quinta-feira, 18 de abril de 2024

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica (Parte I), de Florestan Fernandes

Editora: Contracorrente

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-6922-074-9

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Páginas: 432

Sinopse: Como resposta ao golpe de 64 Florestan Fernandes publicou “A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica”. Não demorou para que o livro se tornasse um dos clássicos do pensamento sociológico crítico no país.

Em 2020, ano do centenário do autor, a Editora Contracorrente, em parceria com a Kotter Editorial, inaugura a Coleção Florestan Fernandes com essa antológica obra, que conta com prefácio dos Professores André Botelho e Antonio Brasil Jr., ambos da UFRJ, e um posfácio do Prof. Gabriel Cohn.

A Coleção Florestan Fernandes é coordenada pelo Professor Bernardo Ricupero, da USP, para quem “A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica” é a culminação da obra de Florestan Fernandes e “corresponde a uma espécie de encruzilhada, na qual o sociólogo que foi encontra o publicista revolucionário que se torna. É, portanto, um bom lugar para começar a reedição da obra desse sociólogo comprometido, no sentido mais pleno do termo”.


 

“(Depois da independência) De um lado, como as condições da produção rural destinada à exportação se mantiveram relativamente constantes, a esfera na qual as alterações se aceleraram abrangia os dois aspectos da situação de mercado que foram afetados diretamente pelas consequências econômicas da autonomização política. Esses dois aspectos são: 1) a internalização de fases da comercialização do produto que antes se desenrolavam fora do país ou eram controladas pela administração colonial; 2) as aplicações livres do excedente econômico em bens de consumo que envolviam um novo estilo de estipêndio do status senhorial ou em fins economicamente reprodutivos. Ambos os fatores exerciam influências coincidentes, pois engendravam um mercado interno nuclearmente heteronômico e voltado para fora. Graças à primeira conexão, o núcleo mais ativo da situação de mercado se constituía em ligação e em subordinação aos interesses dos importadores dos “produtos tropicais”; graças à segunda conexão, o segundo elemento ativo da situação de mercado (por sua ordem de importância econômica) se constituía em ligação preponderante com os interesses dos exportadores estrangeiros de bens acabados, que se converteram nos maiores beneficiários das pressões do comércio interno. De qualquer modo, ambas as tendências tiveram o mesmo efeito: confinaram a assimilação de padrões econômicos novos à esfera das atividades comerciais (de exportação e de importação), nas quais desabrocharia o primeiro florescimento do capitalismo em um sentido verdadeiramente moderno e extracolonial. De outro lado, a extensão dos modelos transplantados a outros planos da vida econômica e sua progressiva universalização como fatores de integração da ordem econômica passaram a depender da estrutura da situação de mercado. Qualquer mudança na direção de aumentar as proporções, a intensidade e a eficácia da assimilação dos modelos econômicos fornecidos pelas economias centrais teria de subordinar-se, naturalmente, ao aparecimento e ao fortalecimento de tendências de produção e de consumo suscetíveis de alimentar formas relativamente autônomas de crescimento econômico. Essas tendências apareceram contemporaneamente às fases de instauração da autonomia política. Mas só se consolidaram posteriormente. Suas influências mais precoces se manifestaram em conjunção com as pressões do desenvolvimento urbano sobre a elevação ou a diferenciação do consumo e o estímulo que isso representou tanto para a expansão da lavoura de subsistência ou a criação de gado e a comercialização interna dos mantimentos ou do charque, quanto para a expansão da produção artesanal e manufatureira. Esse processo econômico adicionou mais dois elementos básicos à situação de mercado: 1) a produção agrícola, artesanal ou manufatureira destinada ao consumo interno; 2) a utilização do excedente econômico como fator de dinamização, de diferenciação ou de autonomização da vida econômica.2 Até o presente, os dois elementos apontados jamais chegaram a eliminar os outros três; nem mesmo conseguiram contrabalançar os efeitos estruturais e dinâmicos que eles exercem, como fatores de heteronomia econômica. A razão disso está no fato, mais ou menos patente, de que não surgiu uma situação de mercado nova, independente dos nexos coloniais ou imperialistas, inerentes ao esquema exportação-importação controlado de fora. De um modo ou de outro, tais nexos interferiram e por vezes regularam o aparecimento ou a importância relativa dos dois elementos diretamente vinculados aos dinamismos internos da economia brasileira. A esta parte da exposição, o que interessa é que a estrutura da situação de mercado apontada engendrou processos econômicos que se refletiram, seja quantitativamente, seja qualitativamente, na absorção dos modelos econômicos transplantados e, portanto, no grau e na forma de vigência do capitalismo na sociedade brasileira.

