segunda-feira, 1 de abril de 2024

Tempos líquidos (Parte II), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-002-9

Tradução: Carlos Alberto Medeiros

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Opinião: ★★★★☆

Páginas: 120

Sinopse: Ver Parte I



“A primeira (transformação moderna) foi, para usar a terminologia de Castel, a “sobrevalorização” (survalorisation)4 dos indivíduos libertados das restrições impostas pela densa rede de vínculos sociais. Mas uma segunda mudança ocorreu logo em seguida: a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes desses indivíduos, privados da proteção que lhes era oferecida trivialmente no passado por aquela densa rede de vínculos sociais.

Na primeira transformação, os seres humanos, individualmente, viram revelar-se diante de si espaços excitante e sedutoramente amplos, onde as artes recém-descobertas da autoconstituição e do autoaperfeiçoamento poderiam ser experimentadas e praticadas. Mas a segunda transformação impediu a maioria dos indivíduos de entrarem naquele território atraente. Ser um indivíduo de jure (por decreto ou graças ao sal da culpa pessoal sendo esfregado nas feridas deixadas pela impotência socialmente induzida) não garantia de maneira alguma a individualidade de facto, e muitos careciam dos recursos para empregar os direitos ligados à primeira na luta pela segunda.5 Medo de inadequação é o nome da aflição resultante. Para muitos indivíduos por decreto, se não para todos, a inadequação era uma dura realidade, não uma premonição sombria — mas o medo da inadequação se tornou uma doença universal, ou quase. Quer a realidade genuína da inadequação já tivesse sido vivenciada ou, por sorte, mantida até então à distância, seu espectro iria assombrar a sociedade inteira o tempo todo.

Desde o começo, o Estado moderno foi, portanto, confrontado com a tarefa assustadora de administrar o medo. Precisava tecer uma rede de proteção a partir do zero a fim de substituir a antiga, deixada de lado pela revolução moderna, e prosseguir reparando-a, à medida que a modernização contínua promovida pelo Estado continuava a fragilizá-la e a esticá-la além de sua capacidade. Ao contrário da opinião já amplamente aceita, é a proteção (o seguro coletivo contra o infortúnio individual), e não a redistribuição de riqueza, que está no cerne do “Estado social” a que o desenvolvimento do Estado moderno inflexivelmente conduziu. Para pessoas privadas de capital econômico, cultural ou social (todos os ativos, de fato, exceto a capacidade de trabalho, que cada um não poderia empregar por si mesmo), “a proteção pode ser coletiva ou nenhuma”.6

Diferentemente das redes de proteção social do passado pré-moderno, as redes concebidas e administradas pelo Estado foram construídas deliberadamente e de acordo com um plano, ou evoluíram por impulso próprio a partir de outros empreendimentos de construção em larga escala característicos da modernidade em sua fase “sólida” As instituições e dispositivos previdenciários (por vezes chamados de “salários sociais”), os serviços de saúde, escolares e habitacionais dirigidos ou apoiados pelo Estado, assim como as leis de trabalho nas fábricas que estabeleciam direitos e obrigações de todas as partes nos contratos de compra e venda de mão de obra, ao mesmo tempo em que protegiam o bem-estar e os direitos dos empregados, são exemplos da primeira categoria. O modelo mais importante dessa foi a solidariedade interna da fábrica, sindical e ocupacional, que fincou raízes e floresceu “naturalmente” no ambiente relativamente estável da “fábrica fordista”, o epítome do ambiente sólido-moderno em que os “carentes de outro capital” se fixavam.

