quinta-feira, 18 de abril de 2024

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (Parte IV), de Florestan Fernandes

Editora: Contracorrente

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-6922-074-9

Páginas: 432

Sinopse: Ver Parte I



“Essa descrição da natureza, da forma e das funções da dominação burguesa na sociedade brasileira, embora sumária, põe-nos diante do que é essencial. Ela retrata uma evolução que é particular, pois focaliza as classes burguesas, a dominação burguesa e o poder burguês em determinada sociedade. Não obstante, essa evolução é típica: ela evidencia como se dá a interação recíproca entre dominação burguesa e transformação capitalista na periferia. Como, enfim, o capitalismo dependente e subdesenvolvido constitui uma criação de burguesias que não podem fazer outra coisa além de usar os imensos recursos materiais, institucionais e humanos com que contam e a própria civilização posta à sua disposição pelo capitalismo para manter a revolução nacional nos estreitos limites de seus interesses e valores de classe. Elas contêm, ou sufocam, por essa razão, as impulsões societárias tão conhecidas ao igualitarismo, ao reformismo e ao nacionalismo exaltado de tipo burguês, expurgando-as, por meios pacíficos ou violentos, da ordem social competitiva. Ao mesmo tempo, fomentam e exaltam outras impulsões societárias de tipo burguês, igualmente bem conhecidas, ao racionalismo acumulador e expropriativo, ao egoísmo, ao exclusivismo e ao despotismo de classe, conferindo-lhes, por meios pacíficos ou violentos, predominância na elaboração histórica da ordem social competitiva. Elas se tornam, em suma, os agentes humanos que constroem, perpetuam e transformam o capitalismo dependente e subdesenvolvido, levando a modernização para a periferia e adaptando a dominação burguesa às funções que ela deve preencher para que a transformação capitalista não só possa reproduzir-se em condições muito especiais, mas, ainda, tenha potencialidades estruturais e dinâmicas para absorver e acompanhar os ritmos históricos das economias capitalistas centrais e hegemônicas.”

 

 

“Feita toda essa discussão, cabe uma pergunta: o que explica, sociologicamente, o êxito relativo da burguesia brasileira nesse movimento que a levou, finalmente, a descobrir e a cumprir as tarefas e os papéis que lhe cabiam no contexto histórico global? As respostas a essa pergunta sublinham, com frequência, quatro fatores. As características demográficas, econômicas e sociais da sociedade brasileira, que tornavam viável e fácil uma nova eclosão do industrialismo e a aceleração do crescimento econômico com colaboração externa; a assistência técnica, econômica e política intensiva das nações capitalistas hegemônicas e da “comunidade internacional de negócios”; a forte identificação das Forças Armadas com os móveis econômicos, sociais e políticos das classes burguesas e sua contribuição prática decisiva na rearticulação do padrão compósito de dominação burguesa; a ambiguidade dos movimentos reformistas e nacionalistas de cunho democrático-burguês e a fraqueza do movimento socialista revolucionário, com forte penetração pequeno-burguesa e baixa participação popular ou operária. Esses fatores são, de fato, suficientes para “explicar o que houve”, mas eles fixam as respostas no plano morfológico das relações e conflitos de classe. É possível ir um pouco mais longe indagando-se por que, afinal de contas, em determinado momento a burguesia brasileira realizou o seu movimento histórico de uma forma que é especificamente contrarrevolucionária (em termos do padrão democrático-burguês “clássico” de revolução nacional) e envolve uma ruptura com todo o arsenal ideológico e utópico inerente às “tradições republicanas” da mesma burguesia. Aqui entramos na área dos fenômenos de consciência de classe e de comportamentos coletivos de classe, que infelizmente têm sido mal e pouco investigados.”

