domingo, 22 de agosto de 2021

SPQR – Uma História da Roma Antiga (Parte II), de Mary Beard

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4220-940-2

Tradução: Luis Reyes Gil

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 576

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Sinopse: Ver Parte I




Conquista e consequências

Os “53 anos” de Políbio cobriam o final do século III a.C. e o início do II a.C., mas foi cerca de sessenta anos antes que os romanos enfrentaram pela primeira vez um inimigo de ultramar. Tratava-se de Pirro [Pyrrhus], governador de um reino no norte da Grécia, que em 280 a.C. navegou até a Itália para dar apoio à cidade de Taranto contra os romanos. Seu chiste autodepreciativo — que suas vitórias contra Roma haviam lhe custado tantos homens que ele não teria como arcar com outra vitória — está por trás da famosa expressão moderna “vitória de Pirro”, indicando um tipo de vitória com um preço tão alto que equivale a uma derrota. A expressão é até generosa com o lado romano da história, pois Pirro era um oponente à altura. Supõe-se que Aníbal o teria avaliado como o maior líder militar depois de Alexandre, o Grande, e — segundo várias anedotas afetuosas — era uma espécie de showman encantador. Foi o primeiro a realizar a façanha de trazer elefantes para a Itália, e dizem que em certa ocasião tentou, sem sucesso, desconcertar um romano visitante ao fazer sair de trás de uma cortina uma de suas feras escondida. É também o primeiro personagem da história de Roma a quem podemos atribuir um rosto de maneira plausível.

Da invasão de Pirro até 146 a.C. — quando os exércitos romanos destruíram não só Cartago, no final do que ficou conhecido como Terceira Guerra Púnica (do latim punicus, ou “cartaginês”), mas também, quase simultaneamente, a rica cidade grega de Corinto —, houve uma guerra mais ou menos continuada, envolvendo Roma e seus inimigos, na península Itálica e além-mar. Um estudioso antigo apontou o ano “em que Caio Atílio [Gaius Atilius] e Tito Mânlio [Titus Manlius] foram cônsules” (235 a.C.) como o único momento desse período em que não houve hostilidades.

Os conflitos mais celebrados, e mais devastadores, foram as duas primeiras Guerras Púnicas, contra Cartago. A primeira durou mais de vinte anos (de 264 a 241 a.C.), a maior parte dela travada na Sicília e nos mares em volta, exceto a desastrosa incursão romana no território cartaginês, no norte da África. O conflito terminou com a Sicília sob controle romano — e após uns poucos anos a Sardenha e a Córsega também, embora o epitáfio do filho de Barbato exagere um pouco suas realizações afirmando que ele “capturou” a ilha. Num achado recente extraordinário, alguns dos detritos da última batalha naval entre romanos e cartagineses foram dragados do fundo do Mediterrâneo. Próximo ao litoral da Sicília, onde as duas frotas supostamente se enfrentaram, arqueólogos que exploravam a área desde 2004 recuperaram vários esporões de bronze de navios afundados (a maioria romanos, mas também um de navio cartaginês), pelo menos oito elmos de bronze, um deles carregando um vestígio de algum escrito púnico, provavelmente riscado por seu dono afogado, e ânforas de cerâmica que possivelmente carregavam os suprimentos dos navios (ver lâmina 8).

A Segunda Guerra Púnica se deu em uma escala geográfica muito diferente. Travada entre 218 a.C. e 201 a.C., é hoje mais lembrada pelo heroico fracasso de Aníbal, que cruzou os Alpes com seus elefantes (mais um golpe de propaganda do que um recurso militar efetivo) e infligiu pesadas baixas aos romanos na Itália, em especial no confronto mais famoso, a Batalha de Canas [Cannae], no sul, em 216 a.C. Somente depois de mais de uma década de confrontos, o governo de Aníbal em Cartago — cada vez mais inquieto em relação ao desfecho da aventura e agora tendo que enfrentar o exército invasor de Cipião Africano — chamou-o de volta para casa. Mas não se tratou de um mero confronto entre a Itália e o norte da África. Havia começado com uma batalha entre romanos e cartagineses na Espanha, o que fez os romanos lutarem ali pela maior parte do século II a.C. E a possibilidade de Aníbal receber apoio da Macedônia levou os romanos a uma série de guerras no norte da Grécia, que terminaram com a derrota do rei macedônio Perseu em 168 a.C. por Emílio Paulo [Aemilius Paullus], pai natural de Cipião Emiliano, e logo depois com o controle de toda a região que chamamos de Grécia continental.

Além disso, os romanos estavam também envolvidos em grandes conflitos com os gauleses no extremo norte da Itália na década de 220 a.C. E fizeram também intervenções periódicas cruzando o Adriático, em parte para lidar com aqueles que chamavam de piratas (um termo genérico para “inimigos em navios”), que eram apoiados pelas tribos e reinos do litoral oposto — pelo menos era o que se dizia. E em 190 a.C., sob o comando de Cipião Asiático, impuseram derrota decisiva a Antíoco, “o Grande”, da Síria. Este não só estava ocupado em seguir o modelo de Alexandre, o Grande, e estender sua base de poder, mas também havia abrigado Aníbal, agora no exílio de Cartago, que segundo se dizia oferecia ao rei aulas sobre como enfrentar os romanos.

As campanhas militares eram um aspecto definidor da vida romana, e os escritores organizaram a história desse período, como acabei de fazer também, em torno da sucessão de guerras, dando-lhes títulos caligráficos, muitos deles mantidos até hoje. Quando Salústio chamou seu ensaio sobre o complô de Catilina de Guerra contra Catilina, ou Bellum Catilinae, estava refletindo, e talvez sutilmente parodiando, a tradição romana de encarar a guerra como o princípio estruturante da história. Era uma tradição bem antiga. Há um trecho sobrevivente do poema épico de Ênio sobre a história de Roma que se refere explicitamente à “Segunda Guerra Púnica”, na qual ele lutou como aliado romano; foi escrito antes de a terceira ter acontecido.

Em termos práticos, os romanos direcionavam enormes recursos para a guerra e, mesmo como vencedores, pagaram um preço imenso em vidas humanas. Ao longo desse período, algo em torno de 10% a 25% da população adulta masculina havia servido em legiões todos os anos, uma proporção maior do que em qualquer outro Estado pré-industrial e, na estimativa mais alta, comparável à taxa de convocação da Primeira Guerra Mundial. Em Canas, combateram duas vezes mais legiões do que em Sentino oitenta anos antes — o que é uma boa indicação do crescente porte desses conflitos e da logística cada vez mais complexa. Um exército do porte daquele que os romanos e seus aliados posicionaram em Canas exigiria, por exemplo, cerca de cem toneladas só de trigo, por dia. As tratativas com comunidades locais que isso implicava, a organização de centenas de animais, que por sua vez avolumavam as exigências ao consumirem necessariamente parte do que carregavam, e as redes de coleta e distribuição, tudo isso teria sido inconcebível no início daquele século.

É mais difícil estipular uma cifra para as baixas: não havia uma contagem sistemática das mortes num campo de batalha naquela época; e todos os números dos textos antigos têm que ser tratados com reservas, vitimados por exageros, equívocos e, ao longo dos anos, por alguns terríveis erros de cópia por parte de monges medievais. Mesmo assim, o total das cifras de baixas romanas que Lívio fornece para todas as batalhas que ele registra nos primeiros trinta anos do século II a.C. — ou seja, sem incluir as grandes perdas enfrentadas contra Aníbal — chega a pouco mais de 55 mil mortes. É uma cifra extremamente baixa. Havia provavelmente uma tendência patriótica de reduzir o número das perdas romanas; não fica claro se os aliados eram somados aos cidadãos romanos nessa conta; algumas batalhas e escaramuças podem não ter sido incluídas na lista de Lívio; e muitos morreram subsequentemente devido a ferimentos (na maioria das circunstâncias, as armas antigas eram muito melhores para ferir do que para matar; a morte sobrevinha mais tarde, por infecção). Mas isso dá uma indicação do custo humano dessa atividade bélica somente no lado romano. O preço pago pelos derrotados é ainda mais difícil de estimar, mas presume-se que tenha sido bem mais alto.

É necessário, no entanto, ver além dessa carnificina, por mais terrível que tenha sido, para examinar melhor a realidade e a organização do combate e investigar a política doméstica que sustentou a expansão romana, assim como as ambições romanas e a geopolítica mais ampla do antigo Mediterrâneo que podem tê-la incentivado. Políbio é o guia mais importante, mas há outras evidências contemporâneas eloquentes — com frequência, documentos inscritos em pedra — que tornam possível rastrear algumas interações entre os romanos e o mundo exterior. Ainda sobrevivem relatos que captam em primeira mão as experiências desconcertantes vividas em Roma por enviados das pequenas cidades gregas; e também podemos ler os textos de detalhados tratados entre os romanos e Estados estrangeiros. O fragmento mais antigo, de 212 a.C., é parte de um tratado entre Roma e um grupo de cidades gregas, e estabelece regras precisas sobre como qualquer saque de guerra deverá ser dividido: basicamente, cidades e casas aos gregos, bens móveis aos romanos.

Também houve consequências importantes para a própria Roma do seu sucesso militar ultramarino. A revolução literária foi apenas parte disso. Em meados do século II a.C., os lucros da atividade bélica haviam tornado o povo romano de longe o mais rico entre todos em seu mundo conhecido. Milhares e milhares de cativos viraram mão de obra escrava que trabalhava nos campos romanos, em suas minas e fábricas, explorando recursos em uma escala muito mais intensiva do que já ocorrera antes e alimentando a produção romana e o crescimento de sua economia. Lingotes de ouro e prata eram transportados em carrinhos de mão, trazidos (ou roubados) das ricas cidades e reinos do Oriente, despejados no bem guardado porão do templo de Saturno no Fórum, que funcionava como o “tesouro” do Estado. E as sobras eram suficientes para encher os bolsos dos soldados, de um general ao mais reles recruta.

Os romanos tinham muito o que celebrar. Parte da riqueza foi para deleites urbanos, das novas instalações do porto e amplos armazéns no Tibre a novos templos que se enfileiravam pelas ruas, agradecendo o auxílio dos deuses em assegurar as vitórias que haviam gerado toda aquela riqueza. E é fácil imaginar o prazer generalizado quando em 167 a.C. Roma se tornou um Estado livre de impostos: o tesouro estava tão abarrotado — graças, particularmente, aos espólios da recente vitória sobre a Macedônia — que a taxação direta dos cidadãos romanos foi suspensa, exceto em emergências, embora eles continuassem sujeitos a uma série de outras cobranças, como tributos alfandegários ou uma taxa especial sobre a libertação de escravos.