Na fábrica “fordista”, o compromisso com o lado oposto nas relações capital-trabalho era recíproco e de longo prazo, tornando ambos os lados mutuamente dependentes — mas ao mesmo tempo habilitando-os a pensar e planejar para o futuro, influenciá-lo e investir nele. A “fábrica fordista” foi, por essa razão, um lugar de conflito amargo, que explodia ocasionalmente em uma hostilidade aberta (já que a perspectiva de compromisso a longo prazo e a dependência mútua de todas as partes tornavam o confronto direto um investimento razoável e um sacrifício compensador), que ferveu e se inflamou, ainda que isso ficasse oculto. E, no entanto, o mesmo tipo de fábrica era também um abrigo seguro para se confiar no futuro, e portanto para a negociação, o compromisso e a busca de um modo consensual de convivência. Com seus percursos de carreira claramente definidos, suas rotinas cansativas mas tranquilizadoramente estáveis, o ritmo lento de mudança na composição das equipes de trabalho, a enorme utilidade das habilidades aprendidas, significando a atribuição de grande valor à experiência de trabalho acumulada, era possível manter os perigos do mercado de trabalho à distância, a incerteza podia ser suavizada, se não inteiramente eliminada, e os medos podiam ser expelidos para o domínio marginal dos “golpes do destino” e dos “acidentes fatais”, em vez de saturarem o curso da vida diária. Acima de tudo, os muitos que eram desprovidos de capital, exceto por sua capacidade de trabalhar para outros, podiam contar com a coletividade. A solidariedade transformava sua capacidade de trabalho num capital substituto — e um tipo de capital do qual se esperava, não sem razão, que pudesse contrabalançar o poder combinado de todos os outros.

Reconhecida e admiravelmente, T.H. Marshall tentou, pouco depois de o “Estado do bem-estar social” britânico ter se estabelecido por meio de uma legislação abrangente votada no Parlamento, reconstruir a lógica que conduziu o gradual desenvolvimento do significado dos direitos individuais. Segundo seu relato,7 o longo processo começou com o sonho da segurança pessoal, seguido por uma extensa luta contra o poder arbitrário de reis e príncipes. O que para estes era o direito divino de fazer e desfazer regras à sua vontade, e portanto, em última instância, seguir seus próprios caprichos e extravagâncias, significava para seus súditos uma existência à mercê da benevolência real, não muito diferente de um destino errático: uma vida de incerteza contínua e incurável, que dependia das formas misteriosas com que mudavam os benefícios concedidos pelo soberano. A graça do rei ou rainha era difícil de obter e mais ainda de manter; era facilmente retirada e impossível de garantir para sempre. Tal incerteza redundava no humilhante sentimento de impotência do povo, o qual não pôde ser mudado até que a conduta dos soberanos reais se tornasse previsível mediante a sujeição a normas jurídicas que os próprios soberanos não tinham permissão e/ou não eram capazes de alterar nem suspender por vontade própria, sem o consentimento dos súditos em questão. Em outras palavras, a segurança pessoal só pôde ser obtida com a introdução de normas impostas a todos os participantes do jogo. A universalidade das normas não transformaria todo mundo em vencedor. Tal como antes, haveria jogadores com e sem sorte, perdedores e vencedores. Mas pelo menos as regras do jogo se tornariam explícitas e possíveis de aprender, e não seriam mudadas por capricho em pleno desenrolar da partida. E os vencedores não temeriam o olhar invejoso do rei, já que os frutos de sua vitória de fato lhes pertenceriam para que deles desfrutassem eternamente: tornar-se-iam sua propriedade inalienável.

Podemos afirmar que a luta pelos direitos pessoais foi estimulada pelo desejo dos afortunados, ou dos que esperavam ganhar da próxima vez, de manterem as dádivas da boa sorte sem a necessidade de um esforço custoso, incômodo e, pior de tudo, duvidoso e eternamente inconcluso de cair nas graças do soberano e manter seus favores.