 

 

“A industrialização intensiva e a eclosão do capitalismo monopolista alargaram e aprofundaram, de maneira explosiva, as influências externas sobre o desenvolvimento capitalista interno, exigindo das classes e dos estratos de classe burgueses novos esquemas de ajustamento e de controle daquelas influências. Era impossível deter semelhante processo, nascido da própria estrutura mundial do capitalismo e incentivado pelo caráter dependente da economia capitalista brasileira. As classes e os estratos de classe burgueses tinham de enfrentar, no entanto, seus efeitos políticos. Pois se a irradiação do capitalismo competitivo, de fora para dentro, não atingia diretamente as estruturas de poder político da sociedade brasileira, o mesmo não sucedia com a irradiação do capitalismo monopolista. Aquelas classes e estratos de classe viam-se, de repente, na posição de antagonista do aliado principal. O desafio externo também se erguia, portanto, como um espantalho. Se, como parte da autodefesa e da autoafirmação da “iniciativa privada” em geral, se impunha defender e aumentar a associação com os “capitais externos”, fomentando os ritmos das “inversões estrangeiras” e, com elas, os da modernização controlada de fora, a autoproteção de classe da burguesia brasileira estabelecia um limite à “interdependência”. Acima do afluxo de capitais, de tecnologias e de empresas e, mesmo, acima da aceleração do desenvolvimento capitalista estava, para ela, seu status, em parte mediador e em parte livre de “burguesia nacional”. O fulcro do poder real interno da burguesia, no que diz respeito ao capitalismo dependente e subdesenvolvido e às conexões de economias nacionais capitalistas da periferia com as nações capitalistas hegemônicas e com o sistema capitalista mundial, passa por esse status. As classes e os estratos de classe burgueses viam-se na contingência de resguardar esse status, embora a quatro mãos estivessem empenhados numa cruzada pró-imperialista. Se ele fosse afetado, não haveria base material para qualquer processo de autodefesa e de autoafirmação da burguesia nativa como parte de um sistema nacional de poder. Ela deixaria, automaticamente, de ser uma “burguesia nacional” — embora dependente e da periferia do mundo capitalista e reverteria à condição de burguesia-tampão, típica de economias coloniais e neocoloniais, em transição para o capitalismo e para a emancipação nacional (da qual a melhor ilustração é a “burguesia compradora” chinesa). Desse ângulo, percebe-se claramente o quanto o referido status é importante para uma burguesia dependente. Ele constitui a base material de autoproteção, autodefesa e autoafirmação dessa burguesia, no plano das relações internacionais do sistema capitalista mundial. Privadas desse status, as burguesias nativas da periferia não contariam com suporte e funções políticas, que o monopólio do poder estatal lhes confere, para existir e sobreviver como comunidade econômica. Daí a perturbadora evolução política do desafio externo, para uma burguesia tão empenhada em atingir o ápice da transformação capitalista através da “colaboração externa” e da “associação com os capitais estrangeiros”.”

 

 

