Editora: Contracorrente
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-6922-074-9
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Páginas: 432
Sinopse: Ver Parte I
“Essa
descrição da natureza, da forma e das funções da dominação burguesa na
sociedade brasileira, embora sumária, põe-nos diante do que é essencial. Ela
retrata uma evolução que é particular, pois focaliza as classes burguesas, a
dominação burguesa e o poder burguês em determinada sociedade. Não obstante,
essa evolução é típica: ela evidencia como se dá a interação recíproca entre
dominação burguesa e transformação capitalista na periferia. Como, enfim, o
capitalismo dependente e subdesenvolvido constitui uma criação de burguesias
que não podem fazer outra coisa além de usar os imensos recursos materiais,
institucionais e humanos com que contam e a própria civilização posta à sua
disposição pelo capitalismo para manter a revolução nacional nos estreitos
limites de seus interesses e valores de classe. Elas contêm, ou sufocam, por
essa razão, as impulsões societárias tão conhecidas ao igualitarismo, ao
reformismo e ao nacionalismo exaltado de tipo burguês, expurgando-as, por meios
pacíficos ou violentos, da ordem social competitiva. Ao mesmo tempo, fomentam e
exaltam outras impulsões societárias de tipo burguês, igualmente bem
conhecidas, ao racionalismo acumulador e expropriativo, ao egoísmo, ao
exclusivismo e ao despotismo de classe, conferindo-lhes, por meios pacíficos ou
violentos, predominância na elaboração histórica da ordem social competitiva.
Elas se tornam, em suma, os agentes humanos que constroem, perpetuam e
transformam o capitalismo dependente e subdesenvolvido, levando a modernização
para a periferia e adaptando a dominação burguesa às funções que ela deve
preencher para que a transformação capitalista não só possa reproduzir-se em
condições muito especiais, mas, ainda, tenha potencialidades estruturais e
dinâmicas para absorver e acompanhar os ritmos históricos das economias
capitalistas centrais e hegemônicas.”
“Feita
toda essa discussão, cabe uma pergunta: o que explica, sociologicamente, o
êxito relativo da burguesia brasileira nesse movimento que a levou, finalmente,
a descobrir e a cumprir as tarefas e os papéis que lhe cabiam no contexto
histórico global? As respostas a essa pergunta sublinham, com frequência,
quatro fatores. As características demográficas, econômicas e sociais da
sociedade brasileira, que tornavam viável e fácil uma nova eclosão do
industrialismo e a aceleração do crescimento econômico com colaboração externa;
a assistência técnica, econômica e política intensiva das nações capitalistas
hegemônicas e da “comunidade internacional de negócios”; a forte identificação
das Forças Armadas com os móveis econômicos, sociais e políticos das classes
burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do padrão
compósito de dominação burguesa; a ambiguidade dos movimentos reformistas e
nacionalistas de cunho democrático-burguês e a fraqueza do movimento socialista
revolucionário, com forte penetração pequeno-burguesa e baixa participação
popular ou operária. Esses fatores são, de fato, suficientes para “explicar o
que houve”, mas eles fixam as respostas no plano morfológico das relações e
conflitos de classe. É possível ir um pouco mais longe indagando-se por que,
afinal de contas, em determinado momento a burguesia brasileira realizou o seu
movimento histórico de uma forma que é especificamente contrarrevolucionária
(em termos do padrão democrático-burguês “clássico” de revolução nacional) e
envolve uma ruptura com todo o arsenal ideológico e utópico inerente às
“tradições republicanas” da mesma burguesia. Aqui entramos na área dos
fenômenos de consciência de classe e de comportamentos coletivos de classe, que
infelizmente têm sido mal e pouco investigados.”