Esse pano de fundo sugere quão emaranhado e desnorteante foi o desencadeamento da “Revolução Burguesa” numa economia colonial, periférica ou dependente. Não existiam as condições e os processos econômicos que davam lastro ao funcionamento dos modelos econômicos transplantados nas economias centrais. Só podiam ser postos em prática, com eficiência e senso de “previsão econômica”, nas ações e relações econômicas nas quais a situação de mercado aqui imperante já reproduzia determinados requisitos institucionais das economias centrais. Isso se deu, de começo, apenas no mais elevado nível da comercialização: nas transações econômicas controladas de fora (nos “negócios” de exportação e de importação); e nas transações econômicas associadas ao desenvolvimento interno do “alto comércio”.

Além disso, como a situação de mercado existente combinava, articuladamente, elementos heteronômicos com elementos autonômicos, boa parte dos modelos econômicos transplantados não tinha por meta criar processos econômicos de desenvolvimento interno análogos aos que eram produzidos pela integração das economias centrais. Ao contrário, suas funções latentes ou manifestas consistiam em manter e em intensificar a incorporação dependente da economia brasileira àquelas economias. Desse prisma, os processos econômicos que podiam ser desencadeados, orientados e organizados através dos modelos econômicos transplantados visavam a acelerar o desenvolvimento econômico interno segundo objetivos que o articulavam, heteronomicamente, aos dinamismos das economias centrais. Daí podia resultar um desenvolvimento paralelo do capitalismo no Brasil. Esse capitalismo não continha, porém, as mesmas características estruturais e funcionais do capitalismo vigente nas nações dominantes. Era um capitalismo de tipo especial, montado sobre uma estrutura de mercado que possuía duas dimensões uma estruturalmente heteronômica; outra com tendências dinâmicas autonômicas ainda em via de integração estrutural. Por causa dessa dupla polarização, a esse capitalismo se poderia aplicar a noção de “capitalismo dependente”.”

2 As alternativas implícitas respondem às diversas situações que se poderiam considerar, em termos setoriais, as quais tomam relevantes as diferenças entre dinamização, diferenciação e autonomização da vida econômica. Também aqui foi omitida a explicitação dos fatores socioculturais que explicariam a relação estrutural e funcional dos dois elementos apontados com a situação de mercado existente.

 

 

“Nas “sociedades nacionais” dependentes, de origem colonial, o capitalismo é introduzido antes da constituição da ordem social competitiva. Ele se defronta com estruturas econômicas, sociais e políticas elaboradas sob o regime colonial, apenas parcial e superficialmente ajustadas aos padrões capitalistas de vida econômica. Na fase de ruptura do regime colonial, tais estruturas alimentam e tornam possível a adaptação aos dinamismos econômicos do mercado mundial, que na realidade desencadeiam e condicionam a transição, e servem de base à gradual formação de uma economia nacional “independente”. A intensidade e os efeitos estruturais ou dinâmicos dessa fase dependem, naturalmente, da herança econômica, cultural e política recebida da época colonial. Na América Latina, em regra, tal fase assumiu o padrão de uma evolução secular, nos países que lograram organizar e expandir, com maior rapidez, um mercado interno relativamente diferenciado e integrado, em bases capitalistas. Isso significa que, num período de tempo que varia de três quartos de século a um século ou mais, nesses países as estruturas econômicas, sociais e políticas, herdadas do mundo colonial, interferiram sobre os dinamismos do mercado mundial, tolhendo ou selecionando os seus efeitos positivos e restringindo o seu impacto construtivo sobre o crescimento econômico interno. A rigor, tais estruturas produziram um resultado útil apenas porque preencheram — onde tal coisa chegou a ocorrer numa escala eficaz — a função histórica de preservar o controle político de decisões econômicas vitais em mãos nacionais.

