revolução Russa e chega
à conclusão de que era Bukharin – e não Trotski – o articulador de uma “alternativa
programática viável” para o stalinismo.
Esta biografia, que despertou muita celeuma quando apareceu
em inglês, no começo dos anos setenta, já se tornou um livro clássico, uma contribuição
decisiva à necessária revisão crítica na história do comunismo.
“Hilferding expusera no livro O Capital financeiro
a relação entre a ascensão do imperialismo e as importantes mudanças estruturais
no âmbito dos sistemas nacionais capitalistas – isto é, a transformação do capitalismo
do laissez-faire em capitalismo monopolista. Ampliando a análise marxista
da concentração e centralização do capital, Hilferding aborda a rápida proliferação
de formas que combinam propriedade e controle, em especial os trustes e cartéis
que, numa escala sem precedentes, haviam absorvido empresas menores. Examina com
especial atenção a nova função desempenhada pelos bancos no processo de monopolização,
mostrando como a concentração e a centralização do sistema bancário estimulavam
a concentração correlata do capital. “Os bancos modernos”, como observou Hilferding,
“passaram a ser proprietários de grande parte do capital utilizado pela indústria”.
Hilferding adotou um conceito analítico novo para situar o fenômeno – o conceito
de capital financeiro: “chamo de capital financeiro o capital bancário, ou seja,
o capital em forma monetária, que se transformou em capital industrial”. Para
Hilferding, o capitalismo maduro era o capitalismo financeiro, sistema que se distinguia
do modelo do laissez-faire – como ficaria minuciosamente demonstrado – pela
forte tendência de organização. À medida que o capital financeiro disseminava-se
na economia nacional e os grandes grupos predominavam, a regulamentação planejada
ia gradativamente eliminando a anarquia econômica anterior, gerada pela livre concorrência
de pequenas empresas. Cada vez mais o capitalismo nacional se tornava um sistema
econômico regulamentado, ou, para usar um termo intimamente associado com o Hilferding,
“capitalismo organizado”.
Capital financeiro abordava principalmente a estrutura nacional do neocapitalismo. A teoria
de Hilferding acerca do imperialismo era pouco mais que um subproduto da análise
essencial. Depois de monopolizar o mercado interno e estipular altas tarifas protecionistas
contra a concorrência externa, o capitalismo monopolista adotou uma política expansionista,
buscando maiores lucros: conseguia nas colônias as matérias-primas e, acima de tudo,
novos mercados para as exportações de capital. Segundo a análise de Hilferding,
o imperialismo era a política externa lógica, do ponto de vista econômico, para
o capitalismo financeiro. Hilferding nos mostra sucintamente que a competição das
potências capitalistas pelos mercados coloniais derivava de razões bem semelhantes
às que haviam levado as empresas a competirem pelo mercado interno ‑ o que explicava
a crescente militarização do capitalismo moderno e à crescente hostilidade nas relações
internacionais. (Note-se se que o livro foi escrito bem antes da Primeira Guerra)
Bukharin aproveitou a teoria de Hilferding sobre
o imperialismo, com o intuito de atualizá-la e até radicalizá-la sobre alguns aspectos
significativos. Também definiu o imperialismo como “a política do capitalismo financeiro”.
À diferença de Hilferding, porém, frisou que “o capitalismo financeiro não pode
adotar outra política senão a imperialista” (...), e que, portanto, “o imperialismo,
além de ser o sistema que se vincula mais estreitamente ao capitalismo moderno,
é também seu componente mais fundamental”. Mais dogmaticamente que Hilferding, Bukharin
conceitua o imperialismo como “categoria histórica” inevitável, que surge necessariamente
numa etapa específica (a última) do desenvolvimento capitalista. As colônias – fornecedoras
de matérias-primas e mercados para produtos excedentes e capital – eram essenciais
à própria existência econômica do capitalismo monopolista: o imperialismo “sustenta
a estrutura do capitalismo financeiro”. Com esse argumento, Bukharin contestava
a opinião social-democrata dominante de que a política imperialista, conquanto deplorável,
não era indispensável à configuração do capitalismo.
Partindo da definição do imperialismo como manifestação
orgânica e inevitável do capitalismo monopolista, Bukharin chegou à questão da guerra,
como Hilferding também chegara. Mas ainda nesse ponto difere de Hilferding, pela
certeza de que as guerras seriam inevitáveis na era imperialista. Para Bukharin,
tratava-se de “fantasia” a hipótese, muito disseminada entre os social-democratas,
da coexistência pacífica das nações imperialistas, e também a ideia de que a um
estágio mais avançado do desenvolvimento capitalista corresponderia uma organização
pacífica da economia mundial (o “ultra-imperialismo”, como sugeriu Kautsky). No
período inicial da colonização, as potências imperialistas se expandiram com um
mínimo de conflitos, simplesmente “apoderando-se de terras sem dono”. Mas já não
havia áreas a serem colonizadas e impunha-se a necessidade de “uma redivisão fundamental”.