“A
industrialização intensiva e a eclosão do capitalismo monopolista alargaram e
aprofundaram, de maneira explosiva, as influências externas sobre o
desenvolvimento capitalista interno, exigindo das classes e dos estratos de
classe burgueses novos esquemas de ajustamento e de controle daquelas
influências. Era impossível deter semelhante processo, nascido da própria
estrutura mundial do capitalismo e incentivado pelo caráter dependente da
economia capitalista brasileira. As classes e os estratos de classe burgueses
tinham de enfrentar, no entanto, seus efeitos políticos. Pois se a irradiação
do capitalismo competitivo, de fora para dentro, não atingia diretamente as
estruturas de poder político da sociedade brasileira, o mesmo não sucedia com a
irradiação do capitalismo monopolista. Aquelas classes e estratos de classe
viam-se, de repente, na posição de antagonista do aliado principal. O desafio
externo também se erguia, portanto, como um espantalho. Se, como parte da
autodefesa e da autoafirmação da “iniciativa privada” em geral, se impunha
defender e aumentar a associação com os “capitais externos”, fomentando os
ritmos das “inversões estrangeiras” e, com elas, os da modernização controlada
de fora, a autoproteção de classe da burguesia brasileira estabelecia um limite
à “interdependência”. Acima do afluxo de capitais, de tecnologias e de empresas
e, mesmo, acima da aceleração do desenvolvimento capitalista estava, para ela,
seu status, em parte mediador e em parte livre de “burguesia nacional”.
O fulcro do poder real interno da burguesia, no que diz respeito ao capitalismo
dependente e subdesenvolvido e às conexões de economias nacionais capitalistas
da periferia com as nações capitalistas hegemônicas e com o sistema capitalista
mundial, passa por esse status. As classes e os estratos de classe
burgueses viam-se na contingência de resguardar esse status, embora a
quatro mãos estivessem empenhados numa cruzada pró-imperialista. Se ele fosse
afetado, não haveria base material para qualquer processo de autodefesa e de
autoafirmação da burguesia nativa como parte de um sistema nacional de poder.
Ela deixaria, automaticamente, de ser uma “burguesia nacional” — embora
dependente e da periferia do mundo capitalista e reverteria à condição de
burguesia-tampão, típica de economias coloniais e neocoloniais, em transição
para o capitalismo e para a emancipação nacional (da qual a melhor ilustração é
a “burguesia compradora” chinesa). Desse ângulo, percebe-se claramente o quanto
o referido status é importante para uma burguesia dependente. Ele
constitui a base material de autoproteção, autodefesa e autoafirmação dessa
burguesia, no plano das relações internacionais do sistema capitalista mundial.
Privadas desse status, as burguesias nativas da periferia não contariam
com suporte e funções políticas, que o monopólio do poder estatal lhes confere,
para existir e sobreviver como comunidade econômica. Daí a perturbadora
evolução política do desafio externo, para uma burguesia tão empenhada em
atingir o ápice da transformação capitalista através da “colaboração externa” e
da “associação com os capitais estrangeiros”.”
“Sem
nenhuma “idealização sociológica”, é evidente que nesta última situação
(portanto, onde o modelo democrático-burguês de transformação capitalista
encontrou efetiva vigência histórica) prevaleceu uma ampla correlação entre
radicalismo burguês, reformismo e “pressões dentro da ordem” de origem
extraburguesa (procedentes do proletariado urbano e rural ou das “massas populares”).