O Brasil corresponde normalmente a essa regra. Nele, as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade colonial não só moldaram a sociedade nacional subsequente: determinaram, a curto e a largo prazos, as proporções e o alcance dos dinamismos econômicos absorvidos do mercado mundial. Elas se revelaram bastante plásticas em face do que se poderia chamar de reorganização do mercado colonial, adaptando-se rapidamente à dupla polarização dos negócios de exportação e de importação, contrariados economicamente por um centro hegemônico externo, mas dirigidos politicamente a partir de dentro. No entanto, as mesmas estruturas mostraram-se pouco elásticas e por vezes até rígidas na absorção dos dinamismos econômicos que eram centrais para a expansão interna do capitalismo. Nessa esfera, os condicionamentos externos dependiam, para ter êxito a curto e a longo prazos, da rapidez com que ruíssem as estruturas coloniais de vida econômica, social e política. O grau de resistência encontrada pode ser avaliado pela posição que a Inglaterra se viu forçada a tomar no combate à escravidão e ao tráfico, bem como pelos conflitos daí decorrentes. A seleção das influências dinâmicas do mercado mundial seguiu, portanto, uma linha relativamente rígida, em grande parte determinada pelos interesses econômicos da aristocracia agrária. Só numa escala menor e subordinada foram esses interesses compensados pelos interesses econômicos do setor especificamente comercial, ligado aos “negócios de importação”. As consequências limitativas dessa situação, no que se refere à intensidade e ao desenvolvimento interno do capitalismo, podem ser apreciadas facilmente (mesmo sem recurso a comparações com a evolução econômica dos Estados Unidos). Contudo, também é evidente que se resguardaram, assim, principalmente no nível político1, a integridade territorial do país e uma relativa autonomia do seu crescimento econômico interno.

Essas considerações sugerem duas coisas. Primeiro, a ordem social escravocrata e senhorial não se abriu facilmente aos requisitos econômicos, sociais, culturais e jurídico-políticos do capitalismo. Mesmo quando eles se incorporavam aos fundamentos legais daquela ordem, estavam condenados à ineficácia ou a um atendimento parcial e flutuante, de acordo com as conveniências econômicas dos estamentos senhoriais (largamente condicionadas e calibradas pelas estruturas econômicas, sociais e políticas herdadas do mundo colonial). Segundo, a emergência e o desenvolvimento da ordem social competitiva ocorreram paulatinamente, à medida que a desintegração da ordem social escravocrata e senhorial forneceu pontos de partida realmente consistentes para a reorganização das relações de produção e de mercado em bases genuinamente capitalistas. Sob esse aspecto, nem sempre as dificuldades à expansão interna do capitalismo procederam da “resistência à mudança’’ por parte dos estamentos senhoriais. É a própria situação “periférica” e “marginal” das economias capitalistas dependentes origem colonial que explica tal fenômeno, com seus reflexos estruturais e dinâmicos sobre a ordem social competitiva correspondente.”

1 Terreno, aliás, em que a questão era colocada formalmente pela aristocracia agrária, em termos de “soberania nacional”.

 

 

“Na visão de mundo do senhor, o realismo econômico conduzia não a uma percepção secularizada e “racional” da competição, vista em termos do equilíbrio dinâmico do mercado, mas a uma compreensão cataclísmica das forças econômicas. Como a segurança pessoal do agente e o êxito do seu empreendimento se projetavam nessa compreensão, ela acabou engendrando uma forma típica de privatismo econômico. Trata-se da iniciativa privada “moderna” que podia florescer numa sociedade de castas e estamental: ela própria constituía uma objetivação cultural de critérios estamentais de organização do poder e de concepção do mundo. Para o agente econômico privilegiado de uma economia escravista, era natural privilegiar sua posição-chave e utilizá-la como uma armadura contra os riscos conjuráveis. Ao proceder dessa maneira, porém, incorporava a própria condição de agente econômico capitalista numa estrutura social extra e anticapitalista. Convertia a “livre iniciativa” e a “empresa privada” em privilégios estamentais, que deviam ser respeitados e protegidos fora e acima de qualquer racionalidade inerente aos processos econômicos propriamente ditos.

