sábado, 26 de fevereiro de 2011

Aléxandros: As areias de Amon, de Valerio Massimo Manfredi

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-3251-037-2

Tradução: Mario Fondelli

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 352

Sinopse: Este é o segundo volume da trilogia que conta a história do belo príncipe da Macedônia que seria conhecido como Alexandre, O Grande. O primeiro livro, O sonho de Olympias, fala do nascimento à adolescência. Em As areias de Amon, entra em cena o grande general Alexandre Magno, que desafia e enfrenta o exército persa e parte para a conquista do Extremo Oriente. Vence a primeira batalha em Granico, mas seu mais feroz adversário, o mercenário general Mêmnon, consegue fugir do massacre, e desafia o jovem rei macedônio para um duelo “até a última gota de sangue”. Um desafio que além de luta pelo poder envolve uma rivalidade no amor. Anteriormente, Alexandre havia capturado Barsine, a estonteante esposa persa de Mêmnon, por quem acabou se apaixonando perdidamente. Entretanto, num gesto de grandeza, concedeu-lhe a liberdade e permitiu-lhe voltar para seu povo. O duelo dramático acontece em Halicarnasso. Mêmnon morre em circunstâncias misteriosas, mas não sem antes ter se encontrado com Barsine pela última vez. Seus guerreiros companheiros erguem uma pira em sua homenagem em meio à estepe gelada e, a seguir, se suicidam. Alexandre segue seu destino. Um oráculo antigo dizia que aquele que soltasse o nó que atava a canga e o timão da carruagem do rei Górdio teria o domínio da Ásia. O príncipe da Macedônia corta o complicado nó com um golpe de espada, liberando inconscientemente misteriosas e incontroláveis forças. A aventurosa marcha de Alexandre prossegue, e o jovem conquistador encontra-se face a face com o grande rei dos persas, Dario, em Isso, onde o inimigo é derrotado e foge do campo de batalha. Alexandre logo vem a saber que Barsine está entre os prisioneiros. A bela viúva, ainda muito abalada pela morte do marido, mas, ao mesmo tempo, dominada pelos encantos do jovem rei, fica dividida entre a lembrança de uma paixão perdida e a força de um novo amor, que ainda reluta em aceitar. Ainda resta conquistar Tiro, cercada por altas muralhas, e Gaza, com suas torres cobertas de betume. Acontecem, então, as mais espetaculares batalhas de todos os tempos, por terra e por mar, com máquinas monstruosas, ataques debaixo da água e navios em fogo. Nada resiste aos exércitos de Alexandre. Finalmente, ele chega ao Egito misterioso, onde o aguarda o oráculo de Amon, em meio às areias escaldantes do deserto. E lá, na terra dos faraós, é recebido como um deles, o verdadeiro filho do sol.


 

“À esquerda, com seus santuários e monumentos, havia a acrópole; naquele mesmo instante a fumaça de algum sacrifício subia do altar para o céu claro, pedindo aos deuses a graça de derrotar o inimigo.

– Os nossos sacerdotes também ofereceram um sacrifício – observou Cratero. – Fico imaginando em quem os deuses acreditarão mais.

Alexandre virou-se para ele.

– No mais forte.”

 

 

“– Será possível que nem as mães chorem os filhos tombados em combate? – Alexandre perguntou a Eumênio, que se aproximara.

– Claro que sim – replicou o secretário. – Ninguém chora por um mercenário. Não tem mãe nem pai, e nem mesmo amigos. Só tem a sua lança com a qual ganha o pão mais duro e mais amargo.”

 

 

“(...) – E a coisa não te amedronta? – perguntou Eumênio a Alexandre.

– Nunca receio algo que ainda não aconteceu.”

 

 

“– Parece-me impossível – disse Alexandre. – Sempre foi-me fiel: já o vi arriscar muitas vezes a sua vida por mim.

Parmênio sacudiu a cabeça.

– O poder corrompe muitos homens – observou. Mas dentro de si pensava “todos”.”

 

 

“Esperaram o alvorecer para subir e ficar com o corpo para os ritos fúnebres.

– Colocá-lo-emos sobre a pira conforme os nossos costumes – disse o mais velho entre eles, o que nascera em Tegéia. – Abandonar o corpo como comida para cães e pássaros é para nós uma vergonha insuportável: isto faz-te entender quão diferentes nós gregos somos de vocês, persas. – E Barsine entendeu. Entendeu que naquela hora suprema devia ficar de lado e deixar que Mêmnon voltasse às origens e recebesse as honras funerárias segundo as tradições do seu povo.