A situação de classe da burguesia como um todo comportava essa correlação, pois
ela repousava em uma base material de poder de classe suficientemente
“integrada”, “estável” e “segura” para permitir (e, mesmo, para exigir) a livre
manifestação de dinamismos econômicos, sociais e políticos que só poderiam ser
desencadeados pelas classes assalariadas. Em consequência, o radicalismo
burguês acabou refletindo, no nível estrutural-funcional tanto quanto no nível
ideológico, pressões que tinham uma origem operária, proletária ou sindical, as
quais, com frequência, transcendiam e colidiam com os interesses de classe
especificamente burgueses. Isso tornou, muitas vezes, ambíguas as relações do
radicalismo burguês com o socialismo reformista (e chegou a fomentar, mesmo, o
que Lênin caracterizou como uma “infecção burguesa” do marxismo). Doutro lado,
as “pressões contra a ordem” encontravam tolerância no plano ideológico e mesmo
na esfera prática, objetivando-se socialmente através do movimento sindical,
dos partidos operários etc. As relações dessas pressões com o radicalismo
burguês também eram, sem dúvida, fortemente ambíguas e complexas. O radicalismo
burguês podia avançar o suficiente para absorver, entre tais pressões, pelo
menos aquelas que fossem compatíveis com os tipos de “revolução dentro da
ordem” que poderia advogar, o que lhe dava certa elasticidade para adaptar a
ordem social competitiva a certos interesses revolucionários da classe operária
e, até, dos setores destituídos. Não obstante, se tal coisa não sucedesse, nem
por isso o conflito de valores e de interesses engendrava, em si e por si
mesmo, a confusão entre as duas espécies de pressões de modo que as “pressões
dentro da ordem” das classes baixas ou de estratos burgueses ultrarradicais fossem
estigmatizadas e banidas por meios repressivos, com fundamento na mera
existência e propagação das “pressões contra a ordem”. Por fim, embora seja uma
regra o aproveitamento das tensões e conflitos de classes pelos diversos
estratos burgueses dominantes, raramente as classes burguesas se viram na
contingência de ter de empregar as “pressões dentro da ordem” e as “pressões
contra a ordem” da classe operária (ou das massas destituídas) como um
expediente normal de autoprivilegiamento em face de outros setores burgueses ou
como técnica sistemática na obtenção de vantagens esporádicas. Um comportamento
de classe tão elementar e tosco podia ser necessário em momentos de crise do
regime de classes, de alteração do padrão de hegemonia burguesa, na competição
política associada aos processos eleitorais, em “frentes comuns” por ou contra
certas políticas governamentais etc. Todavia, o grau de diferenciação vertical
e de integração horizontal das várias classes burguesas punha a dominação
burguesa e o poder burguês em bases materiais e políticas mais firmes,
elásticas e estáveis. Como consequência geral, o padrão de reação societária às
“pressões de baixo para cima”, a favor ou contra a ordem existente, podia ser,
normalmente, mais tolerante, flexível e democrático. Certos valores da
democracia burguesa se incorporam, pois, aos requisitos materiais, legais e
políticos da própria existência, continuidade e fortalecimento da dominação
burguesa e do poder burguês. O consenso burguês podia, por conseguinte, “abrir”
a ordem existente àquelas pressões, como parte de uma rotina que conferia à
cidadania, às franquias políticas ligadas à ordem legal, à participação
política das massas etc. o caráter de algo essencial para a estabilidade e a
normalidade de uma sociedade nacional.”
“Os
três processos mencionados dão conta das grandes transformações históricas
sofridas pela organização do poder burguês e da sociedade de classes na última
metade do século. A unificação e a centralização do poder de classe da
burguesia explicam como se altera a solidariedade das classes e dos estratos de
classe burgueses; e como emerge, se irradia e se consolida um novo padrão
compósito de hegemonia dessas classes e estratos de classe. A contrarrevolução
burguesa, por sua vez, explica como se passa do econômico e do social para o
político: como as classes e os estratos de classe burgueses impuseram às demais
classes sua própria transformação econômica, social e política, a qual
acarretava profundas alterações nos padrões institucionais de relações de classes,
de organização do Estado nacional e de vinculação dos interesses de classe
burgueses com os ritmos econômicos, sociais e políticos de integração da nação
como um todo. No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma
ditadura de classe burguesa dissimulada e paternalista para uma ditadura de
classe burguesa aberta e rígida. Trata-se de uma passagem aparentemente
irrelevante, especialmente para os observadores externos, acostumados à ideia
de que “eles se entendem”, ou de que “certos países só podem ser governados assim”.
