Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-2566-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 808
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Sinopse: Ver Parte
I
“A ditadura pode até ter sido uma sucessão quase imperial de generais no exercício da Presidência da República; contudo, entre 1964 e 1985, o Ministério do Planejamento, juntamente com o da Fazenda, não ficava atrás. Tinha poderes de sobra, era reduto de civis, e o comando da área econômica cabia quase todo ao Ipes: Roberto Campos, Octávio Gouvêa de Bulhões, Antônio Delfim Netto, Hélio Beltrão, Mário Henrique Simonsen.39 “No fundo, existia um canal absolutamente aberto entre o governo e o setor empresarial”,40 reafirmou, cinquenta anos depois, Delfim Netto, ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, e do Planejamento entre 1979 e 1985. O Ministério da Fazenda dispunha de controle quase total do orçamento, isto é, sobre gastos que deveriam ser definidos pelo Congresso Nacional. “O ministro da Fazenda tinha poderes de autorizar qualquer despesa que lhe desse na telha”, recordou o ex-ministro Maílson da Nóbrega, e completou: “Poderes de matar de inveja um rei medieval”.41 O projeto de desenvolvimento econômico da ditadura pretendia facilitar o investimento estrangeiro, reduzir o papel ativo do Estado e elevar o ritmo de crescimento. E tudo isso foi feito sem contestação: “Fazíamos, e não havia força política, nem legislativa, nem no Judiciário, que pudesse se contrapor a esse comando econômico”,42 confirmou o ex-ministro Ernane Galvêas. O governo Castello Branco ergueu as bases econômicas e financeiras que serviriam para deslanchar o modelo de desenvolvimento, e deu prioridade a um programa de estímulo ao investimento estrangeiro e de incentivo às exportações por meio da desvalorização do cruzeiro em relação ao dólar. Adotou uma dura política de estabilização: controle dos salários, redução da idade legal mínima de trabalho, fim da estabilidade no emprego através da criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), repressão aos sindicatos, proibição de greves.43 (...)
Mas, enquanto os militares aprofundavam os instrumentos de repressão dentro das fábricas — e para o restante da sociedade —, a economia se aqueceu e a inflação, em vez de subir, passou a cair. Teve início um surto de crescimento que, no seu apogeu, superou qualquer período anterior, e o governo começou a falar de “milagre econômico brasileiro”.46 A performance de crescimento seria indiscutível, porém o milagre tinha explicação terrena. Misturava, com a repressão aos opositores, a censura aos jornais e demais meios de comunicação, de modo a impedir a veiculação de críticas à política econômica, e acrescentava os ingredientes da pauta dessa política: subsídio governamental e diversificação das exportações, desnacionalização da economia com a entrada crescente de empresas estrangeiras no mercado, controle do reajuste de preços e fixação centralizada dos reajustes de salários.
A
indústria automobilística triplicou a produção, faltou cimento para atender ao
aumento da demanda na construção civil, e a Bolsa de Valores parecia fabricar
dinheiro fácil — no pregão do Rio de Janeiro, um mês de transação, em 1970,
ultrapassou, em dez vezes, todo o movimento do ano de 1968. O “milagre
econômico”, contudo, teve um preço, e o crescimento da economia se fez
acompanhar de um processo acentuado de concentração de renda, resultado de uma
política salarial restritiva, em que os ganhos de produtividade não eram
repassados para os trabalhadores. Deu-se também um aumento vertiginoso da dívida
externa, com o país mais vulnerável às alterações do cenário internacional em
decorrência da captação de recursos privados no exterior — com financiamento
mais barato e maior prazo — e obtenção de crédito para a indústria em bancos
privados internacionais com juros flutuantes e elevados. Os brasileiros só
iriam acordar para o tamanho dessa vulnerabilidade após 1973, quando a
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) reduziu a oferta de
petróleo, o preço do produto foi multiplicado por quatro, não havia alternativa
senão continuar comprando, e o milagre finou. Ao contrário do brasileiro comum,
tanto os generais do Executivo quanto os tecnocratas do Ministério do
Planejamento sabiam que havia distorções no crescimento da economia e que as
consequências viriam. E ninguém se mexeu: o resultado era muito bom e a
ditadura se beneficiava dele. Na explicação meio cínica do general Médici, que
ocupou a Presidência da República no período de apogeu do ciclo de crescimento,
o país estava muito bem; o povo é que ia mal.
Uma ditadura é formada por mandantes arbitrários, oposicionistas tenazes e uma população que precisa sobreviver — parte dela atravessa em silêncio, com medo ou apenas conformada o tempo do arbítrio. Enquanto durou, o “milagre econômico” escamoteou os efeitos da concentração de renda, e muita gente, em especial entre as classes médias urbanas, se beneficiou com o crédito fácil, as novas oportunidades profissionais e os estímulos para consumir num mercado abarrotado de novidades: TV em cores, toca-fitas, câmera Super-8, automóveis — Corcel, Opala, Galaxie, Chevette. Para completar a felicidade do brasileiro, ainda existia a possibilidade de o assalariado finalmente “dar o salto da casa própria” e comprar imóvel financiado pelo recém-criado Banco Nacional de Habitação (BNH). O “milagre econômico” teve seu apogeu entre 1970 e 1972, e o êxito na economia ajuda a entender, ao menos em parte, por que o general Médici conseguiu ser, ao mesmo tempo, o responsável por comandar o pior período de repressão e violência política na história brasileira e um presidente popular, pouco criticado e muito aplaudido. O grau de controle coercitivo sobre a sociedade que a ditadura adquiriu durante sua presidência foi imenso, mas por si só não garantia apoio. Todo governo, para se sustentar, depende de alguma forma de adesão, e o “milagre econômico” ajudou a fabricar uma base geradora de consentimento junto à população. Três dias depois de sua posse, em 1969, Médici autorizou a reformulação de um órgão de comunicação criado por seu antecessor — a Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp) — e pôs para funcionar uma campanha de propaganda política sem precedentes. A propaganda feita pela Aerp era criativa, não tinha nada de chapa-branca nem ostentava os sinais típicos do marketing político. As peças falavam em otimismo, orgulho e grandeza nacional; celebravam a diversidade e a integração racial brasileira; afirmavam a harmonia social, e embalavam tudo isso em filmes curtos, com narração direta, imagens bem cuidadas e um arremate musical que grudava na lembrança do espectador.47
A propaganda da Aerp foi produzida para a televisão e fez sucesso. Os militares tinham um projeto de desenvolvimento em grande escala, pretendiam realizar a integração completa do território nacional, e o Brasil se transformou num imenso canteiro de obras verde-oliva — tudo devidamente registrado e festejado por aquela assessoria. A mais famosa dessas obras — a construção da Transamazônica —48 fez o encaixe perfeito entre o projeto de desenvolvimento econômico concebido no Ipes e as diretrizes de segurança interna desenvolvidas pela ESG: uma estrada gigantesca, com 4997 quilômetros previstos no projeto, 4223 quilômetros (mal) construídos, e a pretensão de cortar a Bacia Amazônica de leste a oeste e ligar a Região Nordeste ao Peru e ao Equador. A construção da Transamazônica serviu de alavanca para um ambicioso programa de colonização que incluía o deslocamento de quase 1 milhão de pessoas com o objetivo de ocupar estrategicamente a região, não deixar despovoado nenhum espaço do território nacional e tamponar a área de fronteiras. A estrada foi inaugurada por Médici em 27 de setembro de 1972 e utilizada para potencializar uma imagem ufanista do Brasil, compartilhar o sentimento de que estava em curso um processo formidável de modernização do país e produzir identidade. Mas não foi bem assim. A construção da Transamazônica massacrou a floresta, consumiu bilhões de dólares, e até hoje a estrada tem trechos intransitáveis por conta das chuvas, dos desmoronamentos e das enchentes dos rios. A Transamazônica torrou um dinheiro que não havia, mas os brasileiros só entenderam isso na hora em que acabou o milagre e a inflação bateu na casa de três dígitos — em 1980, atingiu a cifra de 110%. Quando o governo dos militares terminou, em 1985, o país estava endividado e a inflação chegava a 235%. O Brasil se tornara a cópia exata do reino de Belíndia, situado num longínquo rincão entre o Ocidente e o Oriente e criado, em 1974, pela imaginação do economista Edmar Bacha, que queria denunciar a crise, precisava driblar a censura e criou o texto “O economista e o rei da Belíndia: uma fábula para tecnocratas”.49 Em Belíndia, a forma de contabilizar a riqueza nacional servia para ocultar a brutal concentração de renda que repartia o país entre regiões avançadas — a “Bélgica” — e regiões muitíssimo atrasadas — a “Índia” — onde havia fome, miséria absoluta, baixa expectativa de vida e alta taxa de mortalidade infantil.”