Ergueram uma pira no meio de uma planície embranquecida pela geada e colocaram nela o corpo de seu comandante vestido com sua armadura e o elmo enfeitado com a rosa prateada de Rodes.

E atearam o fogo.

O vento que varria o planalto atiçou as chamas que se levantaram vorazes destruindo rapidamente os restos mortais do grande guerreiro. Os seus soldados, perfilados e empunhando as lanças, gritaram dez vezes o seu nome ao céu frio e cinzento que pesava sobre aquela imensidão deserta como uma mortalha, e quando o último eco daquele brado se calou, perceberam que haviam ficado completamente sós no mundo, que já não tinham mãe nem pai, nem irmão nem família, que não tinham casa nem um lugar para onde voltar.

– Jurei que iria com ele para qualquer lugar – disse então o mais velho entre eles –, até para o reino de Hades. – Ajoelhou-se, desembainhou a espada apontando-a contra o próprio coração e jogou-se em cima dela.

– Eu também – repetiu o companheiro sacando por sua vez a arma.

– E nós também – disseram os outros dois. Tombaram um depois do outro esvaindo-se em seu próprio sangue, enquanto o primeiro canto do galo rompia o silêncio espectral da alvorada como um toque de clarim.”

 

 

“O templo era um santuário indígena extremamente antigo que abrigava um simulacro da deusa esculpido em madeira e carcomido pelos carunchos, enfeitado com uma incrível quantidade de jóias e talismãs oferecidos pela multissecular fé dos crentes. Nas paredes viam-se penduradas relíquias e oferendas de toda espécie e muitas representações de membros humanos em terracota e madeira que testemunhavam curas ou súplicas para obtê-las.

Havia mãos e pés com os sinais da sarna pintados com cores vivas, olhos, narizes e orelhas, úteros certamente estéreis que invocavam a fertilidade e membros masculinos que, da mesma forma, não eram capazes de desempenhar as suas funções.

Cada um desses objetos era o sinal das numerosas aflições, dores e misérias que desde o começo dos tempos atormentavam o gênero humano, desde que o insensato Epimeteu abriu a caixa de Pandora e deixara sair todos os males que invadem o mundo.

– Só deixando no fundo a esperança – lembrou Eumênio, olhando em volta. – E o que mais são todos estes objetos senão a manifestação de uma esperança quase sempre frustrada e mesmo assim companheira preciosa, para não dizer indispensável, dos homens?”

 

 

“Alexandre mostrou a Calístenes a mensagem que uma embaixada do Grande Rei acabava de trazer:

Dario, Rei dos Reis, senhor dos quatro cantos da terra, luz dos arianos, a Alexandre, rei dos macedônios, salve!

Teu pai Filipe foi o primeiro a ofender os persas na época do rei Arxes, embora não tivesse sofrido prejuízo algum da parte deles. Quando me tornei rei, tu não enviaste embaixada alguma para confirmar a antiga amizade e aliança, e invadiste a Ásia causando-nos graves danos. Tive, portanto, de enfrentar-te em batalha para defender o meu país e reconquistar os meus antigos domínios. O resultado do embate foi aquele que os deuses escolheram, mas dirijo-me a ti de soberano a soberano para que libertes os meus filhos, a minha mãe e a minha esposa. Estou pronto a estipular um tratado de amizade e aliança: peço-te, portanto, que envies de volta um mensageiro junto com a minha embaixada para que possamos determinar os termos das negociações.

Calístenes fechou a carta.

– Na prática, diz que és culpado de tudo, reivindica o seu direito de defender-se, mas reconhece a derrota e está disposto a tornar-te teu amigo e aliado desde que lhe devolvas a família. O que tencionas fazer?

Nesse mesmo momento Eumênio voltou com a cópia da resposta que havia preparado para o rei e Alexandre pediu que a lesse. O secretário pigarreou e começou:

Alexandre, rei dos macedônios, a Dario, rei dos persas, salve!

Os teus antepassados invadiram a Macedônia e o resto da Grécia causando-nos graves prejuízos sem motivo algum. Eu fui nomeado comandante supremo dos gregos e invadi a Ásia para vingar a vossa agressão. Fostes vós, os persas, que assististes Perinto contra o meu pai e invadistes a Trácia, que é um nosso território.