Todavia, uma realidade inalteravelmente terrível e chocante pode sofrer
gradações para melhor e para pior. Os que têm de arcar com os custos
econômicos, sociais e políticos da passagem podem ver-se em um estado de
privação relativa e de opressão sistemática ainda mais agudo, o que revela se a
oscilação se deu em benefício de uns e contra outros. Como a economia, a
sociedade e o Estado se encontraram envolvidos por igual em tal passagem, não
houve área ou esfera em que as consequências negativas, passageiras ou
persistentes, deixassem de se refletir: depressão de salários e da segurança no
emprego, e compressão do direito de greve e de protesto operário; depressão dos
níveis de aspiração educacional das “classes baixas”, e compressão das
“oportunidades de educação democrática”; depressão dos direitos civis e dos
direitos políticos, e compressão política e policial-militar etc.
As
palavras “deprimir” e “comprimir’’ exprimem, muito bem, a substância das
relações da nova sociedade civil, constituída pelos cidadãos válidos, em sua
quase totalidade burgueses, com o Estado nacional e com a nação. Pois a
ditadura de classe aberta e rígida exige, para o seu “equilíbrio ideal”
estático e dinâmico, um esvaziamento dos controles reativos e do poder relativo
de autodefesa ou de retaliação seja das classes dominadas, em geral, seja dos
setores dissidentes das classes dominantes. Se, por sua própria natureza, os
três processos aprofundavam o entrosamento do poder burguês com o Estado
nacional, a instauração e a continuidade de uma ditadura de classe aberta e
rígida convertiam o Estado nacional no núcleo do poder burguês e na viga mestra
da rotação histórica, que se operou quando a burguesia evoluiu da autodefesa
para a autoafirmação e o autoprivilegiamento. Para o bem e para o mal, é
através do Estado nacional, portanto, que essa ditadura de classe iria mostrar
quais são os parâmetros políticos do modelo autocrático-burguês de
transformação capitalista.
Se
as demais condições são mantidas ou se elas se alteram muito pouco, a
“aceleração da revolução burguesa” (que é o efeito histórico da
industrialização intensiva e da eclosão do capitalismo monopolista) só pode
levar ao incremento e à agravação das desigualdades econômicas, sociais e
políticas preexistentes. É fácil observar como isso se concretizou (assunto de
que já tratamos no capítulo anterior). Todavia, é mais difícil tirar de tais
observações as conclusões políticas pertinentes.
Em
primeiro lugar, essa relação entre a aceleração da revolução burguesa e a
distribuição da riqueza, do prestígio social e do poder numa sociedade de
classes pressupõe que a distância econômica, sociocultural e política entre a
sociedade civil e a nação não diminui, mas aumenta de forma desordenada e em
todas as direções, no decurso do processo. O enrijecimento da ordem constitui
um processo automático e prévio, em semelhante situação: o Estado nacional
precisa assumir novas funções, diferenciar as antigas ou cumpri-las com maior
rigor, o que implica intensificar a opressão indireta e a repressão direta,
inerentes à “manutenção da ordem”. No contexto em que as coisas se deram, como
fruto de um movimento burguês contrarrevolucionário, a autodefesa da burguesia
associou-se ao recurso à guerra civil, que não se concretizou por falta de
resposta e, ainda, porque o golpe de Estado revelou-se uma técnica suficiente
de transição política. O enrijecimento da ordem evoluiu naturalmente, assim,
para uma excessiva e desnecessária “demonstração de força” preventiva. O que
vinculou a militarização de funções repressivas do Estado e a preservação da
segurança nacional com a criação de um novo status quo, necessário à
instauração e à persistência da ditadura de classes aberta e rígida. A curto
prazo, cabia ao Estado nacional “deprimir e comprimir” o espaço político e
jurídico de todas as classes ou estratos de classe (mesmo burgueses e
pró-burgueses) que se erguessem ostensivamente contra a transição, opondo-se a
ela por meios violentos. A médio e a largo prazos, cabia-lhes uma tarefa mais
complexa: criar o arcabouço legal de uma ordem social competitiva que deve
possuir reguladores especiais contra a “guerra revolucionária”, a “agitação