39 Para a participação no Ipes, ver
René Armand Dreifuss, 1964: A conquista do Estado.
40 Para a declaração de Delfim
Netto, ver Rafael Cariello, “O chefe”. piauí, São Paulo, n. 96, p. 23,
set. 2014.
41 Para a declaração de Maílson da
Nóbrega, ver Rafael Cariello, “O chefe”, op. cit., p. 24.
42 Para a declaração de Ernane
Galvêas, ver Rafael Cariello, “O chefe”, op. cit., p. 22.
43 Para a política econômica do
governo Castello, ver Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein, “Transformações
econômicas no período militar (1964-1985)”, em Daniel Aarão Reis, Marcelo
Ridente e Rodrigo Patto Sá Motta (Orgs.), A ditadura que mudou o Brasil;
Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil (1964-1984).
46 Para o “milagre econômico”, ver
Francisco Vidal Luna e Herbert S. Klein, “Transformações econômicas no período
militar (1964-1985)”; Elio Gaspari, A ditadura envergonhada; Luiz Carlos
Delorme Prado e Fábio Sá Earp, “O ‘milagre’ brasileiro: Crescimento acelerado,
integração internacional e concentração de renda (1967-1973)”, em Lucilia de
Almeida Neves Delgado e Jorge Ferreira (Orgs.), O Brasil republicano: O
tempo da ditadura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v. 4:
Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX).
47 Para a Aerp, ver Carlos Fico, Reinventado
o otimismo: Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (Rio de
Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1997). Cópias (16 mm) dos filmes produzidos
pela Aerp podem ser encontradas no Centro de Produção Cultural, Decanato de
Extensão, Universidade de Brasília.
48 Para a Transamazônica, ver
Daniel Drosdoff, Linha dura no Brasil: O governo Medici (1969-1974) (São
Paulo: Global, 1986); Murilo Melo Filho, O milagre brasileiro (Rio de
Janeiro: Bloch, 1972).
49 Edmar L. Bacha e Roberto M.
Unger, Participação, salário e voto: Um projeto de democracia para o Brasil.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
“TEMPERATURA SUFOCANTE
Em 14 de dezembro de 1968, o Jornal do Brasil, um dos mais importantes matutinos da época, foi às bancas com uma edição cuidadosamente planejada para provocar estranheza. Entre as bizarrices, o jornal estampou o aviso “Ontem foi o Dia dos Cegos” e a previsão meteorológica na primeira página. Não satisfeito, anunciou: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”. O dia era de sol forte e céu escandalosamente azul, mas a edição falava sério: tentava alertar o leitor da presença de censores na redação — naquela madrugada, entrara em funcionamento uma operação militar destinada a censurar toda a imprensa nacional.
O jornal também avisava que o ruim tinha piorado. Às dez da noite de 13 de dezembro de 1968 o ministro da Justiça, Gama e Silva, em cadeia nacional de rádio e televisão, fizera uma rápida introdução de cinco minutos e passara a palavra a Alberto Curi, que durante dezoito minutos havia apresentado, num tom monocórdico e solene, o texto do Ato Institucional nº 5. O documento contava doze artigos e vinha acompanhado de um Ato Complementar nº 38 que fechava o Congresso Nacional por tempo indeterminado. O AI-5 suspendia a concessão de habeas corpus e as franquias constitucionais de liberdade de expressão e reunião, permitia demissões sumárias, cassações de mandatos e de direitos de cidadania, e determinava que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem direito a recurso. Foi imposto ao país numa conjuntura de inquietação política e movimentação oposicionista: manifestações estudantis, greves operárias, articulações de lideranças políticas do pré-1964 e início das ações armadas por grupos da esquerda revolucionária. Para editá-lo, os militares se utilizaram de um pretexto: a recusa do Congresso Nacional em autorizar o processo judicial contra o deputado Márcio Moreira Alves, acusado de ser autor de um discurso ofensivo às Forças Armadas, proferido, no plenário da Câmara, no dia 3 de setembro daquele ano. Moreira Alves era um deputado valente, que já tinha denunciado — e provado — dezenas de casos de tortura ocorridos nos quartéis durante o governo de Castello Branco,50 e fez discurso duro na tribuna: “Quando o Exército não será um valhacouto de torturadores?”, indagou. O discurso, porém, não teve nenhuma repercussão: Moreira Alves falou em horário ingrato e para um plenário vazio. Mas, se os militares queriam um pretexto, esse estava ótimo: o ministro da Justiça solicitou a licença para processar o deputado, o Congresso recusou, e o AI-5 foi o desfecho da crise.51
O AI-5 era uma ferramenta de intimidação pelo medo, não tinha prazo de vigência e seria empregado pela ditadura contra a oposição e a discordância. Apesar disso, não foi o único instrumento de exceção criado pelas Forças Armadas nem significou um “golpe dentro do golpe” aplicado por facções intramilitares radicais para garantir a expansão do arbítrio e da repressão política. O AI-5 fez parte de um conjunto de instrumentos e normas discricionárias mas dotadas de valor legal, adaptadas ou autoconferidas pelos militares. Eles despenderam grande esforço para enquadrar seus atos num arcabouço jurídico e construir um tipo de legalidade plantada no arbítrio — uma legalidade de exceção —,52 capaz de impor graves limites à autonomia dos demais poderes da União, punir dissidentes, desmobilizar a sociedade e limitar qualquer forma de participação política. O primeiro Ato Institucional foi redigido em segredo e promulgado oito dias após o golpe. Vinha assinado pelo autoproclamado Comando Supremo da Revolução — formado pelo general Costa e Silva, pelo almirante Rademaker e pelo brigadeiro Correia de Mello — e tinha onze artigos: transferia parte dos poderes do Legislativo para o Executivo, limitava o Judiciário, suspendia as garantias individuais e permitia ao presidente da República cassar mandatos, cancelar os direitos políticos do cidadão pelo prazo de dez anos e demitir funcionários públicos civis e militares. Para legitimar esse instrumento com algum grau de embasamento legal, os militares concederam a si próprios poderes constitucionais e embutiram a manipulação jurídica na “Introdução” do primeiro Ato Institucional: “A Revolução vitoriosa […] é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte”.53