A competição das nações imperialistas atinge sua forma mais aguda: a luta armada.
Na busca desesperada de novos mercados, as nações voltam-se uma contra as outras,
“a ferro e fogo”, e os fracos são colonizados pelos fortes.
Bukharin argumentava, é claro, que a Primeira
Guerra Mundial não fora uma infelicidade histórica nem uma conflagração isolada;
fora a primeira de uma série de guerras imperialistas “inevitáveis”. Mas concluiu
que a era do imperialismo, embora responsável pelos horrores da guerra, também mostrava
a intensificação das contradições sociais do capitalismo, e portanto, “a maturidade
das condições objetivas” para a revolução socialista. A diferença substancial entre
a argumentação de Bukharin e a de Hilferding é que Bukharin apresentou as sugestões
de Hilferding numa equação histórica, sequencial e inevitável: capitalismo monopolista
-> imperialismo -> guerra -> revolução proletária.”
“Bukharin começou por “resgatar” a interpretação
original de Estado feita por Marx e Engels. Explicou ser necessário reiterar essas
“verdades antigas” porque os socialdemocratas revisionistas, decididos a colaborar
com o Estado burguês e reformá-lo, haviam-nas esquecido ou apagado deliberadamente
do marxismo. Assim, traíram a proposição fundamental de Marx: “o Estado é tão-somente
a organização mais generalizada das classes dominantes, e sua função básica é
manter e ampliar a exploração das classes dominadas”. Ao contrário dos reformistas,
Marx não considera o Estado um fenômeno “eterno”, mas uma “categoria histórica”
típica das sociedades de classes e produto da luta de classes. Uma sociedade comunista,
sem classes, seria por definição uma sociedade sem Estado. Cada era tem sua expressão
específica: a do capitalismo do laissez-faire foi o Estado liberal, não-intervencionista;
a do capitalismo financeiro (ou capitalismo de Estado) é o “Estado imperialista”.”
“No entanto, ao interpretar a guerra como a forma
mais extrema e final de concorrência econômica, Bukharin situa fora do sistema nacional
o catalisador definitivo da revolução. Os regimes inexpugnáveis do capitalismo de
Estado haviam utilizado previamente os “super lucros” coloniais para arrefecer a
luta de classes no país, aumentando os salários dos operários à custa dos nativos
explorados das colônias e dos povos conquistados. Como “o horror e a vergonha” do
imperialismo ficavam confinados a terras distantes, nasceu entre o proletariado
ocidental e o Estado imperialista um “vínculo de unidade”, como fica patente através
dos profundos sentimentos de pátria e patriotismo que “penetraram na alma dos trabalhadores”.
Mas a guerra mundial, mostrando à “classe operária da Europa a verdadeira face”
do imperialismo, prometia romper “o último elo que unia os trabalhadores (...) ao
Estado imperialista” e mobilizá-los para a guerra revolucionária “contra o domínio
do capital”. “Que representam os tostões a mais pagos aos operários europeus (...)
em comparação com os milhões de trabalhadores chacinados, os bilhões devorados pela
guerra, a monstruosa pressão do militarismo desavergonhado, o vandalismo de forças
produtivas saqueadas, o alto custo de vida e à fome?”.”
“De fevereiro a outubro de 1917, período decorrido
entre a queda do Czar e a tomada da capital, Petrogrado, pelos bolcheviques, a Rússia
viveu uma revolução social de baixo para cima que não tem paralelo na história moderna.
Revoltadas por anos e anos de privilégios oficiais, exploração e repressão, radicalizadas
por três anos de guerra e estimuladas pelo repentino colapso do czarismo, as massas
– operários, soldados e camponeses – tomaram as fábricas, as guarnições e as grandes
propriedades do país. Esgotadas pela guerra, ávidas por terra e movidas pelo igualitarismo,
não se uniram num levante espontâneo, plebeu e antiautoritário, que nenhum partido
político controlava. No verão de 1917, todas as formas políticas e econômicas tradicionais
de autoridade hierárquica e de privilégio ruíram ante ataques cada vez mais violentos.