A demanda por direitos políticos, ou seja, por desempenhar um papel significativo na elaboração das leis, foi, segundo Marshall, o ponto seguinte da agenda, o passo lógico a ser dado quando os direitos pessoais já tinham sido obtidos e era preciso defendê-los. No entanto, pode-se concluir, do que acabou de ser dito, que os dois conjuntos de direitos, pessoal e político, só puderam ser transformados em objetos de luta, obtidos e tornados seguros simultaneamente. Dificilmente seriam alcançados e usufruídos em separado. Parece haver entre ambos uma dependência circular, uma verdadeira relação do tipo “ovo e galinha”. A segurança das pessoas e a proteção de suas propriedades são condições indispensáveis para a capacidade de lutar efetivamente pelo direito à participação política, mas não podem se estabelecer de forma definitiva nem serem adotadas com confiança, a menos que a forma das leis impostas a todos tenha se tornado dependente de seus beneficiários.”

4. Castel, L’insécurité sociale, p.22.

5. Para uma discussão mais ampla, ver, de minha autoria, Individualized Society, Polity, 2002.

6. Ibid., p.46.

7. Ver T.H. Marshall, Citizenship and Social Class, and Other Essays. Cambridge University Press, 1950.

 

 

“Foi a segunda solução que inspirou o projeto de Estado do bem-estar social de lorde Beveridge, a encarnação mais abrangente da ideia de T.H. Marshall de direitos sociais — o terceiro elemento na cadeia de direitos, sem o qual o projeto democrático tende a se interromper antes da conclusão. “Um vigoroso programa de bem-estar social”, como d’Arcais resume seu argumento mais de meio século depois de Beveridge, “deve ser parte integrante, e constitucionalmente protegida, de todo projeto democrático.” Sem direitos políticos, as pessoas não podem ter confiança em seus direitos pessoais; mas sem direitos sociais, os direitos políticos continuarão sendo um sonho inatingível, uma ficção inútil ou uma piada cruel para grande parte daqueles a quem eles foram concedidos pela letra da lei. Se os direitos sociais não forem assegurados, os pobres e indolentes não poderão exercer os direitos políticos que formalmente possuem. E, assim, os pobres terão apenas as garantias que o governo julgue necessário conceder-lhes, e que sejam aceitáveis para aqueles dotados da verdadeira musculatura política para ganhar e se manter no poder. Enquanto permanecerem desprovidos de recursos, os pobres podem esperar no máximo serem recebedores de transferências, não sujeitos de direitos.

Lorde Beveridge estava certo em acreditar que essa visão do seguro abrangente, coletivamente endossado para todos, era a consequência inevitável da ideia liberal, assim como condição indispensável para uma democracia liberal plena. A declaração de guerra ao medo de Franklin Delano Roosevelt baseou-se num pressuposto semelhante.

A liberdade de escolha é acompanhada de imensos e incontáveis riscos de fracasso. Muitas pessoas podem considerá-los insustentáveis, descobrindo ou suspeitando que eles possam exceder sua capacidade pessoal de enfrentá-los. Para a maior parte das pessoas, a liberdade de escolha continuará sendo um espectro impalpável e um sonho infundado, a menos que o medo da derrota seja mitigado por uma política de seguro lançada em nome da comunidade, na qual possam confiar e com a qual possam contar em caso de infortúnio. Enquanto continuar sendo um espectro, a dor da desesperança será superada pela humilhação do infortúnio; a capacidade de enfrentar os desafios da vida, diariamente testada, é afinal a própria oficina em que a autoconfiança é forjada ou fundida.

Sem um seguro endossado coletivamente, os pobres e indolentes (e, de modo mais geral, os fracos que se equilibram à beira da exclusão) não têm estímulo para o engajamento político — tampouco para a participação no jogo democrático das eleições. É improvável que algum tipo de salvação venha de um Estado político que não é, e se recusa a ser, um Estado social também. Sem direitos sociais para todos, um grande — e provavelmente crescente — número de pessoas irá considerar seus direitos políticos inúteis e indignos de atenção. Se os direitos políticos são necessários para se estabelecerem os direitos sociais, os direitos sociais são indispensáveis para manter os direitos políticos em operação. Os dois tipos de direitos precisam um do outro para sobreviver; essa sobrevivência só pode ser sua realização conjunta.”