Alexandre deteve-o.

– Acrescenta o que vou ditar-te agora:

O meu pai, o rei Filipe foi vítima de uma conspiração que tu apoiaste e umas cartas escritas por ti provam isto.

Além do mais conquistaste o trono com a fraude, corrompeste os gregos para que se levantassem contra mim e tudo fizeste para destruir a paz por mim tão penosamente conseguida. Venci os teus generais e, com a ajuda dos deuses, triunfei sobre ti em campo aberto e sou, portanto, responsável por aqueles entre os teus soldados que passaram para o meu lado, assim como pelas pessoas que estão perto de mim. És tu, então, que deves me tratar como senhor da Ásia. Pede o que consideras oportuno, vindo em pessoa ou mandando os teus enviados. Pede pela tua mulher, por tua mãe e teus filhos, e eu outorgarei desde que consigas me convencer. No futuro, se quiseres te endereçar a mim, dirige-te ao Rei da Ásia e não a um teu igual, e terás de fazer o teu pedido a quem está agora de posse de tudo aquilo que antes era teu. Se assim não fizeres, tomarei contra ti as providências cabíveis contra quem violou as leis e as normas das nações. Se, no entanto, reivindicares a tua condição de soberano, então desce em campo, luta para defendê-la e não fujas, pois eu irei ao teu encalço em qualquer lugar aonde fores.

– Não lhe deixas muitas escolhas – comentou Calístenes.

– Não, de fato – replicou Alexandre –, e se for homem e rei deverá reagir.”

 

 

“– É o destino de toda mulher bela e desejável: ela sabe que é uma presa e sabe que só oferecendo o amor ou sujeitando-se ao ímpeto do macho pode esperar salvação e amparo para si e para as suas criaturas.”

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Aléxandros: O sonho de Olympias, de Valerio Massimo Manfredi

Editora: Rocco

ISBN: 978-85-3251-015-0

Tradução: Mario Fondelli

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 312

Sinopse: Aléxandros é a história do jovem e belo príncipe da Macedônia que seria um dia conhecido como Alexandre, o Grande, pelas numerosas conquistas no mundo antigo. Nascido em meados do século IV a.C., filho do rei Filipe II e de Olympias, princesa de Epiro, ele cresce na corte cercado por jovens de sua idade e é educado de acordo com as tradições da dinastia, com ênfase na coragem, força de espírito, resistência à dor, ao frio, ao cansaço e à fome. O jovem Alexandre tem também o privilégio de aprender com uma das mentes mais brilhantes da Antiguidade: o filósofo Aristóteles, fundador do conceito de lógica, que recebe do rei Filipe quantias exorbitantes para revelar os segredos mais profundos de sua imensa sabedoria ao príncipe e também a alguns privilegiados amigos mais próximos. Esse grupo selecionado cresce num local longínquo e belo, na escola construída em Mésia especialmente para eles em meio às florestas e campos da Eordéia. Em seu retiro, os jovens estudantes fazem o juramento de nunca se separar e seguir seu príncipe na aventura mais extraordinária de todos os tempos: a conquista do mundo! A morte do pai marca o fim da adolescência de Alexandre, endurecendo seu coração: o rei é misteriosamente apunhalado no dia do casamento de sua irmã. Com a ausência de Filipe II, o Império se despedaça. Ninguém acredita que Alexandre será capaz de mantê-lo de pé. O rapaz, entretanto, reage com inusitado vigor e destrói os bárbaros do norte numa apoteótica batalha numa ilha do Danúbio, sob violenta tempestade de neve. Ele alcança as muralhas de Tebas em treze dias. A cidade cantada por Homero é arrasada em duas semanas. Sua fama corre o mundo e começam a chegar embaixadores dos mais variados países implorando por sua amizade. Ambicioso, Alexandre parte para a conquista do Extremo Oriente. Seus companheiros, que estiveram com ele em todas as horas, acreditam que o sol se levanta nos estreitos que dividem a Ásia e a Europa para iluminar seu olhar e inflamar seus sonhos. Alexandre, O Grande, tudo pode.



“– O poder e a glória de um rei só se justificam se ele estiver pronto a sacrificar a vida, quando chega a hora.”