“Sem nenhuma “idealização sociológica”, é evidente que nesta última situação (portanto, onde o modelo democrático-burguês de transformação capitalista encontrou efetiva vigência histórica) prevaleceu uma ampla correlação entre radicalismo burguês, reformismo e “pressões dentro da ordem” de origem extraburguesa (procedentes do proletariado urbano e rural ou das “massas populares”). A situação de classe da burguesia como um todo comportava essa correlação, pois ela repousava em uma base material de poder de classe suficientemente “integrada”, “estável” e “segura” para permitir (e, mesmo, para exigir) a livre manifestação de dinamismos econômicos, sociais e políticos que só poderiam ser desencadeados pelas classes assalariadas. Em consequência, o radicalismo burguês acabou refletindo, no nível estrutural-funcional tanto quanto no nível ideológico, pressões que tinham uma origem operária, proletária ou sindical, as quais, com frequência, transcendiam e colidiam com os interesses de classe especificamente burgueses. Isso tornou, muitas vezes, ambíguas as relações do radicalismo burguês com o socialismo reformista (e chegou a fomentar, mesmo, o que Lênin caracterizou como uma “infecção burguesa” do marxismo). Doutro lado, as “pressões contra a ordem” encontravam tolerância no plano ideológico e mesmo na esfera prática, objetivando-se socialmente através do movimento sindical, dos partidos operários etc. As relações dessas pressões com o radicalismo burguês também eram, sem dúvida, fortemente ambíguas e complexas. O radicalismo burguês podia avançar o suficiente para absorver, entre tais pressões, pelo menos aquelas que fossem compatíveis com os tipos de “revolução dentro da ordem” que poderia advogar, o que lhe dava certa elasticidade para adaptar a ordem social competitiva a certos interesses revolucionários da classe operária e, até, dos setores destituídos. Não obstante, se tal coisa não sucedesse, nem por isso o conflito de valores e de interesses engendrava, em si e por si mesmo, a confusão entre as duas espécies de pressões de modo que as “pressões dentro da ordem” das classes baixas ou de estratos burgueses ultrarradicais fossem estigmatizadas e banidas por meios repressivos, com fundamento na mera existência e propagação das “pressões contra a ordem”. Por fim, embora seja uma regra o aproveitamento das tensões e conflitos de classes pelos diversos estratos burgueses dominantes, raramente as classes burguesas se viram na contingência de ter de empregar as “pressões dentro da ordem” e as “pressões contra a ordem” da classe operária (ou das massas destituídas) como um expediente normal de autoprivilegiamento em face de outros setores burgueses ou como técnica sistemática na obtenção de vantagens esporádicas. Um comportamento de classe tão elementar e tosco podia ser necessário em momentos de crise do regime de classes, de alteração do padrão de hegemonia burguesa, na competição política associada aos processos eleitorais, em “frentes comuns” por ou contra certas políticas governamentais etc. Todavia, o grau de diferenciação vertical e de integração horizontal das várias classes burguesas punha a dominação burguesa e o poder burguês em bases materiais e políticas mais firmes, elásticas e estáveis. Como consequência geral, o padrão de reação societária às “pressões de baixo para cima”, a favor ou contra a ordem existente, podia ser, normalmente, mais tolerante, flexível e democrático. Certos valores da democracia burguesa se incorporam, pois, aos requisitos materiais, legais e políticos da própria existência, continuidade e fortalecimento da dominação burguesa e do poder burguês. O consenso burguês podia, por conseguinte, “abrir” a ordem existente àquelas pressões, como parte de uma rotina que conferia à cidadania, às franquias políticas ligadas à ordem legal, à participação política das massas etc. o caráter de algo essencial para a estabilidade e a normalidade de uma sociedade nacional.”

 

 

“Os três processos mencionados dão conta das grandes transformações históricas sofridas pela organização do poder burguês e da sociedade de classes na última metade do século. A unificação e a centralização do poder de classe da burguesia explicam como se altera a solidariedade das classes e dos estratos de classe burgueses; e como emerge, se irradia e se consolida um novo padrão compósito de hegemonia dessas classes e estratos de classe. A contrarrevolução burguesa, por sua vez, explica como se passa do econômico e do social para o político: como as classes e os estratos de classe burgueses impuseram às demais classes sua própria transformação econômica, social e política, a qual acarretava profundas alterações nos padrões institucionais de relações de classes, de organização do Estado nacional e de vinculação dos interesses de classe burgueses com os ritmos econômicos, sociais e políticos de integração da nação como um todo. No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadura de classe burguesa dissimulada e paternalista para uma ditadura de classe burguesa aberta e rígida. Trata-se de uma passagem aparentemente irrelevante, especialmente para os observadores externos, acostumados à ideia de que “eles se entendem”, ou de que “certos países só podem ser governados assim”. Todavia, uma realidade inalteravelmente terrível e chocante pode sofrer gradações para melhor e para pior. Os que têm de arcar com os custos econômicos, sociais e políticos da passagem podem ver-se em um estado de privação relativa e de opressão sistemática ainda mais agudo, o que revela se a oscilação se deu em benefício de uns e contra outros. Como a economia, a sociedade e o Estado se encontraram envolvidos por igual em tal passagem, não houve área ou esfera em que as consequências negativas, passageiras ou persistentes, deixassem de se refletir: depressão de salários e da segurança no emprego, e compressão do direito de greve e de protesto operário; depressão dos níveis de aspiração educacional das “classes baixas”, e compressão das “oportunidades de educação democrática”; depressão dos direitos civis e dos direitos políticos, e compressão política e policial-militar etc.

