Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 978-85-286-1284-4
Tradução: Ernani
Ssó
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Inés
da Minha Alma, de Isabel Allende, é um romance épico no qual o alento do
amor concede uma trégua à rudeza, à violência e à crueldade de um momento
histórico inesquecível. Inés Suárez (1507-1580) é uma jovem e humilde
costureira que embarca da Europa ao Novo Mundo em busca de seu marido, que
desapareceu junto de seus sonhos de glória do outro lado do Atlântico, e acaba
se tornando um dos principais nomes da conquista do Chile. Através da pena da
mais famosa escritora latino-americana da atualidade, se confirma que a
realidade pode ser tão surpreendente quanto a melhor ficção – e igualmente
cativante.
“No fim, apenas se tem o que se deu, como
dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens”.
“Juan tinha conseguido me contagiar com seus
sonhos, apesar de que nunca tive a sorte de ver de perto nenhum aventureiro que
voltasse rico das Índias; pelo contrário, voltavam miseráveis, doentes e
loucos.”
“O lema da família era: “A morte, menos
temida, dá mais vida”.”
“Tinham vinte anos quando partiram para
combater em Flandres e depois nas campanhas da Itália, onde aprenderam que na
guerra a crueldade é uma virtude e, como a morte é uma companheira constante,
mais vale a pena ter a alma preparada.”
“– O Diabo bota na gente muitos apetites, e
dos mais variados, mas Deus nos dá clareza moral para controlá-los. Isso nos
diferencia dos animais.
– Você foi soldado por muitos anos, Pedro, e
ainda acha que nos diferenciamos dos animais... – Zombou Aguirre.”
“Existe coisa mais pretensiosa que uma
autobiografia?”
“Glória, sempre glória, esse foi o único
norte de seu destino. Ninguém amou Pedro mais do que eu, ninguém o conheceu
mais do que eu, por isso posso falar de suas virtudes, tal como mais adiante
deverei me referir a seus defeitos, que não eram leves. É verdade que me traiu
e foi covarde comigo, mas até os homens mais íntegros e valentes costumam
falhar com as mulheres. E, posso afirmar, Pedro de Valdivia foi um dos homens
mais íntegros e valentes dos que vieram para o Novo Mundo.”
“Com sua habitual tenacidade e otimismo, que
nunca esmoreciam, o governador Pedro de Valdivia obrigava as pessoas, esgotadas
e doentes, a lavrar a terra, fazer tijolos, construir o muro fortificado e o
fosso em torno da cidade, treinar para a guerra e mil outras ocupações, porque
afirmava, o ócio desmoraliza mais que a fome. Era certo. Ninguém teria
sobrevivido ao desalento se tivesse tido tempo de pensar em sua sorte, mas
faltava tempo, já que se trabalhava desde o amanhecer até bem tarde da noite. E
se sobravam algumas horas, rezávamos, que isso nunca é demais.”
“Na tradição Mapuche, o noivo rouba a moça
que deseja, com a ajuda de seus irmãos e amigos, segundo Felipe me contou. Às
vezes o grupo de rapazes entra com violência na casa da menina, amarra os pais
e a leva esperneando, mas depois se dá um jeito na ofensa, desde que a noiva
esteja de acordo, quando o pretendente paga a soma correspondente em animais e
outros bens a seus futuros sogros. Assim formalizam a união. O homem pode ter
várias esposas, mas deve dar as mesmas coisas para cada uma e tratá-las do
mesmo modo. Com frequência se casa com duas ou mais irmãs, para não separá-las.
O clérigo González de Marmolejo, que costumava assistir minhas lições de mapudungu,
explicou a Felipe que esta lascívia desenfreada era prova evidente da presença
do demônio entre os mapuche, que sem a água sagrada do batismo terminariam se
assando nas brasas do inferno. O rapaz lhe perguntou se o demônio também estava
entre os espanhois, que tomavam uma dezena de índias sem retribuir os pais com
lhanas e guanacos, como se deve, e além disso batiam nelas, não davam
tratamento igual a todas e as trocavam por outras quando lhes dava na telha.
Talvez espanhois e mapuche acabassem se encontrando no inferno, onde
continuariam se matando uns aos outros por toda a eternidade, sugeriu. Eu tive
de sair da sala depressa, aos tropeções, para não rir nas veneráveis barba do
clérigo.”
“Não tratei de escrever até que Rodrigo de
Quiroga morreu e a tristeza acabou com minha vontade de fazer outras coisas que
antes me pareciam urgentes. Sem ele, minhas noites transcorrem quase inteiras
em branco, e a insônia é muito conveniente para a escrita. Pergunto-me onde está
meu marido, se por acaso me espera em alguma parte ou se está aqui mesmo, nesta
casa, espiando das sombras, cuidando de mim com discrição, como sempre fez em
vida. Como será morrer? Que há do outro lado? É só noite e silêncio? Ocorre-me
que morrer é partir como uma flecha na escuridão para o firmamento, um espaço
infinito, onde deverei buscar meus seres amados um por um.”