A competição emergia historicamente, portanto, com um aspecto dúplice. Um fator multiplicativo do poder de ação do agente econômico privilegiado; e, ao mesmo tempo, um fator destrutivo para o equilíbrio econômico global da sociedade. Esta teve de suportar todas as manipulações através das quais ela própria era usada para suster e fomentar o tipo descrito de “privatismo econômico”. No fim, medidas cambiais ou alfandegárias e políticas de preços (com referência ao mercado interno, para garantir custos baixos para certas utilidades, e com relação ao mercado externo, para garantir na medida do possível certos níveis de lucro), ou políticas de empréstimos e de taxação do consumo, bem como outros expedientes, tudo desaguava no mesmo rio. A coletividade arcava com os riscos e suportava, por mecanismos diretos e indiretos, a posição privilegiada do agente econômico. Isso indica que a competição não se inseria nas vias socialmente construtivas que relacionaram, nas sociedades capitalistas avançadas, propriedade privada, livre iniciativa e redistribuição da renda e do poder. Ela foi rapidamente redefinida, tanto economicamente quanto social e politicamente, como um fator de distribuição estamental — e portanto fortemente desigual — da renda e do poder. Por essa razão, nos mecanismos apontados ela não engendra transferências estruturais de renda e de poder. A sua função latente não era essa. Ela se convertera no que deveria ser no contexto de uma economia colonial exportadora, de fundamento escravista, e numa economia capitalista dependente em formação: o meio pelo qual a sociedade protegia, através da posição do seu agente econômico privilegiado, a sua única fonte básica de produção e de incremento da riqueza.2

2 É claro que o padrão descrito se aplicava à natureza e às funções da competição com referência a outros agentes econômicos (qualquer que fosse a base de suas operações mercantis: comercial ou manufatureira), pois todos se protegiam, de uma forma ou de outra, a partir de algum privilegiamento estamental. O que ocorria com o setor fundamental repetia-se nos demais.

 

 

Essa elaboração estrutural e dinâmica da competição como força social é fundamental. Ela evidencia como a ordem social escravocrata e senhorial deformou esse processo, vinculando-o, definida e definitivamente, a um contexto ultraconservador e terrivelmente egoísta de absorção das inquietações sociais e das inovações institucionais inevitáveis. Dessa perspectiva, o privatismo dos estamentos intermediários fazia contraponto ao do estamento senhorial. Ele se objetivou socialmente como se os interesses particularistas dos grupos que podiam empolgar a “propriedade privada” e manejar a “livre iniciativa” constituíssem o verdadeiro altar da pátria. Tudo lhes seria “naturalmente” devido. Essa conexão psicocultural da competição só se converteu numa influência socialmente construtiva para a evolução da sociedade nacional no momento em que a decomposição da ordem senhorial atingiu o seu clímax. Então, as inconsistências entre o “status atribuído” e o “status real” dos estamentos intermediários serviram como um fluido que ampliou a fogueira, sem criá-la. Os ressentimentos e frustrações encontraram, por fim, uma válvula de escape, a qual alimentou uma pasmosa mudança de orientação de atitudes e comportamentos. No entanto, atravessando o ponto alto da crise e da euforia que os levou a apoiar, no último entreato, a queda da monarquia e a implantação da República, esses estratos sociais retornaram à rotina precedente: continuaram a apegar-se, agora como “classe média emergente”, à modernização e à democratização como meros expedientes de privilegiamento de seus interesses e do seu destino social. De uma ponta a outra, jamais almejaram sequer a revolução dentro da ordem, o reino do tipo de equidade que é consagrado pela ordem social competitiva, porque sempre se mantiveram medularmente presos ao antigo regime, embora combatendo-o em sua ordenação e na sua superfície. Ficaram entregues a uma obscura missão histórica, de fiadores da perpetuação crônica do “poder conservador” e dos privilégios estamentais mais odiosos, que sobreviveram ao desaparecimento histórico tanto da sociedade colonial quanto da sociedade imperial.”

 

 

