terça-feira, 7 de abril de 2020

Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Parte II) – Vladimir Safatle

Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Ver Parte I



A ampliação das estratégias da crítica feita por Adorno tem sua razão histórica. Vimos como Marx critica a dialética hegeliana por ter em vista um horizonte histórico marcado pelo caráter retardatário da realidade alemã e seu sistema de “compensações simbólicas” através do recurso às dinâmicas de superação produzidas pela Ideia. Já Adorno, nos anos 50 e 60 do século XX (momento em que ele se volta de forma mais sistemática para a reconstrução da dialética), não está exatamente diante de um horizonte histórico de descompasso entre avanço da Ideia e atraso da efetividade. Mais correto seria dizer que ele se confronta com um momento histórico de aparente fortalecimento da capacidade de organização sistêmica do capitalismo e de seu horizonte normativo através dos desdobramentos do “capitalismo de estado”. Uma organização que se expressa não apenas em um sistema até então inédito de gestão de crises e de previsão de demandas através de instâncias não-privadas de regulação, o qual leva Adorno a afirmar que nossa época conheceria uma predominância da força sistêmica das relações de produção sobre o caráter disruptivo das forças produtivas. Adorno insistirá também em um processo convergente de gestão social no qual os campos da cultura e da economia, assim como dinâmicas sociais de trabalho, desejo e linguagem, obedecem a um profundo processo de integração.
Esse horizonte aparece a Adorno como um horizonte de máxima integração que se traduz em um princípio social de paralisia e conservação ainda mais problemático do que aquele apontado por Marx, já que a integração entre força reguladora do Estado e mercado permitiria a limitação dos processos de pauperização e precarização que poderiam ser o fundamento de um sofrimento social capaz de levar a ações de ruptura. Mas esta pretensa limitação dos processos de espoliação econômica (afinal, é sempre bom lembrar, Adorno não viu a ascensão neoliberal dos anos setenta, seu horizonte é o da ascensão do Estado providência e, definitivamente, Adorno não é um teórico da socialdemocracia, mas um de seus críticos mais conscientes) seria paga pelo aprofundamento das dinâmicas de alienação social através da industrialização do campo da cultura e a consequente estereotipia das relações intersubjetivas e das relações a si. O que explica a insistência em compreender a irredutibilidade da alienação mesmo em situações nas quais a espoliação teria pretensamente sido controlada. (...)
De toda forma, levemos em conta uma contextualização histórica necessária. Pois se configurações importantes da estratégia adorniana eram resultantes da tomada de posição a respeito de uma situação histórica fundada no advento do Estado providência, há de se notar que o colapso atual dessa situação e a consolidação de uma alternativa neoliberal recoloca a crítica diante de uma sociedade com alto potencial de antagonismo. Dessa forma, a crítica pode insistir novamente em dinâmicas necessárias de emergência de sujeitos políticos, em uma certa recuperação de modelos presentes em Marx, e de forma mais explícita do que Adorno poderia fazer no interior de seu horizonte histórico de integração da classe proletária à economia social de mercado alemã (que Adorno compreendia como o horizonte privilegiado de desenvolvimento do capitalismo). É verdade que o advento do neoliberalismo não implica em obsolescência da consolidação da estrutura repressiva do “capitalismo de Estado”. Não só na esfera econômica, o Estado permanece em sua função de intervenção, garantindo as condições para o processo de monopolização da economia. Na esfera social, encontramos o Estado a gerir dispositivos de integração, mas, diferentemente do estado do bem-estar social, não se trata mais de uma integração pelas vias da promessa de limitação da pauperização. Trata-se de uma integração pelo uso do paradigma da insegurança social generalizada, ou seja, integração através da paralisia provocada pelo medo da morte social. Nessas condições, o antagonismo pode se recolocar de forma mais explícita permitindo inflexões na dialética que apareciam como impossíveis a Adorno.”


“Há de se lembrar que o conceito de proletariado tem, em Marx, uma realidade que não é apenas sociológica. Ele descreve também uma posição ontológica ligada à despossessão generalizada como condição para a ação efetiva, assim como ligada à expressão da negatividade e da irredutibilidade às predicações como posição fundamental do sujeito269. Através de uma situação na qual sujeitos aparecem como profundamente despossuídos, os vínculos às atuais formas de vida e à seus regimes disciplinares se fragilizam, permitindo a emergência de um novo sujeito. A despossessão e a desidentificação podem aparecer como a condição fundamental da recuperação política do proletariado, para além de sua restrição à descrição sociológica da classe dos trabalhadores que tem apenas sua força de trabalho.
Em dado momento, Adorno afirma: “A confrontação (Gegenüberstellung) entre burguês e proletário nega tanto o conceito burguês de homem assim como os conceitos da economia burguesa”270. Colocações desta natureza, que articulam claramente crítica da economia política e crítica da estrutura disciplinar de constituição de figuras da subjetividade, mereceriam ser melhor exploradas. Pois se nos perguntarmos sobre o que caracteriza tal antropologia do sujeito burguês veremos uma certa ligação à identidade, à relações por propriedade, à abstração, à funcionalidade. Tais características necessariamente são negadas com o advento do proletariado. Assim, a dicotomia entre burguês e proletário não é apenas resultado de um problema de distribuição e de espoliação econômica (que, é sempre bom lembrar, retorna de forma muito mais forte no interior do neoliberalismo). Ela é expressão de um antagonismo a respeito de formas do sujeito, ou seja, um antagonismo sobre figuras da subjetividade. A ponto de Adorno afirmar que o desaparecimento da autonomia do mercado e da individualidade burguesa implica o desaparecimento do seu oposto, a saber, a desumanização daqueles rejeitados pela sociedade. Tal desumanização não aponta, no entanto, para a perda do que a individualidade burguesa entende por “humanidade”. Ela aponta para a impossibilidade da emergência de uma “humanidade” que nos retiraria desta pré-história contínua travestida de história da ascensão e hegemonia da burguesia. Neste sentido, lembremos de afirmações de Marx e Engels como:
A relação comunitária em que entram os indivíduos de uma classe, relação condicionada por seus interesses comuns frente a um terceiro, era sempre uma comunidade a qual pertenciam esses indivíduos somente na condição de indivíduos médios, somente enquanto viviam dentro das condições de existência de sua classe, uma relação que não os unia como indivíduos, mas como membros de uma classe. Na comunidade dos proletários revolucionários, ao contrário, que tomam sob seu controle suas condições de existência e a de todos os membros da sociedade, ocorre justamente o oposto; tomam parte dela os indivíduos como indivíduos271.
269 Tentei desenvolver este ponto no quarto capítulo de SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos, Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
270 ADORNO, Theodor. Soziologische Schriften I, p. 389.
271 MARX e ENGELS. A Ideologia alemã, p. 102.


Notem a distinção feita por Marx e Engels. Antes do advento do proletariado como classe revolucionária, os indivíduos só formavam classes enquanto resposta a uma luta comum contra um terceiro, contra outra classe. Ou seja, a classe aparece assim como uma associação condicionada pela existência de um terceiro excluído, dentro dos usos políticos da distinção amigo/inimigo. Mas por ser uma estrutura defensiva, ela necessariamente definirá os indivíduos a partir de um modo de pertencimento baseado na partilha geral de atributos diferenciais que constituem a classe como um conjunto. A classe funda assim uma identidade por partilha de atribuição e toda identidade desta natureza é sempre uma operação defensiva. Daí a ideia de que, no interior da classe, os indivíduos aparecem apenas como indivíduos médios, ou seja, indivíduos submetidos a um padrão, a uma mediana com a qual todos devem se conformar.
Já na associação de indivíduos livres produzida pelo proletariado, (e há de se compreender que não se trata aqui da noção liberal de indivíduo, mas uma noção dialética de singularidade) podem aparecer como não mais submetidos a uma definição de classe. Primeiro, eles não se submetem mais à divisão do trabalho, por isto sua atividade não é compreendida como trabalho. Como dirão Marx e Engels, o proletariado elimina o trabalho. Por outro lado, eles não se confrontam mais com um terceiro excluído, por isto sua ascensão é a dissolução de todas as classes, é o fim da compreensão da vida social como constituída por classes e a realização possível do da totalidade própria ao ser do gênero. Marx e Engels chegam a falar em: “apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no consequente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades”272. A apropriação da totalidade só é possível porque não há mais uma perspectiva de classe em operação. Nesse momento, outra história começa: uma história do ser humano. Esse horizonte não pode ser dissociado da dialética negativa de Adorno.”


