quinta-feira, 18 de abril de 2024

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (Parte II), de Florestan Fernandes

Editora: Contracorrente

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-6922-074-9

Páginas: 432

Sinopse: Ver Parte I


 

“Na acepção em que tomamos o conceito, Revolução Burguesa denota um conjunto de transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psicoculturais e políticas que só se realizam quando o desenvolvimento capitalista atinge o clímax de sua evolução industrial. Há, porém, um ponto de partida e um ponto de chegada, e é extremamente difícil localizar-se o momento em que essa revolução alcança um patamar histórico irreversível, de plena maturidade e, ao mesmo tempo, de consolidação do poder burguês e da dominação burguesa. A situação brasileira do fim do Império e do começo da República, por exemplo, contém somente os germes desse poder e dessa dominação. O que muitos autores chamam, com extrema impropriedade, de crise do poder oligárquico não é propriamente um “colapso”, mas o início de uma transição que inaugurava, ainda sob a hegemonia da oligarquia, uma recomposição das estruturas do poder, pela qual se configurariam, historicamente, o poder burguês e a dominação burguesa. Essa recomposição marca o início da modernidade, no Brasil, e praticamente separa (com um quarto de século de atraso, quanto às datas de referência que os historiadores gostam de empregar — a Abolição, a Proclamação da República e as inquietações da década de 1920) a “era senhorial” (ou o antigo regime) da “era burguesa” (ou a sociedade de classes).

Para o sociólogo, se se desconta o que ocorre no eixo Rio —São Paulo, o que caracteriza o desencadeamento dessa era é o seu tom cinzento e morno, o seu todo vacilante, a frouxidão com que o país se entrega, sem profundas transformações iniciais em extensão e em profundidade, ao império do poder e da dominação especificamente nascidos do dinheiro. Na verdade, várias burguesias (ou ilhas burguesas), que se formaram em torno da plantação e das cidades, mais se justapõem do que se fundem, e o comércio vem a ser o seu ponto de encontro e a área dentro da qual se definem seus interesses comuns. É dessa debilidade que iria nascer o poder da burguesia, porque ela impôs, desde o início, que fosse no terreno político que se estabelecesse o pacto tácito (por vezes formalizado e explícito) de dominação de classe. Ao contrário de outras burguesias, que forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para arranjos mais complicados e específicos, a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unificação no plano político, antes de converter a dominação socioeconômica no que Weber entendia como “poder político indireto”. As próprias “associações de classe”, acima dos interesses imediatos das categorias econômicas envolvidas, visavam a exercer pressão e influência sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder político estatal, de acordo com seus fins particulares. Em consequência, a oligarquia não perdeu a base de poder que lograra antes, como e enquanto aristocracia agrária; e encontrou condições ideais para enfrentar a transição, modernizando-se, onde isso fosse inevitável, e irradiando-se pelo desdobramento das oportunidades novas, onde isso fosse possível.

O efeito mais direto dessa situação é que a burguesia mantém múltiplas polarizações com as estruturas econômicas, sociais e políticas do país. Ela não assume o papel de paladina da civilização ou de instrumento da modernidade, pelo menos de forma universal e como decorrência imperiosa de seus interesses de classe. Ela se compromete, por igual, com tudo que lhe fosse vantajoso: e para ela era vantajoso tirar proveito dos tempos desiguais e da heterogeneidade da sociedade brasileira, mobilizando as vantagens que decorriam tanto do “atraso” quanto do “adiantamento” das populações. Por isso, não era apenas a hegemonia oligárquica que diluía o impacto inovador da dominação burguesa. A própria burguesia como um todo (incluindo-se nela as oligarquias) se ajustara à situação segundo uma linha de múltiplos interesses e de adaptações ambíguas, preferindo a mudança gradual e a composição a uma modernização impetuosa, intransigente e avassaladora. No mais, ela florescia num meio em que a desagregação social caminhava espontaneamente, pois a Abolição e a universalização do trabalho livre levaram a descolonização ao âmago da economia e da sociedade. Sem qualquer intervenção sua, intolerante ou ardorosa, a modernização caminhava rapidamente, pelo menos nas zonas em expansão econômica e nas cidades mais importantes em crescimento tumultuoso; e sua ansiedade política ia mais na direção de amortecer a mudança social espontânea que no rumo oposto, de aprofundá-la e de estendê-la às zonas rurais e urbanas mais ou menos “retrógradas” e estáveis.