 

 

“Os medos especificamente modernos nasceram na primeira rodada da desregulamentação-com-individualização, no momento em que os vínculos inter-humanos de parentesco e vizinhança, estreitamente atados por laços comunitários ou empresariais, aparentemente eternos, mas de qualquer modo sobrevivendo desde tempos imemoriais, tinham sido afrouxados ou rompidos. O modo sólido-moderno de administração do medo tendia a substituir os vínculos “naturais” irreparavelmente danificados por seus equivalentes artificiais na forma de associações, sindicatos e coletividades de tempo parcial, embora quase permanentes, unificadas por interesses compartilhados e rotinas diárias. A solidariedade estava para triunfar sobre a pertença como o principal escudo contra um destino cada vez mais perigoso.

A desintegração da solidariedade significou o fim da maneira sólido-moderna de administrar o medo. Era chegada a vez de as proteções modernas, artificiais e administradas serem afrouxadas, desmontadas ou removidas. A Europa, a primeira região do planeta a passar pela retificação moderna e a percorrer todo o espectro de suas sequelas, está agora atravessando, de modo muito semelhante aos Estados Unidos, uma “desregulamentação-com-individualização do tipo 2” — embora desta vez não o faça por escolha própria, mas sucumbindo à pressão de forças globais que não controla mais nem espera refrear.

Essa segunda desregulamentação não foi seguida, contudo, de novas formas sociais de administração do medo. A tarefa de enfrentar os temores decorrentes das novas incertezas tem sido, da mesma forma que os próprios medos, desregulamentada e “terceirizada”, ou seja, deixada aos esforços e iniciativas locais, e em grande parte privatizada — transferida, em larga medida, para a esfera da “política de vida”, ou seja, deixada amplamente aos cuidados, engenhosidade e astúcia de indivíduos, assim como aos mercados, que não aceitam e eficazmente rejeitam todas as formas de interferência comunal (política), para não falar de controle.

Uma vez que a competição substitui a solidariedade, os indivíduos se veem abandonados aos seus próprios recursos — lamentavelmente escassos e evidentemente inadequados. A dilapidação e decomposição dos vínculos coletivos fizeram deles, sem pedir seu consentimento, indivíduos de direito, embora o que aprendam nas atividades de suas vidas seja que verdadeiramente tudo no atual estado de coisas milita contra sua ascensão ao modelo postulado de indivíduos de facto. Uma brecha ampla (e, ao que podemos ver, crescente) separa a quantidade e a qualidade dos recursos que seriam necessários para a produção efetiva da segurança e da liberdade em relação ao medo, do tipo faça-você-mesmo, mas ainda assim confiáveis e fidedignas, da soma total das matérias-primas, ferramentas e habilidades que a maioria dos indivíduos pode razoavelmente esperar vir a adquirir e manter.”

 

 

“A irrevogabilidade da exclusão é uma consequência direta, embora imprevista, da decomposição do Estado social — como uma rede de instituições estabelecidas, mas talvez mais significativamente como um ideal e um projeto segundo os quais as realidades são avaliadas e as ações, estimuladas. A degradação do ideal e o definhamento e declínio do projeto pressagiam, afinal, o desaparecimento das oportunidades de redenção e a retirada do direito de apelação, e assim também a gradual dissipação da esperança e a redução da vontade de resistir. Em vez de ser a condição de estar “desempregado” (termo que implica um afastamento da norma que é “estar empregado”, uma aflição temporária que pode e deve ser curada), estar sem emprego parece cada vez mais um estado de “redundância” — ser rejeitado, rotulado de supérfluo, inútil, não empregável e destinado a permanecer “economicamente inativo”. Estar sem emprego implica ser descartável, talvez até ser descartado de uma vez por todas, destinado ao lixo do “progresso econômico” — essa mudança que se reduz, em última instância, a fazer o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos, porém como uma força de trabalho mais reduzida e com “custos de mão de obra” menores que antes.