As palavras “deprimir” e “comprimir’’ exprimem, muito bem, a substância das relações da nova sociedade civil, constituída pelos cidadãos válidos, em sua quase totalidade burgueses, com o Estado nacional e com a nação. Pois a ditadura de classe aberta e rígida exige, para o seu “equilíbrio ideal” estático e dinâmico, um esvaziamento dos controles reativos e do poder relativo de autodefesa ou de retaliação seja das classes dominadas, em geral, seja dos setores dissidentes das classes dominantes. Se, por sua própria natureza, os três processos aprofundavam o entrosamento do poder burguês com o Estado nacional, a instauração e a continuidade de uma ditadura de classe aberta e rígida convertiam o Estado nacional no núcleo do poder burguês e na viga mestra da rotação histórica, que se operou quando a burguesia evoluiu da autodefesa para a autoafirmação e o autoprivilegiamento. Para o bem e para o mal, é através do Estado nacional, portanto, que essa ditadura de classe iria mostrar quais são os parâmetros políticos do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista.

Se as demais condições são mantidas ou se elas se alteram muito pouco, a “aceleração da revolução burguesa” (que é o efeito histórico da industrialização intensiva e da eclosão do capitalismo monopolista) só pode levar ao incremento e à agravação das desigualdades econômicas, sociais e políticas preexistentes. É fácil observar como isso se concretizou (assunto de que já tratamos no capítulo anterior). Todavia, é mais difícil tirar de tais observações as conclusões políticas pertinentes.

Em primeiro lugar, essa relação entre a aceleração da revolução burguesa e a distribuição da riqueza, do prestígio social e do poder numa sociedade de classes pressupõe que a distância econômica, sociocultural e política entre a sociedade civil e a nação não diminui, mas aumenta de forma desordenada e em todas as direções, no decurso do processo. O enrijecimento da ordem constitui um processo automático e prévio, em semelhante situação: o Estado nacional precisa assumir novas funções, diferenciar as antigas ou cumpri-las com maior rigor, o que implica intensificar a opressão indireta e a repressão direta, inerentes à “manutenção da ordem”. No contexto em que as coisas se deram, como fruto de um movimento burguês contrarrevolucionário, a autodefesa da burguesia associou-se ao recurso à guerra civil, que não se concretizou por falta de resposta e, ainda, porque o golpe de Estado revelou-se uma técnica suficiente de transição política. O enrijecimento da ordem evoluiu naturalmente, assim, para uma excessiva e desnecessária “demonstração de força” preventiva. O que vinculou a militarização de funções repressivas do Estado e a preservação da segurança nacional com a criação de um novo status quo, necessário à instauração e à persistência da ditadura de classes aberta e rígida. A curto prazo, cabia ao Estado nacional “deprimir e comprimir” o espaço político e jurídico de todas as classes ou estratos de classe (mesmo burgueses e pró-burgueses) que se erguessem ostensivamente contra a transição, opondo-se a ela por meios violentos. A médio e a largo prazos, cabia-lhes uma tarefa mais complexa: criar o arcabouço legal de uma ordem social competitiva que deve possuir reguladores especiais contra a “guerra revolucionária”, a “agitação política” e a “manipulação subversiva do descontentamento”. O elemento saliente, nesta diferenciação, não é a institucionalização da violência (o mesmo tipo de violência e sua institucionalização estavam presentes na armadura anterior do arsenal opressivo e repressivo do Estado nacional). Mas a amplitude e a qualidade das funções e subfunções que ligam o Estado nacional e a militarização de muitos de seus serviços e estruturas a uma concepção de segurança fundada na ideia de guerra permanente de umas classes contra as outras. Ao contrário do que podia ocorrer sob uma ditadura de classe dissimulada e paternalista, a nova forma de ditadura de classe não admite ambiguidades. Embora a dissimulação continue a jogar o seu papel, pois não se podem designar claramente as coisas nem pintar a realidade como ela se apresenta, é impossível evitar a cara definição dos inimigos de classe e das situações reais ou potenciais de conflito de classe, sem comprometer seriamente a própria eficácia dos “órgãos de segurança do Estado”. Doutro lado, uma filosofia militante e agressiva de defesa da ordem impõe correlações mais ou menos rígidas entre “crime, punição” e “formas de punir”. É nesse plano, que muitos consideram policial-militar, mas que é jurídico e político também, que a autocracia burguesa coloca seu ideal de Estado em conexão histórica com o fascismo e o nazismo. O Estado não tem por função essencial proteger a articulação política de classes desiguais. A sua função principal consiste em suprimir qualquer necessidade de articulação política espontânea nas relações entre as classes, tornando-a desnecessária, já que ele próprio prescreve, sem apelação, a ordem interna que deve prevalecer e tem de ser respeitada.”

