Editora: Contracorrente
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-6922-074-9
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Páginas: 432
Sinopse: Ver Parte I
“Na
acepção em que tomamos o conceito, Revolução Burguesa denota um conjunto de
transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas
que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua
evolução industrial. Há, porém, um ponto de partida e um ponto de chegada, e é
extremamente difícil localizar-se o momento em que essa revolução alcança um
patamar histórico irreversível, de plena maturidade e, ao mesmo tempo, de
consolidação do poder burguês e da dominação burguesa. A situação brasileira do
fim do Império e do começo da República, por exemplo, contém somente os germes
desse poder e dessa dominação. O que muitos autores chamam, com extrema
impropriedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um “colapso”,
mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da
oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se
configurariam, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa. Essa
recomposição marca o início da modernidade, no Brasil, e praticamente separa
(com um quarto de século de atraso, quanto às datas de referência que os
historiadores gostam de empregar — a Abolição, a Proclamação da República e as
inquietações da década de 1920) a “era senhorial” (ou o antigo regime) da “era
burguesa” (ou a sociedade de classes).
Para
o sociólogo, se se desconta o que ocorre no eixo Rio —São Paulo, o que
caracteriza o desencadeamento dessa era é o seu tom cinzento e morno, o seu
todo vacilante, a frouxidão com que o país se entrega, sem profundas transformações
iniciais em extensão e em profundidade, ao império do poder e da dominação
especificamente nascidos do dinheiro. Na verdade, várias burguesias (ou ilhas
burguesas), que se formaram em torno da plantação e das cidades, mais se
justapõem do que se fundem, e o comércio vem a ser o seu ponto de encontro e a
área dentro da qual se definem seus interesses comuns. É dessa debilidade que
iria nascer o poder da burguesia, porque ela impôs, desde o início, que fosse
no terreno político que se estabelecesse o pacto tácito (por vezes formalizado
e explícito) de dominação de classe. Ao contrário de outras burguesias, que
forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o
Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge
para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes de converter a
dominação socioeconômica no que Weber entendia como “poder político indireto”.
As próprias “associações de classe”, acima dos interesses imediatos das
categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre
o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder
político estatal, de acordo com seus fins particulares. Em consequência, a
oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, como e enquanto
aristocracia agrária; e encontrou condições ideais para enfrentar a transição,
modernizando-se, onde isso fosse inevitável, e irradiando-se pelo desdobramento
das oportunidades novas, onde isso fosse possível.
O
efeito mais direto dessa situação é que a burguesia mantém múltiplas
polarizações com as estruturas econômicas, sociais e políticas do país. Ela não
assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade,
pelo menos de forma universal e como decorrência imperiosa de seus interesses
de classe. Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e
para ela era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade
da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do
“atraso” quanto do “adiantamento” das populações. Por isso, não era apenas a
hegemonia oligárquica que diluía o impacto inovador da dominação burguesa. A
própria burguesia como um todo (incluindo-se nela as oligarquias) se ajustara à
situação segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas,
preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa,
intransigente e avassaladora. No mais, ela florescia num meio em que a
desagregação social caminhava espontaneamente, pois a Abolição e a
universalização do trabalho livre levaram a descolonização ao âmago da economia
e da sociedade. Sem qualquer intervenção sua, intolerante ou ardorosa, a
modernização caminhava rapidamente, pelo menos nas zonas em expansão econômica
e nas cidades mais importantes em crescimento tumultuoso; e sua ansiedade
política ia mais na direção de amortecer a mudança social espontânea que no
rumo oposto, de aprofundá-la e de estendê-la às zonas rurais e urbanas mais ou
menos “retrógradas” e estáveis.
Além
desse aspecto sociodinâmico, cumpre não esquecer que o grosso dessa burguesia
vinha de e vivia em um estreito mundo provinciano, em sua essência rural
qualquer que fosse sua localização e o tipo de atividade econômica —, e, quer
vivesse na cidade ou no campo, sofrera larga socialização e forte atração pela
oligarquia (como e enquanto tal, ou seja, antes de fundir-se e perder-se
principalmente no setor comercial e financeiro da burguesia). Podia discordar
da oligarquia ou mesmo opor-se a ela. Mas fazia-o dentro de um horizonte
cultural que era essencialmente o mesmo, polarizado em torno de preocupações
particularistas e de um entranhado conservantismo sociocultural e político. O
conflito emergia, mas através de discórdias circunscritas, principalmente vinculadas
a estreitos interesses materiais, ditados pela necessidade de expandir os
negócios. Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si
mesmo, modificar a história. Além disso, o mandonismo oligárquico reproduzia-se
fora da oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de interesses feridos,
não deixava de pô-lo em prática em suas relações sociais, já que aquilo fazia
parte de sua segunda natureza humana.”