Surgiram novas instituições, populares e descentralizadas: sovietes locais que elegiam
representantes para os sovietes mais importantes do país; comitês de operários nas
fábricas; comitês de soldados no exército; e nas aldeias, comitês de camponeses,
que procediam à redivisão dos latifúndios dos senhores rurais
A cada mês, o sentimento popular se tornava mais
radical e turbulento; enquanto isso, em Petrogrado, o novo governo provisório estabelecia
um regime de moderação e legalidade. A princípio, o governo era uma coalizão de
políticos conservadores e liberais, à qual se opunha o Soviete de Petrogrado, de
esquerda, socialista – uma oposição leal encabeçada por socialistas-revolucionários
e por mencheviques. Na primavera, pressionada pelo que ocorria no país, a oposição
formou uma coalizão de democratas liberais e socialistas moderados vindos dos Sovietes
e liderados por Alexander Kerensky, também um socialista-revolucionário. Mas apesar
de sua nova feição, o governo continuava a pregar contenção e ordem, a desaprovar
a turbulência revolucionária, e exigir a permanência da Rússia na guerra contra
a Alemanha – até que se obtivesse a vitória ou um acordo de paz – e a adiar a solução
das grandes questões sociais, principalmente a da terra – até que uma Assembleia
Constituinte fosse eleita esse reunisse até o final do ano.
No contexto de uma revolução de baixo para cima,
é impossível um regime de moderação – seja liberal, socialista ou de qualquer outro
tipo. Sujeito aos mesmos problemas sociais e militares que haviam derrubado a autocracia,
enfrentando crise após crise durante oito meses, o governo provisório se tornou
vítima dessa conjuntura. No outono de 1917, já não contava com apoio popular, nem
com tropas suficientes para manter a ordem nas cidades, pôr fim às apropriações
de terras, cuidar dos assuntos da guerra ou sequer resistir ao golpe bolchevique – tão débil – ocorrido em Petrogrado
no dia 25 de outubro. O mesmo confronto desigual entre a moderação oficial e o radicalismo
popular transformou os socialistas partidários do governo em defensores da lei e
da ordem, e isolou-os de sua turbulenta base de apoio. Por volta de setembro, os
bolcheviques, em sua maioria, já dispunham de mais força que os socialistas-revolucionários
e os mencheviques nos principais sovietes de Petrogrado e Moscou.
Não nos deteremos muito na espantosa ascensão
do bolchevismo em 1917. O partido, que em fevereiro contava com 24 mil membros e
tinha pouca influência, tornara-se uma organização de massas de duzentas mil pessoas,
e em outubro governava a Rússia. É ilusório julgar que em 1917 o partido tenha sido
um usurpador pouco representativo. Os bolcheviques foram favorecidos pela indecisão
e pelas limitações de seus adversários, pela determinação de Lênin e sua capacidade
de levar o partido a uma atitude militante. Também a sorte os favoreceu. Além disso,
em 1917 o partido era a única força política em condições de expressar e apoiar
a opinião radical da massa. Os bolcheviques sempre constituíram um partido minoritário
(em novembro, só conseguiram 25% dos votos para a Assembleia Constituinte) e não
inspiraram, nem lideraram a revolução de baixo para cima; foram porém os únicos
a perceber os rumos dessa revolução e a sobreviver a ela.”
“Até Lênin voltar à Rússia, os líderes do partido
– Kamenev e Stalin à frente – consideravam a república “burguesa” pós-czarista um
regime destinado a durar muito, e achavam que cabia aos bolcheviques fazer uma oposição
leal. Formularam a política do partido segundo essas diretrizes. As Teses de
Abril propunham orientação completamente diversa. Lênin afirmava que a Revolução
Russa já encerrava sua fase burguesa e “entrava em seu segundo estágio, no
qual o poder passaria às mãos do proletariado e dos estratos sociais mais pobres
do campesinato”; e exigia: “Nenhum apoio ao governo provisório”, nem quanto ao esforço
de guerra, nem quanto à política interna, fosse qual fosse. Lênin conclamava à destruição
do Estado existente – a “eliminação da polícia, do exército e da burocracia” – e
à criação de “um governo revolucionário” de sovietes, um “Estado-Comuna”, o único
que poderia desencadear uma “guerra revolucionária” contra todas as forças imperialistas.
Os socialdemocratas que vissem essas propostas
como anarquismo sem peias ou como “o delírio de um louco” eram aconselhados a ler
“o que Marx e Engels disseram (...) sobre o tipo de Estado de que
o proletariado precisa” (Conselho que Bukharin já dera a Lênin). De modo enérgico
e drástico, as Teses de Abril antecipavam O Estado e a Revolução, livro que Lênin escreveria em
agosto e setembro expondo seu programa político de 1917: Abaixo o Governo Provisório!