política” e a “manipulação subversiva do descontentamento”. O elemento
saliente, nesta diferenciação, não é a institucionalização da violência (o
mesmo tipo de violência e sua institucionalização estavam presentes na armadura
anterior do arsenal opressivo e repressivo do Estado nacional). Mas a amplitude
e a qualidade das funções e subfunções que ligam o Estado nacional e a
militarização de muitos de seus serviços e estruturas a uma concepção de
segurança fundada na ideia de guerra permanente de umas classes contra as
outras. Ao contrário do que podia ocorrer sob uma ditadura de classe
dissimulada e paternalista, a nova forma de ditadura de classe não admite
ambiguidades. Embora a dissimulação continue a jogar o seu papel, pois não se
podem designar claramente as coisas nem pintar a realidade como ela se
apresenta, é impossível evitar a cara definição dos inimigos de classe e das
situações reais ou potenciais de conflito de classe, sem comprometer seriamente
a própria eficácia dos “órgãos de segurança do Estado”. Doutro lado, uma
filosofia militante e agressiva de defesa da ordem impõe correlações mais ou
menos rígidas entre “crime, punição” e “formas de punir”. É nesse plano, que
muitos consideram policial-militar, mas que é jurídico e político também, que a
autocracia burguesa coloca seu ideal de Estado em conexão histórica com o
fascismo e o nazismo. O Estado não tem por função essencial proteger a
articulação política de classes desiguais. A sua função principal consiste em
suprimir qualquer necessidade de articulação política espontânea nas relações
entre as classes, tornando-a desnecessária, já que ele próprio prescreve, sem
apelação, a ordem interna que deve prevalecer e tem de ser respeitada.”
“Dois
artifícios possibilitaram transpor o consenso burguês do plano da sociedade
civil para o da nação como um todo. Primeiro, a impregnação militar e
tecnocrática dos serviços, estruturas e funções do Estado. Essa impregnação não
só elevou o volume da burguesia burocrática como ampliou sua participação direta
na condução dos “negócios do Estado”. Além disso, ela também redundou em
controles mais específicos, flexíveis e eficientes do funcionamento e da
transformação do Estado por parte dos estratos dominantes das classes
burguesas. Segundo, a modernização e a racionalização dos processos de
articulação política dos estratos dominantes das classes burguesas entre si e
com o Estado. Os interesses burgueses superaram, assim, sua debilidade
congênita na esfera política. Deixaram de “ter de pressionar” o Estado por vias
indiretas e precárias (através do Parlamento, dos meios de comunicação de
massa, da manipulação de greves e de agitações populares etc.), conduzindo os
ajustamentos necessários a formas de exteriorização menos visíveis, mas que se
adaptam melhor a requisitos técnicos e políticos de rapidez, sigilo, eficácia,
segurança, economia etc. Quanto ao que representa o deslocamento político em
questão, é óbvio que contém uma dupla evolução: 1) dentro dos tempos da
revolução burguesa, a revolução econômica foi dissociada da revolução nacional,
sendo esta relegada a segundo plano; 2) o Estado capitalista dependente, ao
modernizar-se, converteu-se em elo do tempo econômico da revolução burguesa,
sendo levado a negligenciar e a omitir, sistematicamente, suas funções econômicas
diretamente vinculadas à revolução nacional ou à sua aceleração. As classes e
os estratos de classe burgueses patrocinaram e estão patrocinando, portanto, um
intervencionismo estatal sui generis. Controlado, em última instância,
pela iniciativa privada, ele se abre, em um polo, na direção de um capitalismo
dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas
as noções são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta. O Estado
adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo
terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou
“reais” da nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém,
para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar
viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a verdadeira moléstia
infantil do capitalismo monopolista na periferia.”