“Há uma certa ironia aqui. Pois tudo se passa como se Adorno acusasse Heidegger de fazer uma certa “‘dialética negativa”, mas uma peculiar dialética negativa feita apenas com negações simples na qual, por isso, o ser precisará perpetuar indefinidamente sua negação aos entes para se manifestar Algo como um juízo de existência sem faticidade expresso na ideia de subtração de todos os predicados. Daí por que Heidegger acabaria por tratar o ser como “identidade, puro ser si mesmo, desprovido de sua alteridade”.329 Não é difícil perceber que Adorno nega ao ser a possibilidade de ele possuir uma determinação imanente, o que demonstra claramente a estratégia dialética de não pensar exatamente por rupturas, mas por metamorfoses.
No interior de um pensamento dialético, o modo de determinação dos entes não pode ser exatamente contraposto a outro modo de determinações sem que não se transforme em uma mera duplicação, em um decalque do primeiro pelo segundo. Pois, para uma teoria do absoluto, como a que está na base do pensamento dialético (e mesmo uma dialética negativa opera com um conceito de absoluto sob a figura da totalidade pressuposta, como tentei defender no segundo capítulo deste livro), não é possível haver dois modos gerais de determinação em relação de exterioridade indiferente um para com o outro. Na verdade, é possível apenas que o modo de determinação dos entes seja transmutado em seu outro, ou seja, é possível apenas que ele, de certa forma, imploda-se em um movimento de realização do absoluto. A dialética não é uma teoria das contraposições, mas uma teoria das metamorfoses
Por isso, melhor seria, ao menos segundo a perspectiva de Adorno, entender como os entes sempre remetem para além de si mesmos em um movimento que é processo, não exatamente ser: Isso explica por que Adorno pode dizer que Heidegger para no limiar de uma dialética sem processualidade, paralisada pela procura em realizar uma estabilidade que a verdadeira dialética saberá criticar por assumir a reflexão a respeito da imbricação interna entre sujeito e objeto.330
É a razão pela qual esta negação indefinida do ser heideggeriano precisaria aparecer, paradoxalmente, como algo firme:
A mais urgente das necessidades hoje parece ser a necessidade de algo firme. Ela inspira as ontologias; elas se adaptam a essa necessidade. Ela possui a sua justificação no fato de que se quer segurança, de que não se quer ser enterrado por uma dinâmica histórica contra a qual as pessoas se sentem impotentes. O imperturbável gostaria de conservar aquilo que é antigo e condenado. Quanto mais desesperançadamente as formas sociais existentes bloqueiam essa nostalgia, tanto mais irresistível a autoconservação desesperada introduzida em uma filosofia que deve ser as duas coisas ao mesmo tempo, desespero e autoconservação. Se a ameaça desaparece, então com certeza também desapareceria com ela a sua inversão positiva, que não é ela mesma outra coisa senão seu negativo abstrato.331
Assim, se não há ontologia do ser no pensamento dialético, é porque o conceito central só poderia ser um conceito reflexivo, no sentido de um conceito que descreve o movimento de imbricação entre categorias até então opostas, que permite a intelecção das transformações mútuas entre o que se separa da existência e o que se determina em uma situação. Esse conceito não será o ser, mas a essência. Como já disse, há uma certa ontologia no interior da dialética, mas ela será uma ontologia da processualidade e das metamorfoses categoriais contínuas.
Heidegger compreende a essência hegeliana como desdobramento da evtpytta de Aristóteles.332 No entanto, o conceito aristotélico é pensado no interior de um movimento de efetivação que é passagem da potência ao ato. Contra isso, há de se lembrar que nem todas as figuras do movimento que animam a essência hegeliana são pensáveis como passagem da potência ao ato. Se assim fosse, não haveria sentido, por exemplo, em falar: “o que em geral move o mundo é a contradição”333. Pois não há contradição alguma na passagem da potência ao ato. Se a contradição desempenha um papel tio central na noção hegeliana de movimento é porque, frente essência hegeliana e à evepytla aristotélica, não estamos diante de conceito simétricos.”
329 ADORNO, Dialética negativa, p, 95.
330 Por isso, Adorno pode dizer: “Heidegger segue a dialética até o ponto em que nem o sujeito, nem o objeto são algo imediato e último, mas salta para fora dela na medida em que busca a se lançar para além deles em direção a algo imediato e primeiro” (ADORNO, Dialética negativa, p 97).
331 Idem, p. 87
332 HEIDEGGER, Marcas do caminho, p. 446.


“A experiência do campo de concentração não é, para Adorno, puro apanágio do nazismo. Uma história do campo de concentração nos levaria ao colonialismo (como os campos de reconcentración criados pelos espanhóis em Cuba no final do século XIX ou os campos britânicos contra os afrikaners na Segunda Guerra dos Boers, no início do século XX, no quais foram mortos em torno de 26.000 pessoas). Ou seja, a experiência do campo de concentração é a expressão mais bem-acabada da forma colonial própria ao desenvolvimento do capitalismo monopolista e suas estruturas de controle e exclusão em relação à “humanidade”. Isso talvez possa nos permitir contextualizar melhor o imperativo moral fundado na interdição de que Auschwitz se repita, de que uma forma fascista de vida não se imponha sob suas múltiplas formas.”


“No entanto, tal interesse não pode ser abstraído também do diagnóstico de que o capitalismo em meados do século XX se transformara em um “capitalismo de Estado” (em versões autoritárias e democráticas) que teria se imposto como modelo de gestão social baseado na regulação e controle dos agentes econômicos pela capacidade de planificação própria a uma economia de comando. Como insisti anteriormente, nesse modelo de gestão, a força de transformação social ligada aos conflitos de classe e lutas estruturais contra a pauperização parecia ter sido em larga medida desativada devido aos processos de integração da classe operária a redes de assistência e participação limitada na riqueza social. Essa dinâmica de capitalismo de Estado era o ponto de contato, utilizado pelos frankfurtianos, entre a democracia liberal e as experiências totalitárias do pré-guerra.
Vimos como, mesmo sem admitir a integralidade do diagnóstico de Friedrich Pollock a respeito da desativação do conflito social, Adorno lembrará mais de uma vez que o conceito de classe não seria mais operativo por não haver condições de apelar a uma consciência de classe. Essa impossibilidade de consolidação de consciência de classe não era apenas um dado sociológico. Havia uma impossibilidade psicológica de sujeitos se verem como encarnações de uma mesma consciência de classe devido à anestesia em relação ao sofrimento social de alienação. Nesse sentido, lembremos como a gestão social própria às sociedades do capitalismo de Estado havia aprofundado o que Adorno chamava de “expropriação do inconsciente pelo controle social”, ou seja, uma expropriação pulsional direta que se serve do enfraquecimento do Eu, da ascensão das patologias narcísicas e do declínio dos processos de identificação no interior do núcleo familiar para neutralizar o conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade através de uma satisfação socialmente administrada. Essa neutralização do conflito através da integração produziria um nível fundamental de anestesia em relação à experiência social de alienação que ultrapassará o quadro estrito do capitalismo de Estado, sendo peça constitutiva da desarticulação dos processos de incorporação política do descontentamento social mesmo em fases posteriores, como no caso do capitalismo neoliberal.376
De fato, as regulações e integrações socioeconômicas não poderiam se impor sem regulações e integrações psicológico-culturais. A atenção à imbricação entre estes dois modos de regulação será uma característica da crítica social frankfurtiana. Nesse contexto, há de se falar em “expropriação pulsional” porque não se trata apenas de uma dinâmica social de socialização do desejo, de sua inscrição no interior de uma rede simbólica.377 O capitalismo saberá, paulatinamente, expropriar o excesso pulsional (tópico maior do que os frankfurtianos chamarão de dessublimação repressiva), dar uma medida ao que antes alimentava as transgressões da pulsão, mesmo que se trate da contabilidade da desmedida, ou antes, da submissão da desmedida à contabilidade. Ele saberá fazê-lo através dos mecanismos libidinais presentes na indústria cultural, e não será um acaso se encontrarmos uma pletora de conceitos psicanalíticos mobilizados nos estudos adornianos sobre a indústria cultural, a começar pelo conceito de “fetichismo” aplicado ao campo da cultura: resultado de uma costura entre temáticas marxistas e psicanalíticas.378 A ponto de Adorno afirmar que a indústria cultural seria uma espécie de “psicanálise ao avesso”.
Desenvolvendo as temáticas da dessublimação repressiva como forma de integração social e desativação de conflitos, Adorno falará, por exemplo, de uma “dessexualização do próprio sexo” naquilo que ele teria de desestabilizador, através de sua “pasteurização como sex, por assim dizer, como uma variante do esporte”379. Tal dessexualização seria solidária do advento de um discurso não-repressivo, mas integrador de conflitos através da eliminação da força disruptiva das pulsões parciais e de suas estruturas múltiplas e sem telos.380 Como se a sexualidade em circulação na retórica do consumo e na indústria cultural, constituída por uma articulação entre discurso médico e imaginário cultural, se transformasse em um mecanismo de defesa contra o próprio sexual.381 Dessa forma, as bases motivacionais da recusa e da revolta poderão ser solapadas através da adaptação de sujeitos a uma vida mutilada. Mas para entender tal colapso das bases motivacionais da revolta, há de se perguntar sobre a estrutura pulsional no interior do capitalismo, o que implicará modificações substanciais no que devemos entender por crítica.
Tendo tal diagnóstico em mente; podemos entender por que, para Adorno, as dinâmicas de resistência deverão se enraizar não mais na esfera da classe social e da emergência possível de sua consciência, mas na esfera do sujeito e de seu inconsciente. Serão seus sofrimentos, seu mal-estar, seus sintomas que testemunharão a natureza violenta de um processo de gestão social cuja regulação passará pela procura em desconstituir toda experiência possível da diferença. Serão seus sofrimentos, seu mal-estar, seus sintomas que sustentarão a possibilidade de uma vida correta radicalmente fora dos modos de ordenamento social vigentes a qual se baseia na recusa aos modos de expropriação pulsional no interior das sociedades capitalistas. Isso colocará problemas a respeito das formas políticas de organização do conflito social, os quais Adorno não se verá obrigado a responder (ou que, se quisermos, precisarão ficar temporariamente sem resposta para que possam ser efetivamente respondidos).
De toda forma, há de se insistir que a psicanálise demonstra para Adorno como, em um horizonte de gestão social de máxima integração, a verdade tem necessariamente a forma de sintoma. Cabe à crítica não apenas saber ouvir 0 conteúdo social do que se expressa nos sujeitos sob a forma de sintoma. Cabe a ela compreender que é apenas lá onde encontramos a dimensão do sintoma que haverá sujeito. Poderíamos mesmo dizer que a afirmação lacaniana de que “não há sujeito sem sintoma” ganha aqui uma conotação política inesperada. Pois há de se lembrar que:
O sujeito, em que a psicologia preponderou como algo subtraído à racionalidade social, valeu desde sempre como anomalia, como um excêntrico; na época totalitária, seus lugares são o campo de trabalho ou de concentração, onde ele é aprontado”, bem integrado.383
Mas notemos que, longe de uma estratégia que reconhece o colapso da ação política coletiva e que prega o retorno ao cultivo da dimensão individual, a posição de Adorno revela a necessidade de um aprofundamento do campo político, da ampliação de suas ações através da compreensão clara dos mecanismos psíquicos de sujeição e integração social como condição para a reorientação da práxis. Assim, não apenas a cultura será claramente elevada a um campo de combate político tendo em vista a possibilidade de produção social da diferença. Também a vida psíquica será um espaço de combate, e não seria um erro se perguntar pela função clínica da arte em Adorno, o que poderia explicar por que, por exemplo, vários conceitos clínicos são mobilizados na crítica musical adorniana, como no caso de Stravinsky (hebefrenia, dissociação psicótica), de Berg (pulsão de morte) ou mesmo em Beckett (despersonalização), entre tantos outros. Pois a arte terá uma força clínica para Adorno. Ela denunciará uma sintomatologia, assim como constituirá modos de subjetivação que darão a sintomas, inibições e angústias outros destinos que não o sofrimento.
Por outro lado, é evidente como, através de sua discussão com a psicanálise, Adorno espera recuperar um elemento fundamental para a ação política transformadora, o qual teria sido negligenciado por Freud, a saber, o potencial de espontaneidade. Seu embotamento é a matriz de todo empobrecimento da imaginação política.”
376 Desenvolvi este ponto no quarto capítulo de O circuito dos afetos.
377 Marcuse desenvolve o tópico da expropriação pulsional através da dessublimação repressiva pensada como “liberalização controlada que realça a satisfação obtida com aquilo que a sociedade oferece”, pois, “com a integração da esfera da sexualidade ao campo dos negócios e dos divertimentos, a própria repressão é recalcada” (MARCUSE. Herbert, Cultura e sociedade II. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 106).
378 Ver ainda a presença massiva de conceitos psicanalíticos em estudos de mídia como: ADORNO, Theodor. As estrelas descem à Terra. São Paulo: Unesp, 2006.
379 ADORNO, Escritos sobre psicologia social e psicanálise, p, 202.
380 Dessexualização da sexualidade deveria ser compreendida psicodinamicamente como a forma do sexo genital, em que este mesmo se transforma em poder de impor tabus e inibe as pulsões parciais ou as elimina” (Idem, p. 205).
381 Para uma aproximação sugestiva entre o tópos frankfurtiano da dessublimação repressiva e a crítica da biopolítica em Michel Foucault, ver sobretudo: CARNEIRO, Sílvio. Poder sobre a vida: Herbert Marcuse e a biopolítica. São Paulo: USP, 2015. (Tese)
382 Isso leva Adorno a falar, por exemplo, no conteúdo de verdade das neuroses: “Todo conteúdo de verdade das neuroses está no fato de elas demonstrarem ao Eu sua não-liberdade com base no que é estranho ao Eu, com base no sentimento do ‘mas este não sou eu’; e isso lá onde se interrompe seu domínio sobre a natureza interior” (ADORNO, Dialética negativa, p. 188). Pois a neurose é a expressão distorcida da experiência social da não-liberdade que, mesmo expulsa da esfera da consciência retorna sob a forma de sintoma.
383 ADORNO, Escritos sobre psicologia social e psicanálise, p. 87.