 

 

“Temos atrás de nós planícies imensas percorridas por povos nômades, bárbaros e selvagens, e diante de nós as cidades dos gregos que se espelham no mar, que alcançaram os mais altos níveis de excelência nas artes, nas ciências, na poesia, na técnica, na política. Somos como aqueles que sentam diante de uma fogueira numa noite de inverno: o nosso rosto é iluminado e o peito é aquecido pelo fogo, mas atrás de nós só há frio e escuridão.”

 

 

“– Teu pai é um rei, meu filho, e os reis não são como os outros homens: precisam casar toda vez que o interesse do povo o requer, uma, duas, três vezes, e repudiar as mulheres pelo mesmo motivo. Devem lutar em guerras intermináveis, tramar, fazer e desfazer alianças, trair amigos e irmãos, se necessário. Achas que há lugar para uma mulher como eu no coração de um homem desses? Mas não precisas ter pena. Continuo sendo uma rainha e a mãe de Alexandre.”

 

 

“– Ler as façanhas dos heróis do passado é fundamental na educação de um jovem, assim como assistir à representação das tragédias – continuou o filósofo. – O leitor ou o espectador são levados a admirar as grandes e nobres proezas, a generosidade do comportamento de quem sofreu e deu a vida pela própria comunidade ou pelos próprios ideais ou expiou até o fim os erros seus ou dos antepassados.”

 

 

“– Lembra-te disto, Alexandre: eu nunca combato pelo mero prazer de lutar. Para mim, a guerra é apenas política feita por outros meios”.

 

 

“A ira de Filipe explodiu principalmente contra os tebanos, pelos quais se sentia traído. Vendeu os prisioneiros como escravos e recusou-se a devolver os mortos para que fossem sepultados. Quem o fez desistir foi Alexandre.

– Pai, tu mesmo disseste que é preciso ser clemente toda vez que isto for possível. – fez-lhe notar depois que sua fúria amainara. – Até Aquiles devolveu o cadáver de Heitor ao velho rei Príamo, que implorava em prantos. Estes homens lutaram como leões e deram a vida pela sua cidade. Merecem respeito. E além do mais, qual vantagem levaria ao atormentar os mortos?”

– Pai, tu mesmo disseste que é preciso ser clemente toda vez que isto for possível. – fez-lhe notar depois que sua fúria amainara. – Até Aquiles devolveu o cadáver de Heitor ao velho rei Príamo, que implorava em prantos. Estes homens lutaram como leões e deram a vida pela sua cidade. Merecem respeito. E além do mais, qual vantagem levaria ao atormentar os mortos?”

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Encontro Marcado – Fernando Sabino

Editora: Record
ISBN: 978-85-0191-200-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 304
Sinopse: Um jovem escritor, Eduardo Marciano, está em procura de si mesmo e da verdadeira razão de sua vida. Quase absorvido por uma brilhante boêmia intelectual, seu drama interior evolui subterraneamente, expondo os equívocos fundamentais que vinham frustrando sua existência e sufocando sua vocação. Ele vê seu matrimônio quebrar-se quando já não pode abdicar; por força de sua própria experiência, o suicídio deixa de ser uma solução. Nessa paisagem atormentada, ele deve renunciar a si mesmo, para comparecer ao encontro com uma antiga verdade.


“Floripes era a ama. Dava banho em Eduardo, vestia-lhe o uniforme do Grupo. Um dia Eduardo gritou-lhe de dentro da banheira:
– Floripes! Tem um osso no meu pipiu!
Desse dia em diante a preta decidiu que ele já podia tomar banho sozinho. Quase sete anos.
– Não quero. Quero você.”