“Sob
o regime escravocrata e senhorial, a aristocracia podia conter (e mesmo
impedir) esse tipo de oposição, fixando às divergências toleradas os limites de
seus próprios interesses econômicos, sociais e políticos (convertidos
automaticamente nos “interesses da ordem” ou “da nação como um todo”). A
eclosão do regime de classes quebrou essa possibilidade, pulverizando os
interesses das classes dominantes (não só entre categorias da grande burguesia,
mas ainda convertendo os setores médios numa fonte de crescente pressão
divergente). Ao mesmo tempo, ela ampliou o cenário dos conflitos potenciais,
dando viabilidade à emergência de uma “oposição de baixo para cima”, difícil de
controlar e fácil de converter-se em “oposição contra a ordem”. Ora, as elites
brasileiras não estavam preparadas para as duas transformações concomitantes.
Acomodaram-se de modo mais ou menos rápido à primeira diferenciação, que
brotava no ápice da sociedade e podia ser tolerada como uma divergência intra
muros e que, no fundo, nascia de uma pressão natural para ajustar a
dominação burguesa a seus novos quadros reais. No entanto, viram os efeitos da
segunda diferenciação como um desafio insuportável, como se ela contivesse uma
demonstração de lesa-majestade: as reservas de opressão e de repressão de uma
sociedade de classes em formação foram mobilizadas para solapá-la e para
impedir que as massas populares conquistassem, de fato, um espaço político
próprio, “dentro da ordem”. Essa reação não foi imediata; ela teve larga
duração, indo do mandonismo, do paternalismo e do ritualismo eleitoral à
manipulação dos movimentos políticos populares, pelos demagogos conservadores
ou oportunistas e pelo condicionamento estatal do sindicalismo.
Só
em um sentido aparente essas transformações indicam uma “crise do poder
oligárquico”. Depois da Abolição, a oligarquia não dispunha de base material e
política para manter o padrão de hegemonia elaborado no decorrer do Império.
Para fortalecer-se, ela tinha de renovar-se, recompondo aquele padrão de
dominação segundo as injunções da ordem social emergente e em expansão. Os
conflitos que surgiram, a partir de certos setores radicais das “classes
médias” (dos quais o tenentismo é uma forte expressão, embora a pressão civil —
relacionada com o sufrágio, os procedimentos eleitorais e a renovação da
política econômica — possuísse significado análogo), e a partir de setores
insatisfeitos da grande burguesia (os industriais de São Paulo e do Rio são
comumente lembrados, mas não se deveria esquecer a pressão que provinha das
oligarquias “tradicionais” dos estados em relativa ou franca estagnação
econômica), se acabaram com a monopolização do poder pela “velha” oligarquia,
também deram a esta (e a seus novos rebentos) a oportunidade de que precisavam
para a restauração de sua influência econômica, social e política. Essa “crise”
— como um processo normal de diferenciação e de reintegração do poder — tornou
os interesses especificamente oligárquicos menos visíveis e mais flexíveis,
favorecendo um rápido deslocamento do poder decisivo da oligarquia
“tradicional” para a “moderna” (algo que se iniciara no último quartel do
século XIX, quando o envolvimento da aristocracia agrária pelo “mundo urbano
dos negócios” se tornou mais intenso e apresentou seus principais frutos
políticos).
No
conjunto, é preciso dar maior relevo ao segundo elemento da evolução apontada.