Todo o poder aos Sovietes!
A argumentação de Lênin era omissa quanto à época,
mas referia-se a insurreição e revolução socialistas – o que deixou a maioria dos
líderes bolcheviques “confusos e perplexos”. Sete anos depois, Bukharin recordou:
“Parte de nosso partido, e uma parte nada pequena de nosso partido, viu nisto quase
uma traição a sua ideologia marxista!”. Muitos dos velhos líderes bolcheviques se
mostraram pouco entusiasmados ou se opuseram abertamente ao apelo insurrecional
de Lênin. Fizeram-no quer por timidez, quer por aceitarem tacitamente a democracia
parlamentar após tantos anos de oposição à autocracia, quer por tomarem ao pé da
letra o marxismo que considerava as condições sociais da Rússia camponesa ainda
imaturas para a revolução proletária ou socialista. A resistência ia desde a oposição
pública de vários dos colaboradores mais antigos de Lênin, como Zinoviev, Kamenev,
Aleksei Rykov e Viktor Nogin, até “hesitações” difusas e persistentes “na cúpula
do partido, o ‘temor’ de lutar pelo poder”. Para fazer a revolução socialista, Lênin
precisou primeiro radicalizar seu próprio partido, que se mostrava recalcitrante
– esforço árduo no qual se empenhou desde abril até o momento decisivo, em outubro.”
“Quando esperanças e sonhos estão soltos pelas
ruas, que os tímidos tranquem as portas, fechem as janelas e escondam-se até a irá
passar. Pois costuma haver uma incoerência monstruosa entre as esperanças, mesmo
as mais nobres e delicadas, e à ação que as acompanha. É como se donzelas coroada
de Hera e jovens engrinaldadas anunciassem os quatro cavaleiros do Apocalipse.”
(Eric Hoffer – The true believer)
“Desde 1918 até o fim da guerra civil, em 1921,
os bolcheviques tiveram de travar uma árdua luta contra a Rússia antirrevolucionária
e os exércitos estrangeiros, a fim de se manterem no governo da Rússia Soviética.
Essa experiência violenta contribuiu muito para o surgimento de um partido e um
sistema político de cunho autoritário. Foi responsável pela instauração de uma nova
autoridade burocrática centralizada, pela ampla militarização da vida política soviética,
e, além disso, deu origem ao que um bolchevique chamou de “cultura soviético-militar”,
que permaneceu mesmo depois de a guerra já ter acabado. É importante ressaltar ainda
que em meados de 1918 a sobrevivência política entrelaçava-se com outra meta quase
igualmente desgastante: transformar a sociedade soviética, segundo padrões socialistas,
de modo rápido e sob muitos aspectos forçado. Também essa experiência terminou,
mas sua influência se fez sentir por muitos anos sobre os fatos políticos.”
“Ficavam menos bem definidas as posições de Lênin
sobre disciplina do trabalho, autoridade administrativa e controle operário. Tratava-se
de questões delicadas, que dois fatores vinham ainda agravar: primeiro o tom peremptório
do decreto original que revogava o controle operário e concedia “poderes ditatoriais”
aos respectivos comissários era tão extremado que desafiava até o crítico mais moderado
da autoridade centralizada. Segundo, a própria ambiguidade da expressão “controle
operário”; significaria isso deixar a administração a cargo dos comitês de fábrica,
dos sovietes locais, dos sindicatos, do Conselho Superior da Economia Nacional?
Ou significaria simplesmente a instauração de um “Estado operário”? As opiniões
dos bolcheviques eram tão variadas quantas as possibilidades, e até Bukharin sustentou
pontos de vista diferentes em diferentes ocasiões. (...)
A revolução prometera explicitamente destruir
o monstruoso Estado-Leviatã e tudo o que ele representava na sociedade moderna.
Independente das perspectivas de outros bolcheviques, Bukharin encarava com grande
sinceridade a ideia de um “Estado-Comuna” revolucionário – o Estado “sem polícia,
sem exército fixo, sem burocracia”, proposto por Lênin em O Estado e a Revolução
e entusiasticamente aprovado por Bukharin. Esse “Estado-Comuna” se caracterizaria
antes de tudo pelo repúdio à autoridade burocrática, fosse política ou econômica.
Seria um Estado sem burocratas, “ou seja, sem cidadãos privilegiados que se alienam
das massas e prevalecem sobre as massas”. Seria, em suma, um Estado sem elites,
e as próprias massas administrariam a sociedade de modo que “todos se tornam
‘burocratas’ por algum tempo, a fim de que ninguém se transforme em ‘burocrata’...”.