Essas mudanças, porém, também foram desestabilizadoras. O problema não se restringia a alguns moralistas romanos mal-humorados, preocupados com os perigosos efeitos de toda aquela riqueza e “luxo” (nas palavras deles). A expansão do poder romano suscitou grandes debates e paradoxos sobre o lugar de Roma no mundo, a respeito do que podia ser considerado “romano” quando uma área enorme do Mediterrâneo estava sob controle de Roma e onde se poderia colocar agora o limite entre barbárie e civilização, e de que lado dessa divisão estaria Roma. Quando, por exemplo, no final do século III a.C. as autoridades romanas deram as boas-vindas à deusa Grande Mãe dos planaltos da atual Turquia e solenemente instalaram-na num templo no Palatino, com tudo o que tinha direito, incluindo seu séquito de sacerdotes de longos cabelos, autocastrados e autoflagelantes — o quanto isso tinha de romano?”

 

 

“Políbio dissecou a organização interna de Roma — que, insistia, era o sustentáculo de seu sucesso externo — de uma posição privilegiada, que combinava um par de décadas de experiências em primeira mão com toda a sofisticação da teoria política grega na qual havia sido treinado em casa. Sua obra é, com efeito, uma das mais antigas tentativas que sobreviveram de uma antropologia política comparativa.

Não surpreende, portanto, que o seu relato seja uma maravilhosa combinação de aguda observação, assombro e desesperadas tentativas ocasionais de teorizar a política romana em seus próprios termos. Ele investigou com atenção o ambiente à sua volta e seus novos amigos romanos. Identificou, por exemplo, a importância da religião, ou do “temor dos deuses”, no controle do comportamento romano, e ficou impressionado com a sistemática eficiência da organização romana; daí a sua importante — mas hoje frequentemente desconsiderada — discussão sobre os arranjos militares, com suas regras autodidáticas sobre como dispor um acampamento do Exército, onde deveria ser colocada a tenda do cônsul, como planejar um comboio de bagagem para os legionários, e o cruel sistema de disciplina. Era também perspicaz o suficiente para enxergar, sob a superfície dos vários costumes romanos e de seus passatempos favoritos, seu sentido social subjacente. Todas aquelas histórias sobre a coragem, o heroísmo e o autossacrifício romanos que ele deve ter ouvido — contadas e recontadas em volta de fogueiras de acampamentos militares ou em mesas de jantar — não eram simples entretenimento, concluiu. Tinham a função de incentivar os jovens a imitarem os feitos nobres de seus ancestrais; eram um aspecto do espírito de emulação, ambição e competição que ele viu percorrer a elite da sociedade romana.

Outro aspecto disso — e um que se abre para um estudo de caso mais extenso, apesar de um pouco mórbido — podia ser encontrado nos funerais de “homens ilustres”. Novamente, Políbio deve ter participado de um número suficiente para poder extrair seu sentido mais profundo. O corpo, explica ele, era carregado até o Fórum e colocado sobre a rostra, normalmente apoiado de algum modo para ficar na posição vertical, visível para uma grande plateia. Na procissão que se seguia, os membros da família usavam máscaras feitas à semelhança dos ancestrais do falecido e vestiam roupas adequadas aos cargos que cada um deles tivesse ocupado (togas com bainha roxa, e assim por diante), como se estivessem todos presentes, “vivos e respirando”. O discurso no funeral, pronunciado por um membro da família, começava com o relato das realizações do cadáver exposto na rostra, mas depois prosseguia com as carreiras de todos os outros personagens, que nessa hora estavam sentados em cadeiras de marfim, ou pelo menos revestidas de marfim, enfileiradas perto do cadáver. “O mais importante resultado disso”, conclui Políbio, “é que a geração mais jovem se inspira a suportar todo o sofrimento em nome do bem comum, na esperança de alcançar a glória que pertence aos valentes.”

Essa talvez seja uma visão muito cor-de-rosa do lado competitivo da cultura romana. A competição desenfreada acabou sendo mais detrutiva do que construtiva para a República. Mesmo antes, vale supor que para cada jovem romano inspirado a ficar à altura das realizações de seus ancestrais, havia outro oprimido pelo peso da tradição e pelas expectativas alimentadas a seu respeito — como Políbio poderia ter compreendido se tivesse escolhido refletir sobre todas as histórias da cultura romana que falavam de filhos que mataram seus pais. Mas essa é uma visão muito bem condensada em outro epitáfio no túmulo dos Cipiões, que é tentador achar que Políbio possa ter visto: “Tive descendentes. Procurei igualar os feitos de meu pai. Obtive elogios de meus ancestrais, que portanto ficaram felizes por eu ter nascido deles. Minha carreira enobreceu a linhagem da minha família”.

No cerne da discussão de Políbio, porém, residia uma questão maior. Como seria possível caracterizar o sistema político romano como um todo? Como funcionava? Nunca houve uma constituição romana escrita, mas Políbio viu em Roma um exemplo perfeito, na prática, de um velho ideal filosófico grego: a “constituição mista”, que combinava os melhores aspectos de monarquia, aristocracia e democracia. Os cônsules — que tinham total controle militar, podiam convocar assembleias populares e dar ordens a todas as demais autoridades (exceto aos tribunos plebeus) — representavam o elemento monárquico. O Senado — que naquela época tinha a seu encargo as finanças de Roma, a responsabilidade por delegações para e de outras cidades e supervisionava de fato a lei e a segurança por todo o território romano e de seus aliados — representava o elemento aristocrático. O povo representava o elemento democrático. Não era “democracia” ou “o povo” no sentido moderno: não havia algo como sufrágio universal no mundo antigo — mulheres e escravos nunca tiveram direitos políticos formais em lugar algum. Políbio referia-se ao grupo de cidadãos homens como um todo. Como na Atenas clássica, eles — e só eles — elegiam as autoridades do Estado, aprovavam ou rejeitavam leis, tomavam decisões finais sobre ir à guerra e agiam como corte judicial no caso de grandes transgressões.

O segredo, sugeria Políbio, estava em uma delicada relação de pesos e contrapesos entre cônsules, o Senado e o povo, de modo que nem monarquia, nem aristocracia, nem Senado nunca prevaleciam inteiramente. Os cônsules, por exemplo, poderiam ter tido comando total, monárquico, em campanha, mas tinham que ter sido eleitos pelo povo em primeiro lugar, e dependiam do Senado para verbas — e era o Senado que decidia atribuir ou não ao general vitorioso um triunfo no final da campanha. Exigia-se também um voto do povo para ratificar qualquer tratado que pudesse ser feito. E assim por diante. Eram, segundo Políbio, tais pesos e contrapesos no sistema político que produziam a estabilidade interna sobre a qual o sucesso exterior de Roma se assentava.

Essa é uma análise muito perspicaz, sensível às pequenas diferenças e sutis nuances que distinguem um sistema político de outro. Sem dúvida, em certos aspectos Políbio tenta forçar a vida política que ele testemunhou em Roma a se acomodar ao modelo analítico grego, que não se encaixa inteiramente. Impor à sua discussão termos como “democracia”, por exemplo, é profundamente enganoso. “Democracia” (demokratia) era algo com raízes políticas e linguísticas no mundo grego. Nunca foi uma palavra de ordem em Roma, mesmo em seu restrito sentido antigo ou mesmo para os políticos populares romanos mais radicais. Na maior parte dos escritos conservadores que sobreviveram, a palavra significa algo próximo de “governo da massa”. Faz pouco sentido perguntar o quanto os políticos da Roma republicana eram “democráticos”: os romanos lutavam por liberdade, não por democracia. No entanto, sob outro aspecto, ao forçar seus leitores a atentarem para o povo em sua apreciação da política romana e olharem além do poder das autoridades eleitas e do Senado aristocrático, Políbio abriu um importante debate que é válido ainda hoje. O quanto a voz popular tinha influência na política da Roma republicana? Quem controlava Roma? Como nós deveríamos caracterizar o sistema político romano?

Seria fácil demais traçar um quadro dos processos políticos republicanos como sendo completamente dominados pela minoria rica. O resultado do Conflito das Ordens não foi a revolução popular, mas a criação de uma nova classe governante, compreendendo plebeus ricos e patrícios. A primeira qualificação para a maioria dos cargos políticos era a riqueza em uma escala substancial. Ninguém podia concorrer nas eleições sem ser aprovado num teste financeiro que excluía a maior parte dos cidadãos; a quantia exata necessária para se qualificar não é conhecida, mas as implicações são de que se situava em um nível bastante elevado da hierarquia do censo, a chamada categoria da cavalaria ou equestre. Quando as pessoas se juntaram para votar, o sistema de votação foi arranjado em favor dos ricos. Já vimos como isso funcionava na Assembleia das Centúrias, que elegia altos oficiais: se as centúrias ricas se unissem, podiam determinar o resultado sem que as centúrias pobres tivessem chance de votar. A outra assembleia importante baseada nas divisões “tribais” geográficas era mais equitativa em tese — mas, conforme o tempo foi passando, deixou de ser assim na prática. Das 35 divisões geográficas finalmente definidas em 241 a.C. (até esse momento, o número de tribos foi aumentando conforme a cidadania era estendida por toda a Itália), apenas quatro cobriam a própria cidade. As 31 restantes abrangiam o então distante território rural de Roma. Como os votos só podiam ser dados pessoalmente na cidade, a influência daqueles que tinham condições de tempo e transporte para fazer a viagem era esmagadora; os votos da população urbana residente tinham impacto apenas sobre essa pequena minoria de tribos urbanas. Além disso, a rigor, as assembleias eram simplesmente para votar mediante uma lista de candidatos ou de uma proposta apresentada por uma auto-ridade importante. Não havia uma ampla discussão; de baixo não vinham propostas ou mesmo emendas; no caso de quase todas as propostas de legislação das quais temos notícia, o povo votava a favor daquilo que lhe era apresentado. Isso não era poder popular como o entendemos hoje.

No entanto, havia outro aspecto. Além das prerrogativas formais do povo que Políbio enfatiza, há claros indícios de uma cultura política mais ampla na qual a voz popular era um elemento-chave. Os votos dos pobres importavam e eram ansiosamente caçados. Os ricos usualmente não eram muito unidos, e as eleições eram concorridas. Aqueles que detinham ou procuravam obter cargos políticos davam muita importância a persuadir o povo a votar neles ou nas leis que propunham, e dedicavam enorme atenção a aprimorar as técnicas de retórica que lhes permitiriam atingir esse objetivo. Se ignorassem ou humilhassem os pobres corriam riscos. Um dos aspectos diferenciais da cena política republicana eram as reuniões semiformais (ou contiones), com frequência realizadas pouco antes das assembleias de votação, nas quais autoridades rivais tentavam convencer as pessoas sobre seu ponto de vista (Cícero fez seu segundo e quarto discursos contra Catilina, por exemplo, em contiones). Não sabemos ao certo o quanto costumavam ser frequentes ou atrair comparecimento. Mas há várias indicações de que envolviam fervor político, entusiasmo vociferante e muito barulho. Certa ocasião, no século I a.C., conta-se que a gritaria era tão estrondosa que um corvo, que desafortunadamente passara por ali, caiu estatelado no chão, atordoado.