“Notemos ainda um ponto importante. Através da relação transindividual que passa por dimensões corporais e pulsionais, vemos uma dialética entre natureza e história na qual a natureza aparece, mais uma vez, como a história esquecida de si mesma, a qual só pode se encontrar a si mesma à condição de negar a violência que a própria história até agora representou. Ou seja, ela só pode se encontrar à condição de obrigar a história a ser o que ela ainda não é e o que ela até agora nunca foi. É nesse sentido que a psicanálise poderá trazer a Adorno as coordenadas de uma vida correta que ainda não existiu, que ainda não acedeu à existência reconhecida enquanto tal.”


“O famoso aforisma de Adorno: “A filosofia que um dia pareceu ultrapassada mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” é, à sua maneira, fiel à indissolubilidade entre dialética e revolução. As experiências revolucionárias do século XX, que apareciam como o instante da realização da filosofia e sua ultrapassagem enquanto “mera” filosofia, perderam-se, passaram no seu oposto. Se a filosofia se mantém viva, é como o pensamento que conserva o impulso de sua realização e de sua força de transformação apesar do seu fracasso. A filosofia aparece como pensamento que não pensa apenas seu fracasso, embora não recuse deter-se diante dessa tarefa, mas que principalmente medita sobre a astúcia para a realização dos processos de revolução social.
Marx podia, em 1846, clamar o momento de ultrapassar as interpretações do mundo porque sentia a iminência de uma experiência revolucionária, tal como ocorrerá em 1848. Adorno afirma, em 1966, que a filosofia estava viva porque não via iminência alguma, enquanto a dialética não se mostrasse, de fato “à altura do que é heterogêneo”428 e não penetrasse em novos sujeitos políticos emergentes. Pois essa modificação no modo de pensar seria condição para a emergência de novos sujeitos na práxis. O pensamento dialético pede a emergência de novos sujeitos, da mesma forma que Hegel compreendia que o desenvolvimento da dialética modificaria a consciência até o ponto em que ela não seria mais consciência, até o ponto em que o pensamento não seria mais pensamento representacional, mas Espírito que unifica pensar e ser. Há em Hegel uma emergência do Espírito como sujeito dos processos históricos. Um processo de emergência pensado como revelação retroativa de uma totalidade verdadeira que reinscreve os fatos do passado modificando seu sentido, além de projetar uma força performativa recomposta. O Espírito sempre terá sido, provocando, através de sua emergência, uma revolução no presente, no passado e no futuro.
Como vimos, tal dinâmica está também presente em Marx, agora através de uma guinada em direção à nomeação de um sujeito concreto dotado de força de transformação estrutural da sociedade, a saber, o proletariado. A dialética se realiza através da emergência de um sujeito que age de maneira dialética. Pois a emergência do proletariado não é apenas a constituição de atores políticos que exigirão novas formas de redistribuição de bens e riquezas. Ela é a produção potencial de outro modo de existência, de outra forma de vida capaz de fazer a negatividade passar ao ser, abolindo as determinações por propriedade e posse, capaz de eliminar o primado da representação, capaz de desarticular o primado da identidade. Como defendi anteriormente, o proletariado é, acima de tudo, um modo de pensar e agir por despossessão, não mais um modo de pensar e agir por determinação de propriedade. Faz parte da dialética fazer da negatividade dessa despossessão um motor de transformações, já que ela é a expressão de um processo de perda de adesão aos modos de reprodução social que sustentam o capitalismo.
Quando Marx insiste na alienação do trabalho, ele não pensa apenas na alienação da posse do objeto trabalhado, mas no trabalho como modelo social e estrutural de alienação.429 Sua superação exige a negação de tudo o que sustenta a sociedade do trabalho, a saber, a família, o Estado, a religião, a moral e o conjunto dos dispositivos disciplinares que definem a estrutura de identidades sociais. Essa negação leva à ação revolucionária, e não à resignação depressiva ou à mera exigência por redistribuição justa porque ela dialética. Ela é negação dos valores que sustentam a sociedade burguesa (a liberdade como falsa liberdade, a autonomia como heteronomia, a emancipação como disciplina, a justiça como injustiça) em nome da realização efetiva desses mesmos valores, agora fora do horizonte de significação definido pela hegemonia da burguesia.
Insistamos nesse ponto, que pode nos fornecer uma orientação para a reflexão a respeito das relações entre filosofia e práxis. Pois talvez sejamos obrigados a dizer que uma filosofia, se não quiser se reduzir à estranha tarefa de um horizonte normativo e valorativo prévio à práxis, não pode ser uma descrição de modos de organização e de estratégia, o que apenas uma experiência efetiva em condições práticas locais pode fornecer. Ela será uma teoria da emergência, das transformações possíveis que produzem a emergência de sujeitos que responderão em sua atuação, pelas condições e desafios concretos da práxis em sua multiplicidade de situações. Ela pode pensar organização, mas organização para emergência. Digamos, pois, que tal exigência não desaparece em Adorno; ela se complexifica devido à interpretação de uma série de coordenadas histórico-sociais ligadas ao colapso do proletariado como classe sociológica e à dificuldade de constituição de dinâmicas de consciência de classe devido ao advento da indústria cultural. Notemos que o fato de a ação revolucionária estar temporariamente bloqueada, segundo Adorno, não significa que ela não teria mais significado algum no interior das dinâmicas do político, nem que a luta pela efetivação de suas condições seria objetivo maior. Reconhecer o bloqueio de um processo não significa abandonar a defesa de sua necessidade. Significa apenas complexificar seus esquemas de efetivação. Mas uma das condições centrais para a práxis revolucionária, ao menos segundo Adorno, é a incapacidade de refletir sobre os “traços maníacos e coercitivos” da própria práxis”.430
428 ADORNO, Dialética negativa, p. 12.
429 Ponto bem desenvolvido por: POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo, 2014.
430 ADORNO, Palavras e sinais: modelos críticos 2, p. 206.

Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Parte I) – Vladimir Safatle

Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Em Dar corpo ao impossível, Vladimir Safatle parte de uma reflexão a respeito do sentido da última figura da dialética que o pensamento filosófico conheceu, a saber, a dialética negativa de Theodor Adorno. Ele recusa as interpretações deceptivas da dialética negativa, tão presentes até hoje, a fim de explorar suas dinâmicas de produtividade e as modificações que ela produz em conceitos como: totalidade, materialismo, sujeito, diferença e infinito. Isso leva Safatle a propor uma articulação de estrutura entre a dialética negativa e aquelas de matriz hegeliana e marxista. Articulação esta que procura compreender o sentido mais profundo das relações entre configurações da dialética e determinações históricas específicas.
Trata-se ainda de se perguntar sobre o que a reatualização da dialética proposta por Adorno deve à psicanálise freudiana e à confrontação incessante à fenomenologia de Martin Heidegger.
Ao final, Dar corpo ao impossível serve-se do saldo de tais reflexões para repensar a recusa da dialética que anima a filosofia francesa contemporânea, em especial através do anti-hegelianismo de Gilles Deleuze, assim como para retomar o uso que a dialética, enquanto experiência crítica, conheceu no Brasil, em especial graças a Paulo Arantes.