Além desse aspecto sociodinâmico, cumpre não esquecer que o grosso dessa burguesia vinha de e vivia em um estreito mundo provinciano, em sua essência rural qualquer que fosse sua localização e o tipo de atividade econômica —, e, quer vivesse na cidade ou no campo, sofrera larga socialização e forte atração pela oligarquia (como e enquanto tal, ou seja, antes de fundir-se e perder-se principalmente no setor comercial e financeiro da burguesia). Podia discordar da oligarquia ou mesmo opor-se a ela. Mas fazia-o dentro de um horizonte cultural que era essencialmente o mesmo, polarizado em torno de preocupações particularistas e de um entranhado conservantismo sociocultural e político. O conflito emergia, mas através de discórdias circunscritas, principalmente vinculadas a estreitos interesses materiais, ditados pela necessidade de expandir os negócios. Era um conflito que permitia fácil acomodação e que não podia, por si mesmo, modificar a história. Além disso, o mandonismo oligárquico reproduzia-se fora da oligarquia. O burguês que o repelia, por causa de interesses feridos, não deixava de pô-lo em prática em suas relações sociais, já que aquilo fazia parte de sua segunda natureza humana.”

 

 

“Sob o regime escravocrata e senhorial, a aristocracia podia conter (e mesmo impedir) esse tipo de oposição, fixando às divergências toleradas os limites de seus próprios interesses econômicos, sociais e políticos (convertidos automaticamente nos “interesses da ordem” ou “da nação como um todo”). A eclosão do regime de classes quebrou essa possibilidade, pulverizando os interesses das classes dominantes (não só entre categorias da grande burguesia, mas ainda convertendo os setores médios numa fonte de crescente pressão divergente). Ao mesmo tempo, ela ampliou o cenário dos conflitos potenciais, dando viabilidade à emergência de uma “oposição de baixo para cima”, difícil de controlar e fácil de converter-se em “oposição contra a ordem”. Ora, as elites brasileiras não estavam preparadas para as duas transformações concomitantes. Acomodaram-se de modo mais ou menos rápido à primeira diferenciação, que brotava no ápice da sociedade e podia ser tolerada como uma divergência intra muros e que, no fundo, nascia de uma pressão natural para ajustar a dominação burguesa a seus novos quadros reais. No entanto, viram os efeitos da segunda diferenciação como um desafio insuportável, como se ela contivesse uma demonstração de lesa-majestade: as reservas de opressão e de repressão de uma sociedade de classes em formação foram mobilizadas para solapá-la e para impedir que as massas populares conquistassem, de fato, um espaço político próprio, “dentro da ordem”. Essa reação não foi imediata; ela teve larga duração, indo do mandonismo, do paternalismo e do ritualismo eleitoral à manipulação dos movimentos políticos populares, pelos demagogos conservadores ou oportunistas e pelo condicionamento estatal do sindicalismo.

Só em um sentido aparente essas transformações indicam uma “crise do poder oligárquico”. Depois da Abolição, a oligarquia não dispunha de base material e política para manter o padrão de hegemonia elaborado no decorrer do Império. Para fortalecer-se, ela tinha de renovar-se, recompondo aquele padrão de dominação segundo as injunções da ordem social emergente e em expansão. Os conflitos que surgiram, a partir de certos setores radicais das “classes médias” (dos quais o tenentismo é uma forte expressão, embora a pressão civil — relacionada com o sufrágio, os procedimentos eleitorais e a renovação da política econômica — possuísse significado análogo), e a partir de setores insatisfeitos da grande burguesia (os industriais de São Paulo e do Rio são comumente lembrados, mas não se deveria esquecer a pressão que provinha das oligarquias “tradicionais” dos estados em relativa ou franca estagnação econômica), se acabaram com a monopolização do poder pela “velha” oligarquia, também deram a esta (e a seus novos rebentos) a oportunidade de que precisavam para a restauração de sua influência econômica, social e política. Essa “crise” — como um processo normal de diferenciação e de reintegração do poder — tornou os interesses especificamente oligárquicos menos visíveis e mais flexíveis, favorecendo um rápido deslocamento do poder decisivo da oligarquia “tradicional” para a “moderna” (algo que se iniciara no último quartel do século XIX, quando o envolvimento da aristocracia agrária pelo “mundo urbano dos negócios” se tornou mais intenso e apresentou seus principais frutos políticos).