As Forças Armadas até hoje empregam o termo “Revolução” para se referir ao golpe, e isso ocorre por conta do primeiro Ato Institucional: garantia-se legitimidade ao sistema e institucionalizava-se a repressão. Em razão dos vários Atos Institucionais que se seguiram, esse passou a ser conhecido como AI-1, e forneceu ao governo do general Castello Branco o instrumento jurídico que permitiu encarcerar milhares de pessoas, bem como improvisar áreas de detenção em estádios de futebol, como o Caio Martins, em Niterói, além de transformar embarcações da Marinha Mercante e da Marinha de Guerra em navios-prisões.54 O AI-1 também liberou a execução de manobras policial-militares de detenção em massa, com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e checagem individual, que se deram durante o ano de 1964, em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco — cerca de 50 mil pessoas acabaram detidas nessas manobras, conhecidas como Operação Limpeza.
Era de repressão que se tratava, e o AI-1 facilitou as condições para o expurgo no serviço público. A estratégia tinha duas pontas. Numa, os militares criaram Comissões Especiais de Inquérito, de natureza administrativa, em todos os níveis de governo: ministérios, órgãos e empresas estatais. Na outra, instauraram Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para investigar as atividades de funcionários na administração pública.55 Os IPMs foram dirigidos sobretudo por coronéis do Exército selecionados por seu radicalismo ideológico, e o encargo era entendido como uma tarefa prestigiosa. Os coronéis estavam investidos de uma função policial de novo tipo, não submetida a regras de comprovação, e atuaram movidos por um intenso furor punitivo. Nas primeiras semanas após o golpe, haviam sido instaurados 763 IPMs; em um ano de atividade, 10 mil réus e 40 mil testemunhas foram submetidos a inquéritos que revelavam completo desprezo pelas regras de justiça.
Entre 1964 e 1973, milhares de brasileiros foram atingidos pelos expurgos. Estima-se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura — só o AI-1 teve como alvo 2990 cidadãos. Nos quartéis, os expurgos atingiram as três Forças e remeteram 1313 militares para a reserva. Estavam fora da farda 43 generais, 532 oficiais de todas as patentes, 708 suboficiais e sargentos, e trinta soldados e marinheiros.56 Esse pessoal foi punido de forma particularmente cruel: o militar era declarado morto. Perdia, assim, as vantagens adquiridas ao longo da carreira — soldo de promoção, aposentadoria, salário-saúde e salário-família; a esposa, quando havia, recebia pensão de viúva. O AI-1 tinha prazo de validade — terminaria em 31 de janeiro de 1966, data final do mandato de João Goulart. Em outubro de 1965, porém, Castello Branco liquidou com as ilusões de quem ainda acreditava em ditadura temporária, prorrogou o próprio mandato e baixou por decreto o AI-2. Além das medidas destinadas a fortalecer o Executivo, o AI-2 mudava as regras do jogo no caso da representação política: suprimia as eleições por voto popular direto para presidente da República e extinguia todos os partidos políticos então existentes.
O AI-2 devolveu Carlos Lacerda à oposição, e em grande estilo: em outubro de 1966, ele lançou o manifesto da Frente Ampla, uma implausível organização de oposição que reunia, além dele, Juscelino Kubitschek e João Goulart.57 A ideia do entendimento entre os três inimigos partiu do próprio Lacerda, e a frente conseguiu agrupar quase todas as correntes políticas com atuação no período democrático — inclusive os comunistas. Com duas exceções: Leonel Brizola, exilado no Uruguai, se recusou a encontrar-se com Lacerda; Miguel Arraes, um dos dois governadores a serem presos pela ditadura — o outro foi Seixas Dória, de Sergipe — e a principal liderança das esquerdas no Nordeste, estava exilado na Argélia e também não quis saber de conversa.
Se o
objetivo era selecionar um candidato à Presidência da República, o principal
beneficiário da Frente Ampla era mesmo Carlos Lacerda: Jango estava no exílio;
Kubitschek, apesar de todos os acenos que fez aos militares, havia sofrido um
IPM — que visava arrancar confissões não comprovadas de desvio de dinheiro
público —, teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez
anos. Mas a Frente Ampla significava uma alternativa oposicionista real: reunia
três grandes lideranças nacionais, abria canais de participação para a
sociedade com comícios, reuniões públicas e manifestações de rua, e apresentava
um programa mínimo para derrotar a ditadura no voto: restauração do poder
civil, anistia, pluripartidarismo, direito de greve, constituinte, eleições
diretas. Não podia durar. Em abril de 1968, Costa e Silva decretou sua
ilegalidade e proibiu suas atividades. Os militares jamais perdoaram Carlos
Lacerda, a quem consideraram traidor: em dezembro do mesmo ano, seu nome
encabeçou a lista de cassações do AI-5 e ele foi preso. Nunca mais voltaria à
vida política.