Formou-se, assim, uma tensão que afetava o padrão de integração e de equilíbrio da “sociedade nacional”. A ordem social constituída não podia adaptar-se, sem se decompor, destruindo-se, às formas econômicas emergentes, nascidas da incorporação direta ao mercado mundial e da absorção de instituições econômicas, que iriam regular a organização, o funcionamento e o crescimento do mercado interno segundo padrões e princípios universais especificamente capitalistas. No início, a tensão podia ser facilmente diluída e neutralizada, apesar das pressões externas para agravá-la e conduzi-la à eclosão. Uma economia de estrutura colonial é pouco sensível a tais pressões, se estiver amparada sobre um sistema social estável e em formas autocráticas de organização do poder político (naturalmente, “centralizadas para dentro”). Em tais condições, é quase impossível fomentar, por semelhantes meios, uma crise suficientemente profunda para abalar os fundamentos sociais e políticos da ordem estabelecida. No entanto, a aparente segurança, resultante da estabilidade social e do uso rígido do poder, concorre para provocar o que as pressões externas, por si sós, não conseguem: uma espécie de cegueira crônica e obstinada, graças à qual é o timoneiro que acaba levando o barco na direção do abismo. No caso brasileiro, essa regra mostra-se em ação de maneira exemplar. Mesmo preservando-se intocáveis a escravidão e a dominação senhorial, abriam-se vários caminhos que permitiriam adaptar o regime social existente tanto à integração ao mercado mundial quanto à expansão interna do “setor novo” especificamente capitalista e predominantemente urbano-comercial. Esse seria, aliás, o caminho lógico para preparar-se o país para a transição das formas econômicas coloniais para formas econômicas capitalistas. Contudo, os estamentos senhoriais e suas elites ficaram cegos a esse caminho, fascinados pela aparente segurança da ordem escravocrata e senhorial e pelo poder autocrático que ela lhes conferia; assim se explica, sociologicamente, a drástica redução deliberada do âmbito da ação política desses estamentos e de suas elites, que praticamente bloquearam, por causa de suas ambições, estilo de vida e uma ideologia crescentemente inadequada, sua capacidade de decisão e de condução da história. Na verdade, não foram poucos os componentes dos estamentos dominantes (ou presos a por interesses econômicos e lealdade política) que perceberam o sentido real da situação, em todas as correntes do pensamento político. Raramente, porém, mesmo em se tratando de figuras de proa nos partidos e na cena política, suas ideias ou convicções passavam pelo crivo seletivo da “opinião pública”, compactamente determinada pelo consenso ultraconservador dos estamentos dominantes (senhoriais ou não). Isso apenas sucedia em matérias de interesse comum (para esses círculos), mais ou menos pacíficas; e com referência a problemas que impunham, materialmente, um mínimo ele inovações deliberadas, além do mais suscetíveis de controle direto ou indireto eficiente (deixando de ser, portanto, uma fonte de ameaças visível ao equilíbrio da ordem escravocrata e senhorial).

Esse mecanismo global revelou-se útil e eficaz em termos imediatistas e a médio prazo, assegurando aos estamentos dominantes notório êxito político (graças ao qual mantiveram o máximo possível da própria ordem colonial, através da perpetuação da escravidão e da dominação senhorial; e lograram preservar, com a “ordem interna”, a unidade do país, tanto territorial quanto econômica e socialmente). Em termos mais amplos e a largo prazo, porém, o mesmo mecanismo mostrou-se nocivo, pois tomou os estamentos senhoriais e suas elites impotentes para enfrentar e vencer a tormenta, quando ela irrompeu através de pressões internas. Primeiro, a ausência de um esforço, consciente e inteligente, de coordenação e de orientação das forças e das formas econômicas emergentes, deixou a ordem escravocrata e senhorial incapacitada para lutar por sua sobrevivência a largo prazo. Ela não se adaptara, estrutural e dinamicamente, ao controle da nova ordem econômica em formação e expansão no setor urbano, nem segundo seus próprios interesses de fomento do desenvolvimento interno do capitalismo, nem segundo os requisitos econômicos, sociais e políticos de um mercado interno integrado em bases especificamente capitalistas.7 Quando as forças dessa nova ordem econômica emergiam, o processo de sua eclosão e crescimento tomou uma forma espontânea e desordenada, e elas próprias passaram a ser extremamente letais quer para a perpetuação da escravidão, quer para a continuidade da dominação senhorial: elas minavam e destruíam a “velha ordem social”, que não tentou entendê-las, absorvê-las e controlá-las, enquanto seria possível uma composição entre passado e futuro. Segundo, a ausência de um esforço, consciente e inteligente, de coordenação e de orientação das forças e formas econômicas emergentes impediu que o longo período de sobrevivência da ordem escravocrata e senhorial operasse, construtivamente, como um meio de preparação da “economia nacional” para as exigências do futuro, que impunham a plena mercantilização de todos os níveis e fases do sistema econômico “nacional”. Ela engendrou uma espécie de diferenciação adaptativa do comportamento econômico, que permitia ao agente econômico privilegiado da ordem escravocrata e senhorial monopolizar as vantagens simultâneas decorrentes seja da preservação de estruturas econômicas extracapitalistas da produção escravista, seja da eclosão inicial do “setor econômico novo”. Essa bifurcação não poderia manter-se indefinidamente, sem adaptações estruturais e dinâmicas mais profundas. Ela estimulou um “paralelismo do crescimento econômico”, em que tudo correu bem para os estamentos dominantes enquanto os fundamentos escravistas e senhoriais da ordem existente puderam garantir a referida posição monopolizadora. É claro que, desde que essa condição fosse rompida, nada poderia resguardar a ordem escravocrata e senhorial; e os estamentos sociais dominantes se veriam condenados a terminar com as próprias mãos a destruição daquela ordem, para salvarem o privilegiamento de sua situação econômica por “outros meios” (naturalmente sociais e políticos). Foi o que ocorreu quando a “crise do trabalho servil” atingiu a fase aguda, levando consigo a ordem escravocrata e senhorial (mas não o seu substrato social e político; a base oligárquica do poder autocrático dos “ricos” e “privilegiados”).