“Essa discussão põe em relevo aonde levam os três processos (a unificação
e a centralização do poder de classe da burguesia; e a contrarrevolução
burguesa): o modelo típico de Estado capitalista moderno na forma em que pode
surgir na periferia, quando o capitalismo dependente e a sociedade de classes
correspondente atingem a fase de industrialização intensiva e de transição para
o capitalismo monopolista. Nessa forma, ele aparece como um Estado nacional
complexo e heterogêneo, que contém várias camadas históricas, como se
refletisse os pontos extremos, de partida e de chegada, das transformações por
que passou, originariamente, o Estado capitalista nas sociedades hegemônicas e
centrais. Ele combina estruturas e dinamismos (funcionais e históricos)
extremamente contraditórios, aliás de acordo com a própria situação histórica
das burguesias dependentes e com a organização da sociedade de classes sob o
capitalismo dependente, também extremamente contraditórias. O fundamento dessa
complicação e dessa complexidade especiais é conhecido e já foi apontado; as
classes burguesas têm de afirmar-se, autoproteger-se e privilegiar-se através
de duas séries de antagonismos distintos: os que se voltam contra as classes
operárias e as classes destituídas (que se poderiam considerar como o “inimigo
principal”); e os que atingem as burguesias e os focos de poder das sociedades
capitalistas hegemônicas e do sistema capitalista mundial (que se poderia
entender como “aliado principal”). As contradições são intrínsecas às
estruturas e aos dinamismos da sociedade de classes sob o capitalismo
dependente; e minam a partir de dentro e a partir de fora o padrão de dominação
burguesa, o poder real da burguesia, os padrões de solidariedade de classes e
de hegemonia de da burguesia, e o Estado capitalista periférico e dependente.4
De
acordo com a descrição apresentada, a versão final dessa forma de Estado, a que
se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista
pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante
desenvolvimento, é a de um Estado nacional sincrético. Sob certos aspectos, ele
lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo,
democrático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão
acabada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos
paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim,
vários aspectos traem a existência de formas de coação, de repressão e de
opressão. Ou de institucionalização da violência e do terror, que são
indisfarçavelmente fascistas. Quando se fala em conexão com “ditadura de classe
aberta e rígida” em relação a esse tipo de Estado, não se pode ter em mente,
portanto, nada que lembre as chamadas “ditaduras políticas tradicionais” ou,
pura e simplesmente, os modelos mais elementares de ditadura política, que se
realizam mediante o “controle absoluto dos meios tradicionais de coação”. O
Estado se diferencia e, ao mesmo tempo, satura sua estrutura constitucional e
funcional de uma maneira tal que fica patente ou que se pratica,
rotineiramente, uma democracia restrita, ou que se nega a democracia. Ele é,
literalmente, um Estado autocrático e oligárquico. Preserva estruturas e funções
democráticas, mas para os que monopolizam simultaneamente o poder econômico, o
poder social e o poder político, e usam o Estado exatamente para criar e manter
uma dualidade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é
oligarquia e opressão para a maioria submetida, é automaticamente democracia e
liberdade para a minoria dominante. Doutro lado, não se pode dizer que tal
ditadura de classe transitória e que culmine num sistema político destinado a
esvair-se, paralelamente à eliminação dos riscos ou ameaças que “perturbem a
ordem estabelecida”. Na verdade, o que entra em jogo é um processo de
reorganização das estruturas e funções do Estado nacional, nas condições
historicamente dadas de relações de classe. Estado e ordem legal e política
transformam-se concomitantemente, adaptando-se cada um, de per si e
reciprocamente, a condições externas e internas dotadas de certa continuidade.
Por fim, seria inútil “depurar” analiticamente esse Estado. Não existe uma
linha pura e única de compreensão e descrição do Estado capitalista dependente
e periférico. Produto da situação mais contraditória e anárquica que qualquer
burguesia poderia viver, ele é uma composição sincrética e deve ser retido como
tal. Precisa-se, no mínimo, recorrer à Antropologia, para se entender
cabalmente esse Estado nacional. De outra maneira, é impossível descobrir-se
como uma instituição pode ordenar-se e ser operativa, apesar de tantos
elementos e influências em choque, que se atritam, se negam e se destroem uns
aos outros, embora se objetivem com certa unidade, compatível com seu uso
social pelo homem. Ele é Leviathan no verso, e Behemouth no
reverso, mas só existe e possui algum valor porque as duas faces estão fundidas
uma à outra, como a cara e a coroa de uma moeda.5
Esse
Estado nacional não poderia nem deveria surgir na crista da revolução burguesa.