O Ato nº 3 foi assinado pelo general Castello Branco em fevereiro de 1966, e se encarregaria de acabar com as eleições diretas para governadores. Além do mais, um Ato Complementar serviria para alterar a correlação das forças políticas no Congresso e nas Assembleias Estaduais, ao estabelecer as normas para criação de apenas dois partidos: um de apoio ao governo, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), e outro de oposição, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Os dois atos encerravam a experiência do pluripartidarismo iniciada em 1946 e suprimiam a cidadania dos brasileiros: nos dezessete anos seguintes, a população perdeu o direito de eleger governadores, e teria de esperar 23 anos para escolher um presidente da República. Quem quisesse permanecer na política, e não estivesse preso ou cassado, precisava escolher o partido, e ficou difícil formar o MDB — a maior parte dos políticos em atividade correu para se abrigar na Arena. O partido do governo reunia a fina flor do conservadorismo, filiou praticamente toda a UDN, boa parcela do PSD e uma estreita fatia do PTB.58 Enquanto existiu, a Arena foi incapaz de atuar como partido e formular alternativas políticas nacionais; em compensação, sofria de incurável vocação adesista, sua postura era subserviente e seus integrantes aprovavam quase todos os projetos que o Executivo enviava ao Congresso. Mas a Arena também tinha diretórios instalados em todo o país, e se organizou rapidamente numa grande estrutura partidária sustentada por uma extensa rede de políticos, simpatizantes, militantes e eleitores — o partido garantiu suporte civil e foi outra fonte geradora de consentimento ao governo dos militares.
A Arena passou para a história como o partido do “sim, senhor”, e os militares esperavam que o MDB fosse dócil o suficiente para atuar como o partido do “sim”. Afinal, era oposição consentida e, entre 1966 e 1970, quando se consolidou como força política de oposição real, quem combatia a ditadura não via nenhuma razão para confiar nele.59 Muitos duvidavam de um partido fraco que aceitou o jogo da ditadura e, quando os preparativos para as eleições parlamentares se intensificaram, a campanha pelo voto nulo capitaneada pelas organizações da esquerda revolucionária obteve sucesso: em 1966, o índice de votos nulos e brancos chegou a 21%; em 1970, alcançou o patamar de 30%, num evidente sinal de descrédito do sistema bipartidário imposto pelos militares.
O MDB
passou a desconfiar de que talvez estivesse metido num beco sem saída. Entre
autodissolver-se e continuar funcionando apesar das cassações e da suspensão de
direitos políticos, a base de liderança do MDB, originária do PTB e do PSD,
decidiu ir em frente. Reuniu o partido em torno do único ponto de consenso — o
retorno do país à democracia — e assumiu os riscos de comportar-se como
oposição. Entre 1967 e 1968, parlamentares do MDB participaram de protestos,
passeatas e greves; subiram à tribuna para denunciar o arbítrio, a perda de
direitos, o processo de desnacionalização. O preço foi alto: a edição do AI-5,
em 1968, devastou o partido e, numa bancada de 139 parlamentares, sessenta
foram cassados. Em 1970, a bancada estava reduzida a 89 deputados.”
50 Ver Márcio Moreira Alves, Tortura
e torturados (Rio de Janeiro: Idade Nova, 1966).
51 Para a conjuntura política de
1968 e o discurso de Márcio Moreira Alves, ver Zuenir Ventura, 1968: O ano
que não terminou (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988); Elio Gaspari, A
ditadura envergonhada.
52 O argumento é de Anthony Pereira.
Ver Anthony W. Pereira, Ditadura e repressão: O autoritarismo e o estado de
direito no Brasil, no Chile e na Argentina (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2010).
53 Arthur da Costa e Silva et al.,
“À nação. Ato Institucional”. 9 abr. 1964. In: Carlos Fico, Além do golpe:
Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro:
Record, 2004. pp. 339 ss.
54 Ver Maria Helena Moreira Alves, Estado
e oposição no Brasil (1964-1984); Heloisa Starling et al.,
“Relatório parcial de pesquisa: Instituições e locais associados a graves
violações de direitos humanos” (Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2014).
55 Para os IPMs, ver Maud Chirio, A
política nos quartéis: Revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar
brasileira; Maria Helena Moreira Alves, Estado e oposição no Brasil
(1964-1984).
56 Para os dados, ver Lúcia Klein e
Marcus Figueiredo, Legitimidade e coação no Brasil pós-64 (Rio de
Janeiro: Forense-Universitária, 1978).
57 Para a Frente Ampla, ver Célia
Maria Leite Costa, “A Frente Ampla de oposição ao regime militar”, em Marieta
de Moraes Ferreira (Org.), João Goulart: Entre a memória e a história.
58 Para Arena, ver Lucia Grinberg, Partido
político ou bode expiatório: Um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional
(Arena), 1965-1979 (Rio de Janeiro: Mauad X, 2009).
59 Para o MDB, ver Maria Dalva Gil
Kinzo, Oposição e autoritarismo: Gênese e trajetória do MDB (São Paulo:
Idesp; Vértice, 1988).
“As Forças Armadas intervieram na cena pública em 1964 e ficaram 21 anos no poder porque julgavam ser isso do interesse da instituição — e, como até hoje se imaginam com legitimidade própria, consideraram estar agindo em benefício do país. Quando avaliaram a conveniência de abrir mão do controle direto do Executivo, também trataram de preservar seus interesses específicos. Uma das exigências dos militares era manter ativas as estruturas concebidas durante a ditadura, entre elas o sistema de informação e segurança. Além disso, demandavam a garantia de que permanecesse intocável quem tivesse se envolvido com a repressão política — não haveria “revanchismo”, costumava-se dizer nos quartéis. Por fim, exigia-se a continuidade dos incentivos para o desenvolvimento da indústria de armamento criada a partir de 1964, de comum acordo com os empresários, e das empresas relacionadas à segurança do Estado, sobretudo as de telecomunicações e informática.6
Os militares saíram intocados do governo — e assim permanecem até hoje. Mas perderam em prestígio, legitimidade social e estratégia: não conseguiram manter sob controle o processo de liberalização do sistema político e substituir gradativamente a coerção da ditadura por um governo civil de tipo autoritário. Nenhum dos generais comprometidos com o projeto de abertura controlada almejava democracia sem restrições. Com o argumento de que jamais existiu uma situação democrática de fato no país, o general Golbery, por exemplo, não aceitava discutir propostas de redemocratização nem admitia debater a restauração dos procedimentos democráticos previstos na Constituição de 1946. O general Figueiredo pensava da mesma forma. A diferença é que era didático: “Nós temos a laranja-lima, a laranja-pera, a laranja-baía, que têm sabores diferentes, mas nem por isso deixam de ser laranjas […]. Assim também há democracias diferenciadas”, explicou, em 1978, para repórteres da Folha de S.Paulo. E arrematou: “Me respondam, o povo está preparado para votar? […] O brasileiro pode votar bem se ele não conhece noções de higiene?”.7
O fracasso dos militares na tentativa de superar a ditadura para institucionalizar uma ordem autoritária ocorreu por várias razões. A mais evidente: eles perderam o trunfo da economia. No final do governo do general Geisel, o Brasil possuía um dos maiores e mais bem integrados complexos industriais entre os países periféricos, mas sofria o choque do aumento nos preços do petróleo e de sua comprida fila de consequências: crescimento lento nas exportações, aceleração nas taxas de juros internacionais, aumento da dívida externa. A inflação seguiu ascendente, chegou a 211% ao ano em 1983, 223% em 1984, no final do governo do general Figueiredo, e bateu forte no bolso e no cotidiano do trabalhador e da classe média assalariada: descontrole nos preços, contas públicas deterioradas, recessão e desemprego.8”
6 Para as exigências, ver Alfred
Stepan, Os militares: Da abertura à Nova república; Brasilio Sallum Jr., Labirintos:
Dos generais à Nova República.