No conjunto, é preciso dar maior relevo ao segundo elemento da evolução apontada. Porque é nele, nesse entrechoque de conflitos de interesses da mesma natureza ou convergentes e de sucessivas acomodações, que repousa o que se poderia chamar de consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil. Foi graças a ela que a oligarquia — como e enquanto oligarquia “tradicional” (ou agrária) e como oligarquia “moderna” (ou dos altos negócios, comerciais-financeiros mas também industriais) logrou a possibilidade de plasmar a mentalidade burguesa e, mais ainda, de determinar o próprio padrão de dominação burguesa. Cedendo terreno ao radicalismo dos setores intermediários e à insatisfação dos círculos industriais, ela praticamente ditou a solução dos conflitos a largo prazo, pois não só resguardou seus interesses materiais “tradicionais” ou “modernos”, apesar de todas as mudanças, como transferiu para os demais parceiros o seu modo de ver e de praticar tanto as regras quanto o estilo do jogo. Depois de sua aparente destituição, pela revolução da Aliança Liberal, as duas oligarquias ressurgem vigorosamente sob o Estado Novo, o governo Dutra e, especialmente, a “revolução institucional” (sem que se ofuscassem nos entreatos). Parafraseando os mexicanos, poderíamos dizer que se constitui uma nova aristocracia e que foi a oligarquia (“antiga” ou “moderna”) — e não as classes médias ou os industriais — que decidiu, na realidade, que deveria ser a dominação burguesa, senão idealmente, pelo menos na prática. Ela comboiou os demais setores das classes dominantes, selecionando a luta de classes e a repressão do proletariado como o eixo da revolução burguesa no Brasil.

Fora da Sociologia marxista prevalece o intento de explicar a revolução burguesa somente pelo passado (especialmente pela vitória sobre uma aristocracia decadente ou reacionária, variavelmente anticapitalista), ignorando-se ou esquecendo-se a outra face da moeda, com frequência mais decisiva: a imposição da dominação burguesa à classe operária. Ora, o que poderia significar essa “vitória” sobre forças em processo de extinção ou de incorporação ao próprio mundo burguês? Ao que parece, o importante e decisivo não está no passado, remoto ou recente, mas nas forças em confronto histórico, em luta pelo controle do Estado e do alcance da mudança social. Aqui não tínhamos uma burguesia distinta e em conflito de vida e morte com a aristocracia agrária. Doutro lado, o fundamento comercial do engenho, da fazenda ou da estância pré-capitalistas engolfou a aristocracia agrária no cerne mesmo da transformação capitalista, assim que o desenvolvimento do mercado e de novas relações de produção levaram a descolonização aos alicerces da economia e da sociedade. Foi graças a esse giro que velhas estruturas de poder se viram restauradas: o problema central tomou-se, desde logo, como preservar as condições extremamente favoráveis de acumulação originária, herdadas da Colônia e do período neocolonial, e como engendrar, ao lado delas, condições propriamente modernas de acumulação de capital (ligadas à expansão interna do capitalismo comercial e, em seguida, do capitalismo industrial). Aí se fundiram, como vimos anteriormente, o “velho” e o “novo”, a antiga aristocracia comercial com seus desdobramentos no “mundo de negócios” e as elites dos imigrantes com seus descendentes, prevalecendo, no conjunto, a lógica da dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes. Essa lógica se voltava para o presente e para o futuro, tanto na economia quanto na política. À oligarquia a preservação e a renovação das estruturas de poder, herdadas no passado, só interessavam como instrumento econômico e político: para garantir o desenvolvimento capitalista interno e sua própria hegemonia econômica, social e política. Por isso, ela se converteu no pião da transição para o “Brasil moderno”. Só ela dispunha de poder em toda a extensão da sociedade brasileira: o desenvolvimento desigual não afetava o controle oligárquico do poder, apenas estimulava a sua universalização. Além disso, só ela podia oferecer aos novos comensais, vindos dos setores intermediários, dos grupos imigrantes ou de categorias econômicas, a maior segurança possível na passagem do mundo pré-capitalista para o mundo capitalista, prevenindo a “desordem da economia”, a “dissolução da propriedade” ou o “desgoverno da sociedade”. Também foi ela que definiu o inimigo comum: no passado, o escravo (e, em sentido mitigado, o liberto); no presente, o assalariado ou semi-assalariado do campo e da cidade. Com essa definição, ela protegia tanto as fontes da acumulação pré-capitalista, que continuaram a dinamizar o persistente esquema neocolonial de exportação-importação, que deu lastro ao crescimento interno do capitalismo competitivo, quanto o modelo de acumulação propriamente capitalista, nascido com a mercantilização do trabalho e as relações de produção capitalista, que possibilitaram a revolução urbano-comercial e a transição concomitante para o industrialismo, ainda sob a égide do capitalismo competitivo. Essa lógica econômica requeria uma política que era o avesso do que se entendia, ideologicamente, como a nossa “Revolução Burguesa” nos círculos hegemônicos das classes dominantes; e que só foi exatamente percebida de início, em sua essência, significado e funções, pelos politizados operários vindos da Europa. Anarquistas, socialistas e (mais tarde) comunistas, eles não se iludiram quanto ao tipo de dominação burguesa com que se defrontavam. Pintaram-na como ela realmente era, elaborando uma verdadeira contra-ideologia (e não, apenas, recompondo ideologias revolucionárias, transplantadas prontas e acabadas de fora, como se interpreta correntemente entre os sociólogos).”