 

 

“Dois artifícios possibilitaram transpor o consenso burguês do plano da sociedade civil para o da nação como um todo. Primeiro, a impregnação militar e tecnocrática dos serviços, estruturas e funções do Estado. Essa impregnação não só elevou o volume da burguesia burocrática como ampliou sua participação direta na condução dos “negócios do Estado”. Além disso, ela também redundou em controles mais específicos, flexíveis e eficientes do funcionamento e da transformação do Estado por parte dos estratos dominantes das classes burguesas. Segundo, a modernização e a racionalização dos processos de articulação política dos estratos dominantes das classes burguesas entre si e com o Estado. Os interesses burgueses superaram, assim, sua debilidade congênita na esfera política. Deixaram de “ter de pressionar” o Estado por vias indiretas e precárias (através do Parlamento, dos meios de comunicação de massa, da manipulação de greves e de agitações populares etc.), conduzindo os ajustamentos necessários a formas de exteriorização menos visíveis, mas que se adaptam melhor a requisitos técnicos e políticos de rapidez, sigilo, eficácia, segurança, economia etc. Quanto ao que representa o deslocamento político em questão, é óbvio que contém uma dupla evolução: 1) dentro dos tempos da revolução burguesa, a revolução econômica foi dissociada da revolução nacional, sendo esta relegada a segundo plano; 2) o Estado capitalista dependente, ao modernizar-se, converteu-se em elo do tempo econômico da revolução burguesa, sendo levado a negligenciar e a omitir, sistematicamente, suas funções econômicas diretamente vinculadas à revolução nacional ou à sua aceleração. As classes e os estratos de classe burgueses patrocinaram e estão patrocinando, portanto, um intervencionismo estatal sui generis. Controlado, em última instância, pela iniciativa privada, ele se abre, em um polo, na direção de um capitalismo dirigido pelo Estado, e, em outro, na direção de um Estado autoritário. Ambas as noções são ambíguas. Contudo, elas traduzem uma realidade concreta. O Estado adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou “reais” da nação, decorrentes da intensificação da revolução nacional. Porém, para satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia.”