“O capitalismo nunca será tratado como um sistema específico de trocas econômicas, mas como uma forma de vida que constitui modos de subjetividade, formas de trabalho, de desejo e de linguagem. Modos esses que, por sua vez, assentam-se em uma verdadeira metafísica na qual identidade, propriedade, possessão, abstração são os únicos regimes gerais de relação possível. Sua superação não poderá ser feita sem a transformação estrutural dos modos de determinação e de ser. Por isso, a dialética negativa será indissociável da tarefa de pensar as condições para experiências que se assumam como modos de desabamento do horizonte metafísico no qual o capitalismo se assenta e reconstrói. O pensamento deve privilegiar a processualidade contínua para permitir à ação operar sem referência à preservação dos modos atuais de reprodução material da vida e de sua gramática. É nesse sentido que devemos dizer que as opções filosóficas do pensamento adorniano são imediatamente opções práticas, são posições a respeito da recusa em sustentar a rede de orientações práticas que naturaliza formas hegemônicas de vida. Essa recusa é feita em nome de possibilidades concretas de emancipação que exigem uma articulação cerrada entre crítica social e crítica da razão, ou ainda entre crítica da economia política (historicamente situada) e crítica da racionalidade instrumental (que se confunde com a consolidação do horizonte da razão ocidental).”


“De acordo com o momento histórico, a dialética não teme em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se desloca em um tempo que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade que exige certa plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma enunciação filosófica não se produz através da definição normativa do dever-ser, e ninguém mais do que Hegel recusou tal ideia. Ela se produz através do reconhecimento da forma específica do sofrimento em relação aos limites da situação em que os sujeitos da enunciação se encontram. Por estar disposta a ouvir tal sofrimento, ela nasce como crítica, sem que precise começar por definir qual seria o horizonte normativo que a legitima. Por estar em processualidade contínua, a dialética precisa de uma ontologia capaz de conservar a proximidade do pensamento em relação ao que ainda não está realizado, mas esta será uma ontologia em situação.”


“A possibilidade não é apenas mera possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente que nos esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Esta é a dimensão irredutivelmente revolucionária da dialética.”


“As dinâmicas dialéticas exigem a organização das lutas a partir da identificação de contradições globais em relação à situação atual, posição derivada do marxismo de Adorno. Isso significa organizar lutas, desdobrá-las a partir do potencial de contradição global que elas portam, recusando a conciliação possível com uma “vida mutilada”. “Não há vida correta na falsa”16 é também uma maneira de lembrar que crítica significa contraposição global a uma forma de vida.17 Não há conciliação, nem negociação com modos de reprodução social solidários de uma vida falsa ligada às estruturas gerais de reificação e alienação, próprias ao sistema capitalista. Este verdadeiro déficit de dialética na Teoria Crítica pós-adorniana trouxe consequências decisivas para a própria noção de crítica, assim como para a noção de quais são seus objetos e sua real extensão. Ou seja, as consequências se fizeram sentir nos desdobramentos políticos da teoria. Há várias formas de “reconciliação extorquida” e a dialética consequente saberá recusar todas.”
16 ADORNO, Theodor. Mínima moralia. São Paulo: Azouge, 1993, par. 18.
17 Ver, a este respeito: JAEGGI, Rahel. Une critique des formes de vie est-elle possible: le négativisme éthique d’Adorno dans Minima moralia. Actuel Marx, n. 38, p. 135-158, 2005. Embora sua compreensão do que significa “crítica do capitalismo” não seja a mesma que defendo neste livro, como ficará claro.


“Esse modelo nasce inicialmente da noção fascista de “Estado total” que, como compreendera Marcuse já nos anos 1930, nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo como o fundamento liberal da redução da liberdade a liberdade do sujeito econômico individual em dispor da propriedade privada com a garantia jurídico-estatal que esta exige permanecia como a base da estrutura social do fascismo, Marcuse alertava para o fato de o “Estado total” fascista ser compatível com a ideia liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas esferas políticas da luta de classe.20 Essa articulação entre liberalismo e fascismo fora tematizada por Carl Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a democracia parlamentar com seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado total”.21 Tendo que dar conta das múltiplas demandas vindas de vários setores sociais organizados, a democracia parlamentar acabaria por permitir ao Estado intervir em todos os espaços da vida, regulando todas as dimensões do conflito social, transformando-se em mera emulação dos antagonismos presentes na vida social. Contra isso, não seria necessário menos estado, mas pensar uma outra forma de estado total. Nesse caso, um estado capaz de despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para intervir politicamente na luta de classes, eliminar as forças de sedição a fim de permitir a liberação da economia de seus pretensos entraves sociais. Como bem lembrará Pollock, esse mesmo modelo poderá tanto operar em chave de democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos completar, essa indiferença vem do fato de os dois polos estarem menos longe do que se gostaria de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores de interesses individuais, permaneciam como a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra tendências contrárias.”
20 Daí por que: “Os fundamentos econômicos desse trajeto da teoria liberal à teoria totalitária serão assumidos como pressupostos: repousam essencialmente na mudança da sociedade capitalista do capitalismo mercantil e industrial, edificado sobre a livre concorrência dos empresários individuais autônomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que as relações de produção modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos cartéis, dos trustes, etc.) exigem um Estado forte, mobilizador de todos os meios do poder” (MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1997, v. I, p. 61).
21 Ver: SCHMITT, Carl. Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen. In: Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, p. 81-94.


“Nesse sentido, insistir, em tal contexto histórico, na irredutibilidade da dialética às formas disponíveis de síntese já era apostar na possibilidade de evidenciar a fragilidade do caráter meramente aparente da estabilidade social propalada, evidenciar o fundamento violento que lhe é próprio. Principalmente, uma dialética cujo motor central será a insistência na “não-identidade” será a forma de o pensamento crítico evidenciar que não haverá transformação possível sem levar a experiência a se confrontar com o que nega radicalmente os modos de integração da existência aos regimes de determinação do presente. Adorno sabe que a força do capitalismo está não apenas nas promessas econômicas que ele, momentaneamente, pareceu ser capaz de realizar (ao menos durante os trinta primeiros anos do pós-guerra). Ela está na capacidade de conformar a imaginação à gramática de repetições e identidades que se impõem a nós através dos campos da cultura e do entretenimento e que constituem o núcleo real de nossa adesão às formas atuais de vida. Há uma gestão psíquica, ligada à redução da experiência à forma da identidade, que será o fundamento da resiliência do capitalismo. Contra isso, o pensamento precisa ser capaz de recuperar o sentido e a força transformadora do que “diferença” pode realmente significar, e essa é a função central de uma dialética negativa.”


“Sabemos como cabe a Marx a compreensão precisa de que a dialética se organiza a partir de uma crítica da falsa totalidade. O Capital é um modo de reprodução material da vida que se impõe globalmente em toda extensão, adaptando-se a configurações específicas e arcaísmos locais. Ele reorganiza todas as velocidades e intensidades dos processos de produção a partir de uma axiomática geral baseada nas dinâmicas de valorização do valor e de submissão da atividade humana às formas do trabalho. Ele reorganiza também as relações a si, generalizando seus modos de objetividade até o ponto de produção de uma vida psíquica que lhe seja conforme, o que ocorre através da generalização da forma-mercadoria como modelo global de objetividade social ou através da generalização da forma-empresa (em sua versão neoliberal).33 Nesse contexto, o pensamento deve ser capaz de alcançar o que coloca a falsa totalidade em contradição por ser portador do que ainda não saberia como se realizar em formas hegemônicas de vida, nem saberia como ser reorganizado por elas.”
33 Para este tópico, ver: FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 102.


“Há de se lembrar que há uma existência pulsional da não-identidade e é ela que garantirá o horizonte das lutas sociais para fora do capitalismo como forma de vida. Essa talvez seja a astúcia maior de uma defesa não-substancial da universalidade com seu uso produtivo da negatividade e da indeterminação, a saber, enraizá-la na existência pulsional da não-identidade. Se, ao menos segundo Adorno, a possibilidade de emergência de uma consciência de classe estará impossibilitada devido à profunda gestão psíquica e espoliação do inconsciente que sustenta os modos de adesão social no capitalismo contemporâneo com seus usos administrativos da cultura, com sua engenharia humana, há uma irredutibilidade do inconsciente, para além de sua espoliação social, que será politicamente decisiva. Ela é muitas vezes esquecida por leitores de Adorno, mas ela está lá em seus textos, em sua forma de se lembrar da verdade do sofrimento psíquico, ou seja, dessa verdade cuja impossibilidade de enunciação no interior de uma vida mutilada nos faz sofrer, da recusa psíquica às reconciliações forçadas. Ela está lá permitindo a defesa de emergências possíveis à condição de que seja feita uma crítica implacável da identidade (em todas suas formas, a saber, individual, de classe, social, coletiva), dispositivo maior de colonização da capacidade de metamorfoses categorias do sujeito.”