Até onde se pode avançar, numa interpretação sociológica segura, é legítimo concluir-se que a falta de elasticidade da ordem social escravocrata e senhorial, diante da emergência e da expansão do capitalismo como uma realidade histórica interna, gerou uma acomodação temporária de formas econômicas opostas e exclusivas. Dessa acomodação resultou uma economia “nacional” híbrida, que promovia a coexistência e a interinfluência de formas econômicas variavelmente “arcaicas” e “modernas”, graças à qual o sistema econômico adaptou-se às estruturas e às funções de uma economia capitalista diferenciada, mas periférica e dependente (pois só o capitalismo dependente permite e requer tal combinação do “moderno” com o “arcaico”, uma descolonização mínima, com uma modernização máxima). Sob esse aspecto, a mencionada acomodação tanto pode ser encarada como “historicamente necessária” quanto como “economicamente útil”. Ela estendeu os limites da duração de um sistema pré-capitalista de produção, que excluía parcial ou totalmente a produção agropecuária e extrativa da mercantilização do trabalho, em pleno processo de eclosão e de expansão acelerada de um mercado capitalista interno (e, portanto, de um mercado capitalista de trabalho). Ao mesmo tempo, forneceu ao setor urbano-comercial condições para expandir-se e diferenciar-se, de modo lento mas constante, embora retirando-lhe o impulso de crescimento que poderia nascer da rápida mercantilização das relações de produção no campo e da universalização das relações de mercado em escala nacional. Por fim, organizou um fluxo permanente de renda que favoreceu o incremento e a dinamização do uso do excedente econômico nas duas direções concomitantemente, entrelaçando, por um elo estrutural e dinâmico, a coexistência do “ultramoderno” com o “ultra arcaico”. Esses três desenvolvimentos são fundamentais para o aparecimento do Brasil moderno, qualquer que seja a perspectiva da qual cada um deles, de per si, e todos eles, em conjunto, possam ser avaliados sociologicamente.”

7 Na primeira alternativa, prevaleceria o intuito de aproveitar as oportunidades de uma "economia colonial" (como continuava a ser largamente a economia brasileira) na dinamização acelerada mas dirigida do crescimento econômico interno. Na segunda, teria de imperar (como sucedeu nos Estados Unidos na época da Independência) a ambição de conjugar autonomização política com crescimento capitalista independente.

 

 

Os esforços de modernização mais avançados paravam nas fronteiras do sistema econômico conglomerado, de acomodação, que privilegiava a ordem social escravocrata e senhorial, reafirmando o primado das formas econômicas “arcaicas” na determinação do padrão de equilíbrio dinâmico de todo o sistema econômico. A ordem social escravocrata e senhorial falhava, pois, em várias direções essenciais: l) não adaptava as tendências incipientes de formação de uma economia de mercado capitalista aos requisitos da integração econômica nacional e da autonomização econômica do país através do capitalismo; 2) não adaptava as mesmas tendências no sentido de facilitar e acelerar a transição do antigo mercado, herdado da situação colonial, ao novo mercado de tipo capitalista moderno; 3) não fomentava (ao contrário, inibia ou neutralizava) as tendências à mercantilização universal do trabalho e à livre manifestação das relações de mercado propriamente capitalistas, congelando deliberadamente, em várias áreas, a desagregação do mercado colonial (o que se tornou, naturalmente, um foco de redução e de concentração da mudança econômica, social e política, predominantemente limitada ao comércio que mais interessasse aos “interesses da lavoura” e predominantemente localizada nas cidades de maior vigor econômico).