Há também todo tipo de anedota sobre a importância e a intensidade da caça de votos, e sobre como o voto do povo podia ser conquistado ou perdido. Políbio conta uma história curiosa sobre o rei sírio Antíoco IV (Epifânio, “famoso” ou mesmo “deus manifestado”), filho de Antíoco, o Grande, que havia sido “esmagado” por Cipião Asiático. Quando jovem ele viveu mais de uma década como refém de Roma antes de ser trocado por um parente mais jovem, aquele a quem Políbio mais tarde deu conselhos sobre seu plano de fuga. Ao voltar para o Oriente, levou consigo vários hábitos romanos que havia adquirido em sua estadia. A maioria consistia em adotar uma atitude mais popular: falar com qualquer pessoa que encontrasse, dar presentes a pessoas comuns e percorrer lojas de artesãos. Mas o que causava mais impacto era que vestia toga e circulava pelo mercado como se fosse candidato a alguma eleição, apertando as mãos das pessoas e pedindo seu voto. Isso deixou perplexas as pessoas em sua vistosa capital, Antioquia, que não estavam acostumadas a esse comportamento da parte de um monarca, e o apelidaram então de Epimânio (“insano”, um trocadilho com seu nome). Mas fica claro que uma lição que Antíoco aprendera em Roma era que o povo e seus votos importavam.

Igualmente reveladora é uma anedota sobre outro membro da família Cipião no século II a.C., Públio Cornélio Cipião Násica [Publius Cornelius Scipio Nasica]. Ele estava um dia caçando votos em uma campanha para ser eleito ao cargo de edil e ocupava-se em apertar a mão dos eleitores (procedimento-padrão, tanto naquela época quanto hoje). Ao se deparar com alguém cujas mãos estavam calejadas pelo trabalho no campo, o jovem aristocrata brincou: “Meu Deus, você por acaso anda com as mãos?”. Alguém ouviu, e as pessoas comuns concluíram que ele estava zombando de sua pobreza e de seu trabalho. O desfecho, desnecessário dizer, foi que ele perdeu a eleição. Então que tipo de sistema político era esse? O equilíbrio entre os diferentes interesses certamente não era tão equitativo como Políbio faz parecer. Os pobres nunca poderiam chegar ao topo da política romana; pessoas comuns jamais detinham a iniciativa política; e era axiomático que quanto mais rico fosse o cidadão, maior peso político poderia ter. Mas essa forma de desequilíbrio é familiar em muitas das chamadas democracias modernas: em Roma também os ricos e privilegiados concorriam a cargos e poder político que só podiam ser garantidos por eleições populares e pelo favor das pessoas comuns, que nunca teriam os meios financeiros para concorrer elas mesmas. Como o jovem Cipião Násica descobriu às próprias custas, o sucesso dos ricos era uma dádiva concedida pelos pobres. Os ricos tiveram que aprender a lição de que dependiam do povo como um todo.”

 

 

De modo bem similar à extensão do controle romano na Itália, essa expansão ultramarina nos séculos III e II a.C. era mais complexa do que o mito familiar das legiões romanas marchando, conquistando e tomando territórios estrangeiros. Primeiro, os romanos não eram os únicos agentes no processo. Eles não invadiram um mundo de povos amantes da paz, que viviam apenas cuidando da sua vida até que aqueles bandidos vorazes chegaram. Por mais que possamos ser cínicos, com razão, diante das afirmações dos romanos de que estavam indo para a guerra apenas atendendo pedidos de auxílio de seus amigos e aliados (esse tem sido o pretexto para algumas das guerras mais agressivas da história), parte da pressão para que Roma interviesse realmente veio de fora.

O mundo do Mediterrâneo oriental, da Grécia à atual Turquia e além dela, foi o contexto da maior parte da atividade militar de Roma nesse período. Era um mundo de conflitos políticos, alianças instáveis e violência contínua e brutal entre os Estados, similar à da Itália em seus primórdios, mas em maior escala. Esse era o legado das conquistas do tipo “arrebentar e levar” de Alexandre, o Grande, que morreu em 323 a.C., antes que precisasse encarar o que fazer com aqueles que havia derrotado. Seus sucessores formaram dinastias rivais, que se envolveram em séries mais ou menos ininterruptas de guerras e disputas, entre eles e com Estados menores e coalizões em suas vizinhanças. Pirro foi um desses soberanos. Antíoco Epifânio foi outro: após sua detenção em Roma e tentativas de política populista em casa, conseguiu em seu reinado de dez anos, entre 175 a.C. e 164 a.C., invadir o Egito (duas vezes), o Chipre, a Judeia (o que provocou também a revolta dos Macabeus), a Pártia e a Armênia.

Quanto mais Roma era percebida como poderosa, mais esses bandos guerreiros encaravam os romanos como aliados úteis em suas disputas locais de poder e cortejavam sua influência. Representantes do Oriente vinham diversas vezes a Roma na expectativa de obter apoio moral ou intervenção militar. Esse é um tema recorrente nos relatos históricos do período: há notícias de muitos enviados, por exemplo, durante os preparativos para a campanha de Emílio Paulo contra Perseu, tentando convencer os romanos a fazer algo a respeito das ambições da Macedônia. Mas a cena mais clara de como essa “corte” funcionava na prática vem de Teos, uma cidade no litoral ocidental da moderna Turquia. Há uma inscrição de meados do século II a.C. que registra as tentativas feitas para atrair os romanos a uma disputa menor, sobre a qual nada mais se sabe, a respeito de alguns direitos territoriais, entre a cidade de Abdera, no norte da Grécia, e um rei local, Kotys.

O texto é uma “carta de agradecimento” entalhada em pedra, dirigida à cidade de Teos pelo povo de Abdera. Pois, ao que parece, os habitantes de Teos haviam concordado em enviar dois homens até Roma, quase como lobistas no sentido moderno do termo, para conquistar o apoio de Roma à causa de Abdera contra o rei. Os abderitas descrevem de modo preciso como essa dupla agiu, detalhando suas visitas regulares às casas de membros-chave do Senado. Os delegados, ao que parece, trabalharam tanto que “ficaram esgotados física e mentalmente, e encontraram gente importante de Roma e conseguiram convencê-los fazendo-lhes obséquios diariamente”; e quando algumas das pessoas que visitavam pareciam favoráveis a Kotys (pois este também mandara enviados a Roma), “eles conquistaram sua amizade expondo-lhes os fatos e fazendo visitas diárias aos seus átrios”, isto é, aos saguões centrais de suas casas romanas.

O silêncio de nosso texto sobre o resultado dessas abordagens sugere que as coisas não foram bem para o lado dos abderitas. Mas esse instantâneo de representantes rivais, não só abrindo caminho no Senado, mas pressionando senadores individualmente todos os dias em favor de sua tese, dá uma ideia de como o auxílio de Roma podia ser requisitado de maneira ativa e persistente. E as centenas, literalmente, de estátuas de indivíduos romanos — como “salvadores e benfeitores” — colocadas nas cidades do mundo grego mostram como essa intervenção, caso viesse a ocorrer e fosse bem-sucedida, era comemorada. Não temos como identificar cada um dos aspectos da duplicidade por trás de tais palavras: sem dúvida havia não só medo e lisonja envolvidos, mas também gratidão sincera. Mas trata-se de um lembrete útil de que a simples expressão “conquista romana” pode encobrir uma ampla gama de pontos de vista, motivações e aspirações de cada um dos lados.

Além disso, os romanos não tentavam sistematicamente anexar território ultramarino ou impor mecanismos padronizados de controle. O que explica em parte por que o processo de expansão foi tão rápido: eles não estavam implantando nenhuma infraestrutura de governo. Certamente, extraíam recompensas materiais daqueles que derrotavam, mas de maneiras diferentes, ad hoc. Eles impuseram grandes indenizações em dinheiro a alguns Estados, um total de mais de seiscentas toneladas de lingotes de prata só na primeira metade do século II a.C. Em outras partes, assumiram os regimes regulares de taxação já estabelecidos por governantes anteriores. Algumas vezes conceberam novas maneiras de extorquir ricas receitas. As minas de prata da Espanha, por exemplo, antes parte do domínio de Aníbal, logo passaram a produzir tanto minério que a poluição ambiental de seu processamento ainda pode ser detectada em amostras datáveis extraídas das profundas camadas de gelo da Groenlândia. E Políbio, que visitou a Espanha em meados do século II a.C., escreveu a respeito de 40 mil mineiros, a maior parte escravos, trabalhando em apenas uma região do território de mineração (talvez não seja literal: “40 mil” era uma expressão comum para se referir a “um número muito grande”, como o nosso “milhares”). As formas de controle político dos romanos eram igualmente variadas, indo de tratados de “amizade” que asseguravam a não interferência à tomada de reféns como garantia de bom comportamento, ou à presença mais ou menos permanente de soldados ou autoridades romanas. O que aconteceu depois que Emílio Paulo derrotou o rei Perseu é apenas um exemplo da aparência de tal pacote de arranjos. A Macedônia foi dividida em quatro Estados autogovernados independentes; eles pagavam impostos a Roma, pela metade do valor que Perseu cobrava; e, neste caso, as minas macedônias foram fechadas, para evitar que seus recursos fossem usados para construir uma nova base de poder na região.

Era de fato um Império coercitivo no sentido de que os romanos levavam embora os ganhos e tentavam assegurar que poderiam impor sua vontade quando quisessem, com a ameaça da força sempre no ar. Não era um Império de anexação no sentido que romanos posteriores iriam entendê-lo. Não havia nenhuma estrutura legal detalhada de controle, nem regras ou regulamentações. Nesse período, até mesmo a palavra latina imperium, que por volta do final do século I a.C. podia significar “Império” como uma área inteira sob governo romano direto, tinha um sentido mais próximo de “poder de expedir ordens que são obedecidas”. E provincia, que se tornou o termo-padrão para uma subdivisão bem definida do Império sob o controle de um governador, não era um termo geográfico, e sim uma responsabilidade atribuída a uma autoridade romana. Podia ser, e com frequência era, uma atribuição de atividade militar ou administrativa em um lugar determinado. A partir do final do século III a.C., a Sicília e a Sardenha passaram a ser designadas como provinciae, e a partir do início do século II a.C., duas provinciae militares na Espanha tornaram-se um padrão, embora suas fronteiras fossem fluidas. Mas podia muito bem ser uma responsabilidade em relação a algo, digamos, o tesouro romano — e, por volta da passagem para o século II a.C., Plauto em suas comédias usa o termo provincia como uma brincadeira para se referir aos deveres dos escravos. Nessa época, nenhum romano era enviado para ser o “governador de uma província”, como ocorreria mais tarde.