 

 

Essa discussão põe em relevo aonde levam os três processos (a unificação e a centralização do poder de classe da burguesia; e a contrarrevolução burguesa): o modelo típico de Estado capitalista moderno na forma em que pode surgir na periferia, quando o capitalismo dependente e a sociedade de classes correspondente atingem a fase de industrialização intensiva e de transição para o capitalismo monopolista. Nessa forma, ele aparece como um Estado nacional complexo e heterogêneo, que contém várias camadas históricas, como se refletisse os pontos extremos, de partida e de chegada, das transformações por que passou, originariamente, o Estado capitalista nas sociedades hegemônicas e centrais. Ele combina estruturas e dinamismos (funcionais e históricos) extremamente contraditórios, aliás de acordo com a própria situação histórica das burguesias dependentes e com a organização da sociedade de classes sob o capitalismo dependente, também extremamente contraditórias. O fundamento dessa complicação e dessa complexidade especiais é conhecido e já foi apontado; as classes burguesas têm de afirmar-se, autoproteger-se e privilegiar-se através de duas séries de antagonismos distintos: os que se voltam contra as classes operárias e as classes destituídas (que se poderiam considerar como o “inimigo principal”); e os que atingem as burguesias e os focos de poder das sociedades capitalistas hegemônicas e do sistema capitalista mundial (que se poderia entender como “aliado principal”). As contradições são intrínsecas às estruturas e aos dinamismos da sociedade de classes sob o capitalismo dependente; e minam a partir de dentro e a partir de fora o padrão de dominação burguesa, o poder real da burguesia, os padrões de solidariedade de classes e de hegemonia de da burguesia, e o Estado capitalista periférico e dependente.4

De acordo com a descrição apresentada, a versão final dessa forma de Estado, a que se está constituindo e consolidando com a irradiação do capitalismo monopolista pelas áreas da periferia do mundo capitalista que comportam semelhante desenvolvimento, é a de um Estado nacional sincrético. Sob certos aspectos, ele lembra o modelo ideal nuclear, como se fosse um Estado representativo, democrático e pluralista; sob outros aspectos, ele constitui a expressão acabada de uma oligarquia perfeita, que se objetiva tanto em termos paternalistas-tradicionais quanto em termos autoritários e modernos; por fim, vários aspectos traem a existência de formas de coação, de repressão e de opressão. Ou de institucionalização da violência e do terror, que são indisfarçavelmente fascistas. Quando se fala em conexão com “ditadura de classe aberta e rígida” em relação a esse tipo de Estado, não se pode ter em mente, portanto, nada que lembre as chamadas “ditaduras políticas tradicionais” ou, pura e simplesmente, os modelos mais elementares de ditadura política, que se realizam mediante o “controle absoluto dos meios tradicionais de coação”. O Estado se diferencia e, ao mesmo tempo, satura sua estrutura constitucional e funcional de uma maneira tal que fica patente ou que se pratica, rotineiramente, uma democracia restrita, ou que se nega a democracia. Ele é, literalmente, um Estado autocrático e oligárquico. Preserva estruturas e funções democráticas, mas para os que monopolizam simultaneamente o poder econômico, o poder social e o poder político, e usam o Estado exatamente para criar e manter uma dualidade intrínseca da ordem legal e política, graças à qual o que é oligarquia e opressão para a maioria submetida, é automaticamente democracia e liberdade para a minoria dominante. Doutro lado, não se pode dizer que tal ditadura de classe transitória e que culmine num sistema político destinado a esvair-se, paralelamente à eliminação dos riscos ou ameaças que “perturbem a ordem estabelecida”. Na verdade, o que entra em jogo é um processo de reorganização das estruturas e funções do Estado nacional, nas condições historicamente dadas de relações de classe. Estado e ordem legal e política transformam-se concomitantemente, adaptando-se cada um, de per si e reciprocamente, a condições externas e internas dotadas de certa continuidade. Por fim, seria inútil “depurar” analiticamente esse Estado. Não existe uma linha pura e única de compreensão e descrição do Estado capitalista dependente e periférico. Produto da situação mais contraditória e anárquica que qualquer burguesia poderia viver, ele é uma composição sincrética e deve ser retido como tal. Precisa-se, no mínimo, recorrer à Antropologia, para se entender cabalmente esse Estado nacional. De outra maneira, é impossível descobrir-se como uma instituição pode ordenar-se e ser operativa, apesar de tantos elementos e influências em choque, que se atritam, se negam e se destroem uns aos outros, embora se objetivem com certa unidade, compatível com seu uso social pelo homem. Ele é Leviathan no verso, e Behemouth no reverso, mas só existe e possui algum valor porque as duas faces estão fundidas uma à outra, como a cara e a coroa de uma moeda.5