 

 

“No caso brasileiro, as ameaças à hegemonia burguesa nunca chegaram a ser decisivas e sempre foram exageradas pelos grupos oligárquicos, como um expediente de manipulação conservadora do “radicalismo” ou do “nacionalismo” das classes médias e dos setores industrialistas. Doutro lado, como indicamos ainda há pouco, as tendências autocráticas e reacionárias da burguesia faziam parte de seu próprio estilo de atuação histórica.”

 

 

“Em uma linha objetiva de reflexão crítica, não há como fugir à constatação de que o capitalismo dependente é, por sua natureza e em geral, um capitalismo difícil, o qual deixa apenas poucas alternativas efetivas às burguesias que lhe servem, a um tempo, de parteiras e amas secas. Desse ângulo, a redução do campo de atuação histórica da burguesia exprime uma realidade específica, a partir da qual a dominação burguesa aparece como conexão histórica não da “revolução nacional e democrática”, mas do capitalismo dependente e do tipo de transformação capitalista que ele supõe. Ao fechar o espaço político aberto à mudança social construtiva, a burguesia garante-se o único caminho que permite conciliar sua existência e florescimento com a continuidade e expansão do capitalismo dependente. Aqui não se trata de acalentar fatalismos ex post facto. Mas de buscar uma clara projeção interpretativa dos fatos. Há burguesias e burguesias. O preconceito está em pretender-se que uma mesma explicação vale para as diversas situações criadas pela “expansão do capitalismo no mundo moderno”. Certas burguesias não podem ser instrumentais, ao mesmo tempo, para “a transformação capitalista” e a “revolução nacional e democrática”. O que quer dizer que a revolução burguesa pode transcender à transformação capitalista ou circunscrever-se a ela, tudo dependendo das outras condições que cerquem a domesticação do capitalismo pelos homens. A comparação, no caso, não deve ser a que procura a diferença entre organismos “magros” e “gordos” da mesma espécie. Porém a que busca o elemento irredutível de evoluções que parecem diferentes apenas porque variáveis prescindíveis ou acidentais não são eliminadas. A dominação burguesa não nos parece tão chocante, sob o capitalismo dependente, só porque ela surge cruamente, sob o império exclusivo do desenvolvimento capitalista? Isso, segundo pensamos, repõe os fatos em seu lugar. Sob o capitalismo dependente a revolução burguesa é difícil — mas é igualmente necessária, para possibilitar o desenvolvimento capitalista e a consolidação da dominação burguesa. E é inteiramente ingênuo supor-se que ela seja inviável em si e por si mesma, sem que outras forças sociais destruam ou as bases de poder, que a tornam possível, ou as estruturas de poder, que dela resultam (e que adquirem crescente estabilidade com a consolidação da dominação burguesa).”

 

 

“A distinção precisa entre autoridade e poder é bem conhecida. Por vezes, uma ditadura é estabelecida para garantir as bases de poder de uma classe que se sente ameaçada pela mudança social: e o ditador (individual ou coletivo) não usa sua autoridade para aumentar seu poder ou para monopolizar o poder. Emprega-a para assegurar a continuidade do monopólio do poder pela classe a que pertence (ou com a qual se identifica). Também pode ocorrer que se aproveite da situação para eliminar das posições de poder pessoas e grupos de sua classe que pareçam representar um risco para o prestígio, a eficácia ou a estabilidade da própria ditadura.”