O que estava em jogo para os romanos era se poderiam vencer em batalha e depois se — por meio de persuasão, ameaça ou força — poderiam impor sua vontade onde, quando e conforme decidissem. O estilo desse imperium é claramente resumido na história do último encontro entre Antíoco Epifânio e os romanos. O rei estava invadindo o Egito pela segunda vez, e os egípcios tinham pedido ajuda aos romanos. Um enviado romano, Caio Popílio Lenas [Gaius Popilius Laenas], foi despachado e encontrou Antíoco fora de Alexandria. Em razão de sua longa familiaridade com os romanos, o rei sem dúvida esperava um encontro bastante cortês. Em vez disso, Lenas passou-lhe um decreto do Senado que o instruía a retirar-se do Egito imediatamente. Quando Antíoco pediu tempo para consultar seus conselheiros, Lenas pegou um pedaço de pau e desenhou um círculo no chão empoeirado em volta do rei. Só poderia colocar o pé para fora daquele círculo depois de ter dado sua resposta. Perplexo, Antíoco mansamente concordou com a exigência do Senado. Esse era um Império de obediência.”

 

 

Os novos horizontes do Império também ajudaram a criar — ou pelo menos a definir com contornos e sentidos ideológicos mais nítidos — a imagem do “romano antiquado”. Esse personagem prático, sensato, audacioso, sem floreios, desempenha seu papel até hoje em nosso estereótipo da cultura romana. É provável que tenha sido em grande parte uma criação também desse período.

Alguns dos oradores mais eloquentes dos séculos III e II a.C. ficaram famosos por atacar a influência corruptora da cultura estrangeira em geral, e da grega em particular, sobre a moral e o comportamento romano tradicional. Seus alvos iam da literatura e filosofia ao hábito de se exercitar nu, à comida sofisticada e à depilação. Na linha de frente dessas críticas estava Marco Pórcio Catão [Marcus Porcius Cato] (“Catão, o Velho”), um contemporâneo e rival de Cipião Africano, que Catão criticou, entre outras coisas, por se divertir com ginástica grega e teatros na Sicília. Dizem ainda que Catão teria chamado Sócrates de “tagarela inveterado”, que recomendava uma dieta medicinal romana à base de legumes e verduras verdes, pato e pombo (em contraposição às prescrições dos médicos gregos, que segundo ele podiam muito bem matá-lo), e que advertia que o poder romano podia ser derrubado por causa da paixão pela literatura grega. Segundo Políbio, Catão uma vez observou que um dos sinais da deterioração da República era que os garotos bonitos agora custavam mais caro que os campos, e que jarras de peixe em conserva valiam mais do que agricultores. Não estava sozinho nessas opiniões. Em meados do século II a.C., outra destacada figura encontrou apoio ao defender que um teatro em estilo grego em construção em Roma deveria ser demolido, já que era melhor e mais favorável à formação do caráter dos romanos que eles assistissem às peças em pé, como tradicionalmente vinham fazendo, e não sentados à moda decadente do Oriente. Em resumo, segundo tais argumentos, o que se fazia passar por “sofisticação” grega nada mais era do que uma insidiosa “flacidez” (ou mollitia, no jargão romano), que fatalmente minaria a força do caráter romano.

Seria isso uma simples reação conservadora contra as ideias modernas que chegavam a Roma de fora, um surto de “guerras culturais” entre tradicionalistas e modernizadores? Em parte talvez fosse. Mas era também algo mais complexo, e mais interessante do que isso. Apesar de todas as suas queixas, Catão ensinara grego ao filho, e seus escritos que sobreviveram — notavelmente, um ensaio técnico sobre cultivo e gestão agrícola, além de citações de seus discursos e de sua história da Itália — mostram que era bem familiarizado com os recursos gregos de retórica que dizia deplorar. E algumas de suas afirmações sobre a “tradição romana” eram mais próximas de uma mera fantasia criativa. Não há qualquer razão para supor, por exemplo, que os veneráveis romanos idosos assistissem espetáculos teatrais em pé.

A verdade é que a versão de Catão dos valores romanos antigos e sensatos era também uma invenção do seu tempo, e não só uma defesa de tradições romanas ancestrais. Identidade cultural é sempre uma noção enganosa, e não temos ideia de como os primeiros romanos encaravam seu próprio caráter, nem como se distinguiam de seus vizinhos. Mas o sentido, diferenciado, bem demarcado, da dura austeridade romana — que romanos posteriores projetaram em seus pais fundadores e que foi preservado como uma visão poderosa de romanidade no mundo moderno — era resultado de um forte choque cultural, nesse período de expansão exterior, a respeito do que significava ser romano nesse novo e vasto mundo imperial. Colocado de outro modo, a “greguice” e a “romanidade” eram não só inseparavelmente ligadas mas também diametralmente opostas.”

SPQR – Uma História da Roma Antiga (Parte I), de Mary Beard

Editora: Crítica

ISBN: 978-85-4220-940-2

Tradução: Luis Reyes Gil

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 576

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Sinopse: Um dos livros mais importantes sobre Roma Antiga que existe. Cobrindo mil anos da história romana, SPQR revela em detalhes como Roma cresceu de uma vila insignificante na Itália Central para se tornar a primeira potência global. A inglesa Mary Beard, professora de Cambridge e autora de vários bestsellers, vive há mais de 30 anos pesquisando o Império Romano. A partir de inúmeras leituras, estudos de arqueologia e de documentos escritos em pedras e papiros, ela faz uma análise eloquente dessa história e mostra o que os romanos pensavam sobre si mesmos e suas realizações. SPQR é a abreviação que os próprios romanos adotaram para o seu Estado: “Senatus Populus Que Romanus”, ou “Senado e o Povo de Roma”. Neste livro, Beard detalha como foi formada a identidade e a cidadania romana e mostra porque essa cultura ainda influencia o mundo no século XXI. Com mais de 100 ilustrações e inúmeros mapas, SPQR ficou mais de um ano em listas de best-sellers nos Estados Unidos e na Europa.




“Irmão contra irmão, locais contra forasteiros

Não muito abaixo da superfície dessas tramas, jazem alguns dos temas mais importantes da história romana posterior, assim como algumas das maiores ansiedades culturais romanas. Eles nos dizem muito sobre os valores e preocupações dos romanos, ou pelo menos sobre as preocupações que aqueles romanos tinham a respeito do tempo, do dinheiro e da liberdade de que dispunham; ansiedades culturais muitas vezes são privilégio dos ricos. Um desses temas, como acabamos de ver, era a natureza do casamento romano. Quão brutal ele estava destinado a ser, dadas as suas origens? Outro, já vislumbrado nas palavras das mulheres sabinas que tentavam a reconciliação entre seus pais e maridos, era a guerra civil.

Um dos grandes enigmas a respeito da lenda da fundação é sua afirmação de que havia dois fundadores envolvidos, Rômulo e Remo. Os historiadores modernos conceberam várias soluções para explicar o gêmeo redundante. Talvez ele aponte para alguma dualidade básica na cultura romana, entre diferentes classes de cidadãos ou diferentes grupos étnicos. Ou quem sabe reflita o fato de que mais tarde Roma teria dois cônsules. Ou, ainda, estejam envolvidas estruturas míticas mais profundas, e Rômulo e Remo sejam alguma versão dos gêmeos divinos que encontramos em várias manifestações da mitologia mundial, da Alemanha à Índia védica, incluindo a história bíblica de Caim e Abel. Mas seja qual for a solução escolhida (e a maior parte da especulação moderna não tem sido muito convincente), resta um enigma ainda maior no fato de um dos gêmeos fundadores ser realmente redundante — já que Remo foi morto por Rômulo ou, em outras versões, por um de seus homens, no primeiríssimo dia da cidade.

Para muitos romanos, que não fizeram uma higienização da história encoberta pelo rótulo de “mito” ou “lenda”, esse era o aspecto mais impalatável da fundação. Parece que ele causou tal desconforto em Cícero que, no seu relato da origem de Roma em Sobre o Estado, ele não o menciona. Remo aparece no início, apresentado junto com Rômulo, para em seguida desaparecer da história. Outro escritor — o historiador Dionísio de Halicarnasso, residente de Roma no século I a.C., mas identificado pelo nome de sua cidade natal na costa da atual Turquia — escolheu retratar um Rômulo inconsolável diante da morte de Remo (“perdeu a vontade de viver”). Outro ainda, conhecido para nós apenas como Egnatius, optou por uma maneira mais ousada de driblar o problema. A única coisa que sabemos sobre esse Egnatius é que inverteu completamente a história do assassinato, afirmando que Remo viveu mais que seu irmão gêmeo.

Era uma tentativa desesperada, e obviamente não convincente, de fugir à triste mensagem contida no relato: a de que o fratricídio estava entranhado na política romana e que os apavorantes surtos de conflito civil que repetidamente assolaram a história de Roma a partir do século VI a.C. (o assassinato de Júlio César em 44 a.C. é apenas um exemplo) estavam de algum modo predestinados. Afinal de contas, que cidade, fundada sobre o assassinato de um irmão por outro, poderia escapar do assassinato de um cidadão por outro? O poeta Horácio [Quintus Horatius Flaccus] foi um dos vários escritores que responderam essa questão de maneira óbvia. Escrevendo por volta de 30 a.C., na esteira da década de lutas que se seguiram à morte de César, ele lamentava: “Amargo destino persegue os romanos, e o crime do assassinato de um irmão, desde que o sangue do inocente Remo foi derramado no chão para se tornar uma maldição para os seus descendentes”. A guerra civil, poderíamos dizer, estava nos genes dos romanos.

Sem dúvida, Rômulo poderia ser mostrado, e com frequência era, como um heroico pai fundador. Seu embaraço pelo destino de Remo não impediu Cícero de tentar vestir o manto protetor de Rômulo em seu confronto com Catilina. E, apesar da sombra do assassinato, imagens dos gêmeos bebês eram encontradas por todo o mundo romano antigo: tanto na própria capital — onde chegou a haver um grupo de estátuas deles no Fórum e outro no Capitólio (ou Monte Capitolino) — como nas partes mais distantes do Império. Na realidade, quando o povo da ilha grega de Quios quis demonstrar sua sujeição a Roma no século II a.C., uma das coisas que decidiram fazer foi erguer um monumento retratando, como eles mesmos disseram, “o nascimento de Rômulo, o fundador de Roma, e seu irmão Remo”. O monumento não existe mais. Mas sabemos dele porque os habitantes de Quios registraram sua decisão em uma placa de mármore, que sobreviveu. De qualquer modo, ali persistiu certo desconforto moral e político em relação ao caráter de Rômulo.