Apenas uma linha tênue separa hoje os desempregados, e especialmente os que estão nessa condição há muito tempo, de uma queda no buraco negro da “subclasse”: homens e mulheres que não se encaixam em nenhuma divisão social legítima, indivíduos deixados fora das classes e que não são portadores de nenhuma das funções reconhecidas, aprovadas, úteis e indispensáveis que os membros “normais” da sociedade executam. Pessoas que nada acrescentam à vida da sociedade, a não ser o que esta poderia fazer muito bem sem elas e de fato ganharia por se livrar delas.

Não menos tênue é a linha que separa os “excedentes” dos criminosos: a “subclasse” e os “criminosos” são apenas duas subcategorias de excluídos, “socialmente desajustados” ou até “elementos antissociais”, que se diferenciam entre si mais pela classificação oficial e pelo tratamento que recebem do que por sua própria atitude e conduta. Tal como as pessoas sem emprego, os criminosos (ou seja, aqueles destinados à prisão, acusados e aguardando julgamento, sob supervisão da polícia ou simplesmente com ficha na polícia) não são mais vistos como temporariamente expulsos da vida social normal e destinados a serem “reeducados”, “reabilitados” e “reenviados à comunidade” na primeira oportunidade — mas como permanentemente marginalizados, inadequados para a “reciclagem social” e designados a serem mantidos permanentemente fora, longe da comunidade dos cidadãos cumpridores da lei.”

 

 

“Áreas habitadas são descritas como “urbanas” e chamadas de “cidades” se forem caracterizadas por uma densidade relativamente alta em termos de população, interação e comunicação. Hoje, elas também podem ser os lugares em que inseguranças socialmente concebidas e incubadas são confrontadas de uma forma altamente condensada e, portanto, particularmente tangível. Também é nos lugares ditos “urbanos” que a elevada densidade da interação humana coincidiu com a tendência de o medo nascido da insegurança buscar e encontrar escoadouros e objetos sobre o qual se possa descarregar — embora essa tendência nem sempre tenha sido a característica distintiva desses lugares.

Como assinala Nan Ellin, uma das pesquisadoras mais afiadas e uma das analistas mais argutas das tendências urbanas contemporâneas, proteger-se do perigo era “um dos principais incentivos à construção de cidades cujas divisas eram muitas vezes definidas por amplas muralhas ou cercas, das antigas aldeias da Mesopotâmia às cidades medievais e aos assentamentos dos nativos americanos”.1 Muralhas, fossos e paliçadas assinalavam a divisa entre “nós” e “eles”, ordem e selvageria, paz e guerra: inimigos eram aqueles deixados do outro lado da cerca e que não tinham permissão de atravessá-la. “De lugar relativamente seguro”, contudo, a cidade tem sido associada, principalmente nos últimos cento e poucos anos, “mais ao perigo que à proteção”.

Hoje, numa curiosa mudança de seu papel histórico e em desafio às intenções originais de seus construtores e às expectativas de seus moradores, nossas cidades se transformam rapidamente de abrigos contra o perigo em principal fonte desse mesmo perigo. Diken e Laustsen chegam a sugerir que o vínculo milenar “entre civilização e barbárie está invertido. A vida nas cidades se transforma num estado da natureza caracterizado pelo domínio do terror, acompanhado pelo medo onipresente.”2