Nesta perspectiva os sovietes funcionariam como
estrutura política do “Estado-Comuna”. Na vida econômica o controle operário desempenharia
função similar, criando uma espécie de democracia industrial de base. Eliminada
a burocracia, a classe operária gozaria de liberdade e se autogovernaria no nível
mais básico – os locais de trabalho. Por isso, quando Lênin começou a impor restrições
aos comitês de fábrica e a restabelecer a autoridade burocrática, Bukharin evocou
uma imagem central de O Estado e a Revolução– a do homem comum na posição
de administrador. E disse: “Convém que a cozinheira aprenda a governar o Estado;
mas que acontecerá se um comissário tiver posição superior à da cozinheira? Neste
caso, ela nunca aprenderá a governar o Estado”. Eis portanto o dilema: ou um aparelho
formado por homens comuns, ou então elites burocráticas. O dilema nascia de dois
temores constantes dos bolcheviques mais idealistas: o possível surgimento de uma
nova classe dominante e a possível “degeneração burocrática” do sistema soviético.
Na ideia de um “Estado-Comuna” refletiam-se as
aspirações utópicas do bolchevismo. Mas a ideia estava desde o início fadada ao
insucesso, pois supunha que uma sociedade industrial moderna (como queriam os bolcheviques,
na qualidade de socialistas marxistas) pudesse ser simples do ponto de vista administrativo,
e pessoas não especializadas fossem capazes de geri-la. Na verdade, a modernização
econômica desencadeou na União Soviética – como ocorreria, aliás, onde quer que
fosse – um processo exatamente oposto, que propiciou a especialização e a formação
de elites administrativas. Em 1918, tal contradição ainda não estava clara para
inúmeros bolcheviques, inclusive Bukharin. O sonho de um “Estado-Comuna” ainda era
acalentado por muitos, aos quais bens se poderiam aplicar as palavras escritas por
Goethe acerca de outro cruzado: “Napoleão partiu em busca da Virtude; mas como não
é possível encontrar a Virtude, encontrou o Poder”.”
“Mais importante porém foi a irrupção da guerra
civil, com a intervenção militar estrangeira, o que se verificou em junho/julho
de 1918. Nos dois anos e meio seguintes, os bolcheviques estiveram cercados pelos
exércitos dos Brancos, pelas tropas japonesas e de potências ocidentais. Ficaram
bloqueados, e apenas parte do território russo continuou sob seu controle. Para
sobreviver, precisaram impor o controle do partido sobre todos os recursos disponíveis.
Daí resultou o comunismo de guerra, exemplo extremo
da economia absoluta de guerra. A fim de poder utilizar todos os recursos para conseguir
a vitória, o partido-Estado assumiu o controle de todas as instituições autônomas
intermediárias, quando não as extinguiu. Os sindicatos foram incumbidos de acelerar
a produção, e o controle da distribuição ficou a cargo da ampla rede de cooperativas
de consumo. O comércio normal foi substituído por racionamento, por requisições
e pela prática primitiva do escambo; o mercado, com exceção do mercado negro, deixou
de existir. A inflação, estimulada pelo próprio Estado, entrou em espiral ascendente,
fazendo da Rússia Soviética um “país de pobres milionários”: o dinheiro deixou de
ter valor e utilidade. Um ex-bolchevique definiu o comunismo de guerra como uma
economia de cerco militar e sobrevivência política: “Primeiro, as requisições nas
áreas rurais; segundo, o rígido racionamento para as populações das cidades, divididas
em categorias; terceiro, a ‘socialização’ absoluta da produção e do trabalho; quarto,
um sistema de distribuição complicadíssimo...”.
O período 1918-21 caracterizou-se principalmente
pela ampla “estatização” da vida econômica, termo muito empregado e que definia
bem o que estava ocorrendo. O Estado apropriava-se de todos os recursos econômicos
a que pudesse ter acesso; e começava a florescer uma incômoda burocracia. Cooperativas,
sindicatos e toda a rede de sovietes econômicos locais transformavam-se em apêndice
burocráticos do aparelho estatal. O Conselho Superior de Economia Nacional – agora
praticamente o único responsável por toda a produção industrial – criava cada vez
mais agências. Entre 1913 e 1920 o número de burocratas cresceu duas vezes mais
que o de pessoas empregadas em atividades produtivas. A guerra civil matou o sonho
de um “Estado-Comuna”, e a única semelhança que restou entre a república soviética
e a Comuna de Paris foi o fato de estarem sitiados.