 

 

“Esse é, em resumo, o ponto culminante e o fato central da evolução do “Brasil moderno”, cenário e produto da transformação capitalista. Ao concretizar-se, a revolução burguesa transcende seu modelo histórico não só porque está superado. Mas, ainda, porque os países capitalistas retardatários possuem certas peculiaridades e se defrontam com um novo tipo de capitalismo no plano mundial. A burguesia nunca é sempre a mesma, através da história. No caso brasileiro, a burguesia se moldou sob o tipo de capitalismo competitivo que nasceu da confluência da economia de exportação (de origens coloniais e neocoloniais) com a expansão do mercado interno e da produção industrial para esse mercado (realidades posteriores à emancipação política e condicionantes de nossa devastadora “revolução urbano-comercial”). No entanto, a burguesia atinge sua maturidade e, ao mesmo tempo, sua plenitude de poder sob a irrupção do capitalismo monopolista, mantidas e agravadas as demais condições, que tornaram a sociedade brasileira potencialmente explosiva, com o recrudescimento inevitável da dominação externa, da desigualdade social e do subdesenvolvimento. Em consequência, o caráter autocrático e opressivo da dominação burguesa apurou-se e intensificou-se (processo que, sem dúvida, continuará, mesmo que encontre formas eficientes de dissimulação, como sucedeu com a dominação senhorial no Império). Não só porque ainda não existe outra força social, politicamente organizada, capaz de limitá-la ou de detê-la. Mas também porque ela não tem como conciliar o modelo neoimperialista de desenvolvimento capitalista, que se impôs de fora para dentro, com os velhos ideais de Revolução Burguesa nacional-democrática.”

 

 

“Um desenvolvimento capitalista articulado não produz uma transformação capitalista de natureza diferente da que se pode observar nas sociedades capitalistas autônomas e hegemônicas. O que varia é a intensidade e os ritmos do processo. Condicionada a partir de fora, através de dinamismos econômicos que constantemente se renovam e se aprofundam, a articulação da economia periférica às economias centrais torna impossível, enquanto se mantém, a eliminação da dominação imperialista externa. Por isso, enquanto se constitui, se consolida e se expande, tal economia competitiva tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível desenvolvimento capitalista autônomo e autossustentado. Todavia, o desenvolvimento capitalista logrado traz consigo, como nas sociedades centrais e hegemônicas, as mesmas tendências de organização e de evolução da economia, da sociedade e do Estado. A história do mercado comanda a história econômica, social e política, até que ele, sem passar propriamente para segundo plano, engendra finalmente uma transição mais complexa, na qual as funções dinamizadoras da transformação capitalista passarão a nascer das relações capitalistas de produção propriamente ditas.”

 

 

“Esse resumo permite situar algumas questões que precisam ser debatidas aqui, de uma perspectiva sociológica. A primeira, e mais importante de todas, diz respeito ao destino da dupla articulação econômica. Por curioso ou estranho que pareça, todos os tipos de “empresários” que operavam na agricultura, na criação, na mineração, no comércio, na indústria, com os bancos etc., orientados para dentro ou para fora, sucumbiram às limitações e às inibições do padrão descrito de desenvolvimento econômico sob o capitalismo competitivo dependente. O horizonte econômico de todos eles foi conformado pela mesma ansiedade de “aproveitar” as vantagens diretas e imediatas abertas por uma economia competitiva articulada. Mesmo mais tarde, quando o “desenvolvimento” aparece em cena, não se questiona ardentemente a dupla articulação — entram em debate questões relacionadas com a reforma agrária, o “entreguismo”, a remessa de lucros e o intervencionismo econômico do Estado, sem que o essencial, a respeito da dupla articulação, sofresse verdadeiro repúdio. Aceita-se, como “natural”, que o setor agrário em modernização continuasse vastamente arcaico, onde e como isso se mostrasse funcional à acumulação originária de capital. Doutro lado, também se aceita como “natural” que a articulação às economias centrais, além de persistir, se aprofundasse, sob a presunção de que aí estaria ou a “melhor” ou a “única” saída para a industrialização e a concomitante aceleração do desenvolvimento econômico interno. No setor empresarial, em particular, não surgiu nenhum grupo que combatesse frontalmente as tendências mais ou menos estáticas de contemporização diante da dupla articulação. Em consequência, os esforços esboçados para corrigir as limitações e as inibições do padrão existente de desenvolvimento capitalista foram inócuos. Meras verbalizações, caíam com frequência num irremediável vazio histórico. Se possuíram alguma utilidade prática, essa se manifestou na luta pelo poder de barganha dos círculos empresariais; as guinadas “nacionalistas” ou “entreguistas” dos governos achavam uma via de escoamento ou de estimulação nas composições dos setores privados entre si e com o poder público. Pela segunda vez na história brasileira — a primeira foi por ocasião das lutas pela Independência — as classes dominantes e suas elites econômicas preferem, por acordo tácito, evitar o nó górdio de nossa evolução econômica dentro do capitalismo.”