Porque é nele, nesse entrechoque de conflitos de interesses da mesma natureza
ou convergentes e de sucessivas acomodações, que repousa o que se poderia
chamar de consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil. Foi graças
a ela que a oligarquia — como e enquanto oligarquia “tradicional” (ou agrária)
e como oligarquia “moderna” (ou dos altos negócios, comerciais-financeiros mas
também industriais) logrou a possibilidade de plasmar a mentalidade burguesa e,
mais ainda, de determinar o próprio padrão de dominação burguesa. Cedendo
terreno ao radicalismo dos setores intermediários e à insatisfação dos círculos
industriais, ela praticamente ditou a solução dos conflitos a largo prazo, pois
não só resguardou seus interesses materiais “tradicionais” ou “modernos”,
apesar de todas as mudanças, como transferiu para os demais parceiros o seu
modo de ver e de praticar tanto as regras quanto o estilo do jogo. Depois de
sua aparente destituição, pela revolução da Aliança Liberal, as duas
oligarquias ressurgem vigorosamente sob o Estado Novo, o governo Dutra e,
especialmente, a “revolução institucional” (sem que se ofuscassem nos
entreatos). Parafraseando os mexicanos, poderíamos dizer que se constitui uma
nova aristocracia e que foi a oligarquia (“antiga” ou “moderna”) — e não as
classes médias ou os industriais — que decidiu, na realidade, que deveria ser a
dominação burguesa, senão idealmente, pelo menos na prática. Ela comboiou os
demais setores das classes dominantes, selecionando a luta de classes e a
repressão do proletariado como o eixo da revolução burguesa no Brasil.
Fora
da Sociologia marxista prevalece o intento de explicar a revolução burguesa
somente pelo passado (especialmente pela vitória sobre uma aristocracia
decadente ou reacionária, variavelmente anticapitalista), ignorando-se ou
esquecendo-se a outra face da moeda, com frequência mais decisiva: a imposição
da dominação burguesa à classe operária. Ora, o que poderia significar essa
“vitória” sobre forças em processo de extinção ou de incorporação ao próprio
mundo burguês? Ao que parece, o importante e decisivo não está no passado,
remoto ou recente, mas nas forças em confronto histórico, em luta pelo controle
do Estado e do alcance da mudança social. Aqui não tínhamos uma burguesia distinta
e em conflito de vida e morte com a aristocracia agrária. Doutro lado, o
fundamento comercial do engenho, da fazenda ou da estância pré-capitalistas
engolfou a aristocracia agrária no cerne mesmo da transformação capitalista,
assim que o desenvolvimento do mercado e de novas relações de produção levaram
a descolonização aos alicerces da economia e da sociedade. Foi graças a esse
giro que velhas estruturas de poder se viram restauradas: o problema central
tomou-se, desde logo, como preservar as condições extremamente favoráveis de
acumulação originária, herdadas da Colônia e do período neocolonial, e como
engendrar, ao lado delas, condições propriamente modernas de acumulação de
capital (ligadas à expansão interna do capitalismo comercial e, em seguida, do
capitalismo industrial). Aí se fundiram, como vimos anteriormente, o “velho” e
o “novo”, a antiga aristocracia comercial com seus desdobramentos no “mundo de
negócios” e as elites dos imigrantes com seus descendentes, prevalecendo, no
conjunto, a lógica da dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes.
Essa lógica se voltava para o presente e para o futuro, tanto na economia
quanto na política. À oligarquia a preservação e a renovação das estruturas de
poder, herdadas no passado, só interessavam como instrumento econômico e
político: para garantir o desenvolvimento capitalista interno e sua própria
hegemonia econômica, social e política. Por isso, ela se converteu no pião da
transição para o “Brasil moderno”. Só ela dispunha de poder em toda a extensão
da sociedade brasileira: o desenvolvimento desigual não afetava o controle
oligárquico do poder, apenas estimulava a sua universalização. Além disso, só
ela podia oferecer aos novos comensais, vindos dos setores intermediários, dos
grupos imigrantes ou de categorias econômicas, a maior segurança possível na
passagem do mundo pré-capitalista para o mundo capitalista, prevenindo a
“desordem da economia”, a “dissolução da propriedade” ou o “desgoverno da
sociedade”. Também foi ela que definiu o inimigo comum: no passado, o
escravo (e, em sentido mitigado, o liberto); no presente, o assalariado ou
semi-assalariado do campo e da cidade. Com essa definição, ela protegia tanto
as fontes da acumulação pré-capitalista, que continuaram a dinamizar o
persistente esquema neocolonial de exportação-importação, que deu lastro ao
crescimento interno do capitalismo competitivo, quanto o modelo de acumulação
propriamente capitalista, nascido com a mercantilização do trabalho e as
relações de produção capitalista, que possibilitaram a revolução
urbano-comercial e a transição concomitante para o industrialismo, ainda sob a
égide do capitalismo competitivo. Essa lógica econômica requeria uma política
que era o avesso do que se entendia, ideologicamente, como a nossa “Revolução
Burguesa” nos círculos hegemônicos das classes dominantes; e que só foi
exatamente percebida de início, em sua essência, significado e funções, pelos
politizados operários vindos da Europa. Anarquistas, socialistas e (mais tarde)
comunistas, eles não se iludiram quanto ao tipo de dominação burguesa com que
se defrontavam. Pintaram-na como ela realmente era, elaborando uma verdadeira
contra-ideologia (e não, apenas, recompondo ideologias revolucionárias,
transplantadas prontas e acabadas de fora, como se interpreta correntemente
entre os sociólogos).”