Também desconfortável, mas de maneira diferente, foi a ideia do asilo, e a acolhida que Rômulo deu a todos os que vieram — estrangeiros, criminosos e desgarrados —, ao procurar cidadãos para sua nova cidade. Houve aspectos positivos em relação a isso. Em particular, refletiu a extraordinária abertura e boa vontade da cultura política romana em incorporar estrangeiros, o que a diferenciou de todas as outras sociedades ocidentais que conhecemos. Nenhuma cidade grega antiga foi remotamente tão acolhedora; Atenas, em particular, restringia com rigor o acesso à cidadania. Isso não é um tributo a nenhum suposto temperamento “liberal” dos romanos no moderno sentido da palavra. Eles conquistaram vastas extensões de território na Europa e além, às vezes com terrível brutalidade; e foram muitas vezes xenófobos e desdenhosos com povos que chamavam de “bárbaros”. No entanto, num processo único em qualquer Império pré-industrial, os habitantes desses territórios conquistados, “províncias”, como os romanos os chamavam, foram aos poucos obtendo cidadania romana, e os respectivos direitos e proteções legais. Isso culminou em 212 d.C. (quando este livro termina), quando o imperador Caracala transformou todo habitante livre do Império em cidadão romano.

Mesmo antes disso, a elite das províncias já ingressara em grande número na hierarquia política da capital. O Senado romano aos poucos se tornou o que podemos descrever hoje como um organismo multicultural, e a lista completa de imperadores romanos inclui vários cujas origens estão fora da Itália: o pai de Caracala, Septímio Severo [Septimius Severus], foi o primeiro imperador oriundo de território romano na África; Trajano e Adriano, que reinaram meio século antes, provinham da província romana da Espanha. Quando em 48 d.C. o imperador Cláudio — cuja imagem afável deve mais à novela Eu, Cláudio, de Robert Graves, do que à vida real — defendeu diante de um Senado relutante que os cidadãos da Gália deviam ter permissão para se tornar senadores, ele passou algum tempo lembrando-os que Roma havia sido receptiva a estrangeiros desde o início. O texto de seu discurso, incluindo algumas interrupções que ao que parece até um imperador tinha que tolerar, foi inscrito em bronze e colocado à mostra na província, na atual cidade de Lyon, onde ainda é preservado. Cláudio, ao que parece, não teve, ao contrário de Cícero, a oportunidade de fazer ajustes antes da publicação.

Houve um processo similar com a escravidão. A escravidão romana foi em alguns aspectos tão brutal quanto os métodos romanos de conquista militar. Mas para muitos escravos romanos, particularmente aqueles que trabalhavam em contextos domésticos urbanos e não na fatigante labuta dos campos ou das minas, não era necessariamente uma pena perpétua. Eles regularmente obtinham sua liberdade, ou a compravam com suas economias; e se o seu dono fosse um cidadão romano, então obtinham também a cidadania romana, sem quase nenhuma desvantagem em relação àqueles que haviam nascido livres. O contraste com a Atenas clássica é mais uma vez evidente: ali, pouquíssimos escravos eram libertos, e os que o eram certamente não recebiam a cidadania ateniense, ficando em uma espécie de limbo apátrida. A prática da emancipação — ou manumissão, para acompanhar o termo em latim — era um traço tão característico da cultura romana que os estrangeiros da época comentavam a respeito dela, vendo-a como um poderoso fator do sucesso romano. Como um rei da Macedônia observou no século III a.C., foi desse modo que “os romanos ampliaram seu país”. A escala era tal que alguns historiadores admitem que, por volta do século II d.C., a maioria da população de cidadãos livres da cidade de Roma tinha escravos em algum ponto de sua ancestralidade.”

 

 

É quase certo que não houve nada semelhante a um momento fundador da cidade de Roma. São bem poucas as cidades ou vilas fundadas assim de uma vez, por um único indivíduo. Não raro, são fruto de mudanças graduais na população, nos padrões de assentamento, na organização social e no sentido de identidade. A maioria das “fundações” são construções retrospectivas, que projetam no passado distante um microcosmo, ou uma versão primitiva imaginada da cidade posterior. O nome “Rômulo” já nos dá uma pista. Embora os romanos costumem supor que foi ele que emprestou seu nome à recém-estabelecida cidade, estamos hoje mais ou menos seguros de que ocorreu o contrário: “Rômulo” foi uma criativa construção baseada em “Roma”. Ou seja, “Rômulo” foi apenas o arquetípico “Senhor Roma”.

Além disso, os escritores e estudiosos do século I a.C., que nos legaram sua versão das origens de Roma, não tinham muito mais evidências diretas das primeiras fases da história de Roma do que os modernos escritores têm hoje, e sob alguns aspectos talvez tivessem até menos. Não haviam sobrevivido documentos nem arquivos. As poucas inscrições antigas em pedra, embora valiosas, não eram tão antigas quanto os estudiosos romanos com frequência imaginavam, e, como iremos descobrir no final deste capítulo, algumas vezes pecavam por uma má compreensão irremediável do latim antigo. Certo, eles tiveram acesso a alguns poucos relatos históricos anteriores que não sobreviveram até nós. Mas os relatos mais antigos haviam sido compostos em cerca de 200 a.C., ou seja, ainda existia um grande abismo entre essa data e as origens da cidade, que só podia ser superado com ajuda de uma série muito variada de histórias, canções, performances teatrais populares e o amálgama mutável e às vezes autocontraditório que compõe a tradição oral — constantemente ajustando o ato de contar e recontar a circunstâncias e plateias variáveis. Existem alguns vislumbres fugazes da história de Rômulo até remontarmos ao século IV a.C., mas depois, a não ser que se traga a loba de bronze de volta à cena, a trilha termina.

No entanto, colocado em outros termos, é justamente por ser a história de Rômulo mítica e não histórica no sentido estrito que ela concentra tão agudamente algumas das questões centrais da Roma Antiga e é tão importante para a compreensão da história romana. Os romanos não haviam simplesmente herdado as prioridades e preocupações de seu fundador, como supunham. É exatamente o oposto: ao longo de séculos recontando e depois reescrevendo a história, eles mesmos haviam construído e reconstruído a figura fundadora de Rômulo como um poderoso símbolo de suas preferências, debates, ideologias e ansiedades. Em outras palavras, voltando a Horácio, não é que a guerra civil fosse o destino de Roma desde o seu nascimento; Roma é que havia projetado suas obsessões com o aparentemente infindável conflito civil e o fazia remontar ao seu fundador.

Também havia sempre a possibilidade de ajustar ou reconfigurar a narrativa, mesmo depois de ela ter alcançado uma forma literária relativamente fixa. Já identificamos, por exemplo, como Cícero escolheu lançar um véu sobre o assassinato de Remo, e como Egnatius o negou inteiramente. Mas o relato de Lívio sobre a morte de Rômulo dá um bom vislumbre de como a história das origens de Roma podia ser usada para soar em sintonia direta com eventos recentes. O rei, explica ele, havia governado por trinta anos quando de repente, numa violenta tempestade, foi envolvido por uma nuvem e desapareceu. Os pesarosos romanos logo concluíram que havia sido arrancado deles para se tornar um deus — cruzando o limite entre humano e divino de uma maneira que o sistema religioso politeísta de Roma às vezes permitia (mesmo que nos pareça um pouco tolo). Mas algumas pessoas da época, concede Lívio, contaram uma história diferente: que o rei havia sido assassinado, decepado pelos senadores. Lívio não inventou totalmente nenhuma das partes desse complô: Cícero, por exemplo, já havia relatado antes a apoteose de Rômulo, embora com uma dose de ceticismo; e um político ambicioso na década de 60 a.C. foi uma vez ameaçado com o “destino de Rômulo”, e isso, presume-se, não significava tornar-se um deus. Mas, escrevendo apenas poucas décadas após o assassinato de Júlio César, que foi apunhalado até a morte pelos senadores e depois recebeu o status de deus (terminando com seu próprio templo no Fórum), Lívio oferece um relato particularmente rico e empático. Não ver os ecos de César nesse caso seria não captar o sentido.”

 

 

Será que Rômulo era filho, ou talvez neto, de Eneias? E se Rômulo fundara Roma, como poderia Eneias também ter feito isso? A maior dificuldade é que havia um desconfortável intervalo entre o século VIII a.C., data que os romanos atribuíam à origem de sua cidade, e o século XII a.C., data atribuída para a queda de Troia (também considerado um evento histórico). Por volta do século I a.C., alcançou-se alguma espécie de coerência com a construção de uma complexa árvore genealógica, que ligou Eneias a Rômulo, e com a definição das datas “exatas”: Eneias passou a ser visto como o fundador não de Roma, mas de Lavínio; seu filho Ascânio foi posto como fundador de Alba Longa — a cidade de onde Rômulo e Remo foram expulsos antes de fundarem Roma; e construiu-se uma dinastia obscura e, mesmo para os padrões romanos, flagrantemente ficcional de reis albanos, para cobrir o intervalo entre Ascânio e a data mágica de 753 a.C. É essa a versão que Lívio endossa.

A afirmação central da história de Eneias é a que faz eco, ou melhor, a que exagera o tema subjacente do asilo de Rômulo. Enquanto este acolhe todos os que chegam à sua nova cidade, a história de Eneias vai além, e afirma que os “romanos” na realidade eram originalmente “estrangeiros”. É um paradoxo na identidade nacional, que permanece em visível contraste com os mitos de fundação de muitas cidades gregas, como Atenas, que via sua população original como tendo brotado milagrosamente do próprio solo de sua terra natal. E há outras variantes do relato das origens de Roma que repetidamente enfatizam esse aspecto estrangeiro. Num episódio da Eneida, o herói visita o local da futura cidade de Roma e já a encontra ocupada por primitivos predecessores dos romanos. E quem são eles? São um grupo de colonizadores sob um certo rei Evandro, exilado da terra da Arcádia, no Peloponeso grego. A mensagem é clara: por mais longe que você vá, os habitantes de Roma serão sempre de algum outro lugar.