 

 

“Ligando-se entre si esses traços marcantes da evolução recente do capitalismo competitivo no Brasil, constata-se que nem o mercado, nem o sistema de produção internos suscitaram um movimento econômico que expusesse a dupla articulação a uma crise irreversível, ou, pelo menos, a uma crise decisiva. O crescimento da população, em escala de explosão demográfica, o ritmo da concentração urbana e, especialmente, as tendências mais ou menos firmes de universalização das relações capitalistas de mercado e de produção reduziram de forma considerável os efeitos inibidores da articulação no nível interno. Mas a transformação, embora econômica e sociologicamente significativa, não foi tão acentuada a ponto de forçar a destruição dos últimos baluartes vivos do “complexo econômico colonial” e do “antigo regime”. O crescimento do mercado interno refletiu-se em suas relações com a economia agropecuária, estabelecendo fluxos consideráveis de comercialização voltados para dentro. Isso não impediu que práticas pré-capitalistas ou subcapitalistas se mantivessem quase incólumes ou se fortalecessem. Nem mesmo uma reforma agrária moderada chegou a ser instituída “para valer”. Doutro lado, não surgiu nenhum esforço para corrigir a tradicional depressão dos salários das massas trabalhadoras em geral e dos operários urbanos. Mantinha-se, pois, a compressão do mercado, com os efeitos daí decorrentes — um mercado socialmente comprimido é, pela natureza das coisas, um mercado altamente seletivo, que acompanha a concentração social e racial da renda. O que isso representa, como fonte de inibição direta ou indireta do crescimento de formas capitalistas de produção em uma economia competitiva, é por demais sabido. Se os fatos se manifestam desse modo, isso é sintomático da persistência de uma mentalidade que via o mercado estabelecendo gradações entre “alto” e “baixo” comércio, como se a realidade de massa fosse secundária para seus dinamismos propriamente capitalistas. Em resumo, apesar do desaparecimento dos bloqueios que excluíam o setor arcaico da modernização capitalista, a situação global ainda convertia a economia competitiva num verdadeiro conglomerado de formas de mercado e de produção de desenvolvimento desigual. A pressão que essa economia, como um todo, podia fazer para libertar-se das limitações e das inibições que interferiam negativamente sobre suas potencialidades especificamente capitalistas de equilíbrio, de reorganização e de crescimento era ainda muito baixa. Na verdade, continuava a prevalecer a extrema valorização econômica de diferentes idades coetâneas e de formas de desenvolvimento desiguais, como expediente de acumulação originária de capital ou de intensificação da expropriação capitalista do trabalho.”

 

 