“De certa forma, tanto no campo do pensamento quanto no campo dos regimes de organização das lutas sociais, a dialética se confronta atualmente com processos que parecem corroborar o diagnóstico adorniano. O recurso à identidade como dispositivo essencialista de mobilização política, tão recorrente tanto nas forças reativas quanto naqueles que procuram fazer avançar a emancipação social, impede não apenas a emergência de uma implicação genérica que poderia abrir espaço a uma diferença radical em relação aos modos de reprodução das formas hegemônicas de vida, como também coloniza os sujeitos em um campo de experiências previamente demarcado pelo potencial de demandas e formas já declaradas, já enunciadas por movimentos sociais.40 Como se as formas gerais de existência já estivessem de antemão definidas a partir do que pode ser apropriado por uma identidade qualquer, ou ainda, a partir de uma ontologia das propriedades que a dialética sempre combateu. Ontologia cuja tradução política seria a redução da luta social à defesa daquilo que é “meu”. Nunca a definição adorniana da identidade como a forma originária da ideologia, com seu sistema de paralisia da imaginação social, foi tão atual. Não há possibilidade alguma de o uso não-provisório das categorias de identidade nos levar para além de meras novas partilhas dos modos atuais de existência e de realidade social. Ou seja, por mais que pareça índice de sublevação, os usos políticos não-provisórios das categorias de identidade serão sempre a astúcia final da perpetuação da gramática liberal das propriedades. Insistamos, a verdadeira contraposição não é entre demandas identitárias de reconhecimento e lógica de luta de classe (pois o próprio conceito de classe pode funcionar em chave identitária, como vimos muitas vezes ocorrer com o uso substancialista da noção de “proletariado”). Toda a legião de crítica às políticas de identidade que mobiliza o pretenso esquecimento das chamadas lutas de classe erra. Não se contrapõe uma ontologia das propriedades a uma ontologia das classes. A contraposição é entre demandas identitárias e emergências não-identitárias que se coloquem como ponto de contradição global em relação às determinações sociais atuais por propriedade e por classes. Tal contradição ocorre quando identidades historicamente vulneráveis, marcadas pela reiteração da violência e da invisibilidade social, começam a falar em nome de uma universalidade até agora impossível. O que nos lembra como a questão política central nunca é “qual o lugar de minha fala”, mas “quem pode falar em nome de uma universalidade que implica em contradição global com a situação atual?”
Pois a impossibilidade de sustentar um ponto de contradição global capaz de nos abrir a modelos de ação social em recusa radical de nossas formas hegemônicas de vida tem raízes subjetivas profundas. Tais raízes impedem os sujeitos de se verem como dinâmicas em transformação e ruptura, o que traz consequências necessárias a todas as suas formas de ação. A insistência adorniana em pensar o sujeito, a ainda operar com o sujeito, mas pensar um sujeito não-idêntico, sujeito como espaço de uma experiência contraditória de integração e recusa era sua forma de insistir que trazemos em nós o germe de uma potencialidade de emergência. Esta não-integração é uma voz que pode falar baixo, mas nos faz sempre lembrar do caráter mutilado de nossas vidas e da possibilidade de utilizar a força do negativo como dinâmica de passagem.”
40 Tomo a liberdade de remeter a: SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012. Ver também: HOLLOWAY, John. Negative and positive autonomism or Why Adorno? In: Negativity and revolution, part 2.


“Mas voltemos à caracterização da dialética e seu conceito de contradição. Pois o mais importante ainda não foi dito. Há algo que garante a essa impossibilidade lógica indicada pela contradição não se reduzir a apenas um mero impasse existencial, uma mera formalização de sistemas de aporias. Se Adorno pode apostar na ideia de que “chocando-se contra seus próprios limites, o pensamento ultrapassa a si mesmo”, é porque o que produz o choque já tem em si o impulso para outra situação. Chocando-se contra seus próprios limites o pensamento poderia simplesmente delirar, entrar em decomposição, em vez de ultrapassar a si mesmo. Se Adorno pode defender o caráter inexorável de tal ultrapassagem é porque lhe acompanha certo hegelianismo que não teria como desaparecer do horizonte. O mesmo hegelianismo que nos mostrará como as contradições contra as quais o pensamento da identidade se choca já são figuras da infinitude em ato.”


“A chave da posição de Adorno vem logo em seguida, quando lembrar que “as obras de arte significativas são aquelas que ambicionam um extremo: as que se destroem no caminho e cujas fraturas permanecem como cifras da verdade suprema que não conseguiram nomear”126 As obras de arte fiéis a seu conteúdo de verdade precisam se destruir no caminho, pois seus dispositivos de construção integral devem ser postos e devem falhar. Toda verdadeira obra de arte é a história de um fracasso e a expressão de uma fratura. Ela precisa expor a tensão em direção à construção absoluta, como forma de operar à crítica à ilusão de significação natural que seus materiais parecem portar. Ela não pode “encontrar” seus materiais. Antes, ela precisa procurar transcender a literalidade de seus materiais, sob pena de aceitar o estado arruinado da linguagem própria a uma sociedade que toda obra de arte verdadeira combate.”
126 ADORNO, Quasi una fantasia, p. 321.


“Podemos dizer que interpretar um conceito filosófico será, para Adorno, explicitar a necessidade de seu movimento no interior de situações sócio-históricas muitas vezes contraditórias entre si; situações às quais o conceito em questão foi referido. Não se trata de afirmar que tal multiplicidade de referências a situações contraditórias seja resultado da inabilidade de alguns em compreender a verdadeira referência do conceito. Na verdade, o movimento é interno ao próprio conceito. Adorno chegará a dizer que a imposição fundamental da dialética não consiste em defender que a verdade estaria no tempo ou em oposição a ele: “mas que a própria verdade tem um núcleo temporal (einen Zeitkern)”149 O que é uma maneira de afirmar que o conceito produz um processo histórico-social que obriga a mudanças contínuas na sua própria estrutura de significação, redimensionando sua referência, isso se ele quiser “permanecer fiel a si mesmo”. Um contextualismo historicamente distendido que nunca poderia ser compreendido em chave relativista, mas em determinação situacional. Portanto, um verdadeiro conceito filosófico nunca é homogêneo, mas move-se de maneira distinta em situações sócio-históricas específicas.”


“Todos conhecem a afirmação canônica de Adorno: “O todo é o não­verdadeiro”. Mas a análise detalhada da maneira com que Adorno compreende o problema da totalidade em Hegel demonstra um julgamento mais complexo. Pois ele sabe que a negação simples da experiência da totalidade leva, necessariamente, à fascinação positivista pela pretensa imediaticidade da facticidade e do meramente dado. Tal negação simples da totalidade é a senha para a validação de uma ciência que apenas constata, ordena e que, por se aferrar à afirmação da existência desconexa, perde a força para levar a cabo toda crítica à realidade reificada.157 Isso faz com que Adorno procure, em Hegel, o modelo de crítica a tal tentação positivista, e ele o encontrará exatamente no conceito de totalidade. Para tanto, Adorno precisa lembrar, sobre Hegel:
Assim como as partes não são tomadas de maneira autônoma contra o todo, que é o elemento delas, o crítico dos românticos sabe também que o todo apenas se realiza por meio das partes, apenas por meio da separação, da alienação, da reflexão, em suma, por meio de tudo o que é anátema para a teoria da Gestalt.158
Ou seja, Adorno não defende a ideia corrente de que a totalidade em Hegel seria uma espécie de estrutura prévia à experiência da consciência, sempre presente e pronta para ser desvelada ao final por um processo que já estaria determinado desde sempre e que, por isso, não seria processo algum, o que nos daria uma totalidade como movimento sem acontecimento. Exemplo paradigmático de tal interpretação pode ser encontrado na crítica heideggeriana a Hegel.159 Ao contrário, Adorno insiste que a totalidade em Hegel deve ser inicialmente vista como a quintessência dos momentos parciais que apontam para além de si mesmos. É isso que lhe permite afirmar que, no caso da totalidade hegeliana, “o nexo [entre os elementos] não é aquele da passagem contínua, mas da mudança brusca; o processo não ocorre na aproximação dos momentos, mas propriamente por meio da ruptura”.160 Essa é outra maneira de dizer que a totalidade não deve ser compreendida como determinação normativa capaz de definir, por si só, o sentido daquilo que ela subsume, mas como a força de descentramento da identidade autárquica dos particulares. Descentramento sentido pelos particulares como ruptura e mudança brusca. Isso leva Adorno a afirmar que o sistema hegeliano não quer ser um esquema que tudo engloba, mas o centro de força latente que atua nos momentos singulares, impulsionando tais momentos com a abertura da transcendência.
Dessa forma, Adorno deve reconhecer, nos melhores momentos de seus textos, que em Hegel a totalidade não pode ser vista como negação simples do particular, como subsunção completa das situações particulares a uma determinação estrutural genérica. Ela será a consequência necessária de a compreensão do particular ser sempre mais do que si mesmo, de ele nunca estar completamente realizado, de ser uma determinação instável. Na verdade, ela aparecerá como a condição para que a força que transcende a identidade estática dos particulares não seja simplesmente perdida, mas possa produzir relações.”
159 Por exemplo: “o progresso na marcha histórica da história da formação da consciência não é impulsionado em direção ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência, mas ele é impulsionado pelo alvo já proposto” (HEIDEGGER, Martin. Caminhos da floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 157). Em outra chave, mas com a mesma leitura, Habermas, falará: “de um espírito que arrasta para dentro do sorvo da sua absoluta autorreferência as diversas contradições atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes tirar toda a seriedade” (HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 60).
160 ADORNO, Três estudos sobre Hegel, p. 75.
161 LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141.


“No entanto, podemos encontrar em Hegel uma noção relativamente distinta de totalidade, a saber, algo que deve ser descrito como uma processualidade em contínua reordenação de séries de elementos anteriormente postos em relação. Neste caso, as relações entre os elementos e momentos continuam necessárias, mas tal necessidade não obedece a uma 16gica determinista, e sim a um processo de transfiguração da contingência em necessidade.162 Tal transfiguração exige pensar a totalidade como um sistema aberto ao desequilíbrio periódico e infinito, pois a integração contínua de novos elementos inicialmente experimentados como contingentes e indeterminados reconfigura o sentido dos demais. A negação determinada não aparece, assim, apenas como passagem de um conteúdo a outro que visaria mostrar o caráter limitado dos momentos parciais da experiência. Ela é principalmente a reconfiguração posterior de conteúdos já postos tomados como conjunto. O movimento que a negação determinada produz é um movimento de mutação para frente, mas também para trás. Adorno insiste neste ponto ao afirmar que aquilo que Hegel denomina como síntese “não é apenas a qualidade emergente da negação determinada e simplesmente nova, mas o retorno do negado; a progressão dialética é sempre também um recurso àquilo que se tornou vítima do conceito progressivo: o progresso na concreção do conceito é a sua autocorreção”.163
162 Desenvolvi isto de maneira mais sistemática no terceiro capítulo de O circuito dos afetos.
163 ADORNO, Dialética negativa, p. 276.