Essa mensagem é resumida de modo mais esclarecedor em uma estranha etimologia registrada por Dionísio, entre outros. Os intelectuais gregos e romanos eram fascinados por derivações de palavras, e tinham a convicção de que isso dava a chave, não só da origem da palavra, mas também do seu significado essencial. Às vezes estavam corretos em suas análises, mas também cometiam erros extravagantes, e com frequência reveladores, como neste caso. Dionísio, num ponto inicial de sua história, reflete sobre outro grupo de habitantes, ainda mais primitivos, do local que veio a se tornar Roma: os aborígenes. A derivação dessa palavra deveria ter sido de uma obviedade gritante: seria o povo que estivera ali “desde o início” (ab origine). Dionísio, para sermos justos, chega a levantar essa explicação como possibilidade, mas dá igual ou maior peso à noção improvável de que a palavra deriva não de origo, mas do latim errare (“vagar”), e que originalmente teria sido grafada como aberrigines. Conclui ele então que esse povo seria composto, em outras palavras, por “vagabundos sem moradia fixa”.

A ideia de que estudiosos antigos pudessem ficar cegos diante da etimologia obviamente correta que tinham bem à frente de seus olhos, em favor de uma ideia estapafúrdia de que aborígines derivava de “vagar”, lançando mão de uma tendenciosa ortografia alternativa, não reflete uma suposta obtusidade. Mostra apenas o quanto estava entranhada a ideia de que “Roma” sempre havia sido um conceito etnicamente fluido, e que os “romanos” sempre haviam estado em movimento.”

 

 

É sempre bom enfatizar que não há uma data independente certa para os materiais arqueológicos da Roma primordial ou para a área em torno dela, e que ainda se discute muito sobre a idade de quase todo grande achado. Foram consumidas décadas de trabalho ao longo do século XX — usando diagnósticos como a cerâmica feita com roda girante (supondo que é posterior à que é feita à mão), a presença ocasional nos túmulos de cerâmica grega (cuja datação é avaliada de maneira mais precisa, mas ainda não perfeitamente) e a cuidadosa comparação entre um sítio arqueológico e outro — para produzir um esboço de esquema cronológico cobrindo o período que vai de 1000 a 600 a.C.

Em termos básicos, os enterros mais antigos no Fórum devem ter ocorrido por volta de 1000 a.C., as cabanas no Palatino são de cerca de 750-700 a.C. (um número que tem o fascínio de estar bem próximo a 753 a.C., como muitos observaram). Mas mesmo essas datas estão longe de serem seguras. Métodos científicos recentes — como a “datação por radiocarbono”, que calcula a idade de qualquer material orgânico medindo a quantidade residual de seus isótopos de carbono radiativo — têm sugerido que são todas “jovens” demais, em até cem anos. Para a cabana de Fidenae, por exemplo, definiu-se uma datação por volta de meados do século VIII a.C., segundo critérios arqueológicos tradicionais. Mas isso é jogado para até o final do século IX a.C., quando nos baseamos no radiocarbono. Atualmente, as datações estão se deslocando, mais ainda que o usual; com isso Roma parece estar ficando cada vez mais velha.

Incontestavelmente, por volta do século VI a.C. Roma era uma comunidade urbana, com um centro e alguns edifícios públicos. Antes disso, para as fases mais antigas, temos suficientes achados esparsos relativos ao período central da Idade do Bronze (entre cerca de 1700 e 1300 a.C.) para sugerir que algumas pessoas moravam no local, em vez de simplesmente “passarem por ali”. Quanto ao período intermediário, podemos ter relativa certeza de que vilas maiores se desenvolveram, provavelmente (a julgar pelo que ficou nos túmulos) com um grupo cada vez mais rico de famílias da elite; e que em algum momento estas se uniram em uma única comunidade cujo caráter urbano ficou claro por volta do século VI a.C. Não temos como saber ao certo quando os habitantes desses assentamentos esparsos passaram a se ver como uma única cidade. E não temos a menor ideia de quando foi que começaram a chamar essa cidade de Roma.”

 

 

“Muito da tradição que chegou a nós, longe de ser a realidade, é uma fascinante projeção mítica sobre o passado distante de algumas prioridades e preocupações romanas.”

 

 

Foi em algum ponto desse período crucial entre 500 a.C. e 300 a.C., entre o fim dos Tarquínios e o tempo de vida de Cipião “Barba Longa”, que muitas das instituições características de Roma ganharam forma. Os romanos não só definiram os princípios básicos da política e das liberdades romanas, mas também começaram a desenvolver as estruturas, os pressupostos e (para evitar termos grandiosos) uma “maneira de fazer as coisas” que desse sustentação à sua posterior expansão imperial. Isso envolveu uma formulação revolucionária do que era ser romano, que definiu as ideias de cidadania por séculos, colocou Roma à parte de todas as demais cidades-Estado clássicas e acabou dando forma a muitas visões modernas dos direitos e das responsabilidades do cidadão. Não foi à toa que tanto lorde Palmerston como John F. Kennedy orgulhosamente adotaram a expressão latina Civis Romanus sum (“Sou um cidadão romano”) como slogan para suas épocas. Em resumo, Roma pela primeira vez começou a parecer “romana” como a entendemos hoje, e como eles mesmos a entendiam. A grande questão é, como isso aconteceu, quando e por quê? E que evidência sobrevive que ajude a explicar, ou mesmo descrever, o grande salto adiante de Roma? A cronologia permanece obscura, e é absolutamente impossível reconstruir uma narrativa histórica confiável. Mas podemos ter um vislumbre de algumas mudanças fundamentais tanto domésticas quanto exteriores.

Escritores romanos posteriores apresentaram um relato claro e substancial dos séculos V e IV a.C. Por um lado, abordaram uma série de violentos conflitos sociais dentro da própria Roma: entre um grupo hereditário de famílias “patrícias”, que monopolizavam todo o poder político e religioso na cidade, e a massa dos cidadãos, ou “plebeus”, que eram completamente excluídos. Aos poucos — numa história vívida que envolve greves, motins e uma tentativa de estupro —, os plebeus conquistaram o direito ou, como eles teriam expressado, a liberdade de partilhar poder em termos mais ou menos igualitários com os patrícios. Por outro lado, participaram de uma série de importantes vitórias militares que puseram a maior parte da península Itálica sob o controle romano. Elas começaram em 396 a.C., quando a grande rival local de Roma, a cidade etrusca de Veii, caiu após décadas de lutas, e terminaram cerca de cem anos depois, quando a vitória contra os samnitas fez de Roma a maior base de poder na Itália, chamando a atenção de Duris em Samos. Não que essa fosse uma história de expansão sem desafios. Logo após a derrota de Veii, em 390 a.C., um bando de “gauleses” errantes saqueou Roma. Exatamente quem eram eles é agora impossível saber; os escritores romanos não eram bons em fazer distinções e preferiam colocar todos no mesmo saco, como “tribos bárbaras” do norte, e tampouco tinham interesse em analisar quais seriam suas motivações. Mas, segundo Lívio, os efeitos nesse caso foram tão devastadores que a cidade teve que ser refundada (mais uma vez), sob a liderança de Marco Fúrio Camilo [Marcus Furius Camillus] — líder guerreiro, ditador, “coronel”, por um tempo exilado e um “segundo Rômulo”.

Essa narrativa é baseada em alicerces mais firmes do que qualquer outra antes dela. É possível identificar que, mesmo em 300 a.C., a mais antiga literatura romana estava ainda a décadas de distância, e os relatos posteriores que deram atenção a esse período são carregados de mitos, retoques e fantasia. Camilo provavelmente não é muito menos ficcional do que Rômulo, e já vimos como as palavras de Catilina foram usadas para “ventriloquizar” os discursos de um antigo revolucionário republicano. No entanto, o fim desse período fica à margem da história e da escrita da história como a conhecemos, bem além de um simples epitáfio de quatro linhas. Isto é, quando o bem relacionado senador Fábio Pictor, nascido por volta de 270 a.C., sentou para compor o primeiro relato escrito extenso sobre o passado de Roma, ele deve ter lembrado de conversas de sua juventude com pessoas que estavam presentes nos eventos no final do século IV a.C., ou que haviam tido contato com homens da geração de Barbato que os haviam testemunhado. A História de Pictor não sobreviveu, a não ser por umas poucas citações em escritores posteriores, mas era famosa no mundo antigo. Seu nome e uma breve sinopse de seu trabalho foram encontrados pintados nas paredes de uma das poucas bibliotecas antigas já desenterradas, em Taormina, na Sicília. Dois mil anos depois, podemos ler Lívio, que havia lido Pictor, que havia conversado com pessoas que lembravam de como era o mundo em 300 a.C. — uma frágil cadeia de conexões que mergulha na Antiguidade.”

 

 

Duas questões são claras e questionam um par de mitos modernos enganosos a respeito do poder e do “caráter” romano. Primeiro, os romanos não eram por natureza mais beligerantes do que seus vizinhos e contemporâneos, não mais do que se mostravam naturalmente melhores em construir estradas e pontes. É verdade que a cultura romana prestava um valor muito alto — para nós, incomodamente alto — ao sucesso num combate. Perícia, bravura e violência mortal em batalha eram celebradas repetidamente, não só as do general vitorioso desfilando pelas ruas sob aclamação da multidão em sua triunfal procissão, mas as dos soldados rasos mostrando suas cicatrizes de batalha no meio de discussões políticas, na expectativa de com isso acrescentar peso aos argumentos. Em meados do século IV a.C., a base da plataforma principal dos oradores no Fórum era decorada com aríetes de bronze de navios de guerra inimigos capturados da cidade de Âncio durante a Guerra Latina, simbolizando a base militar do poder político romano. A palavra latina para “aríete”, rostra, tornou-se o nome da plataforma e resultou na palavra do português moderno “rostro”.

No entanto, seria ingênuo imaginar que os outros povos na Itália fossem diferentes. Tratava-se de grupos muito disparatados, e muito mais variados — na língua, cultura e organização política — do que o vocábulo “italianos” implica. Mas julgando a partir do pouco, comparativamente, que sabemos da maioria deles, do equipamento militar encontrado em seus túmulos, das referências de passagem presentes na literatura, dos seus espólios, de suas guerras e atrocidades, eram tão comprometidos com o militarismo quanto os romanos e provavelmente tinham a mesma ambição de lucro. Tratava-se de um mundo de violência endêmica, onde as escaramuças com vizinhos eram eventos anuais, a pilhagem era uma fonte de renda significativa para todos e a maior parte das questões se resolvia pela força. A ambivalência da palavra latina hostis capta muito bem o limite nebuloso entre o “estrangeiro” e o “inimigo” (a mesma palavra em latim, significativamente, pode significar as duas coisas). O mesmo acontece com a expressão latina padrão para “no país e no exterior” — domi militiaeque — na qual “exterior” (militiae) não se distingue de “em campanha militar”. A maioria dos povos da península sem dúvida partilhava essa ambiguidade. Estar fora da própria casa era sempre estar (potencialmente) em guerra.