7 Folha de S.Paulo, São
Paulo, pp. 4-5, 5 abr. 1978. Para Golbery, ver Luiz Gutemberg, Moisés:
Codinome Ulysses Guimarães — Uma biografia.
8 Para a crise da economia no
governo Geisel, ver Francisco Vidal Luna e Herbert Klein, “Transformações
econômicas no período militar (1964-1985)”.
“ENTRANDO NO JOGO DA DEMOCRACIA (MAS COM DIFICULDADE)
Com a
confirmação da derrota, a frustração popular foi imensa — as pessoas que se
reuniram em vigílias cívicas para acompanhar o resultado da votação choravam
diante do Painel das Diretas. Na eventualidade de ocorrerem eleições pelo voto
direto, o candidato oposicionista seria mesmo Ulysses Guimarães. Sua
candidatura era praticamente imbatível, dispunha de base popular, e poderia
reordenar o centro de poder político no país. A sucessão pela via indireta, ao
contrário, tirava de Ulysses todas as chances, e as lideranças do PMDB firmaram
um acordo. O partido iria disputar a Presidência da República nas duas
circunstâncias, mas, no colégio eleitoral, o candidato escolhido seria outro: o
então governador de Minas, Tancredo Neves (ver imagem 126).
É certo que Ulysses resistiu à derrota da Emenda Dante de Oliveira — queria manter a pressão das ruas e cavar no Congresso outra oportunidade para virar as regras do jogo da sucessão. Mas é certo também que Tancredo sonhava ser candidato de qualquer maneira e, em mais de uma ocasião, atropelou a campanha das Diretas Já. Em abril de 1984, por exemplo, às vésperas da votação no Congresso — quando havia um acordo entre as oposições de que só se trataria de outras alternativas depois de ter ocorrido a votação —, Tancredo chamou a imprensa e afirmou que aceitaria de bom grado liderar uma negociação com as forças do governo, com os generais e com o próprio Palácio do Planalto — “se para isso recebesse delegação do PMDB”, completou, prudentemente.47
Ao contrário de Ulysses Guimarães, sempre disposto a se encrespar com os militares, Tancredo era até simpático aos olhos do general Figueiredo e de sua base de apoio, mas, justiça lhe seja feita, não enganou ninguém: era um político de tendências moderadas que desde 1964 atuava em oposição à ditadura. Não fora cassado nem privado de seus direitos políticos, e a oposição conservara uma liderança astuta e experiente: elegeu-se deputado federal nas décadas de 1960 e 1970, senador de 1978 a 1982, e, nesse mesmo ano, governador de Minas. Tinha 51 anos de vida pública — começou como vereador, em São João del-Rei — e uma trajetória impecável: ministro da Justiça no segundo governo de Vargas e primeiro-ministro durante o parlamentarismo no governo de João Goulart. Tancredo nunca abriu mão de sua lealdade a quem o fez político nacional.48 E era um mestre na arte de fazer política à moda de Minas: um negociador habilidoso, que sabia a hora de sair da sombra e agarrar a oportunidade.
É difícil dizer se Tancredo simplesmente não acreditava na aprovação da emenda pelas eleições diretas, ou se seu propósito era mesmo equilibrar-se numa gangorra, disfarçando o interesse e empenhando-se nos comícios, enquanto preparava o terreno para o dia seguinte à votação. Seja como for, ele estava certo de que seria bem-sucedido se construísse uma candidatura conciliatória. Era só fazer as contas, deve ter pensado: os 298 votos dados às Diretas Já apontavam para um número superior às bancadas da oposição, indicavam que existia uma fratura na base parlamentar do governo e sugeriam que a dissidência poderia ser ampliada. Foi esse o horizonte estratégico de Tancredo: apostar no colégio eleitoral como a arena principal da disputa sucessória, investir no esforço de cooptação de aliados entre os parlamentares do PDS com o objetivo de quebrar a base parlamentar do governo e abrir suas próprias linhas de negociação com os militares.49 As circunstâncias trabalharam a seu favor. Primeiro, o general Figueiredo travou a escolha do candidato governista e rechaçou todos os nomes do PDS que se apresentaram à sucessão — além de alimentar a hipótese de espichar o próprio mandato. Segundo, não havia um nome capaz de unir a base governista e dar sobrevida ao projeto de abertura controlada dos militares, e o PDS se esfacelou numa disputa fratricida. Terceiro, o candidato escolhido pelo partido, Paulo Maluf, era um desastre. Maluf foi produto da ditadura: um político voraz e reacionário, que deixava um rastro de acusações de corrupção por onde passava — a prefeitura e o governo de São Paulo —, e desembarcou em Brasília, em 1983, como o deputado mais votado do seu estado. Tinha seu próprio método para fazer amigos, influenciar convencionais do PDS e se tornar presidente da República: trabalhava agressivamente o voto de cada delegado, loteava cargos, distribuía presentes e fazia generosas promessas para o futuro.
Nem tudo aconteceu como Tancredo queria, mas ele calculou corretamente que tinha mais chance de ganhar que de perder. Conseguiu fechar um acordo que parecia impossível com a base parlamentar governista e criou a dissidência de onde tiraria os votos necessários para vencer no colégio eleitoral. A Frente Liberal implodiu o PDS e deu origem, ainda em 1985, ao Partido da Frente Liberal (PFL), de traço conservador e irrefreável vocação adesista.50 Tancredo também não descuidou dos quartéis. Fez contato direto com o general Geisel, que, mesmo na reserva, continuava respeitado entre os militares. E anunciou, numa carta pública, que seu governo não faria perguntas às Forças Armadas — nem sequer para investigar os crimes da ditadura. Além de abrir os braços para os dissidentes do PDS, Tancredo costurou uma aliança política capaz de acomodar as diferentes forças que o apoiavam, como o PMDB, o PDT, o PTB e até os comunistas do PCB — a Aliança Democrática.51 Deu ao seu programa um tom de mudança de governo e não de ruptura do sistema político, mas manteve os três pontos considerados essenciais pela oposição para concretizar o projeto de redemocratização do país: eleições diretas em todos os níveis, convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e promulgação de uma nova Constituição. Tancredo escolheu para vice o senador maranhense José Sarney, que chamou os jornalistas e anunciou que estava renunciando à presidência do PDS para ingressar na Aliança Democrática. Adotou o slogan “Muda Brasil”, saiu pelo país promovendo a candidatura e não negligenciou nenhuma demonstração de apoio.