“Assim, a totalidade não pode ser definida aqui como o que permite a compreensão semântica de todos os elementos que ela subsume (como está pressuposto na citação anterior de Lukács), mas como a perspectiva que permite a compreensão sintática do movimento de reabsorção contínua do que inicialmente apareceu como indeterminado e contingente. Pois há, no interior mesmo da ontologia hegeliana, um risco de indeterminação que sempre devemos inicialmente assumir para poder após integrar.167
167: De fato: “Cada vez que Hegel chega a um momento de perfeição no qual a identidade parece fechar-se em si mesmo para um gozo autárquico, é a negação desta identidade que salva o Absoluto da abstração e da indeterminação” (MABILLE, Bernard. Idéalisme spéculatif, subjectivité et négations. In: GODDARD, J.-C. (Org.). Le transcendantal. Paris: Vrin, 1999, p. 170).


“A impossibilidade de resolução do conflito, a contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como poderíamos inicialmente esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a processualidade da ideia já fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto central: a contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de processos visíveis de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela relação de cada momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em atualizações contraditórias, sem com isso perder sua univocidade. Pois ela desenvolve, ao mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos e a univocidade de sua processualidade que absorve a multiplicidade das determinações.”


“Há de se lembrar disso quando for questão de avaliar as relações entre Adorno e Hegel, assim como seus respectivos conceitos de dialética. Não é possível compreender tais relações em toda sua extensão amputando o sentido do recurso filosófico à estética, com suas referências estratégicas a Hegel, no interior da obra adorniana. De toda forma, que uma figura fundamental da reconciliação se desloque, paradoxalmente, para essa arte que parece recusar toda conciliação possível não deveria nos estranhar. Ela é uma forma de afirmar que a verdadeira ação social, e mesmo a verdadeira ação política, só pode ocorrer através do redimensionamento da força produtiva da imaginação animada pela confrontação com as obras de artes avançadas de nosso tempo. As experiências que mobilizam a ação social transformadora, como a liberdade e a emancipação, são, de certa forma, produções estéticas. Elas procuram realizar, na vida social, a liberdade e a ausência de dominação que as obras de arte são capazes de produzir. Há uma consequência política danosa vinda da recusa em admitir que a arte é o setor da vida social mais claramente portador de força redimensionadora da experiência. A insensibilidade à arte só pode ser também insensibilidade às transformações sociais.”


“Liberdade não é algo que se predica de um sujeito sem que tal predicação não acabe por nos levar a um processo contraditório com a situação atual e suas relações de reconhecimento e trabalho, a uma desarticulação do próprio campo dos predicados, a um estado impossível de ser determinado a partir das potencialidades de determinação vigentes no aqui e agora.”

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Os irredutíveis: Teoremas da resistência para o tempo presente – Daniel Bensaïd

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-107-9
Tradução: Wanda Caldeira Brant
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 104
Sinopse: Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente, de Daniel Bensaïd, rebate as reduções simplistas da filosofia política pós-moderna, buscando alternativas para o pensamento. Filósofo e ativista político francês, um dos principais nomes dos movimentos de 1968, o autor rejeita a ideia que condena o mundo a uma catástrofe inexorável.
O que é ser irredutível nesse contexto? É não perder a noção de que a globalização imperial – que representa os interesses privados do capital – e a burocracia stalinista não são as únicas formas de organizar o pensamento e o mundo, em movimento acelerado.
Qual a alternativa? Num texto aforismático, herança do estilo de autores como Guy Debord, Bensaïd coloca uma sucessão de teoremas sobre grandes questões que deveriam ser submetidas criticamente à prova do presente. Os títulos dos teoremas, provocações em si, são: “A política é irredutível à ética e à estética”, “A luta de classes é irredutível às identidades comunitárias”, “A dominação imperial não é solúvel nas beatitudes da globalização mercantil”, “Quaisquer que sejam as palavras para expressá-lo, o comunismo é irredutível às suas falsificações burocráticas” e “A dialética da razão é irredutível ao espelho quebrado da pós-modernidade”.



“Quando a política está em baixa, os deuses estão em alta. Quando o profano recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a história se arrasta, a Eternidade levanta voo. Quando não se querem mais povos e classes, restam tribos, etnias, massas e maltas anômicas. No entanto, seria errôneo acreditar que essa volta da chama religiosa seria particularidade dos bárbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes não é menos teológico, como mostra o revival de seitas de todos os gêneros nos próprios Estados Unidos. Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro de 2001, falou de “cruzada” contra o terrorismo, não se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir não mais uma guerra de interesses contra um inimigo com o qual será preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com o qual se diz que não se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religião ou de “civilização”. E quando o adversário é apresentado como uma encarnação de Satã, não é de espantar que ele seja desumanizado e bestializado, como em Guantánamo ou em Abu Ghraib.
Não é de espantar também que a exceção e a regra estejam então inextricavelmente misturadas. Que se conceba assumir abertamente a “tortura preventiva” (corolário lógico da “guerra preventiva”); que se vejam banalizar-se as extraordinaries renditions (“rendições extraordinárias”) e os lugares de detenção desterritorializados; que se possam assumir as “execuções extrajudiciais”, como já fazem há muito tempo alguns dirigentes israelenses em relação ao assassinato de palestinos. A retórica religiosa penetra também um discurso judicial no qual as disposições antiterroristas apelam cada vez mais para as noções de arrependimento, penitência, abjuração, outrora em vigor nos processos de acusação de feitiçaria ou nos processos da Inquisição.
Aí estão os indícios de uma crise de hegemonia de importância histórica. A privatização generalizada do mundo (não só da produção e dos serviços, mas também do espaço, da informação, do direito, da moeda, da violência, dos conhecimentos e do organismo vivo pela corrida ao registro de patentes) a cada dia que passa gera mais miséria, desigualdades e brutalidades. A alternativa “socialismo ou barbárie” é ainda bem mais premente do que era no início de um século XX destinado a se tornar o dos “extremos”. À lógica da concorrência de todos (e todas) contra todos (e todas), cuja forma final é a guerra global, deve se opor uma lógica da solidariedade, do serviço público, do bem comum da humanidade. Em outras palavras, a questão da propriedade, como os pioneiros do socialismo e do comunismo a compreendiam desde meados do século XIX, está mais do que nunca no cerne da questão social. Nos anos 1830 e 1840, o fim das formas “híbridas e incertas” de propriedade, o desapossamento dos pobres de seus direitos habituais foi a condição de seu lançamento sem defesa no mercado impiedoso do trabalho urbano em formação5. No entanto, hoje, a nova onda de enclousures relativos aos serviços, ao conhecimento ou ao organismo vivo tem, por corolário, uma ofensiva planetária do capital contra todas as formas de garantias e de proteção social, em matéria de salário, emprego, habitação, aposentadoria, educação e saúde pública.
É em torno dessas questões que surge um novo divisor de águas entre uma esquerda alinhada ou resignada ao acompanhamento do liberalismo e uma nova esquerda decidida a enfrentar os desafios de um novo século, no qual o que está em jogo é nada mais nada menos do que saber que planeta queremos habitar e que humanidade queremos nos tornar.”
5 Ver Daniel Bensaïd, Les dépossedés (Paris, La Fabrique, 2007)


“Na era da industrialização em massa, da organização taylorista do trabalho e do reino da fada eletricidade, o modernismo teria expressado uma resistência à extensão da dominação mercantil às produções culturais. Não uma hostilidade à técnica e às máquinas como tais (celebradas tanto pelos futuristas quanto por alguns cubistas), mas um protesto contra a despersonalização do laço social, a reificação generalizada e a era dos loucos solitários. Ilustrada pela pintura não figurativa, pelo expressionismo, pela nova poesia lírica ou pelo cinema de autor do período entre as duas grandes guerras, a revolução modernista constituiria então uma reação cultural à modernização capitalista.
Portanto, o modernismo acreditou poder opor uma última resistência ao triunfo absoluto da mercadoria. A Arte com A maiúsculo parecia oferecer um último refúgio à gratuidade antiutilitária e ao desejo de eternidade. No entanto, ela constituía a sombra projetada do fetichismo da mercadoria e o último suspiro contra o consumo padronizado. A pós-modernidade aparece, assim, como o triunfo absoluto da mercadoria na própria esfera cultural e artística.
“O modernismo foi a experiência e o resultado de uma modernização incompleta”, resume Fredric Jameson. O pós-modernismo surge “quando o processo de modernização não tem mais de se desembaraçar das características arcaicas, não tem mais obstáculos diante dele, e faz sua própria lógica reinar triunfalmente”1.
1 Fredric Jameson, Postmodernism, or The cultural logic of late capitalism (Londres, Verso, 1991), p. 366. [Ed. bras.: Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio, 2. ed., São Paulo, Ática, 1997.] Ver também Francisco Louçã, A maldição de Midas: a cultura do capitalismo tardio (Lisboa, Cotovia, 1994).


“Eis que embarcamos em uma transição incerta, em que o velho agoniza sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado não ultrapassado e a descoberta balbuciante de um novo mundo em gestação. Nessa passagem difícil, a tentação de se apegar a poucas conquistas de eficácia comprovadamente polêmica seria tão estéril quanto aquela da tábula rasa, que pretenderia (re)começar tudo a partir do nada. É com o antigo que realmente se faz o novo.
Mas sempre se está sujeito a parceiros e adversários. Ora, o debate estratégico atinge hoje seu grau zero, como se o futuro tivesse de se reduzir a uma repetição infernal da ordem existente e a história, de se imobilizar em uma eternidade mercantil. Na França, a retórica da esquerda pluralista, cuja ambição se limita desde já à gestão prosaica de um presente sem futuro, reflete-se na própria apatia dos discursos de resistência, no gosto evasivo pelo eufemismo e pela perífrase. Sem dúvida, têm-se os interlocutores que se merecem.”


“O movimento operário internacional constituiu-se na segunda metade do século XIX com uma dupla relação – de continuidade e de ruptura – no que diz respeito à herança do Iluminismo e da Revolução Francesa. A contrarreforma liberal atual não mira somente a questão básica da Revolução e a ideia comunista. Servindo-se do argumento das desilusões do progresso, das aporias da razão pura e da crise da universalidade, ela ataca as fontes intelectuais, racionalistas e republicanas da modernidade. Essa ofensiva alia, de maneira diversa, a redução da realidade a “ficções verbais”, uma crítica imprecisa do cientificismo e uma redução minimalista ao “pensamento fraco”.
Em um mundo mercantil, onde tudo vale e se equivale, essa “crise de veracidade” (até a renúncia à própria ideia de verdade) é propícia ao cinismo e à indiferença. As retóricas negacionistas constituem a manifestação extrema e escandalosa dessa “perda do caráter real” da história e dessa “destruição da razão”.”