A guerra civil e o comunismo de guerra introduziram
profundas alterações no partido e no incipiente sistema político. As normas democráticas
de 1917 e a feição reformista quase libertária do início de 1918 cederam lugar a
um fanatismo implacável, a um rígido autoritarismo e à “militarização” em todos
os níveis. Não apenas a democracia interna do partido foi atingida, mas o foram
também as normas descentralizadas de controle popular criadas no país em 1917 –
desde os sovietes locais até os comitês de fábrica. Os bolcheviques alegavam não
ter outra opção; como disse Bukharin, “a república é uma praça de guerra”. O processo
alterou também a atitude do partido para com seus rivais – tornou se impossível
a relutante tolerância que existira no princípio, e os outros partidos socialistas
foram expulsos dos sovietes em junho de 1918. Após o assassinato de vários bolcheviques
e o atentado contra a vida de Lênin, a 30 de agosto de 1918, a explosão do terrorismo
chegou ao auge. A repressão desencadeada pela tcheka, a polícia de segurança, imprimiu
à vida política soviética uma configuração nova. Muitos anos depois, citando Saint
Just, Bukharin enunciou uma analogia perfeita: “Quando não se pode governar pela
lei, é preciso governar a ferro”.
Esses anos traumáticos constituíram um novo ponto
de referência para futuras discussões políticas. Aquela época em que uma derrota
aparentemente inevitável se transformou em vitória passou a ser motivo de orgulho
para todos os bolcheviques, inclusive os que mais tarde repudiaram as medidas do
comunismo de guerra. Bukharin capitou muito bem o sentimento então dominante: “O
proletariado encontra-se completamente isolado; todos os punhos se erguem contra
ele”. Daí em diante, os anos 1918-21 seriam considerados “um período histórico”,
marco da tradição guerreira de desafiar o que parecia impossível e de mobilizar
o “levante das massas e o entusiasmo revolucionário”. Dez anos depois, Stalin recorreria
a essa tradição para investir contra outras fortalezas.”
“Nenhuma das outras funções, contudo, comparava-se
à atividade mais importante de Bukharin: a de principal teórico do bolchevismo,
e por vezes seu teórico oficial. Naquela época e nos anos seguintes era importantíssimo
elaborar teorias e até mesmo a ideologia. Processavam-se rápidas mudanças na composição
do partido, mas seus líderes ainda se consideravam intelectuais. Avaliavam-se as
argumentações políticas, pelo menos em parte, por sua consistência teórica e por
sua força de persuasão; os bolcheviques orgulhavam-se do que escreviam e publicavam,
e Lênin ainda se definia profissionalmente como “literato”. Bukharin dava a si próprio
e a Lênin a classificação de “ideólogos comunistas”. A tão alardeada unidade de
teoria e prática não se tornara ainda confusão vulgar. Os bolcheviques respeitavam
teorias e ideias com o mesmo ardor com que respeitavam a verdade – para eles, esses
conceitos eram uma coisa só, e residia na percepção dessa identidade sua força de
liderança. Achavam, como Marx, que “ser radical é aprender as coisas pela raiz”.”
“Certa vez, falando sobre a obra histórica de
Pokrovsvi, Bukharin disse o seguinte: “Quem não comete erros, não faz nada”.”
“Existem nas ciências sociais dois ramos importantes
que não analisam apenas um campo da vida social, mas toda a vida social em seu conjunto.
(...) Um é a história, outro é a sociologia. (...) A história pesquisa
e relata a vida social em determinada época e determinado lugar. (...) A
sociologia tenta responder a questões mais amplas, como por exemplo: como se relacionam
entre si os vários grupos de fenômenos sociais (econômicos, legais, científicos,
etc.)? Como é possível explicar sua evolução? Quais são as formas históricas da
sociedade?, etc. Das ciências sociais, a sociologia é a mais geral (abstrata). (...)
A história fornece material para que se chegue a conclusões sociológicas e a generalizações
sociológicas. (...) A sociologia, por sua vez, formula (...) um método
para a história.” (Bukharin – Materialismo Histórico)
“O cerne de materialismo histórico é a
assertiva bukharinista de que a dialética, e consequentemente a mudança social,
explicam-se pela teoria do equilíbrio. Interessa-nos aqui essa concepção ampla,
e não os inumeráveis argumentos secundários também apresentados. Para Bukharin,
o ponto de vista dialético (ou dinâmica) mostra que todas as coisas, materiais e
sociais, estão em movimento, e que o movimento se origina do conflito ou da contradição
interna de um dado sistema. É também verdade que qualquer sistema, seja material,
seja social, tende a um estado de equilíbrio (análogo ao da adaptação na biologia):
“Em outras palavras, o mundo consiste de forças
que atuam de várias maneiras e se opõem umas às outras. Só em casos excepcionais
tais forças se mantém em equilíbrio durante certo tempo. Temos então um estado de
‘repouso’, isto é, o ‘conflito’ não está aparente. Mas basta que se altere uma só
destas forças para que logo se revelem as ‘contradições internas’ e rompa-se o equilíbrio.