Conformado, Ulysses Guimarães dizia que Tancredo ia concorrer às eleições indiretas para chegar ao poder e acabar para sempre com as eleições indiretas.52 Tinha certa razão, mas não conseguiu convencer o PT a passar recibo no que o partido classificava de transição conservadora nem a participar do colégio eleitoral. Mas, agindo a seu modo, Tancredo encerrou o governo dos generais. Em 15 de janeiro de 1985, foi eleito — e com ele Sarney — presidente da República, com uma votação extraordinária: 480 votos contra 180 de Maluf. Tinha só três meses até a posse para consolidar a vitória, montar o novo governo e materializar a retórica da Nova República, um projeto de transição ambíguo, que incluía uma solução política conservadora e uma alternativa de mudança conciliatória, mas não era nada desprezível: estava orientado para avançar na reconstrução democrática e buscar a estabilização econômica e a estabilidade institucional.
Na véspera da posse, Tancredo foi internado no Hospital de Base, em Brasília, e submetido a uma cirurgia de emergência. Ele tinha 75 anos, sabia que estava doente, escondeu isso de seus interlocutores mais próximos e avaliou que conseguiria assumir o cargo na data prevista — só depois iria procurar ajuda médica. Tancredo tinha pesadelos diários com a possibilidade de os generais encontrarem um modo de impedir sua posse e receava que um afastamento para cuidar da saúde lhes servisse de pretexto. Qualquer doença era tabu para os homens públicos da época, e os militares poderiam alegar que um tratamento longo ou curto era incompatível com o governo do país. Deu tudo errado. A cirurgia ocorreu num hospital sem condições de assepsia, o quadro de infecção generalizada já estava instalado, os médicos foram negligentes e o estado do paciente era grave. Tancredo nunca tomaria posse. Piorando a cada dia, ele foi transferido para o Instituto do Coração, em São Paulo, e submetido a novas cirurgias — sete, no total. No dia 21 de abril, sua morte foi anunciada ao país.53
Enquanto Tancredo enfrentava a primeira cirurgia e o Brasil entrava em estado de choque, o PMDB agiu para garantir a transmissão de cargo. A Constituição determinava que a sucessão seguisse do presidente para o vice-presidente e, na falta deste, para o presidente da Câmara dos Deputados — no caso, Ulysses Guimarães. Por uma única vez, o general Figueiredo e o grupo dos autênticos do PMDB se puseram de acordo: se Tancredo não havia assumido, seu sucessor legal era Ulysses Guimarães. Mas Ulysses recusou. Alegou o prognóstico dos médicos de que Tancredo estaria em condições de tomar posse em 48 horas — divulgado pelo secretário particular de Tancredo, Aécio Neves, pela televisão. E insistiu para que Sarney assumisse e exercesse temporariamente o governo. Convenceu todo mundo.54
Não há jeito de saber como seria um governo presidido por Tancredo, é claro, mas a Nova República começou num clima de muita frustração e pouca novidade. Sarney se aproximara da ditadura em 1964: em 1965 fora eleito por voto direto governador do Maranhão e, em 1970, voltara a Brasília como senador pela Arena. Pulara do barco na última hora, e tinha uma impressionante facilidade para mudar de matiz e se adaptar a qualquer corrente ideológica, desde que fosse mantido exatamente onde queria estar: no poder. No Maranhão, era poderoso e onipresente — e assim permaneceria até 2014. Como outros políticos brasileiros, Sarney encarnava um novo tipo de coronel, que, se já não vive no velho sistema da Primeira República, conserva algumas de suas práticas: inadaptação às regras democráticas, convicção de estar acima da lei, incapacidade de distinguir o público do privado, e uso do poder para conseguir empregos, contratos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e da parentela.55
A oposição não ia ter vida fácil no seu governo. Ministros entravam e saíam dos cargos, à medida que ele manobrava sem muita cerimônia para compor uma nova base de sustentação política formada por quem estivesse disposto a apoiá-lo — independentemente do compromisso com o projeto de transição elaborado por Tancredo. Os embates entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional se tornariam frequentes com o início dos trabalhos da Assembleia Constituinte.56 Enquanto Ulysses Guimarães, na presidência da Constituinte, tentava coordenar um malabarismo entre o compromisso do PMDB com o avanço da redemocratização, a plataforma democrático-popular do PT e as forças conservadoras muito conscientes dos seus interesses, Sarney seguia em direção contrária: utilizava práticas e acordos fisiológicos para estender o próprio mandato e garantir sua permanência por cinco anos na Presidência da República, e tratava de esvaziar o que restava da identidade programática da Nova República.
A Assembleia Constituinte instalou-se em 1º de fevereiro de 1987, e a Constituição foi promulgada no ano seguinte, em 5 de outubro de 1988. O novo texto constitucional tinha a missão de encerrar a ditadura, o compromisso de assentar as bases para a afirmação da democracia no país, e uma dupla preocupação: criar instituições democráticas sólidas o bastante para suportar crises políticas e estabelecer garantias para o reconhecimento e o exercício dos direitos e das liberdades dos brasileiros — não por acaso, foi batizada de “Constituição Cidadã”. É a mais extensa Constituição brasileira — tem 250 artigos principais, mais 98 artigos das disposições transitórias — e está em vigor até hoje.57 Além do próprio Ulysses Guimarães, sua redação pôs em cena um elenco notável de parlamentares: Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, José Serra, Lula, Mário Covas, Plínio de Arruda Sampaio. Também é a única que foi escrita no decorrer do mais democrático debate constitucional da história do país.
Durante
um ano e oito meses o Congresso se transformou no centro da vida pública
nacional, e a sociedade se organizou para participar do debate constitucional
em associações, comitês pró-participação popular, plenários de ativistas,
sindicatos. Surgiram inúmeras formas de manifestação. A mais inovadora, as
“emendas populares”, abarcava todo tipo de tema, e funcionou como um instrumento
de democracia participativa — no fim do processo, foram encaminhadas 122
emendas populares à Constituinte, contendo mais de 12 milhões de assinaturas.
Como
o Brasil e como a própria democracia, a Constituição de 1988 também é
imperfeita. Envolveu movimentos contraditórios e embates formidáveis entre
forças políticas desiguais, e inúmeras vezes errou de alvo. Conservou intocada
a estrutura agrária, permitiu a autonomia das Forças Armadas para definir
assuntos de seu interesse, derrubou a proposta da jornada de trabalho de
quarenta horas, manteve inelegíveis os analfabetos — embora tenha aprovado seu
direito de voto. E, fruto de seu inevitável enquadramento histórico, nasceu
velha em seus capítulos sobre o sistema eleitoral e em sua ânsia de regular as
minúcias da vida social. Mas a Constituição de 1988 é a melhor expressão de que
o Brasil tinha um olho no passado e outro no futuro e estava firmando um sólido
compromisso democrático. Foi assinada por todos os partidos — inclusive o PT.