Segundo, os romanos não planejaram conquistar e controlar a Itália. Não houve nenhum conspirador no século IV a.C. sentado com um mapa delimitando um trecho da maneira territorialista que associamos a Estados-nação imperialistas nos séculos XIX e XX. Para começar, simples como possa soar, eles não tinham mapas. O que implica o mistério de como eles concebiam o mundo ao seu redor. Tenho tentado escrever sobre a difusão do poder de Roma pela península Itálica, mas ninguém sabe quantos — ou, de modo mais realista, quão poucos — romanos naquele tempo pensavam em sua terra natal como parte de uma península do jeito que nós fazemos. Uma versão rudimentar dessa ideia está talvez implícita em referências na literatura do século II a.C. ao Adriático como Mar Superior e ao Tirreno como Mar Inferior, mas é notável que isso esteja na orientação norte-sul, enquanto a nossa é leste-oeste.

Os romanos viam sua expansão mais em termos de relações mutáveis com outros povos do que em termos de controle de território. É claro, o crescente poder de Roma de fato transformou radicalmente a paisagem da Itália. Pouca coisa havia que fosse mais transformadora do que uma nova estrada romana atravessando campos ermos, ou terras sendo anexadas e divididas entre novos colonos. Continua a ser adequado medir o poder romano na Itália em termos de espaço geográfico. No entanto, o domínio romano era primariamente sobre povos e não sobre lugares. Como Lívio bem observou, as relações que os romanos formaram com aqueles povos foram a chave para a dinâmica da expansão romana em seus primórdios.

Os romanos impunham uma obrigação a todos que ficavam sob seu controle: fornecer soldados para seus exércitos. De fato, para a maioria daqueles que foram derrotados por Roma e forçados ou acolhidos em alguma forma de “aliança”, a única obrigação de longo prazo parece ter sido o fornecimento e a manutenção de soldados. Esses povos não foram tomados por Roma sob nenhuma outra maneira; não havia forças de ocupação romanas ou qualquer tipo de governo imposto por eles. Por que essa forma de controle foi a escolhida é impossível saber. Mas é improvável que estivesse em jogo algum cálculo estratégico particularmente sofisticado. Era uma imposição que demonstrava de modo conveniente o domínio romano e ao mesmo tempo exigia poucas estruturas administrativas ou efetivo adicional para gerenciar. Os soldados com os quais os aliados contribuíam eram recrutados, equipados e em parte comandados por gente local. A taxação sob qualquer outra forma teria sido muito mais trabalhosa; o controle direto daqueles que haviam sido derrotados, mais ainda.

Os resultados podem não ter sido intencionais, mas foram inovadores. Pois esse sistema de aliança se tornou um mecanismo efetivo para converter os inimigos derrotados de Roma em parte de sua crescente máquina militar; e ao mesmo tempo deu àqueles aliados uma participação no empreendimento romano, graças ao botim e à glória que eram partilhados em caso de vitória. Depois que o sucesso militar dos romanos teve início, eles conseguiram torná-lo autossustentável de uma maneira que nenhuma outra cidade antiga jamais conseguiu de modo sistemático. Pois o fator mais significativo por trás da vitória nesse período não era a tática, o equipamento, o talento ou a motivação. Era quantos homens você podia colocar em combate. Por volta do século IV a.C., os romanos tinham provavelmente não muito menos do que meio milhão de soldados disponíveis (compare com os 50 mil soldados ou perto disso sob Alexandre em suas campanhas no Oriente, ou talvez 100 mil quando os persas invadiram a Grécia em 481 a.C.). Isso os tornava praticamente invencíveis na Itália: podiam perder uma batalha, mas não uma guerra. Ou, como um poeta romano escreveu na década de 130 a.C.: “O povo romano tem sido derrotado com frequência pela força e superado em muitas batalhas, mas nunca numa guerra de verdade da qual tudo depende”.

Havia, porém, outras implicações de longo alcance na maneira pela qual os romanos definiram suas relações com outros povos da Itália. Os “aliados” que estavam comprometidos unicamente a fornecer efetivo eram os mais numerosos, mas constituíam apenas uma das categorias. Os romanos estenderam sua cidadania a algumas comunidades de amplas áreas do centro da Itália. Às vezes, isso envolvia plenos direitos de cidadania e privilégios, incluindo o direito de voto ou de concorrer a eleições romanas, embora continuando ainda a ser cidadão de outra cidade. Em outros casos, eles ofereciam uma forma mais limitada de direitos que passaram a ser conhecidos (autoexplicativamente) como “cidadania sem voto”, ou civitas sine suffragio. Havia também pessoas que viviam em territórios conquistados, em assentamentos conhecidos como colônias (coloniae). Estas não tinham nada a ver com as colônias no sentido moderno do termo, mas eram cidades novas (ou expandidas), geralmente compostas por uma mistura de habitantes locais e colonizadores de Roma. Alguns poucos tinham status de cidadania romana plena. A maioria tinha o que se conhecia como direitos latinos. Não se tratava de cidadania como tal, mas de um pacote de direitos que se acreditava ser compartilhado desde tempos imemoriais pelas cidades latinas, mais tarde definidos formalmente como intercasamentos com romanos, direitos mútuos para a realização de contratos, trânsito livre e assim por diante. Era algo a meio caminho entre ter cidadania plena e ser um estrangeiro, ou hostis.

Como foi que esse complicado mosaico de status se originou é mais uma vez difícil saber. Os escritores romanos do século I a.C., no que foram seguidos pelos modernos estudiosos das leis, tenderam a tratá-lo como parte de um sistema altamente técnico, cuidadosamente ajustado, de direitos civis e responsabilidades. Mas isso é provavelmente fruto de uma racionalização jurídica posterior. É inconcebível que homens do século IV a.C. tenham se sentado para debater as implicações precisas da civitas sine suffragio ou os privilégios exatos que estavam associados a quem pertencesse a uma colônia “latina”. Muito mais provável é que estivessem improvisando suas novas relações com diferentes povos no mundo exterior usando, e ajustando, as rudimentares categorias de cidadania e de etnicidade que já tinham.

As implicações, porém, foram, novamente, revolucionárias. Ao estender a cidadania a pessoas que não tinham conexões territoriais diretas com a cidade de Roma, eles romperam o vínculo que a maioria das pessoas no mundo clássico admitia como certo entre cidadania e alguma cidade específica. De uma maneira sistemática que depois não encontrou paralelo, eles permitiram não apenas tornar-se romano, mas também ser um cidadão de dois lugares ao mesmo tempo: da sua cidade natal e de Roma. E ao criarem novas colônias latinas por toda a Itália, redefiniram o termo “latino”, que deixou de ser uma identidade étnica e passou a ser um status político sem relação com raça ou geografia. Isso preparou o terreno para um modelo de cidadania e de “pertencimento” que teve enorme importância para as ideias romanas de governo, direitos políticos, etnicidade e “nacionalidade”. Esse modelo foi logo estendido ao exterior e acabou sustentando o Império Romano.”

 

 

Causas e explicações

Não há um símbolo mais vívido da mudança no relacionamento de Roma com o mundo exterior no início do século IV a.C. do que o grande muro erigido em volta da cidade nos anos posteriores à partida dos gauleses, com um perímetro de onze quilômetros e em alguns lugares com até quatro metros de espessura. Foi ao mesmo tempo um projeto de construção mastodôntico (mais de 5 milhões de homens/hora para o trabalho de construção, segundo uma estimativa) e um ostentoso símbolo da proeminência de Roma e de seu lugar no mundo. Não há dúvida, concordam historiadores, tanto antigos quanto modernos, de que foi por volta dessa época que começou a expansão militar romana para fora de sua vizinhança imediata. E tampouco há qualquer dúvida de que a expansão, depois de iniciada, foi sustentada pelos recursos de efetivo que vieram das alianças que se seguiram às vitórias.

Mas o que causou a mudança em primeiro lugar é uma questão complicada. O que será que aconteceu no começo do século IV a.C. para iniciar essa nova fase na atividade militar romana? Nenhum escritor antigo arrisca uma resposta, além da implausível ideia de que a semente da dominação mundial havia de algum modo sido plantada. Talvez a invasão dos gauleses tivesse produzido nos romanos a determinação de não serem pegos de novo dessa forma, de passarem à ofensiva em vez de se verem forçados a se defender. Talvez apenas um par de vitórias com sorte nas endêmicas lutas da região, seguidas por outro par de alianças e pelo efetivo adicional que elas trouxeram, tenha disparado o processo de expansão. Seja qual for o caso, parece provável que as radicais mudanças na política doméstica desempenharam seu papel.

Até aqui, na exploração desse período, mantive em grande parte a história interna de Roma separada da história de sua expansão. Isso contribuiu para obter uma narrativa mais clara, mas tende a obscurecer o impacto da política interna nas relações externas, e vice-versa. Por volta de 367 a.C., o Conflito das Ordens tinha feito algo mais significativo e de maior alcance do que simplesmente acabar com a discriminação política contra os plebeus. Havia efetivamente substituído uma classe governante definida por nascimento por outra definida por riqueza e realizações. É esse em parte o foco do epitáfio de Barbato: embora a família de Cipião fosse patrícia, o que conta aqui são os cargos que ele deteve, as qualidades pessoais que demonstrou e as batalhas que venceu. Nenhuma realização era mais demonstrável ou mais celebrada do que a vitória em batalha, e o desejo de vitória em meio à nova elite era quase certamente um fator importante para a intensificação da atividade militar e o incentivo à guerra.

Do mesmo modo, foi o poder sobre povos cada vez mais distantes e as exigências de um Exército conquistador que impulsionaram muitas das inovações que revolucionaram a vida em Roma. Um exemplo importante disso é a cunhagem. Desde cedo em sua história, a cidade teve um sistema-padrão de determinar o valor monetário pelo peso do metal; isso está evidente nas Doze Tábuas, que atribuem penas em unidades de bronze. Mas não houve cunhagem como tal até o final do século IV a.C., quando as moedas “romanas” foram cunhadas pela primeira vez, no sul da Itália, provavelmente para pagar atividades bélicas ou construção de estradas.

