Editora: Record
ISBN: 978-85-0191-200-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 304
Sinopse: Um jovem
escritor, Eduardo Marciano, está em procura de si mesmo e da verdadeira razão
de sua vida. Quase absorvido por uma brilhante boêmia intelectual, seu drama
interior evolui subterraneamente, expondo os equívocos fundamentais que vinham
frustrando sua existência e sufocando sua vocação. Ele vê seu matrimônio
quebrar-se quando já não pode abdicar; por força de sua própria experiência, o
suicídio deixa de ser uma solução. Nessa paisagem atormentada, ele deve renunciar
a si mesmo, para comparecer ao encontro com uma antiga verdade.
“Floripes era a ama. Dava banho em Eduardo,
vestia-lhe o uniforme do Grupo. Um dia Eduardo gritou-lhe de dentro da
banheira:
– Floripes! Tem um osso no meu pipiu!
Desse dia em diante a preta decidiu que ele
já podia tomar banho sozinho. Quase sete anos.
– Não quero. Quero você.”
“NA NATUREZA nada se perde, nada se cria,
tudo se transforma.
– Um corpo mergulhado num líquido recebe um
impulso de baixo para cima igual ao peso do volume do líquido deslocado.
– Não é fluido, não?
– Não: é líquido. Líquido e fluido é a mesma
coisa.
– Olha o bobo. Líquido e fluido a mesma
coisa?
Discutiam:
– Manteiga é sólido, líquido ou gasoso?
– Então me diga quem foi Laplace.
– Laplace foi o da banheira.
– Da banheira foi Arquimedes, seu.
– E o da maçã?
– Da maçã foi Newton.
– Então quem foi Laplace? Diga você.
– Foi o da gota de azeite.
Hemisférios de Magdeburgo, dois cavalos
puxando não conseguiam separar. Conjuga o verbo pelocupar no condicional. Ilhas
do Japão: Sakalina, Yeso, Nipon, Sikok, Kiusiu, Fujika e Mozaka. Fujika Mozaka
era a japonesinha da turma B, jogava vôlei, não era ilha do Japão. Anos mais
tarde seria assassinada pelo marido em Lafaiete: Mauro e Eduardo, já homens,
veriam o retrato no jornal, se lembrariam. Agora ainda são meninos, estão
voltando do Ginásio.
– Mauro, nós somos sábios pra burro. Se
Platão ressuscitasse, sabia muito menos coisas que a gente, havia de ficar
besta.
– Ele não sabia que a terra é redonda, uai.
Provas da redondeza da terra: um navio se
afastando pelo mar, o mastro sumia por último. Tomemos por exemplo uma laranja.
O Golfo de Biscaia onde fica? La maison du voisin est vaste et commode.
Sujeito, predicado e complemento, H2O. Leônidas nas Termópilas, melhor!
combateremos à sombra. Que é anacoluto? É a soma do quadrado dos catetos. Qui
quae quod, o sertanejo é antes de tudo um forte. Mauro, heróico, trepado no
muro do pátio:
– “Aí vem o general Valdez bloquear a cidade
de Leide! Aí vem a guerra mais desumana, mais carniceira e mais daninha de que
há memória nos séculos dos séculos!”.”
“Mas Hugo acabava confessando, deprimido:
– Também não vejo solução: nos lugares mais
puros, numa casa de família, na igreja, tenho os pensamentos mais safados.
Ainda ontem, na missa, me surpreendi olhando as pernas de um menino. Numa casa
de mulheres me sinto puro, tocado pela Graça. E passo a catequizar as putas,
falando de Deus, na salvação eterna.”
“Mauro tinha mania de inventar provérbios:
– Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe
arde.”
“Casando ou deixando de casar, a gente se
arrepende sempre.”