Ela é moderna nos direitos, sensível às minorias políticas, avançada nas
questões ambientais, empenhada em prever meios e instrumentos constitucionais
legais para a participação popular e direta, e determinada a limitar o poder do
Estado sobre o cidadão e a exigir políticas públicas voltadas para enfrentar os
problemas mais graves da população.”
47 Citado em Domingos Leonelli e
Dante de Oliveira, Diretas Já: 15 meses que abalaram a ditadura, pp.
518-9. Sobre as duas candidaturas, ver Luiz Gutemberg, Moisés: Codinome
Ulysses Guimarães — Uma biografia.
48 Para Tancredo, ver José Murilo
de Carvalho, “Ouro, terra e ferro: Marcas de Minas”, em Heloisa Maria Murgel
Starling, Gringo Cardia, Sandra Regina Goulart Almeida e Bruno Viveiros Martins
(Orgs.), Minas Gerais (Belo Horizonte: Ed. UFMG; Fapemig, 2011); Vera
Alice Cardoso Silva e Lucilia de Almeida Neves Delgado, Tancredo Neves: A
trajetória de um liberal (Petrópolis: Vozes, 1985).
49 Para a estratégia de Tancredo,
ver Gilberto Dimenstein et al., O complô que elegeu Tancredo (Rio de
Janeiro: Editora JB, 1985); Lucas Figueiredo, Ministério do silêncio.
50 Para o PFL e Maluf, ver Eliane
Cantanhêde, O PFL (São Paulo: Publifolha, 2001).
51 Para a Aliança Democrática, ver
Gilberto Dimenstein et al., O complô que elegeu Tancredo; Eliane
Cantanhêde, O PFL; Brasilio Sallum Jr., Labirintos: Dos generais à
Nova República.
52 Citado em Luiz Gutemberg, Moisés:
Codinome Ulysses Guimarães — Uma biografia, p. 204.
53 Para a doença e a morte de
Tancredo, ver Antônio Britto, Assim morreu Tancredo: Depoimento a Luís
Claudio Cunha (Porto Alegre: L&PM, 1985); Lucas Figueiredo, Ministério
do silêncio.
54 Para Ulysses e o PMDB, ver Luiz
Gutemberg, Moisés: Codinome Ulysses Guimarães — Uma biografia.
55 Para Sarney, ver Malu Delgado,
“Maranhão 2014”. piauí, São Paulo, n. 98, pp. 25-30, nov. 2014; Eliane
Cantanhêde, O PFL. Para o coronelismo contemporâneo, ver José Murilo de
Carvalho, “As metamorfoses do coronel”. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, p. 4, 6 maio 2001.
56 Para a Assembleia Constituinte e
a Constituição de 1988, ver Marcos Emílio Gomes (Org.), A Constituição de
1988: 25 anos (São Paulo: Instituto Vladimir Herzog, 2013); José Murilo de
Carvalho, Cidadania no Brasil, op. cit.; Jairo Nicolau, Eleições no
Brasil: Do Império aos dias atuais; Adriano Pilatti, A Constituinte de
1987-1988: Progressistas, conservadores, ordem econômica e regras do jogo
(Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008).
57 Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 3 fev. 2015.
“A campanha eleitoral para a presidência da República teve início no segundo semestre de 2014. Foi uma disputa difícil, que revelou um eleitorado claramente dividido e facultou uma vitória apertada. No segundo turno, restaram no páreo Dilma Rousseff, do PT, e Aécio Neves, do PSDB, e os dois partidos cantaram vitória antes da apuração das urnas. Mas, em 26 de outubro de 2014, Dilma Rousseff conquistou a reeleição: 54501118 votos (51,64%) contra 51041155 (48,36%) votos obtidos por Aécio Neves.11 O Brasil tinha rachado, pra valer, no voto.
Quatro
dias após o anúncio da reeleição, Aécio Neves e o PSDB solicitaram ao Tribunal
Superior Eleitoral uma auditoria formada por técnicos indicados pelos partidos
políticos da coligação derrotada, para a fiscalização de todo o processo
eleitoral — alegavam que havia dúvida sobre a lisura do resultado. Pretendia-se
colocar sob suspeição a legitimidade do mandato de Dilma Rousseff e assim
anular sua eleição. Era a primeira vez desde o fim da ditadura militar que um
candidato derrotado contestava o resultado eleitoral e tentava vetar a maioria
gerada nas urnas. O país se radicalizou, e ainda mais. A dicotomia foi
alavancada por grupos sociais distintos e fez com que o diálogo, que já era
difícil, fosse ficando impraticável. No espaço público, nos lugares mais
privados, a política virava motivo de contenda, e feia.
A presidente custou a se dar conta de que o motor da crise andava em marcha acelerada. Durante toda a campanha, a candidata tinha insistido que, com sua reeleição, o rumo da economia não seria alterado e que seu governo jamais adotaria medidas restritivas ou recessivas — aliás, ao contrário do que previa a agenda econômica apresentada pelo adversário. Dilma inclusive sublinhou pontos que considerava intocáveis: de um lado, a parcela de responsabilidade assumida pelo Estado junto à população, para dar presença às suas demandas na forma de investimentos em educação, saúde, moradia e assistência; do outro, a manutenção de direitos sociais como férias, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e 13o salário. Depois de reeleita, Dilma Rousseff se entrincheirou, contudo, no Palácio do Planalto, em Brasília, e, três semanas após a posse, em janeiro de 2015, fez exatamente o contrário do que havia prometido. Começou o governo executando um giro no roteiro econômico aprovado nas urnas para o seu segundo mandato: descartou a agenda “desenvolvimentista” com a qual se elegera, incluiu na mira das decisões econômicas mudanças no seguro-desemprego, pensões por morte e abono salarial, e adotou um projeto anti-intervencionista e ortodoxo, na prática muito próximo do programa de seu adversário — muito semelhante ao que, segundo ela repetira durante a campanha, traria “de volta a recessão, o desemprego, o arrocho salarial, a política de desigualdade […]”.12
Com
sua manobra infeliz, que implicou avalizar uma política econômica oposta àquela
que prometera seguir, a presidente acabou reforçando o argumento de que, diante
do descalabro fiscal e da crise econômica em que o país se encontrava, não
existia alternativa para o desastre econômico além de uma solução ortodoxa. As
consequências do recuo custaram caro ao governo. A presidente conseguiu
desestabilizar o apoio ao seu governo e forneceu nova munição à oposição, que
queria colocar sob suspeição a legitimidade do seu mandato.