“No
caso brasileiro, as ameaças à hegemonia burguesa nunca chegaram a ser decisivas
e sempre foram exageradas pelos grupos oligárquicos, como um expediente de
manipulação conservadora do “radicalismo” ou do “nacionalismo” das classes
médias e dos setores industrialistas. Doutro lado, como indicamos ainda há
pouco, as tendências autocráticas e reacionárias da burguesia faziam parte de
seu próprio estilo de atuação histórica.”
“Em
uma linha objetiva de reflexão crítica, não há como fugir à constatação de que
o capitalismo dependente é, por sua natureza e em geral, um capitalismo
difícil, o qual deixa apenas poucas alternativas efetivas às burguesias que lhe
servem, a um tempo, de parteiras e amas secas. Desse ângulo, a redução do campo
de atuação histórica da burguesia exprime uma realidade específica, a partir da
qual a dominação burguesa aparece como conexão histórica não da “revolução
nacional e democrática”, mas do capitalismo dependente e do tipo de transformação
capitalista que ele supõe. Ao fechar o espaço político aberto à mudança social
construtiva, a burguesia garante-se o único caminho que permite conciliar sua
existência e florescimento com a continuidade e expansão do capitalismo
dependente. Aqui não se trata de acalentar fatalismos ex post facto. Mas
de buscar uma clara projeção interpretativa dos fatos. Há burguesias e
burguesias. O preconceito está em pretender-se que uma mesma explicação vale
para as diversas situações criadas pela “expansão do capitalismo no mundo
moderno”. Certas burguesias não podem ser instrumentais, ao mesmo tempo, para
“a transformação capitalista” e a “revolução nacional e democrática”. O que
quer dizer que a revolução burguesa pode transcender à transformação
capitalista ou circunscrever-se a ela, tudo dependendo das outras condições que
cerquem a domesticação do capitalismo pelos homens. A comparação, no caso, não
deve ser a que procura a diferença entre organismos “magros” e “gordos” da
mesma espécie. Porém a que busca o elemento irredutível de evoluções que
parecem diferentes apenas porque variáveis prescindíveis ou acidentais não são
eliminadas. A dominação burguesa não nos parece tão chocante, sob o capitalismo
dependente, só porque ela surge cruamente, sob o império exclusivo do
desenvolvimento capitalista? Isso, segundo pensamos, repõe os fatos em seu
lugar. Sob o capitalismo dependente a revolução burguesa é difícil — mas é
igualmente necessária, para possibilitar o desenvolvimento capitalista e a
consolidação da dominação burguesa. E é inteiramente ingênuo supor-se que ela
seja inviável em si e por si mesma, sem que outras forças sociais destruam ou
as bases de poder, que a tornam possível, ou as estruturas de poder, que dela
resultam (e que adquirem crescente estabilidade com a consolidação da dominação
burguesa).”
“A
distinção precisa entre autoridade e poder é bem conhecida. Por vezes, uma
ditadura é estabelecida para garantir as bases de poder de uma classe que se
sente ameaçada pela mudança social: e o ditador (individual ou coletivo) não
usa sua autoridade para aumentar seu poder ou para monopolizar o poder.
Emprega-a para assegurar a continuidade do monopólio do poder pela classe a que
pertence (ou com a qual se identifica). Também pode ocorrer que se aproveite da
situação para eliminar das posições de poder pessoas e grupos de sua classe que
pareçam representar um risco para o prestígio, a eficácia ou a estabilidade da
própria ditadura.”
“Esse
é, em resumo, o ponto culminante e o fato central da evolução do “Brasil
moderno”, cenário e produto da transformação capitalista. Ao concretizar-se, a
revolução burguesa transcende seu modelo histórico não só porque está superado.