Esse Estado nacional não poderia nem deveria surgir na crista da revolução burguesa. No entanto, nas condições do desenvolvimento capitalista dependente, ele constitui uma exigência mesma dos ritmos históricos, sociais e políticos que essa revolução assume na periferia (dentro da Europa e fora dela). A industrialização que se atrasa, indefinidamente, no tempo, que se descola do desenvolvimento do mercado interno, da revolução agrária e da revolução urbana, ou que se dá sem que tais processos adquiram certa velocidade e intensidade, e que se compensa e avança graças ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo dos dinamismos do capitalismo mundial, fragmenta a revolução burguesa. O que possuía enorme sincronia, pelo menos com referência a certos países da Europa e, em grande parte, aos Estados Unidos, na periferia tende a suceder de modo pulverizado e por etapas mais ou menos distantes umas das outras. E as transições, à medida que o capitalismo amadurece e se moderniza, ficam crescentemente mais difíceis, perigosas ou, até, cataclísmicas. Em consequência, o Estado nacional acaba prevalecendo como um fator de compensação, de fato o único que pode ser mobilizado pelas burguesias da periferia e empregado compactamente na solução de tais dilemas e na superação da debilidade orgânica que os origina. Não é sem razão, pois, que ele tenha as duas faces mencionadas antes e que, no extremo do processo, mescle tão monstruosamente ardil, força bruta e racionalidade.

Em última instância, é nesse modelo autocrático de Estado capitalista que acaba residindo a “liberdade” e a “capacidade de racional” da burguesia dependente. Ele confere às classes e aos estratos de classe burgueses não só os fundamentos da existência e da persistência da dominação e do poder burgueses, depois de atingido um ponto crítico à sobrevivência da sociedade de classes. Mas, ainda, o que é mais importante: ele lhes dá o espaço político de que elas carecem para poder intervir, deliberada e organizadamente, em função de suas potencialidades relativas, no curso histórico da revolução burguesa, atrasando ou adiantando certos ritmos, bem como cindindo ou separando, entre si, seus tempos diferenciados (econômico, social e político). Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da constituição desse Estado, seria inconcebível pensar-se como elas conseguem apropriar-se, com tamanha segurança, da enorme parte que lhes cabe no excedente econômico nacional; ou, ainda, como elas logram dissociar; quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento capitalista e revolução nacional.”

4 O mesmo tipo de impacto ocorre com as classes operárias e destituídas. Não consideramos necessário discutir, neste trabalho, todos os aspectos da situação.

5 Ambos os conceitos são empregados, em seu sentido e contraste clássicos, por Hobbes. Gostaríamos de enfatizar, porém, que quanto às implicações do segundo termo temos em mente o importante estudo de F. Neumann sobre o nazismo.

 

 