“NA NATUREZA nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
– Um corpo mergulhado num líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao peso do volume do líquido deslocado.
– Não é fluido, não?
– Não: é líquido. Líquido e fluido é a mesma coisa.
– Olha o bobo. Líquido e fluido a mesma coisa?
Discutiam:
– Manteiga é sólido, líquido ou gasoso?
– Então me diga quem foi Laplace.
– Laplace foi o da banheira.
– Da banheira foi Arquimedes, seu.
– E o da maçã?
– Da maçã foi Newton.
– Então quem foi Laplace? Diga você.
– Foi o da gota de azeite.
Hemisférios de Magdeburgo, dois cavalos puxando não conseguiam separar. Conjuga o verbo pelocupar no condicional. Ilhas do Japão: Sakalina, Yeso, Nipon, Sikok, Kiusiu, Fujika e Mozaka. Fujika Mozaka era a japonesinha da turma B, jogava vôlei, não era ilha do Japão. Anos mais tarde seria assassinada pelo marido em Lafaiete: Mauro e Eduardo, já homens, veriam o retrato no jornal, se lembrariam. Agora ainda são meninos, estão voltando do Ginásio.
– Mauro, nós somos sábios pra burro. Se Platão ressuscitasse, sabia muito menos coisas que a gente, havia de ficar besta.
– Ele não sabia que a terra é redonda, uai.
Provas da redondeza da terra: um navio se afastando pelo mar, o mastro sumia por último. Tomemos por exemplo uma laranja. O Golfo de Biscaia onde fica? La maison du voisin est vaste et commode. Sujeito, predicado e complemento, H2O. Leônidas nas Termópilas, melhor! combateremos à sombra. Que é anacoluto? É a soma do quadrado dos catetos. Qui quae quod, o sertanejo é antes de tudo um forte. Mauro, heróico, trepado no muro do pátio:
– “Aí vem o general Valdez bloquear a cidade de Leide! Aí vem a guerra mais desumana, mais carniceira e mais daninha de que há memória nos séculos dos séculos!”.”


“Mas Hugo acabava confessando, deprimido:
– Também não vejo solução: nos lugares mais puros, numa casa de família, na igreja, tenho os pensamentos mais safados. Ainda ontem, na missa, me surpreendi olhando as pernas de um menino. Numa casa de mulheres me sinto puro, tocado pela Graça. E passo a catequizar as putas, falando de Deus, na salvação eterna.”


“Mauro tinha mania de inventar provérbios:
– Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde.”


“Casando ou deixando de casar, a gente se arrepende sempre.”


“Mas ele se sentia fora de seu mundo, esquecido de tudo, pacificado, feliz. O regresso, o apartamento alugado, a mobília comprada, a vida em comum afinal feita realidade. Tudo acontecia numa sequência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora? – ele se interrogava, sem saber o que fazer de si, pela primeira vez sozinho, quando ela enfim, alegando cansaço, recolhera-se mais cedo. Sentia vagamente que se tornara instrumento de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já não era dono de si mesmo. Você não soube escolher – lhe dissera Toledo: foi escolhido. Escolhido por quem? Para quê? Desígnios de Deus? Lembrava-se do diretor do ginásio, séculos atrás: você acredita em Deus? já nem sabia em que acreditava, não tinha tempo para pensar. Você vive muito depressa – o pai tinha razão, era isso, depressa demais. Essa ganância de viver. Gostaria de ser um homem sereno, comedido, um escritor como Machado de Assis. Era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente na lembrança deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também, certa maneira de ser, ele que era moço. Sozinho. Muito precoce, aprendeu a ler sozinho, fazia o que queria, bastava arranhar o rosto. Antonieta sua mulher, dia e noite, enfim conquistada: nada mais a fazer? Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficara para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidades de parte a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Oh, o Toledo era um tratado de psicologia. Tudo isso é natural, diria ele, natural, viver é assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas, pensaria outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está certo! Não se pode fazer das dúvidas de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo com uma mulher. O que significa isso? Significa que terei de amá-la, zelar por ela, sustentá-la, cumprir os chamados deveres de estado. Pois então o que é que estou fazendo aqui, sozinho? Não sou um homem? um marido, não sou? Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa, não há tempo a perder. Também tenho o meu preço mas ninguém conseguirá me comprar, todo o dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia e noite, nem que tenha de dormir de pé porque esta é a cama estreita que conduz ao reino dos céus. Não adianta pensar, a mão de Deus é pesada mas me protege a cabeça, tudo que faço nasce feito, sozinho, não adianta chorar, meu Deus, nem tenho motivos para isso, muito pelo contrário, é preciso reagir, a literatura não adianta, e os livros na estante e o cinzeiro cheio de cinza e a luz da cozinha acesa, poderia fazer um café, Antonieta dormindo e o botão do pijama, meu Deus, livrai-me do pijama, quero ser reto, quero ser puro, quero servir, pois vai trabalhar, moço, deixa de vaidade, tu és muito pretensioso, uma missão a cumprir, ora vejam, perdulário que tu és, a vida é breve, não incomoda os que trabalham, os trabalhos do homem são penosos, estou casado, estou cansado, estou abatido, em verdade estou destroçado, andei depressa demais, agora chega, basta, para, pronto! acabou. Assim. Fique quieto. Que nenhum som te denuncie. Calma. Não olhe. Não mexa. Não queira. Não estou dormindo, estou vigilante, hay que vigilar las tinieblas, capisca? ai, Minas Gerais, já ter saído de lá, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pelas ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecias morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas...
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”


“Seu erro fundamental é lembrar em vez de recordar. Há uma diferença entre lembrar e recordar; recordar é reviver, lembrar é apenas saber. O que é recordado fica, o que é lembrado é também esquecido.”