Podemos dizer que agora as fontes do perigo se mudaram quase totalmente para áreas urbanas e lá se estabeleceram. Amigos — mas também inimigos, e acima de tudo os esquivos e misteriosos estrangeiros que vagueiam ameaçadoramente entre os dois extremos — agora se misturam e caminham lado a lado nas ruas das cidades. A guerra contra a insegurança, e particularmente contra os perigos e os riscos à segurança pessoal, agora é travada dentro da cidade, onde se estabelecem os campos de batalha urbanos e se traçam as linhas de frente. Trincheiras fortemente armadas (acessos intransponíveis) e bunkers (prédios ou complexos fortificados e rigorosamente vigiados) destinados a separar, manter a distância e impedir a entrada de estranhos estão se tornando rapidamente um dos aspectos mais visíveis das cidades contemporâneas — embora assumam muitas formas, e ainda que seus idealizadores façam o possível para misturar suas criações à paisagem da cidade, “normalizando” desse modo o estado de emergência em que seus moradores, viciados em proteção, mas sempre pouco seguros em relação a ela, vivem seu dia a dia.

“Quanto mais nos afastamos de nossa vizinhança imediata, mais contamos com a vigilância daquele ambiente... Os lares de muitas áreas urbanas de todo o mundo agora existem para proteger seus habitantes, não para integrar as pessoas com suas comunidades”, observam Gumpert e Drucker.3 Separar e manter distância se tornam a estratégia mais comum na luta urbana atual pela sobrevivência. O continuum ao longo do qual se assinalam os resultados dessa luta se estende entre os polos dos guetos urbanos voluntários e involuntários. Os moradores sem meios, e por isso vistos pelos outros como ameaças potenciais à sua segurança, tendem a ser forçados a se afastar das partes mais benignas e agradáveis da cidade e amontoados em distritos separados, semelhantes a guetos. Os moradores com recursos compram casas em áreas separadas por eles escolhidas, também parecidas com guetos, e impedem todos os outros de se fixarem nelas. Além disso, fazem o possível para desligar o mundo onde vivem daqueles dos demais habitantes das cidades. Cada vez mais seus guetos voluntários se transformam em guarnições ou postos avançados da extraterritorialidade.”

1. Nan Ellin, “Fear and city building”. Hedgehog Review, 5/3 (outono de 2003), p.43-61.

2. B. Diken e C. Laustsen, “Zones of indistinction: security, terror and bare life”. Space and Culture, 5 (2002), p.290-307.

3. G. Gumpert e S. Drucker, “The mediated home in a global village”. Communication Research, 4 (1996), p.422-38.

 

 

“Resumindo uma longa história: as cidades se tornaram depósitos sanitários de problemas concebidos e gerados globalmente. Os moradores das cidades e seus representantes eleitos tendem a se confrontar com uma tarefa que nem pela força da imaginação poderiam realizar: a de encontrar soluções locais para problemas e dilemas concebidos globalmente.

Assim, permitam-me repetir, surge o paradoxo de uma política cada vez mais local num mundo progressivamente modelado e remodelado por processos globais. Como observou Castells, a marca cada vez mais conspícua de nossa época é a intensa (poderíamos dizer: compulsiva e crescentemente obsessiva) “produção de significado e identidade: meu vizinho, minha comunidade, minha cidade, minha escola, minha árvore, meu rio, minha praia, minha capela, minha paz, meu meio ambiente”.14 “Indefesas diante do turbilhão global, as pessoas se aferram a si mesmas.” E deixem-me observar que, quanto mais “se aferram a si mesmas”, mais “indefesas diante do turbilhão global” elas tendem a ficar, e portanto menos capazes de decidir, que dirá afirmar, os significados e as identidades locais, que aparentemente são seus — para grande satisfação dos operadores globais, que não têm motivo para temer os indefesos.”

14. Manuel Castells, The Power of Identity, Blackwell, 1997, p.25,61.

 

 

“Digitei a palavra “utopia” há pouco em meu computador e o buscador Google apresentou 4.400.000 websites {provavelmente terá acrescentado muitos outros quando você estiver lendo estas palavras) — um número impressionante mesmo pelos padrões, notoriamente excessivos, da internet, e dificilmente um sintoma de um cadáver em decomposição ou mesmo de um corpo em convulsões terminais. (...)