Mas, ainda, porque os países capitalistas retardatários possuem certas
peculiaridades e se defrontam com um novo tipo de capitalismo no plano mundial.
A burguesia nunca é sempre a mesma, através da história. No caso brasileiro, a
burguesia se moldou sob o tipo de capitalismo competitivo que nasceu da
confluência da economia de exportação (de origens coloniais e neocoloniais) com
a expansão do mercado interno e da produção industrial para esse mercado
(realidades posteriores à emancipação política e condicionantes de nossa
devastadora “revolução urbano-comercial”). No entanto, a burguesia atinge sua
maturidade e, ao mesmo tempo, sua plenitude de poder sob a irrupção do
capitalismo monopolista, mantidas e agravadas as demais condições, que tornaram
a sociedade brasileira potencialmente explosiva, com o recrudescimento
inevitável da dominação externa, da desigualdade social e do subdesenvolvimento.
Em consequência, o caráter autocrático e opressivo da dominação burguesa
apurou-se e intensificou-se (processo que, sem dúvida, continuará, mesmo que
encontre formas eficientes de dissimulação, como sucedeu com a dominação
senhorial no Império). Não só porque ainda não existe outra força social,
politicamente organizada, capaz de limitá-la ou de detê-la. Mas também porque
ela não tem como conciliar o modelo neoimperialista de desenvolvimento
capitalista, que se impôs de fora para dentro, com os velhos ideais de
Revolução Burguesa nacional-democrática.”
“Um desenvolvimento capitalista articulado não produz uma transformação
capitalista de natureza diferente da que se pode observar nas sociedades
capitalistas autônomas e hegemônicas. O que varia é a intensidade e os ritmos
do processo. Condicionada a partir de fora, através de dinamismos econômicos
que constantemente se renovam e se aprofundam, a articulação da economia
periférica às economias centrais torna impossível, enquanto se mantém, a
eliminação da dominação imperialista externa. Por isso, enquanto se constitui,
se consolida e se expande, tal economia competitiva tende a redefinir e a
fortalecer os liames de dependência, tornando impossível desenvolvimento
capitalista autônomo e autossustentado. Todavia, o desenvolvimento capitalista
logrado traz consigo, como nas sociedades centrais e hegemônicas, as mesmas
tendências de organização e de evolução da economia, da sociedade e do Estado.
A história do mercado comanda a história econômica, social e política, até que
ele, sem passar propriamente para segundo plano, engendra finalmente uma
transição mais complexa, na qual as funções dinamizadoras da transformação
capitalista passarão a nascer das relações capitalistas de produção
propriamente ditas.”
“Esse
resumo permite situar algumas questões que precisam ser debatidas aqui, de uma
perspectiva sociológica. A primeira, e mais importante de todas, diz respeito
ao destino da dupla articulação econômica. Por curioso ou estranho que pareça,
todos os tipos de “empresários” que operavam na agricultura, na criação, na
mineração, no comércio, na indústria, com os bancos etc., orientados para
dentro ou para fora, sucumbiram às limitações e às inibições do padrão descrito
de desenvolvimento econômico sob o capitalismo competitivo dependente. O horizonte
econômico de todos eles foi conformado pela mesma ansiedade de “aproveitar” as
vantagens diretas e imediatas abertas por uma economia competitiva articulada.
Mesmo mais tarde, quando o “desenvolvimento” aparece em cena, não se questiona
ardentemente a dupla articulação — entram em debate questões relacionadas com a
reforma agrária, o “entreguismo”, a remessa de lucros e o intervencionismo
econômico do Estado, sem que o essencial, a respeito da dupla articulação, sofresse
verdadeiro repúdio. Aceita-se, como “natural”, que o setor agrário em
modernização continuasse vastamente arcaico, onde e como isso se mostrasse
funcional à acumulação originária de capital. Doutro lado, também se aceita
como “natural” que a articulação às economias centrais, além de persistir, se
aprofundasse, sob a presunção de que aí estaria ou a “melhor” ou a “única”
saída para a industrialização e a concomitante aceleração do desenvolvimento
econômico interno. No setor empresarial, em particular, não surgiu nenhum grupo
que combatesse frontalmente as tendências mais ou menos estáticas de
contemporização diante da dupla articulação. Em consequência, os esforços
esboçados para corrigir as limitações e as inibições do padrão existente de
desenvolvimento capitalista foram inócuos. Meras verbalizações, caíam com
frequência num irremediável vazio histórico. Se possuíram alguma utilidade
prática, essa se manifestou na luta pelo poder de barganha dos círculos
empresariais; as guinadas “nacionalistas” ou “entreguistas” dos governos
achavam uma via de escoamento ou de estimulação nas composições dos setores
privados entre si e com o poder público. Pela segunda vez na história
brasileira — a primeira foi por ocasião das lutas pela Independência — as
classes dominantes e suas elites econômicas preferem, por acordo tácito, evitar
o nó górdio de nossa evolução econômica dentro do capitalismo.”