No entanto, nas condições do desenvolvimento capitalista dependente, ele
constitui uma exigência mesma dos ritmos históricos, sociais e políticos que
essa revolução assume na periferia (dentro da Europa e fora dela). A
industrialização que se atrasa, indefinidamente, no tempo, que se descola do
desenvolvimento do mercado interno, da revolução agrária e da revolução urbana,
ou que se dá sem que tais processos adquiram certa velocidade e intensidade, e
que se compensa e avança graças ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo
dos dinamismos do capitalismo mundial, fragmenta a revolução burguesa. O que
possuía enorme sincronia, pelo menos com referência a certos países da Europa
e, em grande parte, aos Estados Unidos, na periferia tende a suceder de modo
pulverizado e por etapas mais ou menos distantes umas das outras. E as
transições, à medida que o capitalismo amadurece e se moderniza, ficam
crescentemente mais difíceis, perigosas ou, até, cataclísmicas. Em
consequência, o Estado nacional acaba prevalecendo como um fator de
compensação, de fato o único que pode ser mobilizado pelas burguesias da periferia
e empregado compactamente na solução de tais dilemas e na superação da
debilidade orgânica que os origina. Não é sem razão, pois, que ele tenha as
duas faces mencionadas antes e que, no extremo do processo, mescle tão
monstruosamente ardil, força bruta e racionalidade.
Em
última instância, é nesse modelo autocrático de Estado capitalista que acaba
residindo a “liberdade” e a “capacidade de racional” da burguesia dependente.
Ele confere às classes e aos estratos de classe burgueses não só os fundamentos
da existência e da persistência da dominação e do poder burgueses, depois de
atingido um ponto crítico à sobrevivência da sociedade de classes. Mas, ainda,
o que é mais importante: ele lhes dá o espaço político de que elas carecem para
poder intervir, deliberada e organizadamente, em função de suas potencialidades
relativas, no curso histórico da revolução burguesa, atrasando ou adiantando
certos ritmos, bem como cindindo ou separando, entre si, seus tempos
diferenciados (econômico, social e político). Sem o controle absoluto do poder,
que as classes burguesas podem tirar da constituição desse Estado, seria
inconcebível pensar-se como elas conseguem apropriar-se, com tamanha segurança,
da enorme parte que lhes cabe no excedente econômico nacional; ou, ainda, como
elas logram dissociar; quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento
capitalista e revolução nacional.”
4 O mesmo tipo de impacto ocorre
com as classes operárias e destituídas. Não consideramos necessário discutir,
neste trabalho, todos os aspectos da situação.
5 Ambos os conceitos são
empregados, em seu sentido e contraste clássicos, por Hobbes. Gostaríamos de enfatizar, porém, que quanto às
implicações do segundo termo temos em mente o importante estudo de F. Neumann
sobre o nazismo.
“Se
isso fosse possível, as classes burguesas e suas elites poderiam fazer uma
típica “revolução dentro da ordem”, orientada contra a dominação imperialista
externa, o capitalismo dependente e o desenvolvimento desigual interno. Elas
sairiam de tal processo, se tivessem êxito, trazendo nas mãos um Estado
democrático e a bandeira de um nacionalismo revolucionário. O fato de se verem
condenadas à contrarrevolução permanente conta, por si mesmo, outra história —
e toda a história, que se desenrolou ou está se desenrolando. A unificação e a
centralização do poder real das classes burguesas não atingiram níveis
suficientemente altos e profundos mesmo com o auxílio, ulterior, do seu Estado
autocrático e do que ele representa, como fator de reforço e de estabilidade da
ordem a ponto de mudarem o significado dos interesses especificamente burgueses
em termos das outras classes, da nação como um todo e dos centros de dominação
imperialista externa. Por conseguinte, as classes burguesas continuam tão
presas dentro de seus casulos, isoladas da realidade política de uma sociedade
de classes e submetidas a partir de fora, como estavam há vinte ou há quarenta
anos. Depois de tudo e apesar de tudo, elas se alienam das demais classes, da
nação e da “revolução brasileira” pelo mesmo particularismo de classe cego, o
qual as leva a perceber as classes operárias e as classes destituídas em função
de uma alternativa estreita: ou meros tutelados; ou inimigos irreconciliáveis.