Em termos mais gerais, se fôssemos perguntar o que transformou o mundo relativamente simples das Doze Tábuas no mundo complexo do ano 300 a.C., o fator mais influente teria sido o porte da dominação romana e as demandas organizacionais de lutar em grande escala. A simples logística de transporte, suprimentos e equipamento necessária para montar uma campanha com 16 mil romanos (para usar a estimativa de Lívio), mais os aliados, demandava uma infraestrutura impensável em meados do século V a.C. Embora eu tenha tentado evitar termos modernizantes como “aliança” e “tratado” ao me referir à atividade romana no século V a.C., a rede de conexões romanas ao longo da península e as diferentes definições das relações de Roma com as diversas comunidades por volta do final do século seguinte tornam esses termos bem menos inadequados. A expansão militar impulsionou a sofisticação romana.”

sábado, 7 de agosto de 2021

Os 77 melhores contos dos Irmãos Grimm (Volume I)

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-65-4640-254-3

Introdução e organização: Luciana Sandroni

Tradução: Íside M. Bonini

Ilustrações: Silvio Ramirez

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 296

Sinopse: Coletados há mais de duzentos anos, os contos e lendas dos irmãos Grimm vêm encantando geração após geração e chegaram aos dias de hoje incrivelmente populares. Eles já foram traduzidos para mais de 160 línguas e ganharam diversas versões ao longo dos anos, em livros ilustrados, desenhos animados, peças, filmes e histórias em quadrinhos. Muitos detalhes, porém, foram amenizados nessas adaptações.

Com a tradução consagrada de Íside M. Bonini, esta antologia resgata a versão original das 77 melhores histórias, cuja seleção ficou a cargo da escritora Luciana Sandroni. Há contos famosos para se redescobrir — como Branca de Neve, Cinderela, Rapunzel e A Bela Adormecida — e outros menos conhecidos — como Os quatro irmãos habilidosos, As três folhas da serpente e O ouriço-do-mar —, que tornam a obra dos Grimm uma das mais ricas heranças da literatura infantil. As clássicas ilustrações de Silvio Ramirez completam a edição, que é um verdadeiro presente para o leitor.



O doutor Sabe-tudo

Era uma vez um camponês chamado Camarão. Certo dia, ele levou um carro puxado por uma junta de bois, cheio de lenha, à cidade e vendeu-a a um doutor. Enquanto recebia o dinheiro, Camarão viu que o doutor estava sentado à mesa comendo e bebendo tão bem que, de todo o coração, desejou ser doutor também. Ficou um tempo ali parado olhando e, depois, perguntou se não seria possível que ele se tornasse doutor.

— Ah, é muito fácil! — disse o doutor.

— Que devo fazer? — perguntou o camponês.

— Em primeiro lugar, compre uma cartilha. Compre a que tem um galo na primeira folha. Em segundo lugar, venda o carro e os bois convertendo tudo em dinheiro. Em terceiro lugar, manda pintar uma placa com os seguintes dizeres: “Eu sou o doutor Sabe-tudo”, e manda pregá-la no alto da tua porta.

O camponês fez tudo direitinho. Após ter “doutorado” um pouco, mas não muito, houve um assalto na casa de um ricaço. Este ouviu falar no doutor Sabe-tudo, que morava em certa aldeia e que, de acordo com o próprio nome, deveria saber também que fim levara o dinheiro. Sem mais demora, o ricaço mandou atrelar o carro, seguiu para a tal aldeia, informando-se se era ele o doutor Sabe-tudo.

— Sim, sou eu.

Nesse caso, tinha de acompanhá-lo a fim de encontrar o dinheiro roubado.

Sim, mas a Guida, sua mulher, tinha que ir junto. O ricaço consentiu, fê-los subir no carro e todos partiram. Quando chegaram ao solar, a mesa estava posta, então o ricaço convidou o doutor Sabe-tudo para jantar com ele. Sim, disse ele, mas também a Guida, sua mulher. E com ela foi sentar-se à mesa.

Ao aparecer o primeiro criado, trazendo uma linda bandeja cheia de quitutes, o camponês deu uma cotovelada na mulher dizendo:

— Guida, esse é o primeiro — referia-se ao primeiro prato.

Mas o criado julgou que ele dizia que este é o primeiro ladrão e, como de fato o era, assustou-se muito e lá fora disse aos seus colegas:

— O doutor sabe tudo, vamos acabar mal. Ele disse que eu era o primeiro.

O companheiro não queria entrar na sala, mas tinha que ir. Ao apresentar-se com o prato nas mãos, o camponês deu outra cotovelada na mulher dizendo:

— Guida, esse é o segundo.

O criado começou a tremer de medo e tratou de sair logo. O mesmo aconteceu com o terceiro criado. O quarto criado teve de trazer uma travessa tampada. O ricaço, então, disse ao doutor que desse uma prova de sua arte adivinhando o que ela continha. Eram camarões. O camponês olhou para a travessa muito atrapalhado e, não sabendo como sair daquela enrascada, exclamou:

— Ah, pobre Camarão!

Ouvindo isso, o ricaço disse:

— Veja só, ele acertou. Então deve saber também onde está o dinheiro.

O criado, que estava morrendo de medo, fez um sinal ao camponês para que fosse no jardim um instante. Uma vez lá fora, os criados confessaram que os quatro juntos haviam roubado o dinheiro. Estavam dispostos a restituí-lo e dar-lhe uma grande quantia se ele não os denunciasse; caso contrário, seriam enforcados.

Levaram-no até onde estava escondido o dinheiro. Depois de concordar com tudo, o doutor voltou para a mesa, dizendo:

— Senhor, verei no meu livro onde está o dinheiro.

Mas o quinto criado se abaixou escondido num canto da lareira a fim de ouvir se o doutor sabia de mais alguma coisa. O doutor abriu a cartilha, a folheou um pouco, procurando o galo. E não o encontrando logo, disse:

— Sei que está aqui dentro, por que está se escondendo?!

O criado escondido na lareira julgou que se referisse a ele. Assustado, pulou para fora dizendo:

— Ah, esse homem sabe tudo.

O doutor Sabe-tudo mostrou ao ricaço o lugar onde se achava o dinheiro, sem dizer, porém, quem o havia roubado. Então recebeu de ambas as partes uma grande recompensa e, desse dia em diante, tornou-se famoso.”

 

 

A raposa e o gato

Certa vez um gato encontrou a Raposa na floresta e pensou com seus botões: “Ela é muito sabida e esperta, e tem muita influência na sociedade.” Então, dirigiu-se a ela com toda a amabilidade:

— Bom dia, prezada senhora raposa! Como vai? Como está? Como passa com as coisas tão caras?

A raposa, cheia de empáfia, o olhou da cabeça aos pés, indecisa se devia ou não responder-lhe. Finalmente disse:

— Seu morto de fome, pega-ratos atrevido, que te deu na telha? Ousas perguntar-me como vou passando? Quem te ensinou isso? Dize-me, quantas artes conheces?

— Conheço apenas uma — respondeu com toda a modéstia o pobre gato.

— E que espécie de arte é essa? — perguntou a raposa.

— Quando os cães me perseguem, sei subir numa árvore e ficar a salvo.

— É tudo o que sabes? — perguntou a raposa. — Pois eu possuo cem artes e ainda por cima possuo um saco cheio de astúcia. Você me dá pena! Vem comigo, eu te ensinarei como deves fazer para fugir dos cães.

Exatamente nesse momento chegou um caçador com quatro cães. O gato, mais que rapidamente, subiu numa árvore e aninhou-se no galho mais alto, ficando escondido pela folhagem, e de lá de cima gritava:

— Abra o saco, senhora raposa! Abra o saco!

Mas os cães já haviam agarrado a raposa e não a soltavam.

— Pobre senhora raposa! — ia gritando o gato — com todas as suas artes acabou caindo na armadilha. Se soubesse apenas uma como eu, teria salvo a vida!”

 

 

A raposa e o cavalo

Era uma vez um camponês que possuía um cavalo que trabalhara sempre com a maior dedicação, mas o pobre animal ficara velho e imprestável, e o seu dono não queria mais alimentá-lo. Um belo dia, disse-lhe:

— Agora já não tens mais utilidade para mim. Eu, porém, gosto de ti. Se tiveres ainda força suficiente para me trazeres um leão, ficarei contigo. Mas, por enquanto, tens de ir-te embora e desocupar a cocheira! — Com isso, tocou-o para o pasto.

O cavalo ficou muito triste e encaminhou-se para a floresta, a fim de se abrigar do temporal, e lá encontrou a raposa, que lhe dirigiu a palavra:

— Por que é que andas assim, a esmo, triste, de cabeça baixa?

— Ah — respondeu o cavalo —, avareza e fidelidade não moram juntas! Meu patrão esqueceu os serviços que lhe prestei durante tantos anos e agora, porque não posso mais puxar o arado com a mesma rapidez, resolveu privar-me do alimento e enxotou-me de casa.

— Sem uma palavra de consolação? — perguntou a raposa.

— A consolação foi magra: disse-me que, se ainda tiver forças para lhe levar um leão, ficará comigo, pois bem sabe que não posso fazer tal coisa.

— Eu te ajudarei — disse a raposa —, basta que te deites esticado no chão sem te mexeres, como se estivesses morto.

O cavalo fez o que lhe sugeria a raposa. Enquanto isso ela foi ter com o leão, que tinha o antro aí perto, e disse-lhe:

— Perto daqui há um cavalo morto. Vem comigo e terás um farto almoço.

O leão seguia-a e, quando se aproximaram do cavalo, a raposa disse:

— Aqui não terás a necessária comodidade para comê-lo. Sabes de uma coisa? Vou amarrá-lo pelo rabo à tua perna, assim poderás arrastá-lo facilmente para a tua toca e lá o comerás tranquilamente.

O leão achou ótima a ideia. Então a raposa pegou o rabo do cavalo e com ele amarrou com força as patas traseiras do leão. Amarrou tão bem que não havia jeito de desamarrá-lo. Concluído o trabalho, deu uma pancadinha nas costas do cavalo, gritando:

— Upa, meu alazão. Puxa, puxa!

Então o cavalo de um salto, pôs-se de pé e foi arrastando o leão. Este começou a rugir tão espantosamente que estremeceu toda a floresta, assustando os pássaros que fugiam voando de seus ninhos. O cavalo não se importou e deixou-o rugir à vontade.

Embora com alguma dificuldade, foi puxando-o e arrastando-o pelos campos, até a porta da casa do seu amo.

Ao deparar com aquilo, o camponês disse ao cavalo:

— Podes ficar aqui comigo para sempre e nada te faltará.

Depois deu-lhe comida com fartura e tratou-o bem até ele morrer.”

 

 

“Esta história, crianças, pode parecer falsa, contudo, podem acreditar. Toda a vez que a contava, meu avô dizia com muita seriedade:

— Deve ser verdade, meu filho, se não ninguém a contaria.”

 

 

“São todos iguais, estes filhos de nobres! Conhecem palavras bonitas, mas, quando se trata de cumpri-las, fogem.”