“Ligando-se
entre si esses traços marcantes da evolução recente do capitalismo competitivo
no Brasil, constata-se que nem o mercado, nem o sistema de produção internos
suscitaram um movimento econômico que expusesse a dupla articulação a uma crise
irreversível, ou, pelo menos, a uma crise decisiva. O crescimento da população,
em escala de explosão demográfica, o ritmo da concentração urbana e, especialmente,
as tendências mais ou menos firmes de universalização das relações capitalistas
de mercado e de produção reduziram de forma considerável os efeitos inibidores
da articulação no nível interno. Mas a transformação, embora econômica e
sociologicamente significativa, não foi tão acentuada a ponto de forçar a
destruição dos últimos baluartes vivos do “complexo econômico colonial” e do
“antigo regime”. O crescimento do mercado interno refletiu-se em suas relações
com a economia agropecuária, estabelecendo fluxos consideráveis de
comercialização voltados para dentro. Isso não impediu que práticas
pré-capitalistas ou subcapitalistas se mantivessem quase incólumes ou se
fortalecessem. Nem mesmo uma reforma agrária moderada chegou a ser instituída
“para valer”. Doutro lado, não surgiu nenhum esforço para corrigir a
tradicional depressão dos salários das massas trabalhadoras em geral e dos
operários urbanos. Mantinha-se, pois, a compressão do mercado, com os efeitos
daí decorrentes — um mercado socialmente comprimido é, pela natureza das
coisas, um mercado altamente seletivo, que acompanha a concentração social e
racial da renda. O que isso representa, como fonte de inibição direta ou
indireta do crescimento de formas capitalistas de produção em uma economia
competitiva, é por demais sabido. Se os fatos se manifestam desse modo, isso é
sintomático da persistência de uma mentalidade que via o mercado estabelecendo
gradações entre “alto” e “baixo” comércio, como se a realidade de massa fosse
secundária para seus dinamismos propriamente capitalistas. Em resumo, apesar do
desaparecimento dos bloqueios que excluíam o setor arcaico da modernização
capitalista, a situação global ainda convertia a economia competitiva num
verdadeiro conglomerado de formas de mercado e de produção de desenvolvimento
desigual. A pressão que essa economia, como um todo, podia fazer para
libertar-se das limitações e das inibições que interferiam negativamente sobre
suas potencialidades especificamente capitalistas de equilíbrio, de
reorganização e de crescimento era ainda muito baixa. Na verdade, continuava a
prevalecer a extrema valorização econômica de diferentes idades coetâneas e de
formas de desenvolvimento desiguais, como expediente de acumulação
originária de capital ou de intensificação da expropriação capitalista do
trabalho.”