“Não sei quem, acho que foi Guardini – aquele livro que eu estava lendo, sabe? – que disse: “o homem que quer justiça tem de colocar-se em nível superior ao da simples justiça”. Pois bem: isso serve para tudo.”


“Começar o ano? Lembranças indistintas afloravam em confusão na sua cabeça, uma festa na casa de Vítor se misturando àquela em que estava agora, uma igreja iluminada, a primeira missa do ano, há quantos séculos? Oh, como ele então era inocente! Deus rejeita os inocentes: não servem para nada. É preciso se perder primeiro, para depois se salvar. Antes, resistir bastante, para que a queda seja completa. Escarrapachar-se no chão, quebrar a cabeça. Pôs-se a rir: este era o privilégio do homem. Um direito, o direito de escolher.”


“Frei Domingos a princípio não entendeu bem:
– Se ela lhe pediu que não voltasse lá e você mesmo acha que não deve voltar...
– Não é isso – insistia ele: – É que eu senti desejo por ela e não podia, não tinha esse direito.
– Por causa de o seu falecido marido ser seu amigo?
– Não sei. Por causa dele, talvez. Por causa dela, das crianças.
O monge o olhou, inquiridor:
– Olha, Eduardo, vou lhe perguntar uma coisa...
– Não me pergunte se acredito em Deus que é uma pergunta meio irritante.
– E no demônio, você acredita?
– O demônio eu sei que existe.
Frei Domingos riu, depois continuou:
– Mas não era isso que eu ia perguntar. E pergunto porque é preciso para que eu possa entender: se você... vivendo sozinho... bem, como é que tem se arranjado nesse setor.
– Não vai querer que me confesse, vai? – brincou ele.
– Seria bom – respondeu o padre, sério.
– De vez em quando levo alguma mulher lá em casa, mas nem sempre, em geral depois tenho nojo.
– Eu calculava.
– Um dia levei uma moça que mora perto de minha casa. Quando ela era mais nova vivia me provocando, eu resistia por causa de minha mulher. Mas agora me disse que foi enganada pelo namorado – a história de sempre. Com ela não tive nojo. Foi uma espécie de triunfo...
– Triunfo do demônio – acrescentou o padre.
– Mas isso não chega a constituir problema para mim. Para dizer a verdade, eu não me importaria de ser casto, se fosse possível.
O monge tornou a sorrir, e ficou silencioso.
– Tudo isso não tem nada a ver com o que senti por Maria Elisa. Foi diferente. Eu tive desejo mesmo, de todo o coração. Não sentiria nojo depois. Senti nojo antes, nojo de mim mesmo, tive uma espécie de remorso antecipado pelo que poderia vir a acontecer. Não é possível, Frei Domingos, é sórdido demais. Se eu continuar assim, eu estou perdido.
O monge tocou-lhe o ombro, se despedindo:
– Pelo contrário – falou com firmeza: – Se você continuar assim, você está salvo.”

domingo, 23 de janeiro de 2011

Inés da minha alma – Isabel Allende

Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 978-85-286-1284-4
Tradução: Ernani Ssó
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Inés da Minha Alma, de Isabel Allende, é um romance épico no qual o alento do amor concede uma trégua à rudeza, à violência e à crueldade de um momento histórico inesquecível. Inés Suárez (1507-1580) é uma jovem e humilde costureira que embarca da Europa ao Novo Mundo em busca de seu marido, que desapareceu junto de seus sonhos de glória do outro lado do Atlântico, e acaba se tornando um dos principais nomes da conquista do Chile. Através da pena da mais famosa escritora latino-americana da atualidade, se confirma que a realidade pode ser tão surpreendente quanto a melhor ficção – e igualmente cativante.



“No fim, apenas se tem o que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens”.


“Juan tinha conseguido me contagiar com seus sonhos, apesar de que nunca tive a sorte de ver de perto nenhum aventureiro que voltasse rico das Índias; pelo contrário, voltavam miseráveis, doentes e loucos.”