“Hannah Arendt temia que a política viesse a “desaparecer completamente do mundo” não só pela abolição totalitária da pluralidade, mas também por sua dissolução nas águas glaciais do cálculo egoísta. A tendência à despolitização do presente confirma esse medo. O espaço público está laminado entre as pressões do horror econômico e as lamentações de um moralismo abstrato. Esse depauperamento da política e de seus atributos (o projeto, a vontade, a ação coletiva) impregna o jargão da pós-modernidade. Para além dos efeitos da conjuntura, a partir do momento em que as metamorfoses do trabalho e a inquietação ecológica evidenciam os maus-tratos contra o mundo, trata-se exatamente de um mal-estar e de uma crise na civilização.”


“O moralismo bem-pensante esforça-se, assim, para recuperar rapidamente o que uma política desmoralizada deixa escapar. Essa secreção intensa de suores éticos é característica dos períodos de medo e impotência, em que a ação busca suas justificativas ora aquém ora além da política. Contra essas efusões, Freud observou sobriamente que uma mudança de atitude dos homens em relação à propriedade seria mais eficaz do que qualquer preceito ético, que nada mais tem a nos oferecer além da satisfação narcisista de podermos nos considerar melhor do que os outros.
No entanto, continuamos a viver “num período em que existem cidades e em que se coloca o problema da política porque pertencemos a esse período cósmico no qual o mundo foi abandonado à sua sorte”1. Portanto, não estamos livres da política enquanto arte profana do tempo e do espaço, enquanto esforço obstinado para recriar os limites do possível em um mundo sem deuses.”
1 Cornelius Castoriadis, La politique de Platon (Paris, Seuil, 1999).


“A rejeição pós-moderna das “grandes narrativas”, aquelas do Iluminismo, assim como as da epopeia proletária, não significa somente uma crítica legítima das ilusões do progresso associadas ao despotismo da razão instrumental. Ela indica também uma desconstrução da historicidade, uma corrida ao culto do imediato, do efêmero, do descartável. Nesses tempos desabusados, de ilusões sem ilusão e de políticas apolíticas, nesses tempos de “crueldade melancólica”, em que não se desenvolvem mais projetos e programas, a grande desilusão não é mais liberadora, mas destrutiva dos próprios fundamentos da cultura2.”
2 Ver Jacques Hassoun, Actualités, d’um malaise (Toulouse, Éres, 1999).


“Entre a luta social e a luta política, não há nem Muralha da China nem separação absoluta. A política surge e inventa-se no social, nas resistências à opressão, no enunciado de novos direitos que transformam as vítimas em sujeitos ativos. Como instituição separada que paira acima da “sociedade civil”, como encarnação ilusória do interesse geral e garantia, apesar de tudo, de um espaço público irredutível ao apetite privado, o Estado estrutura um campo político específico, uma relação de forças particular, uma linguagem própria do conflito. Os antagonismos sociais manifestam-se aí num jogo de mudanças e de condensações, de alianças e de oposições. A luta de classes toma, assim, a forma mediada de uma luta política de partidos.
Tudo é político? Em certa medida e até certo pomo. Em “última instância”, se quisermos, e de diversas maneiras.
Entre partidos e movimentos sociais, mais do que uma simples divisão do trabalho, há uma reciprocidade e uma complementaridade. Enquanto a subordinação dos movimentos sociais aos partidos políticos significaria uma estatização do social, a dissolução dos partidos no movimento social significaria um inquietante enfraquecimento da política. Reduzida a um prolongamento direto do social, ela se limitaria ao lobby c0rporativo. A soma de interesses particulares sem vontade geral acabaria delegando a uma burocracia todo-poderosa a representação do universal.
A dialética da emancipação não é uma marcha inevitável rumo a um fim garantido: as aspirações e as expectativas populares são variadas, contraditórias, frequentemente divididas entre uma exigência de liberdade e uma demanda de segurança. A função específica da política consiste em articulá-las e conjugá-las por meio de um futuro histórico cujo fim continua incerto.”


“Durante muito tempo, o marxismo dito “ortodoxo” atribuiu ao proletariado uma missão heroica: uma vez que sua consciência alcançasse sua essência, tornando-se o que ele é, ele seria o redentor de toda a humanidade. Para muitos, as desilusões do dia seguinte são proporcionais às ilusões da véspera: na falta de se tornar “tudo”, o proletariado seria doravante reduzido a menos que nada.”


“Não há, em O Capital, definição classificatória e normativa das classes, mas um antagonismo dinâmico que ganha forma, em primeiro lugar, no nível do processo de produção, em seguida, no do processo de circulação e, finalmente, no da reprodução geral. As classes não são definidas somente pela relação de produção na empresa. Elas são determinadas ao longo de um processo em que se combinam as relações de propriedade, a luta pelo salário, a divisão do trabalho, as relações com os aparelhos de Estado e com o mercado mundial, as representações simbólicas e os discursos ideológicos. Portanto, o proletariado não pode ser definido de modo restritivo, em função do caráter produtivo ou não do trabalho, que entra somente no livro II de O Capital, sobre o processo de circulação1. (...)
A questão é teórica, histórica e cultural, assim como sociológica. O historiador inglês E. P. Thompson dizia graciosamente que “não se pode falar de amor sem amantes”, nem de classes sem atores. Sua insistência na “formação” das classes salienta que se trata “de um processo ativo”: elas não surgem em um determinado momento, “como o sol’, mas são “partes interessadas em sua própria formação”. Não se trata de uma estrutura imóvel nem de uma categoria definitiva, mas de um fenômeno histórico que não se pode cristalizar em um momento particular de seu desenvolvimento. Assim, pode-se falar de classe “quando após experiências comuns, que pertencem à sua herança compartilhada, os homens percebem e articulam seu interesse comum em oposição a outros homens cujos interesses colidem com os seus”. As classes se autoproduzem, segundo um processo de cristalização de interesses coletivos, de uma consciência desses interesses e de uma linguagem para expressá-los. Elas se situam no ponto de encontro entre um conceito teórico e uma declaração que nasce da luta. O sentimento de pertencer a uma classe resulta do trabalho político e simbólico, assim como de uma determinação sociológica.”
1 Essas questões foram amplamente debatida, nos anos 1970, pincipalmente em oposição às definições restritivas então desenvolvidas pelo partido comunista (especialmente em seu tratado sobre o capitalismo monopolista de Estado) ou, a partir de outras considerações teóricas, por Nico Poulantzas, Poder político e classes sociais (São Paulo, Martins Fontes, l 986) e Classes sociais no capitalismo de hoje (Rio de Janeiro, Zahar, 1978), ou por Baudelot e Establet, La petite bourgeoisie em France (Paris, Maspero, 1970). Ver também a coleção de revistas Critique de l’Économie Politique, Critique Communiste, Cahiers de la Taupe.


“Em uma polêmica com Slavoj Žižek, Ernesto Laclau enfatiza que nada de realmente anticapitalista surge espontaneamente das aspirações operárias. O argumento segundo o qual a luta de classes seria portadora de universalidade por se enraizar no cerne do sistema, enquanto as lutas culturais ou relativas à identidade seriam facilmente integráveis à sua reprodução, parece-lhe tão pouco convincente quanto o acordo de incorporar (mesmo com uma obstinação cheia de subentendidos) a exploração de classe à lista das opressões mais variadas (sexuais, nacionais, raciais, religiosas ou de gerações).
Na problemática de Marx, o conflito de classes não deveria se juntar às diversas identidades sociais. Ele constitui o próprio eixo em torno do qual se articulam e se definem as identidades: “Ao ser inscrito em uma lista, o termo classe perde esse papel, sem adquirir em troca nenhum significado preciso”. Ele se torna “um significante flutuante”6. Laclau conclui então que a luta de classes não tem o menor papel privilegiado a desempenhar. Para Žižek, ao contrário, os elementos da luta pela hegemonia não são equivalentes: o conflito de classe determina todo o encadeamento.
Uma compreensão não redutora da teoria de Marx implica não considerar a cultura nem simples reflexo da relação de produção, nem elemento externo à formação das relações de classe.
Quando as classes são percebidas em termos de “raça” e de “sexo”, as análises em torno dessas questões não constituem acréscimos acessórios ou suplementos da alma: a articulação do conjunto baseia-se na relação estreita entre exploração e opressão, modelada pela dominação do capital. Em sua crítica do “novo espírit0 do capitalismo”, Luc Boltanski e Ève Chiapello restabelecem, com toda a razão, o vínculo orgânico entre exploração e exclusão no cerne de suas contradições.”



“A crise de “mutação” de forças políticas tradici0nais, como a democracia­cristã, os conservadores britânicos ou a direita francesa tradicional, o questionamento da função que elas desempenharam, desde a Guerra, no compromisso constitutivo do Estado social e na coesão do Estado nacional, inscrevem-se nessa perspectiva. Nela também se inscrevem as transformações da socialdemocracia europeia. Por meio da privatização do setor público, as elites gerenciais privadas e a nobreza do Estado integram-se organicamente às camadas dirigentes da burguesia. Confiantes na fraqueza das direitas tradicionais, os partidos socialdemocratas são assim conduzidos a desempenhar o papel motor ad interim na adaptação do capital à evolução do mundo atual. Eles carregam em sua órbita os restos dos partidos pós-stalinistas, atormentados por seu passado insuperável, e a maior parte dos partidos verdes, hipnotizados pelas delícias de uma institucionalização acelerada.”


“Putin é produto do desmembramento de um império burocrático e do advento de um capitalismo mafioso.”