“Ao se ver perdido, Valdivia quis negociar
sua liberdade com o inimigo, prometendo que abandonaria as cidades fundadas no
sul, que os espanhóis se iriam da Araucanía para sempre e que além disso lhes
daria ovelhas e outros bens. O yanacona teve de traduzir, mas
antes que conseguisse terminar os índios caíram sobre ele e o mataram. Haviam
aprendido a desprezar as promessas dos huincas. Ao padre, que tinha
feito uma cruz com dois paus e pretendia dar a extrema-unção ao yanacona,
como antes a tinha dado ao governador, destroçaram o crânio com uma clava. E
então começou o martírio de Pedro de Valdivia, o inimigo mais odiado, a
encarnação de todos os abusos e crueldades infligidas ao povo mapuche. Não
haviam esquecido os milhares de mortos, os homens queimados, as mulheres
violadas, as crianças arrebentadas, as centenas de mãos que o rio levou, os pés
e narizes decepados, os chicotes, as correntes e os cachorros.
Obrigaram o prisioneiro a presenciar o
suplício dos yanaconas sobreviventes de Tucapel e a profanação
dos cadáveres espanhóis. Arrastaram-no pelos cabelos, nu, até uma aldeia onde
Lautaro aguardava. No trajeto, as pedras e os galhos afiados da mata lhe
rasgaram a pele, e quando o depositaram aos pés do ñidoltoqui era
um farrapo coberto de barro e sangue. Lautaro ordenou que lhe dessem de beber,
para que despertasse do desmaio, e o ataram a um poste. Como zombaria
simbólica, quebrou em duas a espada de toledana, inseparável companheira de
Pedro de Valdivia, e a enfiou na terra, aos pés do prisioneiro. Quando este se
repôs o suficiente para abrir os olhos e se dar conta de onde estava, se viu
frente a frente com seu antigo criado.
– Felipe! – exclamou, esperançoso, porque
pelo menos era uma cara conhecida e poderia falar em castelhano.
Lautaro cravou os olhos nele, com infinito
desprezo.
– Não me reconhece, Felipe? Sou o Papai –
insistiu o prisioneiro.
A uma ordem do ñidoltoqui os
mapuche, excitados, desfilaram diante de Pedro de Valdivia com afiadas conchas
de amêijoa, tirando-lhe pedaços do corpo. Fizeram um fogo e com as mesmas
conchas lhe arrancaram os músculos dos braços e das pernas, assaram-nos e os
comeram diante dele. Esta orgia macabra durou três noites e dois dias, sem que
a mãe Morte socorresse o infeliz cativo. Por fim Lautaro, ao ver, no amanhecer
do terceiro dia, que Valdivia morria, lhe derramou ouro derretido na boca, para
que se fartasse do metal de que tanto gostava e que tanto sofrimento causava
aos índios nas minas.
Ai que dor, que dor! Estas lembranças são uma
lança cravada aqui, no meio do peito. Que horas são, filha? Por que a luz se
foi? As horas retrocederam, deve ser madrugada de novo. Acho que será manhã
para sempre...
Os restos de Pedro de Valdivia nunca foram
encontrados. Dizem que os mapuche devoraram seu corpo num rito improvisado, que
fizeram flautas com seus ossos e que seu crânio serve até hoje como recipiente
para o mudday dos toquis. Filha, você me pergunta por
que me agarro à terrível versão da criada de Cecília, em vez da outra, mais
misericordiosa, de que Valdivia foi executado com uma paulada na cabeça, como
escreveu o poeta e como era o costume entre os índios do sul. Eu lhe direi.
Durante esses três dias aziagos de dezembro de 1553, estive doente. Foi como se
minha alma soubesse o que minha mente ainda ignorava. Imagens horrendas
passavam diante de meus olhos, como num pesadelo de que não conseguia acordar.
Eu parecia ver dentro de minha casa os cestos cheios de mão e narizes
amputados, em meu pátio os índios carregados de correntes e aqueles que foram
empalados; o ar cheirava a carne humana chamuscada e a brisa da noite me trazia
os estalos de chicotes. Esta conquista custou imensos padecimentos... Ninguém
pode perdoar tanta crueldade, e menos os mapuche, que jamais esquecem as
ofensas, como também não esquecem os favores recebidos. Atormentavam-me as
lembranças, estava como que possuída por um demônio. Você sabe, Isabel, que
fora alguns sobressaltos do coração, sempre fui saudável, com a graça de Deus,
de modo que não tenho outra explicação para a doença que me acometeu naqueles
dias. Enquanto Pedro suportava seu horrendo fim, à distância minha alma o
acompanhava e chorava por ele e por todas as vítimas desses anos. Caí
prostrada, com vômitos tão intensos e febres tão ardentes, que temeram por
minha vida. Em meu delírio ouvia com clareza os gritos de Pedro de Valdivia e
sua voz despedindo-se de mim pela última vez: “Adeus, Inés da minha alma...”.”
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