“Se isso fosse possível, as classes burguesas e suas elites poderiam fazer uma típica “revolução dentro da ordem”, orientada contra a dominação imperialista externa, o capitalismo dependente e o desenvolvimento desigual interno. Elas sairiam de tal processo, se tivessem êxito, trazendo nas mãos um Estado democrático e a bandeira de um nacionalismo revolucionário. O fato de se verem condenadas à contrarrevolução permanente conta, por si mesmo, outra história — e toda a história, que se desenrolou ou está se desenrolando. A unificação e a centralização do poder real das classes burguesas não atingiram níveis suficientemente altos e profundos mesmo com o auxílio, ulterior, do seu Estado autocrático e do que ele representa, como fator de reforço e de estabilidade da ordem a ponto de mudarem o significado dos interesses especificamente burgueses em termos das outras classes, da nação como um todo e dos centros de dominação imperialista externa. Por conseguinte, as classes burguesas continuam tão presas dentro de seus casulos, isoladas da realidade política de uma sociedade de classes e submetidas a partir de fora, como estavam há vinte ou há quarenta anos. Depois de tudo e apesar de tudo, elas se alienam das demais classes, da nação e da “revolução brasileira” pelo mesmo particularismo de classe cego, o qual as leva a perceber as classes operárias e as classes destituídas em função de uma alternativa estreita: ou meros tutelados; ou inimigos irreconciliáveis. De outro lado, elas não contam com uma base material de poder para se autoafirmarem e se autoprivilegiarem, de modo pleno, a não ser para dentro, pois seu famoso “Estado autoritário” (eufemismo que circula, reveladoramente, no exterior) não produz os mesmos efeitos para fora, especialmente diante das exigências impreteríveis das multinacionais, das nações capitalistas hegemônicas ou de sua superpotência e da comunidade internacional de negócios. Aí, até as funções autoprotetivas do Estado autocrático-burguês são antes (ou muito pouco ativas), pois ele carece de um suporte interno mais amplo, que transcenda ao particularismo de classe burguês e introduza na barganha, mediada ou garantida por via estatal, o peso de um countervailing power efetivamente nacional. Se não é um simples biombo, ele só constrange e modifica as disposições do “aliado principal” em matérias nas quais este consente em sofrer ou “negociar” inibições impostas.”

 

 

“Uma avaliação sociológica crítica do modelo autocrático-burguês de transformação capitalista tem de levar em conta esses aspectos e deles partir. Eles nos põem diante da problemática da ditadura de classes total e absoluta, quando ela é controlada pela burguesia e com vistas, exclusivamente, à continuidade do capitalismo e do Estado capitalista. Mas, com algo específico. Trata-se do capitalismo dependente na era do imperialismo total, num momento de crise mundial da periferia do sistema capitalista e como parte de uma luta de vida e morte pela sobrevivência da dominação burguesa. Outras burguesias, mesmo as que cabem por inteiro no “modelo clássico” de revolução burguesa, poderiam ser estigmatizadas, em função de seu individualismo egoístico, de seu particularismo agressivo ou de sua violência “racional”. Com tudo isso, porém, tais burguesias não se achavam desfocadas, a um tempo, da dinâmica do regime de classes e da socialização política requerida pelo enquadramento nacional das relações de classes. Ambas as realidades se tornavam presentes nos interesses de classe, na consciência de classe, na solidariedade de classe e nos padrões de dominação de classes das referidas burguesias, revelando-se através de impulsões igualitárias, democráticas e nacionalistas, que punham tanto o radicalismo quanto o consenso burgueses em interação constante com os interesses ou valores de outras classes e com as necessidades fundamentais da nação como um todo. Aqui estamos em face de uma burguesia dependente, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência do capitalismo dependente, confundindo as duas coisas com a sobrevivência da “civilização ocidental cristã”. Em suas mãos, o individualismo egoístico, o particularismo agressivo e a violência “racional” só se voltam para um fim: a continuidade do tempo econômico da revolução burguesa, ou seja, em outras palavras, a intensificação da exploração capitalista e da opressão de classe, sem a qual ela é impossível. Esse, aliás, é o único ponto para o qual convergem os mais díspares e contrastantes interesses e valores burgueses, constituindo-se, por isso, no polo histórico onde se unem todas as “forças vivas”, nacionais e estrangeiras, da revolução burguesa sob o capitalismo dependente. Ou “aceleração do desenvolvimento econômico”, ou “fim do mundo”, o que não deixa de ser uma verdade histórica, pois a aceleração do desenvolvimento econômico e a sua impossibilidade são os limites que separam a existência do capitalismo dependente de sua destruição final.”

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