Não vou fingir que percorri todos os 4.400.000 sites {a intenção de fazê-lo talvez pudesse ser relacionada entre os mais utópicos dos projetos utópicos), mas a impressão que tive depois de ler uma amostra aleatória estatisticamente razoável é de que o termo “utopia” foi apropriado principalmente por empresas de viagens, cosméticos e decoração de interiores, assim como por firmas de moda. Os sites têm uma coisa em comum: todos oferecem serviços individuais a quem procura a satisfação individual e a fuga individual aos desconfortas sofridos individualmente.

Outra impressão que tive: na rara ocasião em que aparece a palavra “progresso” nas páginas desses sites comerciais, ela não se refere mais a um impulso à frente. Em vez de uma corrida atrás de um alvo que corre à nossa frente, ela implica uma ameaça que torna imperativa uma fuga bem-sucedida; inspira o impulso de fugir de um desastre que bafeja em seu pescoço...

“Utopia” denotava um objetivo distante cobiçado e sonhado ao qual o progresso deveria, poderia e iria finalmente conduzir os que procuravam um mundo que atendesse melhor as necessidades humanas. Nos sonhos contemporâneos, contudo, a imagem do “progresso” parece ter saído do discurso do aperfeiçoamento compartilhado para o da sobrevivência individual. O progresso não é mais imaginado no contexto de um impulso para uma arrancada à frente, mas em conexão com um esforço desesperado para permanecer na corrida. A consciência do progresso toma a pessoa cautelosa e demanda vigilância: ao ouvirmos falar da “marcha do tempo”, tendemos a nos preocupar em sermos deixados para trás, em cairmos de um veículo em rápida aceleração, em não encontrarmos um lugar na próxima rodada da “dança das cadeiras”. (...) O tempo flui, e o truque é se manter no ritmo das ondas. Se você não quer afundar, continue surfando, e isso significa mudar o guarda-roupa, a mobília, o papel de parede, a aparência, os hábitos — em suma, você mesmo — tão frequentemente quanto consiga.

Não preciso acrescentar, pois isso deveria estar óbvio, que essa nova ênfase no descarte das coisas — em abandoná-las, se livrar delas – e não na sua aquisição se encaixa bem na lógica de nossa economia orientada pelo consumo. As pessoas apegadas às roupas, computadores, celulares e cosméticos de ontem representariam um desastre para uma economia cuja principal preocupação, e condição sine qua non para sua existência, é a rapidez com que os produtos vendidos e comprados são jogados fora. E nessa economia o despejo de lixo é a indústria de vanguarda.”

 

 

“Cada vez mais, fugir se torna o nome do jogo mais famoso do momento. Semanticamente, a fuga é o exato oposto da utopia, mas psicologicamente ela é, nas atuais circunstâncias, seu único substituto disponível: pode-se dizer sua nova versão, atualizada e no estado da arte, remodelada sob medida para nossa desregulamentada e individualizada sociedade de consumidores. Você já não espera seriamente fazer do mundo um lugar melhor para se viver; não consegue sequer tornar realmente seguro aquele melhor lugar do mundo que resolveu construir para si mesmo. A insegurança veio para ficar, não importa o que aconteça. Mais que tudo, “boa sorte” significa manter longe a “má sorte”.”

 

 

“Diferentemente das utopias de outrora, a utopia dos caçadores não oferece um significado para a vida, seja ele autêntico ou fraudulento. Só ajuda a afugentar da mente as questões relativas ao significado da vida. Tendo remodelado o curso da vida numa série interminável de buscas autocentradas — cada episódio vivido tendo como função a introdução ao próximo — ela não dá chance para a reflexão sobre a direção e o sentido disso tudo. Quando (se) essa chance realmente aparece, no momento em que se abandona a vida de caçador, ou se é banido dela, geralmente é muito tarde para que essa reflexão tenha algum impacto sobre a forma como a vida — a própria e a dos outros — é moldada, e portanto muito tarde para se opor ao seu formato atual e disputar efetivamente a sua propriedade.”

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