Foi
aí que provavelmente uma janela de oportunidade se abriu. Entre o início do seu
segundo mandato, em janeiro de 2015, e a votação do impeachment no Senado, em
agosto de 2016, cresceu o grupo dos que se sentiram no direito de impor um veto
à escolha democrática da sociedade: uma questão era contestar a má
administração do governo, que ampliava a dívida do Estado a olhos vistos; outra
era propor uma mudança institucional, com manobras jurídicas bastante
duvidosas, e com o objetivo claro de tirar a presidente do poder.
Esse grupo reuniu um conjunto muito variado de interesses politicamente hostis ao governo federal — empresários, industriais, banqueiros, parlamentares, jornalistas, juízes, setores das classes médias urbanas —, bastante favoráveis a adaptar a lei a seus interesses políticos imediatos.13 Saiu daí uma espécie de coalizão oposicionista capaz de dispensar comando unificado, que operava de maneira autônoma, mas com coincidência de objetivos. Além do mais, encontraram um denominador comum — a derrubada do governo. Essa coalizão tinha competência para mobilizar as ruas e agregar um punhado de lideranças parlamentares dispostas a atuar como executores de ações contrárias aos interesses do governo dentro e fora do Congresso Nacional — entre eles, Eduardo Cunha, o então presidente da Câmara dos Deputados; Michel Temer, o então vice-presidente da República e presidente do PMDB; e Aécio Neves, o senador e então presidente do PSDB.
Em um ano e meio, desabou sobre o governo de Dilma Rousseff uma sucessão inacreditável de crises. A lista era grande: o desemprego e a economia andavam cada vez piores; as denúncias de corrupção chegavam a toda hora de Curitiba, com intenso foco inicial no PT e, sobretudo, em Lula; os protestos e a intolerância cresciam rápido nas ruas; o Congresso Nacional boicotava sistematicamente as iniciativas do governo, na mesma proporção em que o vice-presidente da República conspirava abertamente pela queda da titular. Para piorar o que já vinha mal, o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, no estado de Minas Gerais, provocou o maior desastre ambiental já conhecido no país, com vítimas fatais. Junto com ele, chegaram os surtos de zika vírus e de dengue, que ajudaram a revelar a falta de controle do governo, além de uma política pouco definida nessas áreas.14 Nem a derrota do Brasil contra a Alemanha, por 7 a 1, na Copa do Mundo de 2014, abalou tanto os nervos dos brasileiros. Se até lá o apagão parecia se concentrar no campo de futebol, agora ele invadia o dia a dia dos brasileiros.
A
coalizão oposicionista amparou-se, então, num claro pragmatismo: era preciso
avalizar o final do governo, ajuizar sobre quem deveria assumir o comando
interinamente e ter certeza acerca das alterações que seriam indispensáveis no
curto prazo. Montou-se, então, um verdadeiro roteiro político com a explicação
de que a crise estava vinculada sobretudo ao governo e à personalidade de Dilma
Rousseff. Mas existiu uma novidade política importante na consecução desse
roteiro: ele manteve intocado o ritual democrático. Fazer uso de procedimentos
rotineiros da Democracia e obedecer formalmente à letra das leis vigentes no
país em favor de objetivos contrários aos valores democráticos preservados
pelas instituições era uma manobra política inédita na história brasileira.
Serviu de base do processo o recurso das chamadas “pedaladas fiscais”. O termo é usado pelos técnicos da área econômica para indicar a postergação pela União de um pagamento de um mês para o outro ou de um ano para o outro. O expediente das pedaladas engorda o caixa do Tesouro e permite inflar artificialmente o superávit primário, de modo a criar a ficção de que o resultado obtido pelo governo melhorou — e esse fora um procedimento já utilizado por gestões anteriores do governo federal. Já a metáfora se aplica perfeitamente ao caso — afinal, se um ciclista parar de pedalar, a bicicleta tomba.15
O pedido de impeachment foi acolhido pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB, em dezembro de 2015. Cunha revelou-se um líder fortíssimo, e que elevou o processo de corrupção no Congresso a um novo patamar graças à sua estratégia de obter financiamento ilegal para campanhas de cerca de cem candidatos a deputado federal. Sua força política vinha da liderança que exercia sobre um bloco coeso, e de natureza fisiológica, composto por cerca de 250 parlamentares de oito diferentes partidos políticos — o chamado “blocão”. Além do mais, Cunha era adversário do governo desde 2014, a quem emparedava e chantageava nas votações. O pedido de afastamento da presidente da República foi aceito pela Câmara dos Deputados em 17 de abril de 2016, e o Senado Federal confirmou o impeachment de Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016. Eduardo Cunha foi preso, por determinação do juiz Sérgio Moro, de Curitiba, e posteriormente condenado a quinze anos de prisão, acusado de corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro.16
Vai demorar algum tempo para que possamos compreender tudo o que aconteceu no Brasil entre os anos de 2015 e 2017. Fazer uso de procedimentos rotineiros, obedecer formalmente à letra das leis vigentes no país, mas usá-los em favor de objetivos contrários aos valores democráticos preservados pelas instituições, é uma manobra, que foi apresentada e aceita por parte da população sem o devido juízo crítico e sem a avaliação do custo dessa operação para a própria Democracia brasileira.17”
11. Para as eleições de 2014 e seus
desdobramentos, ver Rodrigo de Almeida, op. cit.; Claudia Safatle, João Borges
e Ribamar Oliveira, op. cit.
12. Marcos de Moura e Souza, “Dilma
diz que PSDB quer ‘trazer de volta recessão e desemprego’”. Valor Econômico,
30 maio 2014. Para a guinada na política econômica e suas consequências, ver
André Singer, “A (falta de base) política para o ensaio desenvolvimentista”,
op. cit.; Brasílio Sallum Junior, op. cit.
13. Para agentes políticos de
oposição e fabricação dos seus mecanismos de intervenção, ver Wanderley
Guilherme dos Santos, A democracia impedida: O Brasil no século XXI (Rio
de Janeiro: FGV, 2017); Fábio Wanderley Reis, “Crise política: a ‘opinião
pública’ contra o eleitorado”, em Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli (Orgs.), Encruzilhadas
da democracia (Porto Alegre: Zouk, 2017).
14. Para crises do segundo governo
de Dilma Rousseff, ver Rodrigo de Almeida, op. cit.
15. Para “pedaladas fiscais” e o
processo de impeachment, ver Rodrigo de Almeida, op. cit.; Claudia Safatle,
João Borges e Ribamar Oliveira, op. cit.
16. Até o momento em que escrevemos
este texto, o deputado ainda se encontra encarcerado. Para Eduardo Cunha, ver
Rodrigo de Almeida, op. cit.; Leonardo Avritzer, “Democracia no Brasil: do
ciclo virtuoso à crise política aberta”, em André Botelho e Heloisa Murgel Starling
(Orgs.), op. cit.
17. Para a utilização do ritual
democrático e sua originalidade no Brasil, ver Wanderley Guilherme dos Santos,
op. cit.; Fabiano Santos e José Szwako, op. cit.