“O lema da família era: “A morte, menos temida, dá mais vida”.”


“Tinham vinte anos quando partiram para combater em Flandres e depois nas campanhas da Itália, onde aprenderam que na guerra a crueldade é uma virtude e, como a morte é uma companheira constante, mais vale a pena ter a alma preparada.”


“– O Diabo bota na gente muitos apetites, e dos mais variados, mas Deus nos dá clareza moral para controlá-los. Isso nos diferencia dos animais.
– Você foi soldado por muitos anos, Pedro, e ainda acha que nos diferenciamos dos animais... – Zombou Aguirre.”


“Existe coisa mais pretensiosa que uma autobiografia?”


“Glória, sempre glória, esse foi o único norte de seu destino. Ninguém amou Pedro mais do que eu, ninguém o conheceu mais do que eu, por isso posso falar de suas virtudes, tal como mais adiante deverei me referir a seus defeitos, que não eram leves. É verdade que me traiu e foi covarde comigo, mas até os homens mais íntegros e valentes costumam falhar com as mulheres. E, posso afirmar, Pedro de Valdivia foi um dos homens mais íntegros e valentes dos que vieram para o Novo Mundo.”


“Com sua habitual tenacidade e otimismo, que nunca esmoreciam, o governador Pedro de Valdivia obrigava as pessoas, esgotadas e doentes, a lavrar a terra, fazer tijolos, construir o muro fortificado e o fosso em torno da cidade, treinar para a guerra e mil outras ocupações, porque afirmava, o ócio desmoraliza mais que a fome. Era certo. Ninguém teria sobrevivido ao desalento se tivesse tido tempo de pensar em sua sorte, mas faltava tempo, já que se trabalhava desde o amanhecer até bem tarde da noite. E se sobravam algumas horas, rezávamos, que isso nunca é demais.”


“Na tradição Mapuche, o noivo rouba a moça que deseja, com a ajuda de seus irmãos e amigos, segundo Felipe me contou. Às vezes o grupo de rapazes entra com violência na casa da menina, amarra os pais e a leva esperneando, mas depois se dá um jeito na ofensa, desde que a noiva esteja de acordo, quando o pretendente paga a soma correspondente em animais e outros bens a seus futuros sogros. Assim formalizam a união. O homem pode ter várias esposas, mas deve dar as mesmas coisas para cada uma e tratá-las do mesmo modo. Com frequência se casa com duas ou mais irmãs, para não separá-las. O clérigo González de Marmolejo, que costumava assistir minhas lições de mapudungu, explicou a Felipe que esta lascívia desenfreada era prova evidente da presença do demônio entre os mapuche, que sem a água sagrada do batismo terminariam se assando nas brasas do inferno. O rapaz lhe perguntou se o demônio também estava entre os espanhois, que tomavam uma dezena de índias sem retribuir os pais com lhanas e guanacos, como se deve, e além disso batiam nelas, não davam tratamento igual a todas e as trocavam por outras quando lhes dava na telha. Talvez espanhois e mapuche acabassem se encontrando no inferno, onde continuariam se matando uns aos outros por toda a eternidade, sugeriu. Eu tive de sair da sala depressa, aos tropeções, para não rir nas veneráveis barba do clérigo.”


“Não tratei de escrever até que Rodrigo de Quiroga morreu e a tristeza acabou com minha vontade de fazer outras coisas que antes me pareciam urgentes. Sem ele, minhas noites transcorrem quase inteiras em branco, e a insônia é muito conveniente para a escrita. Pergunto-me onde está meu marido, se por acaso me espera em alguma parte ou se está aqui mesmo, nesta casa, espiando das sombras, cuidando de mim com discrição, como sempre fez em vida. Como será morrer? Que há do outro lado? É só noite e silêncio? Ocorre-me que morrer é partir como uma flecha na escuridão para o firmamento, um espaço infinito, onde deverei buscar meus seres amados um por um.”


