domingo, 23 de janeiro de 2011

Inés da minha alma – Isabel Allende

Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 978-85-286-1284-4
Tradução: Ernani Ssó
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Inés da Minha Alma, de Isabel Allende, é um romance épico no qual o alento do amor concede uma trégua à rudeza, à violência e à crueldade de um momento histórico inesquecível. Inés Suárez (1507-1580) é uma jovem e humilde costureira que embarca da Europa ao Novo Mundo em busca de seu marido, que desapareceu junto de seus sonhos de glória do outro lado do Atlântico, e acaba se tornando um dos principais nomes da conquista do Chile. Através da pena da mais famosa escritora latino-americana da atualidade, se confirma que a realidade pode ser tão surpreendente quanto a melhor ficção – e igualmente cativante.



“No fim, apenas se tem o que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens”.


“Juan tinha conseguido me contagiar com seus sonhos, apesar de que nunca tive a sorte de ver de perto nenhum aventureiro que voltasse rico das Índias; pelo contrário, voltavam miseráveis, doentes e loucos.”


“O lema da família era: “A morte, menos temida, dá mais vida”.”


“Tinham vinte anos quando partiram para combater em Flandres e depois nas campanhas da Itália, onde aprenderam que na guerra a crueldade é uma virtude e, como a morte é uma companheira constante, mais vale a pena ter a alma preparada.”


“– O Diabo bota na gente muitos apetites, e dos mais variados, mas Deus nos dá clareza moral para controlá-los. Isso nos diferencia dos animais.
– Você foi soldado por muitos anos, Pedro, e ainda acha que nos diferenciamos dos animais... – Zombou Aguirre.”


“Existe coisa mais pretensiosa que uma autobiografia?”


“Glória, sempre glória, esse foi o único norte de seu destino. Ninguém amou Pedro mais do que eu, ninguém o conheceu mais do que eu, por isso posso falar de suas virtudes, tal como mais adiante deverei me referir a seus defeitos, que não eram leves. É verdade que me traiu e foi covarde comigo, mas até os homens mais íntegros e valentes costumam falhar com as mulheres. E, posso afirmar, Pedro de Valdivia foi um dos homens mais íntegros e valentes dos que vieram para o Novo Mundo.”


“Com sua habitual tenacidade e otimismo, que nunca esmoreciam, o governador Pedro de Valdivia obrigava as pessoas, esgotadas e doentes, a lavrar a terra, fazer tijolos, construir o muro fortificado e o fosso em torno da cidade, treinar para a guerra e mil outras ocupações, porque afirmava, o ócio desmoraliza mais que a fome. Era certo. Ninguém teria sobrevivido ao desalento se tivesse tido tempo de pensar em sua sorte, mas faltava tempo, já que se trabalhava desde o amanhecer até bem tarde da noite. E se sobravam algumas horas, rezávamos, que isso nunca é demais.”


“Na tradição Mapuche, o noivo rouba a moça que deseja, com a ajuda de seus irmãos e amigos, segundo Felipe me contou. Às vezes o grupo de rapazes entra com violência na casa da menina, amarra os pais e a leva esperneando, mas depois se dá um jeito na ofensa, desde que a noiva esteja de acordo, quando o pretendente paga a soma correspondente em animais e outros bens a seus futuros sogros. Assim formalizam a união. O homem pode ter várias esposas, mas deve dar as mesmas coisas para cada uma e tratá-las do mesmo modo. Com frequência se casa com duas ou mais irmãs, para não separá-las. O clérigo González de Marmolejo, que costumava assistir minhas lições de mapudungu, explicou a Felipe que esta lascívia desenfreada era prova evidente da presença do demônio entre os mapuche, que sem a água sagrada do batismo terminariam se assando nas brasas do inferno. O rapaz lhe perguntou se o demônio também estava entre os espanhois, que tomavam uma dezena de índias sem retribuir os pais com lhanas e guanacos, como se deve, e além disso batiam nelas, não davam tratamento igual a todas e as trocavam por outras quando lhes dava na telha. Talvez espanhois e mapuche acabassem se encontrando no inferno, onde continuariam se matando uns aos outros por toda a eternidade, sugeriu. Eu tive de sair da sala depressa, aos tropeções, para não rir nas veneráveis barba do clérigo.”


“Não tratei de escrever até que Rodrigo de Quiroga morreu e a tristeza acabou com minha vontade de fazer outras coisas que antes me pareciam urgentes. Sem ele, minhas noites transcorrem quase inteiras em branco, e a insônia é muito conveniente para a escrita. Pergunto-me onde está meu marido, se por acaso me espera em alguma parte ou se está aqui mesmo, nesta casa, espiando das sombras, cuidando de mim com discrição, como sempre fez em vida. Como será morrer? Que há do outro lado? É só noite e silêncio? Ocorre-me que morrer é partir como uma flecha na escuridão para o firmamento, um espaço infinito, onde deverei buscar meus seres amados um por um.”