“O movimento global da transformação capitalista, sob as peripécias do capitalismo competitivo dependente, precisa, pois, ser analisado sociologicamente com extremo cuidado. Todos os processos básicos do desenvolvimento capitalista nas sociedades centrais se repetem (ou, seria melhor, se reproduzem, já que as condições econômicas, sociais e políticas são diferentes). As consequências desses processos, nos níveis estrutural, funcional e histórico, no entanto, são bem diversas. A existência de uma alta burguesia, solidamente implantada numa economia capitalista competitiva bastante diferenciada e integrada; a formação de uma burguesia suficientemente numerosa para saturar os quadros de comando de tal economia e suficientemente forte para não se ver suprimida, economicamente, ou deslocada, politicamente, pela associação dependente; e o aparecimento de uma pequena-burguesia cada vez mais volumosa e agressiva (em termos de competição por riqueza, prestígio e poder), pelo menos nas metrópoles e nas grandes cidades — eis uma realidade humana que se torna chocante quando se considera a performance do desenvolvimento econômico sob o capitalismo competitivo dependente. Como foi possível que ele gerasse toda essa estrutura social e toda essa engrenagem, sem gerar, concomitantemente, fontes históricas de correção ou neutralização das inibições inerentes ao padrão de desenvolvimento capitalista dependente, ou o espaço econômico que seria necessário para que essas mesmas classes tivessem outra atuação histórica? A resposta já foi dada anteriormente. A dupla articulação impõe a conciliação e a harmonização de interesses díspares (tanto em termos de acomodação de setores econômicos internos quanto em termos de acomodação da economia capitalista dependente às economias centrais); e, pior que isso, acarreta um estado de conciliação permanente de tais interesses entre si. Forma-se, assim, um bloqueio que não pode ser superado e que, do ponto de vista da transformação capitalista, torna o agente econômico da economia dependente demasiado impotente para enfrentar as exigências da situação de dependência. Ele pode, sem dúvida, realizar as revoluções econômicas, que são intrínsecas às várias transformações capitalistas. O que ele não pode é levar qualquer revolução econômica ao ponto de ruptura com o próprio padrão de desenvolvimento capitalista dependente. Assim, mantida a dupla articulação, a alta burguesia, a burguesia e a pequena-burguesia “fazem história”. Mas fazem uma história de circuito fechado ou, em outras palavras, a história que começa e termina no capitalismo competitivo dependente. Este não pode romper consigo mesmo. Como a dominação burguesa, sob sua vigência, não pode romper com ele, a economia capitalista competitiva da periferia fica condenada a dar novos saltos através de impulsos que virão de fora, dos dinamismos das economias capitalistas centrais.”

 

 

“No que concerne à periferia, a transferência do padrão de desenvolvimento econômico inerente ao capitalismo monopolista constituía um processo de muito maior complexidade e de muito maior dificuldade que as anteriores eclosões do mercado capitalista especificamente moderno e da economia capitalista competitiva em sociedades recém-egressas de situações coloniais ou neocoloniais. A esse respeito, é preciso atentar para os requisitos desse padrão de desenvolvimento econômico, que exige índices relativamente altos: de concentração demográfica, não só em cidades-chave mas em um vasto mundo urbano-comercial e urbano-industrial; de renda per capita, pelo menos da população incorporada ao mercado de trabalho e, em especial, dos estratos médios e altos das classes dominantes; de padrão de vida, pelo menos nesses setores da população; de diferenciação, integração em escala nacional e de densidade econômica do mercado interno; de capital incorporado ou incorporável ao mercado financeiro, para dar maior flexibilidade e intensidade ao crescimento do crédito ao consumo e à produção; modernização tecnológica realizada e em potencial; de estabilidade política e de controle efetivo do poder do Estado pela burguesia nativa etc.: Tais requisitos fizeram com que poucas nações da periferia pudessem absorver o padrão de desenvolvimento econômico inerente ao capitalismo monopolista através de um simples desdobramento de fronteiras econômicas, culturais e políticas. Imediatamente antes e depois da Primeira Guerra Mundial, apenas o Canadá, a Austrália e a África do Sul dispunham de condições internas que conferiam viabilidade a uma transferência global (embora paulatina) desse padrão de desenvolvimento, por meio dos processos normais de conquista econômica. Quanto ao resto da periferia, a única estratégia generalizada viável consistia na penetração segmentada, como técnica de ocupação do meio, de alocação de recursos materiais e humanos, ou de controle econômico. Foi através dessa técnica que as grandes corporações se instalaram e expandiram nessa imensa parte da periferia, assumindo o controle parcial mas em intensidade da exploração e da comercialização internacional de matérias-primas, da produção industrial para o mercado interno, do comércio interno, das atividades financeiras etc. Para atingir os seus objetivos comerciais, financeiros ou políticos elas não precisavam interferir, extensa e profundamente, na estrutura colonial, neocolonial ou competitiva das economias hospedeiras; ao contrário, essas estruturas lhes eram altamente vantajosas, já que economias desse tipo não dispunham mecanismos econômicos reativos de autodefesa. A incorporação, por sua vez, não se fazia à economia capitalista central, mas ao império econômico das grandes corporações envolvidas. Isso tinha as suas vantagens políticas e diplomáticas, já que as nações hegemônicas não precisavam arcar com os ônus decorrentes de semelhante técnica de “expansão econômica”, embora servissem como seu polo de sustentação econômica, cultural e política e monopolizassem as vantagens dela decorrentes.