“Ao se ver perdido, Valdivia quis negociar sua liberdade com o inimigo, prometendo que abandonaria as cidades fundadas no sul, que os espanhóis se iriam da Araucanía para sempre e que além disso lhes daria ovelhas e outros bens. O yanacona teve de traduzir, mas antes que conseguisse terminar os índios caíram sobre ele e o mataram. Haviam aprendido a desprezar as promessas dos huincas. Ao padre, que tinha feito uma cruz com dois paus e pretendia dar a extrema-unção ao yanacona, como antes a tinha dado ao governador, destroçaram o crânio com uma clava. E então começou o martírio de Pedro de Valdivia, o inimigo mais odiado, a encarnação de todos os abusos e crueldades infligidas ao povo mapuche. Não haviam esquecido os milhares de mortos, os homens queimados, as mulheres violadas, as crianças arrebentadas, as centenas de mãos que o rio levou, os pés e narizes decepados, os chicotes, as correntes e os cachorros.
Obrigaram o prisioneiro a presenciar o suplício dos yanaconas sobreviventes de Tucapel e a profanação dos cadáveres espanhóis. Arrastaram-no pelos cabelos, nu, até uma aldeia onde Lautaro aguardava. No trajeto, as pedras e os galhos afiados da mata lhe rasgaram a pele, e quando o depositaram aos pés do ñidoltoqui era um farrapo coberto de barro e sangue. Lautaro ordenou que lhe dessem de beber, para que despertasse do desmaio, e o ataram a um poste. Como zombaria simbólica, quebrou em duas a espada de toledana, inseparável companheira de Pedro de Valdivia, e a enfiou na terra, aos pés do prisioneiro. Quando este se repôs o suficiente para abrir os olhos e se dar conta de onde estava, se viu frente a frente com seu antigo criado.
– Felipe! – exclamou, esperançoso, porque pelo menos era uma cara conhecida e poderia falar em castelhano.
Lautaro cravou os olhos nele, com infinito desprezo.
– Não me reconhece, Felipe? Sou o Papai – insistiu o prisioneiro.
A uma ordem do ñidoltoqui os mapuche, excitados, desfilaram diante de Pedro de Valdivia com afiadas conchas de amêijoa, tirando-lhe pedaços do corpo. Fizeram um fogo e com as mesmas conchas lhe arrancaram os músculos dos braços e das pernas, assaram-nos e os comeram diante dele. Esta orgia macabra durou três noites e dois dias, sem que a mãe Morte socorresse o infeliz cativo. Por fim Lautaro, ao ver, no amanhecer do terceiro dia, que Valdivia morria, lhe derramou ouro derretido na boca, para que se fartasse do metal de que tanto gostava e que tanto sofrimento causava aos índios nas minas.
Ai que dor, que dor! Estas lembranças são uma lança cravada aqui, no meio do peito. Que horas são, filha? Por que a luz se foi? As horas retrocederam, deve ser madrugada de novo. Acho que será manhã para sempre...
Os restos de Pedro de Valdivia nunca foram encontrados. Dizem que os mapuche devoraram seu corpo num rito improvisado, que fizeram flautas com seus ossos e que seu crânio serve até hoje como recipiente para o mudday dos toquis. Filha, você me pergunta por que me agarro à terrível versão da criada de Cecília, em vez da outra, mais misericordiosa, de que Valdivia foi executado com uma paulada na cabeça, como escreveu o poeta e como era o costume entre os índios do sul. Eu lhe direi. Durante esses três dias aziagos de dezembro de 1553, estive doente. Foi como se minha alma soubesse o que minha mente ainda ignorava. Imagens horrendas passavam diante de meus olhos, como num pesadelo de que não conseguia acordar. Eu parecia ver dentro de minha casa os cestos cheios de mão e narizes amputados, em meu pátio os índios carregados de correntes e aqueles que foram empalados; o ar cheirava a carne humana chamuscada e a brisa da noite me trazia os estalos de chicotes. Esta conquista custou imensos padecimentos... Ninguém pode perdoar tanta crueldade, e menos os mapuche, que jamais esquecem as ofensas, como também não esquecem os favores recebidos. Atormentavam-me as lembranças, estava como que possuída por um demônio. Você sabe, Isabel, que fora alguns sobressaltos do coração, sempre fui saudável, com a graça de Deus, de modo que não tenho outra explicação para a doença que me acometeu naqueles dias. Enquanto Pedro suportava seu horrendo fim, à distância minha alma o acompanhava e chorava por ele e por todas as vítimas desses anos. Caí prostrada, com vômitos tão intensos e febres tão ardentes, que temeram por minha vida. Em meu delírio ouvia com clareza os gritos de Pedro de Valdivia e sua voz despedindo-se de mim pela última vez: “Adeus, Inés da minha alma...”.”