“Ao se ver perdido, Valdivia quis negociar sua liberdade com o inimigo, prometendo que abandonaria as cidades fundadas no sul, que os espanhóis se iriam da Araucanía para sempre e que além disso lhes daria ovelhas e outros bens. O yanacona teve de traduzir, mas antes que conseguisse terminar os índios caíram sobre ele e o mataram. Haviam aprendido a desprezar as promessas dos huincas. Ao padre, que tinha feito uma cruz com dois paus e pretendia dar a extrema-unção ao yanacona, como antes a tinha dado ao governador, destroçaram o crânio com uma clava. E então começou o martírio de Pedro de Valdivia, o inimigo mais odiado, a encarnação de todos os abusos e crueldades infligidas ao povo mapuche. Não haviam esquecido os milhares de mortos, os homens queimados, as mulheres violadas, as crianças arrebentadas, as centenas de mãos que o rio levou, os pés e narizes decepados, os chicotes, as correntes e os cachorros.
Obrigaram o prisioneiro a presenciar o suplício dos yanaconas sobreviventes de Tucapel e a profanação dos cadáveres espanhóis. Arrastaram-no pelos cabelos, nu, até uma aldeia onde Lautaro aguardava. No trajeto, as pedras e os galhos afiados da mata lhe rasgaram a pele, e quando o depositaram aos pés do ñidoltoqui era um farrapo coberto de barro e sangue. Lautaro ordenou que lhe dessem de beber, para que despertasse do desmaio, e o ataram a um poste. Como zombaria simbólica, quebrou em duas a espada de toledana, inseparável companheira de Pedro de Valdivia, e a enfiou na terra, aos pés do prisioneiro. Quando este se repôs o suficiente para abrir os olhos e se dar conta de onde estava, se viu frente a frente com seu antigo criado.
– Felipe! – exclamou, esperançoso, porque pelo menos era uma cara conhecida e poderia falar em castelhano.
Lautaro cravou os olhos nele, com infinito desprezo.
– Não me reconhece, Felipe? Sou o Papai – insistiu o prisioneiro.
A uma ordem do ñidoltoqui os mapuche, excitados, desfilaram diante de Pedro de Valdivia com afiadas conchas de amêijoa, tirando-lhe pedaços do corpo. Fizeram um fogo e com as mesmas conchas lhe arrancaram os músculos dos braços e das pernas, assaram-nos e os comeram diante dele. Esta orgia macabra durou três noites e dois dias, sem que a mãe Morte socorresse o infeliz cativo. Por fim Lautaro, ao ver, no amanhecer do terceiro dia, que Valdivia morria, lhe derramou ouro derretido na boca, para que se fartasse do metal de que tanto gostava e que tanto sofrimento causava aos índios nas minas.
Ai que dor, que dor! Estas lembranças são uma lança cravada aqui, no meio do peito. Que horas são, filha? Por que a luz se foi? As horas retrocederam, deve ser madrugada de novo. Acho que será manhã para sempre...
Os restos de Pedro de Valdivia nunca foram encontrados. Dizem que os mapuche devoraram seu corpo num rito improvisado, que fizeram flautas com seus ossos e que seu crânio serve até hoje como recipiente para o mudday dos toquis. Filha, você me pergunta por que me agarro à terrível versão da criada de Cecília, em vez da outra, mais misericordiosa, de que Valdivia foi executado com uma paulada na cabeça, como escreveu o poeta e como era o costume entre os índios do sul. Eu lhe direi. Durante esses três dias aziagos de dezembro de 1553, estive doente. Foi como se minha alma soubesse o que minha mente ainda ignorava. Imagens horrendas passavam diante de meus olhos, como num pesadelo de que não conseguia acordar. Eu parecia ver dentro de minha casa os cestos cheios de mão e narizes amputados, em meu pátio os índios carregados de correntes e aqueles que foram empalados; o ar cheirava a carne humana chamuscada e a brisa da noite me trazia os estalos de chicotes. Esta conquista custou imensos padecimentos... Ninguém pode perdoar tanta crueldade, e menos os mapuche, que jamais esquecem as ofensas, como também não esquecem os favores recebidos. Atormentavam-me as lembranças, estava como que possuída por um demônio. Você sabe, Isabel, que fora alguns sobressaltos do coração, sempre fui saudável, com a graça de Deus, de modo que não tenho outra explicação para a doença que me acometeu naqueles dias. Enquanto Pedro suportava seu horrendo fim, à distância minha alma o acompanhava e chorava por ele e por todas as vítimas desses anos. Caí prostrada, com vômitos tão intensos e febres tão ardentes, que temeram por minha vida. Em meu delírio ouvia com clareza os gritos de Pedro de Valdivia e sua voz despedindo-se de mim pela última vez: “Adeus, Inés da minha alma...”.”

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