Vários fatores econômicos concorreram para alterar essa situação, em seguida à crise de 1929, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. As próprias transformações recentes da economia, da estrutura urbana e da tecnologia das sociedades hegemônicas engendraram formas ultradestrutivas de utilização das matérias-primas da periferia, as quais converteram, em maior ou menor grau, as nações periféricas em fator de equilíbrio e de crescimento balanceado das economias centrais. Em consequência, ocorreu um deslocamento econômico das “fronteiras naturais” daquelas sociedades: as nações periféricas, como fonte de matérias-primas essenciais ao desenvolvimento econômico sob o capitalismo monopolista, viram-se, extensa e profundamente, incorporadas à estrutura, ao funcionamento e ao crescimento das economias centrais como um todo. Daí resultou uma forma de incorporação devastadora da periferia às nações hegemônicas e centrais, que não encontra paralelos nem na história colonial e neocolonial do mundo moderno, nem na história do capitalismo competitivo. Doutro lado, em parte por causa desse processo, em parte por causa de seu próprio crescimento demográfico e econômico, a periferia se alterou o suficiente, depois da Primeira Guerra Mundial, para tornar-se um mercado atrativo e uma área de investimentos promissores. Tudo isso contribuiu para modificar substancialmente a relação das grandes corporações com as economias periféricas. Aquelas passaram a competir fortemente entre si pelo controle da expansão induzida destas economias, gerando o que se poderia descrever, com propriedade, como a segunda partilha do mundo.”

 

 

O setor estatal, apesar de sua enorme importância relativa na estrutura e nos dinamismos da economia, não serviu de contrapeso às pressões privatistas internas e externas, de orientação ultraconservadora e “puramente racional” (isto é, extranacionalista). Ele próprio iria absorver, nos níveis organizatório, tecnológico e político, o “modelo” da grande corporação capitalista, convertendo-se, com grande rapidez e flexibilidade, na espinha dorsal da adaptação do espaço econômico e político interno aos requisitos estruturais e dinâmicos do capitalismo monopolista. Nesse sentido, se se pode falar nisso, ele é representativo de um “capitalismo de Estado” medularmente identificado com o fortalecimento da iniciativa privada e que pretende servir de elo ao florescimento das grandes corporações privadas (independentemente das origens de seus capitais e do seu impacto sobre a recomposição da dominação burguesa) e do capitalismo monopolista no Brasil (independentemente das eventuais “crises de soberania” decorrentes). Na verdade, a capacidade do Estado de atuar como esteio de uma maior ou menor identificação do capitalismo com alvos coletivos e nacionalistas constitui uma função do grau de identificação das classes possuidoras e de suas elites econômicas, militares e políticas com alvos dessa espécie. Apesar do apregoado “nacionalismo” dos industrialistas e das classes médias, eram pouco expressivos e influentes os círculos de homens de ação que defendiam objetivos puramente nacionais ou nacionalistas. O grosso das classes possuidoras e de suas elites econômicas, militares e políticas, já sob o Estado Novo e nas lutas contra o último governo de Vargas, via o “capitalismo de Estado” como instrumental ou funcional apenas para os interesses privados (nacionais e estrangeiros). Ao lograr o controle completo da máquina estatal, colocaram-na a serviço da revolução econômica requerida pela “captação da poupança externa” e pela “internacionalização” da economia brasileira, sob o capitalismo monopolista. Essa experiência histórica comprova que o Estado não tem nem pode ter, em si e por si mesmo, um poder real e uma vocação inflexível para o nacionalismo econômico puro. Ele reflete, historicamente, tanto no plano econômico quanto no plano militar e político, os interesses sociais e as orientações econômicas ou políticas das classes que o constituem e o controlam. O Estado nacional brasileiro sucumbiu aos interesses de classe que ele representa. O “capitalismo de Estado”, que ele fomentou, cingiu-se às funções que a intervenção econômica e política estatal deveria preencher para que a irrupção do capitalismo monopolista se tornasse viável e irreversível.”

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