“O
movimento global da transformação capitalista, sob as peripécias do capitalismo
competitivo dependente, precisa, pois, ser analisado sociologicamente com
extremo cuidado. Todos os processos básicos do desenvolvimento capitalista nas
sociedades centrais se repetem (ou, seria melhor, se reproduzem, já que as
condições econômicas, sociais e políticas são diferentes). As consequências
desses processos, nos níveis estrutural, funcional e histórico, no entanto, são
bem diversas. A existência de uma alta burguesia, solidamente implantada numa
economia capitalista competitiva bastante diferenciada e integrada; a formação
de uma burguesia suficientemente numerosa para saturar os quadros de comando de
tal economia e suficientemente forte para não se ver suprimida, economicamente,
ou deslocada, politicamente, pela associação dependente; e o aparecimento de
uma pequena-burguesia cada vez mais volumosa e agressiva (em termos de
competição por riqueza, prestígio e poder), pelo menos nas metrópoles e nas
grandes cidades — eis uma realidade humana que se torna chocante quando se
considera a performance do desenvolvimento econômico sob o capitalismo
competitivo dependente. Como foi possível que ele gerasse toda essa estrutura
social e toda essa engrenagem, sem gerar, concomitantemente, fontes históricas
de correção ou neutralização das inibições inerentes ao padrão de
desenvolvimento capitalista dependente, ou o espaço econômico que seria
necessário para que essas mesmas classes tivessem outra atuação histórica? A
resposta já foi dada anteriormente. A dupla articulação impõe a conciliação e a
harmonização de interesses díspares (tanto em termos de acomodação de setores
econômicos internos quanto em termos de acomodação da economia capitalista
dependente às economias centrais); e, pior que isso, acarreta um estado de
conciliação permanente de tais interesses entre si. Forma-se, assim, um
bloqueio que não pode ser superado e que, do ponto de vista da transformação
capitalista, torna o agente econômico da economia dependente demasiado
impotente para enfrentar as exigências da situação de dependência. Ele pode,
sem dúvida, realizar as revoluções econômicas, que são intrínsecas às várias
transformações capitalistas. O que ele não pode é levar qualquer revolução
econômica ao ponto de ruptura com o próprio padrão de desenvolvimento
capitalista dependente. Assim, mantida a dupla articulação, a alta burguesia, a
burguesia e a pequena-burguesia “fazem história”. Mas fazem uma história de
circuito fechado ou, em outras palavras, a história que começa e termina no
capitalismo competitivo dependente. Este não pode romper consigo mesmo. Como a
dominação burguesa, sob sua vigência, não pode romper com ele, a economia
capitalista competitiva da periferia fica condenada a dar novos saltos através de
impulsos que virão de fora, dos dinamismos das economias capitalistas centrais.”
“No
que concerne à periferia, a transferência do padrão de desenvolvimento
econômico inerente ao capitalismo monopolista constituía um processo de muito
maior complexidade e de muito maior dificuldade que as anteriores eclosões do
mercado capitalista especificamente moderno e da economia capitalista
competitiva em sociedades recém-egressas de situações coloniais ou
neocoloniais. A esse respeito, é preciso atentar para os requisitos desse
padrão de desenvolvimento econômico, que exige índices relativamente altos: de
concentração demográfica, não só em cidades-chave mas em um vasto mundo
urbano-comercial e urbano-industrial; de renda per capita, pelo menos da
população incorporada ao mercado de trabalho e, em especial, dos estratos
médios e altos das classes dominantes; de padrão de vida, pelo menos nesses
setores da população; de diferenciação, integração em escala nacional e de
densidade econômica do mercado interno; de capital incorporado ou incorporável
ao mercado financeiro, para dar maior flexibilidade e intensidade ao
crescimento do crédito ao consumo e à produção; modernização tecnológica
realizada e em potencial; de estabilidade política e de controle efetivo do
poder do Estado pela burguesia nativa etc.: Tais requisitos fizeram com que
poucas nações da periferia pudessem absorver o padrão de desenvolvimento
econômico inerente ao capitalismo monopolista através de um simples
desdobramento de fronteiras econômicas, culturais e políticas. Imediatamente antes
e depois da Primeira Guerra Mundial, apenas o Canadá, a Austrália e a África do
Sul dispunham de condições internas que conferiam viabilidade a uma
transferência global (embora paulatina) desse padrão de desenvolvimento, por
meio dos processos normais de conquista econômica. Quanto ao resto da
periferia, a única estratégia generalizada viável consistia na penetração
segmentada, como técnica de ocupação do meio, de alocação de recursos materiais
e humanos, ou de controle econômico. Foi através dessa técnica que as grandes
corporações se instalaram e expandiram nessa imensa parte da periferia,
assumindo o controle parcial mas em intensidade da exploração e da
comercialização internacional de matérias-primas, da produção industrial para o
mercado interno, do comércio interno, das atividades financeiras etc. Para
atingir os seus objetivos comerciais, financeiros ou políticos elas não
precisavam interferir, extensa e profundamente, na estrutura colonial,
neocolonial ou competitiva das economias hospedeiras; ao contrário, essas
estruturas lhes eram altamente vantajosas, já que economias desse tipo não
dispunham mecanismos econômicos reativos de autodefesa. A incorporação, por sua
vez, não se fazia à economia capitalista central, mas ao império econômico das
grandes corporações envolvidas. Isso tinha as suas vantagens políticas e
diplomáticas, já que as nações hegemônicas não precisavam arcar com os ônus
decorrentes de semelhante técnica de “expansão econômica”, embora servissem como
seu polo de sustentação econômica, cultural e política e monopolizassem as
vantagens dela decorrentes.