E caso venha a se estabelecer um novo equilíbrio, será em novas bases, ou seja,
numa nova combinação de forças, etc. Logo, o ‘conflito’, a ‘contradição’, isto é,
o antagonismo de forças que atuam em diversas direções são os determinantes do movimento
do sistema.
Transferindo a origem do movimento – do “alto
desenvolvimento” para o conflito de forças – Bukharin acreditava ter depurado da
célebre tríade hegeliana (tese-antítese-síntese) seus elementos idealistas. Em substituição,
propunha a fórmula de equilíbrio original-rompimento de equilíbrio-restabelecimento
do equilíbrio em novas bases.
Em todo o sistema, prossegue Bukharin, há dois
estados de equilíbrio: o interno e o externo. O primeiro concerne à relação entre
os diversos componentes do sistema; o segundo, ao sistema como um todo em sua relação
com o meio. Jamais existe um “equilíbrio absoluto e imutável”; há sempre “fluxos”
– o equilíbrio dinâmico, ou em movimento. O ponto básico da teoria de Bukharin é
a relação entre o equilíbrio interno e o externo:
“(...) A estrutura interna do sistema (...) tem
de se alterar em função da relação entre o sistema e seu meio. Esta relação é o
fator decisivo (...) o equilíbrio (estrutura) interno é uma quantidade que depende
do equilíbrio externo (é ‘função’ deste equilíbrio externo).”
Aplicada à sociedade, a teoria de Bukharin pode
ser entendida assim: uma sociedade supõe certo equilíbrio entre seus três elementos
sociais mais importantes – coisas, pessoas e ideias. É este o equilíbrio interno.
Mas “é impossível imaginar uma sociedade sem o meio”, ou seja, a natureza. A sociedade
adapta-se à natureza, esforça-se para equilibrar-se em relação a ela, e dela retira
energia mediante o processo de produção social. No processo de adaptação, a sociedade
cria “um sistema artificial de órgãos”, que Bukharin denomina tecnologia e que constitui
“um indicador material preciso da relação entre a sociedade e a natureza”. Identificando
tecnologia social com forças produtivas (“as combinações dos instrumentos de trabalho”)
e considerando a estrutura interna função do equilíbrio externo, Bukharin pode –
apesar de sua análise pluralista do desenvolvimento social – preservar a causalidade
monista do determinismo econômico. Ou em suas próprias palavras:
“(...) As forças produtivas determinam o desenvolvimento
social porque expressam a inter-relação da sociedade (...) e seu meio. (...)
E a inter-relação do meio com o sistema é a quantidade que determina, em última
análise, o movimento de qualquer sistema”.
Neste modelo teórico está contido o materialismo
histórico de Bukharin, sistematizando o desenvolvimento social. O equilíbrio social
é constantemente rompido e tende a restaurar-se de duas maneiras: quer pela “adaptação
gradual dos vários elementos no todo social (evolução)”, quer por “convulsões violentas
(revolução)”. Enquanto o contexto do equilíbrio social – basicamente as relações
de produção materializadas nas classes que participam diretamente da produção –
for suficientemente amplo e duradouro, tem-se a evolução. Assim se deu o progresso
do capitalismo ao longo de várias fases históricas. Mas, quando as forças produtivas
chegam ao conflito com “o invólucro fundamental destas forças, isto é, as relações
de propriedade”, então ocorre a revolução. O “invólucro se rompe”. Cria-se um novo
equilíbrio social; “isto é, um contexto novo e duradouro de relações de produção
(...) capaz de atuar como forma evolucionária das forças produtivas...”.”
“O que levava os marxistas a esperarem uma revolução
socialista era o fato histórico de o capitalismo ter nascido do feudalismo. Já que
o capitalismo amadurecera dentro da sociedade feudal, era de se esperar que o socialismo
amadurecesse dentro da antiga ordem capitalista. Centrando seu raciocínio num argumento
muito simples, Bukharin demonstrou o completo equívoco dessa analogia: na sociedade
feudal, a burguesia nascente possuía nas cidades uma base autônoma, onde podia crescer
independente dos senhores feudais e à revelia deles, criando seus próprios alicerces
culturais, materiais e técnicos, e formando suas próprias elites administrativas.