“Mas ele se sentia fora de seu mundo,
esquecido de tudo, pacificado, feliz. O regresso, o apartamento alugado, a
mobília comprada, a vida em comum afinal feita realidade. Tudo acontecia numa
sequência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma
transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora? –
ele se interrogava, sem saber o que fazer de si, pela primeira vez sozinho,
quando ela enfim, alegando cansaço, recolhera-se mais cedo. Sentia vagamente
que se tornara instrumento de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já
não era dono de si mesmo. Você não soube escolher – lhe dissera Toledo: foi
escolhido. Escolhido por quem? Para quê? Desígnios de Deus? Lembrava-se do
diretor do ginásio, séculos atrás: você acredita em Deus? já nem sabia em que
acreditava, não tinha tempo para pensar. Você vive muito depressa – o pai tinha
razão, era isso, depressa demais. Essa ganância de viver. Gostaria de ser um
homem sereno, comedido, um escritor como Machado de Assis. Era preciso ir
devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer
na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre
estaria presente na lembrança deles, o tempo o empurrava com força demais e
isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram
novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha
nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar
mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também, certa maneira de ser, ele
que era moço. Sozinho. Muito precoce, aprendeu a ler sozinho, fazia o que
queria, bastava arranhar o rosto. Antonieta sua mulher, dia e noite, enfim
conquistada: nada mais a fazer? Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que
ficara para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um
telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada
de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidades de parte
a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com
prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não
ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades
eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Oh, o Toledo era
um tratado de psicologia. Tudo isso é natural, diria ele, natural, viver é
assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de
já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas,
pensaria outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões
alheias que um dia já foram suas. E está certo! Não se pode fazer das dúvidas
de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo
destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo com uma mulher. O que significa
isso? Significa que terei de amá-la, zelar por ela, sustentá-la, cumprir os chamados
deveres de estado. Pois então o que é que estou fazendo aqui, sozinho? Não sou
um homem? um marido, não sou? Há uma fresta em minha alma por onde a substância
do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa,
não há tempo a perder. Também tenho o meu preço mas ninguém conseguirá me
comprar, todo o dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os
dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia
e noite, nem que tenha de dormir de pé porque esta é a cama estreita que conduz
ao reino dos céus. Não adianta pensar, a mão de Deus é pesada mas me protege a
cabeça, tudo que faço nasce feito, sozinho, não adianta chorar, meu Deus, nem
tenho motivos para isso, muito pelo contrário, é preciso reagir, a literatura
não adianta, e os livros na estante e o cinzeiro cheio de cinza e a luz da
cozinha acesa, poderia fazer um café, Antonieta dormindo e o botão do pijama,
meu Deus, livrai-me do pijama, quero ser reto, quero ser puro, quero servir, pois
vai trabalhar, moço, deixa de vaidade, tu és muito pretensioso, uma missão a
cumprir, ora vejam, perdulário que tu és, a vida é breve, não incomoda os que
trabalham, os trabalhos do homem são penosos, estou casado, estou cansado,
estou abatido, em verdade estou destroçado, andei depressa demais, agora chega,
basta, para, pronto! acabou. Assim. Fique quieto. Que nenhum som te denuncie.
Calma. Não olhe. Não mexa. Não queira. Não estou dormindo, estou vigilante, hay
que vigilar las tinieblas, capisca? ai, Minas Gerais, já ter saído de lá, tuas
sombras, teus noturnos, teus bêbados pelas ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa,
minha pena, minha pluma, merecias morrer afogado, o barco te leva para longe, a
praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas...
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de
que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a
certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um
caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma
ponte, da procura um encontro.”
“Seu erro fundamental é lembrar em vez de
recordar. Há uma diferença entre lembrar e recordar; recordar é reviver,
lembrar é apenas saber. O que é recordado fica, o que é lembrado é também
esquecido.”
“Não sei quem, acho que foi Guardini – aquele
livro que eu estava lendo, sabe? – que disse: “o homem que quer justiça tem de
colocar-se em nível superior ao da simples justiça”. Pois bem: isso serve para
tudo.”
“Começar o ano? Lembranças indistintas
afloravam em confusão na sua cabeça, uma festa na casa de Vítor se misturando
àquela em que estava agora, uma igreja iluminada, a primeira missa do ano, há
quantos séculos? Oh, como ele então era inocente! Deus rejeita os inocentes:
não servem para nada. É preciso se perder primeiro, para depois se salvar.
Antes, resistir bastante, para que a queda seja completa. Escarrapachar-se no
chão, quebrar a cabeça. Pôs-se a rir: este era o privilégio do homem. Um
direito, o direito de escolher.”
“Frei Domingos a princípio não entendeu bem:
– Se ela lhe pediu que não voltasse lá e você
mesmo acha que não deve voltar...
– Não é isso – insistia ele: – É que eu senti
desejo por ela e não podia, não tinha esse direito.
– Por causa de o seu falecido marido ser seu
amigo?
– Não sei. Por causa dele, talvez. Por causa
dela, das crianças.
O monge o olhou, inquiridor:
– Olha, Eduardo, vou lhe perguntar uma
coisa...
– Não me pergunte se acredito em Deus que é
uma pergunta meio irritante.
– E no demônio, você acredita?
– O demônio eu sei que existe.
Frei Domingos riu, depois continuou:
– Mas não era isso que eu ia perguntar. E
pergunto porque é preciso para que eu possa entender: se você... vivendo
sozinho... bem, como é que tem se arranjado nesse setor.
– Não vai querer que me confesse, vai? –
brincou ele.
– Seria bom – respondeu o padre, sério.
– De vez em quando levo alguma mulher lá em
casa, mas nem sempre, em geral depois tenho nojo.
– Eu calculava.
– Um dia levei uma moça que mora perto de
minha casa. Quando ela era mais nova vivia me provocando, eu resistia por causa
de minha mulher. Mas agora me disse que foi enganada pelo namorado – a história
de sempre. Com ela não tive nojo. Foi uma espécie de triunfo...
– Triunfo do demônio – acrescentou o padre.
– Mas isso não chega a constituir problema
para mim. Para dizer a verdade, eu não me importaria de ser casto, se fosse
possível.
O monge tornou a sorrir, e ficou silencioso.
– Tudo isso não tem nada a ver com o que
senti por Maria Elisa. Foi diferente. Eu tive desejo mesmo, de todo o coração.
Não sentiria nojo depois. Senti nojo antes, nojo de mim mesmo, tive uma espécie
de remorso antecipado pelo que poderia vir a acontecer. Não é possível, Frei
Domingos, é sórdido demais. Se eu continuar assim, eu estou perdido.
O monge tocou-lhe o ombro, se despedindo:
– Pelo contrário – falou com firmeza: – Se
você continuar assim, você está salvo.”
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