De outro lado, elas não contam com uma base material de poder para se
autoafirmarem e se autoprivilegiarem, de modo pleno, a não ser para dentro,
pois seu famoso “Estado autoritário” (eufemismo que circula, reveladoramente,
no exterior) não produz os mesmos efeitos para fora, especialmente diante das
exigências impreteríveis das multinacionais, das nações capitalistas
hegemônicas ou de sua superpotência e da comunidade internacional de negócios.
Aí, até as funções autoprotetivas do Estado autocrático-burguês são antes (ou
muito pouco ativas), pois ele carece de um suporte interno mais amplo, que
transcenda ao particularismo de classe burguês e introduza na barganha, mediada
ou garantida por via estatal, o peso de um countervailing power
efetivamente nacional. Se não é um simples biombo, ele só constrange e modifica
as disposições do “aliado principal” em matérias nas quais este consente em
sofrer ou “negociar” inibições impostas.”
“Uma
avaliação sociológica crítica do modelo autocrático-burguês de transformação
capitalista tem de levar em conta esses aspectos e deles partir. Eles nos põem
diante da problemática da ditadura de classes total e absoluta, quando ela é
controlada pela burguesia e com vistas, exclusivamente, à continuidade do
capitalismo e do Estado capitalista. Mas, com algo específico. Trata-se do
capitalismo dependente na era do imperialismo total, num momento de crise
mundial da periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida e
morte pela sobrevivência da dominação burguesa. Outras burguesias, mesmo as que
cabem por inteiro no “modelo clássico” de revolução burguesa, poderiam ser
estigmatizadas, em função de seu individualismo egoístico, de seu
particularismo agressivo ou de sua violência “racional”. Com tudo isso, porém,
tais burguesias não se achavam desfocadas, a um tempo, da dinâmica do regime de
classes e da socialização política requerida pelo enquadramento nacional das
relações de classes. Ambas as realidades se tornavam presentes nos interesses
de classe, na consciência de classe, na solidariedade de classe e nos padrões
de dominação de classes das referidas burguesias, revelando-se através de
impulsões igualitárias, democráticas e nacionalistas, que punham tanto o
radicalismo quanto o consenso burgueses em interação constante com os
interesses ou valores de outras classes e com as necessidades fundamentais da
nação como um todo. Aqui estamos em face de uma burguesia dependente, que luta
por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente,
confundindo as duas coisas com a sobrevivência da “civilização ocidental
cristã”. Em suas mãos, o individualismo egoístico, o particularismo agressivo e
a violência “racional” só se voltam para um fim: a continuidade do tempo
econômico da revolução burguesa, ou seja, em outras palavras, a intensificação
da exploração capitalista e da opressão de classe, sem a qual ela é impossível.
Esse, aliás, é o único ponto para o qual convergem os mais díspares e
contrastantes interesses e valores burgueses, constituindo-se, por isso, no
polo histórico onde se unem todas as “forças vivas”, nacionais e estrangeiras,
da revolução burguesa sob o capitalismo dependente. Ou “aceleração do
desenvolvimento econômico”, ou “fim do mundo”, o que não deixa de ser uma
verdade histórica, pois a aceleração do desenvolvimento econômico e a sua
impossibilidade são os limites que separam a existência do capitalismo
dependente de sua destruição final.”
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