A burguesia não era explorada nem destituída de direitos, e portanto, dispôs de
meios para se eligir em classe capaz de organizar-se e governar, antes mesmo de
ocorrer a revolução política. Bukharin fazia ver que a situação do proletariado
na sociedade capitalista é inteiramente diversa. A massa proletária, que não possui
uma base econômica independente, é sempre uma classe cultural e economicamente oprimida
e explorada, apesar de representar um princípio cultural potencialmente superior.
A burguesia monopolizara não só os meios de produção, mas também os de educação
(aspecto que, segundo Bukharin, não fora percebido). Ao longo de sua história pré-revolucionária,
como não podia deixar de ser, o proletariado é sempre uma classe atrasada no seio
de uma sociedade desenvolvida. Por isso, ao contrário da burguesia, não pode “preparar-se
para organizar a sociedade. Tem condições de se preparar para ‘destruir o mundo
anterior’”, mas “só no período de sua própria ditadura se torna maduro a ponto
de organizar a sociedade”. Logo, a imaturidade da classe proletária não era
um fenômeno tipicamente russo, mas uma característica das revoluções proletárias
em geral.”
“Nos anos 20, a ideia de um regime revolucionário
vir a gerar um Estado burocrático explorador foi para Bukharin o mesmo que era para
a esquerda bolchevique a ideia da “degeneração pequeno-burguesa”. Bukharin afirmava
que os programas econômicos da esquerda institucionalizavam a “arbitrariedade” oficial
do comunismo de guerra e o surgimento de “grupos comunistas privilegiados” – um
“novo Estado de chinovnikis” – alheios às necessidades das massas e “absolutamente
imunes” à demissões. O possível retorno da exploração preocupava mais a Bukharin
que, por si só, o destino das massas urbanas. Para ele, programas que saqueassem
o campo não levariam à sociedade socialista sem classe, mas “ao eterno ‘domínio
do proletariado’” e a sua “transformação negativa em verdadeira classe exploradora”
do campesinato. Enquanto muitos perscrutavam o horizonte à cata dos fantasmas da
Revolução Francesa, atentos às “pegadas da história”, Bukharin temia um tipo de
degeneração sem precedente histórico.
Não por acaso, dedicou-se durante o primeiro ano
de vigência da NEP a refletir sobre esta sombria possibilidade. Kronstadt e os levantes
rurais levaram-no a perceber o isolamento em que se achava o partido; via que os
bolcheviques no poder representavam uma minoria muito pequena, amparavam-se na força
armada e não contavam sequer com o apoio da classe que diziam representar. O partido,
antes líder e porta voz dos operários e camponeses revolucionários, estava agora
“alienado das massas”. No X Congresso do Partido, Bukharin fez menção ao que corria
entre o povo: “Não há pão nem carvão – e a culpa é do Partido Comunista”. Em julho
de 1921, manifestava dúvidas quanto à sobrevivência do regime – fato quase inimaginável
em 1917, quando “todos os soldados e operários estão conosco” e “é bom estar vivo...”
Embora não deixasse de elogiar a ditadura do partido, por vezes de modo até arrogante,
o elitismo causava-lhe certo mal-estar; agora suas concepções eram ditadas pela
necessidade de superar o isolamento gerado pela guerra civil, de recuperar o apoio
popular e garantir o maior número possível de aliados para o programa do partido.
De 1921 em diante, Bukharin concentrou sua atenção
nas “massas não-partidárias”; o entusiasmo que antes demonstrara pela coação revolucionária
demonstrava agora pela persuasão e pela educação. Passou a ver na “colossal” burocracia
gerada pelo comunismo de guerra o maior sinal do isolamento do partido, e atribuiu
ao crescimento dessa burocracia o “vazio” que se abrira entre o governo bolchevique
e o povo. Daí nasceu uma de suas ideias básicas: o antídoto para a burocracia seria
preencher esse vazio com “centenas e milhares de sociedades, círculos e associações”
voluntários, pequenos e grandes, que se expandissem depressa e funcionassem como
“vínculos com as massas”. Surgiriam assim “iniciativas descentralizadas” e se criaria
um “mecanismo de transmissão” mediante o qual o partido não só influenciaria a opinião
pública como também receberia sua influência. A proliferação desses mecanismos seria
o que Bukharinchamava de “crescimento (...) da estrutura social soviética (sovetskaia
obshchestvennost)” e restauraria o “tecido social” rompido. A confiança nas
organizações voluntárias e na “iniciativa das massas a partir dos níveis mais baixos”
– que se opunha à estatização – foi uma das características da reavaliação bukharinista
do bolchevismo.”
Um comentário:
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Muito obrigado.
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