Vários
fatores econômicos concorreram para alterar essa situação, em seguida à crise
de 1929, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. As próprias transformações
recentes da economia, da estrutura urbana e da tecnologia das sociedades
hegemônicas engendraram formas ultradestrutivas de utilização das
matérias-primas da periferia, as quais converteram, em maior ou menor grau, as
nações periféricas em fator de equilíbrio e de crescimento balanceado das
economias centrais. Em consequência, ocorreu um deslocamento econômico das
“fronteiras naturais” daquelas sociedades: as nações periféricas, como fonte de
matérias-primas essenciais ao desenvolvimento econômico sob o capitalismo
monopolista, viram-se, extensa e profundamente, incorporadas à estrutura, ao
funcionamento e ao crescimento das economias centrais como um todo. Daí
resultou uma forma de incorporação devastadora da periferia às nações
hegemônicas e centrais, que não encontra paralelos nem na história colonial e
neocolonial do mundo moderno, nem na história do capitalismo competitivo.
Doutro lado, em parte por causa desse processo, em parte por causa de seu
próprio crescimento demográfico e econômico, a periferia se alterou o
suficiente, depois da Primeira Guerra Mundial, para tornar-se um mercado
atrativo e uma área de investimentos promissores. Tudo isso contribuiu para
modificar substancialmente a relação das grandes corporações com as economias periféricas.
Aquelas passaram a competir fortemente entre si pelo controle da expansão
induzida destas economias, gerando o que se poderia descrever, com propriedade,
como a segunda partilha do mundo.”
“O setor estatal, apesar de sua enorme importância relativa na estrutura
e nos dinamismos da economia, não serviu de contrapeso às pressões privatistas
internas e externas, de orientação ultraconservadora e “puramente racional”
(isto é, extranacionalista). Ele próprio iria absorver, nos níveis
organizatório, tecnológico e político, o “modelo” da grande corporação
capitalista, convertendo-se, com grande rapidez e flexibilidade, na espinha
dorsal da adaptação do espaço econômico e político interno aos requisitos
estruturais e dinâmicos do capitalismo monopolista. Nesse sentido, se se pode
falar nisso, ele é representativo de um “capitalismo de Estado” medularmente
identificado com o fortalecimento da iniciativa privada e que pretende servir
de elo ao florescimento das grandes corporações privadas (independentemente das
origens de seus capitais e do seu impacto sobre a recomposição da dominação
burguesa) e do capitalismo monopolista no Brasil (independentemente das
eventuais “crises de soberania” decorrentes). Na verdade, a capacidade do
Estado de atuar como esteio de uma maior ou menor identificação do capitalismo
com alvos coletivos e nacionalistas constitui uma função do grau de
identificação das classes possuidoras e de suas elites econômicas, militares e
políticas com alvos dessa espécie. Apesar do apregoado “nacionalismo” dos
industrialistas e das classes médias, eram pouco expressivos e influentes os
círculos de homens de ação que defendiam objetivos puramente nacionais ou
nacionalistas. O grosso das classes possuidoras e de suas elites econômicas,
militares e políticas, já sob o Estado Novo e nas lutas contra o último governo
de Vargas, via o “capitalismo de Estado” como instrumental ou funcional apenas
para os interesses privados (nacionais e estrangeiros). Ao lograr o controle
completo da máquina estatal, colocaram-na a serviço da revolução econômica
requerida pela “captação da poupança externa” e pela “internacionalização” da
economia brasileira, sob o capitalismo monopolista. Essa experiência histórica
comprova que o Estado não tem nem pode ter, em si e por si mesmo, um poder real
e uma vocação inflexível para o nacionalismo econômico puro. Ele reflete,
historicamente, tanto no plano econômico quanto no plano militar e político, os
interesses sociais e as orientações econômicas ou políticas das classes que o
constituem e o controlam. O Estado nacional brasileiro sucumbiu aos interesses
de classe que ele representa. O “capitalismo de Estado”, que ele fomentou,
cingiu-se às funções que a intervenção econômica e política estatal deveria
preencher para que a irrupção do capitalismo monopolista se tornasse viável e
irreversível.”
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