“A opressão das mulheres (ao mesmo tempo social, sexual e simbólica) não começou com o desenvolvimento do capitalismo. Infelizmente, é provável que ela sobreviva ao reino da propriedade privada e do lucro, pois a verdade é que a evolução dos costumes e das mentalidades obedece a outros ritmos sociais que nã0 são os das decisões legislativas. Mas as formas de opressão e de dominação têm uma história. Elas se transformam com o conjunto das relações sociais. Uma formação social dominada pelo critério do lucro produz uma estreita imbricação entre divisão social e divisão sexual do trabalho, uma mutação das relações entre esfera privada e esfera pública, uma transformação do papel da família, uma desvalorização do trabalho doméstico em relação ao trabalho assalariado. Se relações de classe e relações de sexo são irredutíveis umas às outras, então elas se determinam e se condicionam reciprocamente, de tal forma que não se poderia lutar de maneira eficaz contra a opressão sem lutar também contra a exploração.”


“Se “o mundo se estreita à medida que cresce”, ele também se fragmenta à medida que se globaliza. O imperialismo é a forma que a dominação reveste sob o efeito da acumulação do capital e de seu desenvolvimento desigual. Em dois séculos, ele passou por três grandes etapas: a das conquistas coloniais e das ocupações territoriais (com a formação dos impérios coloniais franceses e britânicos); a da fusão do capital industrial e bancário, da exportação de capitais, da pilhagem das matérias-primas. característica da era do “capital financeiro”, segundo Hilferding, ou do “estágio supremo do capitalismo”, segundo Lenin; e, finalmente, desde a Segunda Guerra Mundial, a da dominação fracionada do mundo, das independências formais e do desenvolvimento dependendente1. Ele se metamorfoseia novamente, sem no entanto desaparecer.
A sequência histórica aberta pela Grande Guerra e pela Revolução Russa encerrou-se com o século. Uma nova fase da dominação imperial, reconciliando-se com as lógicas em funcionamento antes de 1914, encontra-se hoje na ordem do dia. A partir de então, ela se exerce de diversas maneiras: pela dominação financeira e monetária, que permite controlar os mecanismos do crédito e submeter as economias dolarizadas; pela dominação científica e técnica, que se exerce por uma espécie de monopólio das propriedades intelectuais; pelo controle dos recursos naturais e das reservas energéticas; pelo controle das vias comerciais; pelo patenteamento do organismo vivo; pelo exercício de uma hegemonia cultural. que reforça. a difusão desigual das tecnologias de informação e da exportação de programas educativos: pela demonstração de uma supremacia militar ostensivamente posta em cena nas guerras do Golfo e dos Bálcãs2.”
1 Ver Alex Callinicos, Imperialism today in marxism and the new imperialism (Londres, Bookmarks, 1994)
2 Ver Gilbert Achcar. La nouvelle guerre froide: le monde après le Kosovo (Paris, PUF, 1999, col. “Actuel Marx”); Noam Chomsky, Le nouvel humanisme militaire (Lausanne, Page 2, 2000); Claude Serfati, “Le bras armé de la mondialisation”, Temps Modernes, jan.-fev. 2000.


“Ao percorrer o mundo e, em sua evolução, delinear uma estranha geopolítica de resistências, “o espírito de Seattle” soprou a partir de então em Millau, Praga, Genebra, Washington, Porto Alegre, Nova York, Bangcoc, Nice e Dacar. Sua proclamação inicial deu a volta no planeta: “O mundo não é uma mercadoria!”.·A frase vai longe, muito além de sua simplicidade bíblica, por menos que seja levada a sério. O “mundo” não é uma mercadoria? Então, o que é exatamente mundo! Onde começa e onde acaba? Se ele não é uma mercadoria, o saber do mundo também não é, nem o organismo vivo, nem o direito à saúde, à educação e à habitação. Dessa maneira, aparece o valor pedagógico da controvérsia ambígua sobre a “exceção cultural”: ela põe em evidência a necessidade de tirar do despotismo do mercado algumas atividades sociais, assim como seus produtos. Os índices da Bolsa e a ordem fatalizada da coisa econômica caminham exatamente no sentido contrário, vão até mais longe do que “a apropriação privada dos meios de produção e de troca”, muito mais longe do que a privatização dos serviços e da seguridade social. A privatização generalizada do planeta estende-se às informações, ao direito (prevalecendo 0 contrato privado sobre a lei geral), à solidariedade (seguro privado e fundos de pensão em oposição aos seguros mútuos e à seguridade social), à vi0lência (na França, há mais seguranças e milícias privadas do que policiais “públicos” e até mesmo aos presídios.”


“A privatização do mundo tem como contrapartida uma “publicização” crescente da vida privada. Não só dos homens ditos “públicos”, que exibem sua imagem privada por necessidade de promoção midiática, mas também de cidadãos anônimos caçados em seu espaço privado pelo telemarketing, pelo circuito integrado de câmeras, pelo controle dos fluxos de comunicação ou pelos sistemas de observação militar. É o sinal de uma revoluçã0 em curso na grande divisão entre privado e público estabelecida desde a Revolução Francesa. O voyeurismo midiático e o exibicionismo fazem par: a intimidade torna-se uma mercadoria negociável e o pudor torna-se uma cafonice vitoriana. “Não há mais ninguém que não deseje ser visto”, constata Michel Surya. Ele qualifica lindamente esse desejo como “desejo de transparição”. A “visibilidade” tornou-se a palavra mestra de uma sociedade de engodos, espetáculos e aparências8.”
8 Michel Surya, De la domination: le capital, la transparence et les affaires (Tours, Farrago, 1999).


“Na raiz das desregulamentações planetárias, existe a oposição entre uma socialização crescente dos conhecimentos, do trabalho, da cultura, e sua apropriação privada: quer se trate de organizar as relações sociais, de gerenciar os recursos, de distribuir as riquezas ou de avaliar as trocas, o valor mercantil torna-se cada vez mais irracional. Proclamar que “o mundo não é uma mercadoria” quer dizer que a concorrência tem seus limites, que os benefícios atribuídos à mão invisível do mercado estão longe de compensar os crimes de seu punho visível e que o valor mercantil e monetário não é a medida de todas as coisas. A única lógica realmente alternativa seria a do serviço público e do bem comum, do direito imprescritível ao patrimônio comum da humanidade, quer se trate dos recursos naturais (a terra, a água, o ar), dos medicamentos ou dos conhecimentos acumulados ao longo dos séculos e das gerações. A ideia de um domínio público da informação, às vezes evocada a propósito do desenvolvimento das telecomunicações eletrônicas, ou a de um livre acesso dos países pobres aos medicamentos são apenas casos particulares de uma questão “global” inerente à própria “globalização” capitalista.”


“Uma teoria social é apenas uma interpretação crítica de determinada época. Embora tenhamos de procurar as lacunas e as fragilidades que a desarmaram diante das provas da história, não poderíamos julgá-la de acordo com os critérios anacrônicos de outra época. Assim, as aporias da democracia herdadas da Revolução Francesa, o impensado do pluralismo organizado, a confusão do povo, do partido e do Estado, a fusão decretada do social e do político, a cegueira diante do perigo burocrático (considerado secundário em relação ao “perigo principal” da restauração capitalista) foram propícios à contrarrevolução termidoriana na Rússia dos anos 1930. Efetivamente, se concebermos a contrarrevolução como “uma reação do Estado contra a sociedade”1, então se trata realmente de uma contrarrevolução colossal.
Apesar do mito refundador da tábula rasa, esse processo mistura de maneira inextrincável elementos de continuidade e de descontinuidade. Objeto de muitas controvérsias, a dificuldade para datar precisamente o triunfo da reação burocrática na União Soviética resulta fundamentalmente da assimetria histórica entre revolução e contrarrevolução. Esta não é a imagem invertida da revolução, uma espécie de avesso da revolução. Como dizia Joseph de Maistre (um especialista!) a propósito do Termidor, a contrarrevolução não é uma revolução no sentido oposto, mas “o contrário de uma revolução”. As “revoluções” ditas de veludo são o epílogo crepuscular de derrotas desde muito consumadas.
Trotski situa o início da revolução termidoriana por ocasião da morte de Lenin. Mas ela somente é vitoriosa de maneira efetiva no início dos anos 1930, com a vitória do nazismo na Alemanha, o processo de Moscou, os grandes expurgos e o terrível ano de 1937. Em Origens do totalitarismo·, Hannah Arendt adota uma cronologia semelhante, que data de 1933 ou 1934 o advento do totalitarismo burocrático propriamente dito. Trabalhos historiográficos mais recentes, como o de Mikaïl Guefter, baseados na experiência pessoal e na abertura dos arquivos soviéticos, chegam a conclusões análogas. Em Rússia-URSS- Rússia, o historiador Moshe Lewin evidência a explosão quantitativa do aparelho burocrático do Estado no fim dos anos 1920. A repressão dos anos 1930 contra os movimentos populares não é o simples prolongamento do que prefiguravam, desde o início dos anos 1920, as práticas da Vetcheka ou os trabalhos forçados como pena política nas ilhas Solovki. Ela marca uma mudança de escala, um salto qualitativo, graças ao qual a burocracia do Estado destrói e digere o partido que acreditava poder controlá-la.”
1 Karl Marx, “The eletions in England – Tories and whigs”, New York Daily Tribune, 21/8/1852.


“No vocabulário político dos séculos XVIII e XIX, o termo “ditadura” tinha a conotação de uma instituição virtuosa – o poder de exceção temporária legalmente designado pelo Senado romano –, em oposição à “tirania”, que era o nome do poder arbitrário3. Hoje, ele se tornou carregado demais de ambiguidades e associado a experiências históricas extremamente dolorosas para ainda poder ser utilizado sem risco de confusão.
Essa simples constatação necessariamente traz à tona as questões da democracia representativa, da relação entre o social e o político, das condições de enfraquecimento da dominação às quais, sob a forma “enfim encontrada” da Comuna de Paris, a “ditadura do proletariado” pretendia dar uma resposta.”
3 Ver Alessandri Galante Garrone, Les révolutionnaires du XIXe siècle (Paris, Champ Libre, 1975)