Por aí se vê, claramente, que a falta de elasticidade da ordem social escravocrata e senhorial, por paradoxal que pareça, engolfou a geração da Independência (e as outras subsequentes) na construção das próprias bases do capitalismo dependente e do beco sem saída que ele representava para o Brasil. Não houve uma passagem do padrão colonial de crescimento econômico para o padrão de desenvolvimento capitalista. Mas uma rotação do crescimento colonial para o neocolonial e, em seguida (e isso com muita rapidez), para o padrão capitalista de crescimento econômico dependente e de subdesenvolvimento (processo similar ao que ocorrera na Europa com vários países, inclusive Espanha e Portugal, e que seria comum na América Latina). Parece que as coisas não poderiam transcorrer de outro modo na cena brasileira e que os ganhos acumulados com a transição do estado colonial para o capitalismo dependente tanto econômica, quanto social e politicamente, foram consideráveis. Entretanto, usar a história como expediente para explicar a limitação das ações humanas não é uma boa regra de método, pois são os homens que criam a história socialmente. O fato de não se querer um destino histórico, para se cair nele da pior forma possível, é algo em si mesmo deveras importante do ponto de vista interpretativo. Ele constitui um índice objetivo do tipo de querer e de vontade sociais que animou o homem como agente histórico, em suas decisões e omissões, positivas ou negativas para a sociedade nacional como um todo (para aquele momento e para a evolução ulterior do país). No caso, parece evidente que o mundo capitalista não era o universo histórico dos estamentos sociais dominantes e que suas elites, por isso mesmo, não enfrentaram o presente nem previram o futuro nessa direção, na escala do capitalismo como aspiração e estilo de vida. Estavam todos totalmente imersos numa laboriosa defesa da própria antítese do ‘’espírito burguês” e da “racionalidade capitalista”, empenhando-se na continuidade da escravidão e da dominação senhorial (e não em sua destruição e superação, tão rapidamente quanto fosse possível). As forças que iriam construir a economia capitalista e sua ordem social competitiva teriam de irromper, portanto, desse solo, mas por sua conta e contra a maré, de modo acanhado, destrutivo e desorientado, como se a verdadeira luta pela descolonização não começasse com o processo de emancipação política, mas quase um século depois.”

 

 

“Usar a história como expediente para explicar a limitação das ações humanas não é uma boa regra de método, pois são os homens que criam a história socialmente.”

 

 

“Tornava-se praticamente impossível universalizar e institucionalizar os mecanismos de mercado modernos em um mundo no qual prevaleciam, lado a lado, essa modalidade de trabalho e a mercantilização segmentária do trabalho livre. O homem que não aprende a estimar o valor do seu trabalho através do mercado também não sabe medir suas necessidades através do mercado. Por conseguinte, a modernização institucional do comércio especialmente intensa no nível dos negócios de exportação e de importação ou no nível do “alto comércio” — e as tendências à depuração de práticas econômicas arcaicas caíam, de fato, num terrível vácuo histórico. O homem, a peça central do drama, não entrava por inteiro no mercado e recusava-se a abrir as comportas que o transformariam, com o tempo, no próprio cerne da vida econômica.

Nesse contexto, os ramos de atividades comerciais, que se inseriam no núcleo específica ou predominantemente capitalista do mercado interno, é que lhe imprimiam suas feições peculiares e uma forte (para não dizer insanável) deformação. Privilegiados tanto econômica e socialmente quanto politicamente, absorveram de modo insensível mas rápido os critérios estamentais da ordem social escravocrata e senhorial. Por isso, o austero homem de negócios, do nascente e próspero “alto comércio” urbano, impunha-se o mesmo código de honra, aspirava aos mesmos ideais e, se não igualava, suplantava o estilo de vida da aristocracia agrária (confundindo, na paisagem social em mudança, os dois mundos mentais, o da “Casa-Grande” e o do “Sobrado”). Seu objetivo supremo deslocava-se, aos poucos, para a conquista de um status senhorial (através da nobilitação ou de alguma espécie consagradora de titulação), que coroasse o “êxito econômico”, sublimando-o e dignificando-o na escala de prestígio e de valores de uma sociedade de castas e estamental. Esse desfecho era quase inevitável, pois o condicionamento resultante da socialização econômica propriamente dita era marginal à ordem social escravocrata e senhorial, não possuindo bastante vitalidade e autonomia para sobrepor-se ao condicionamento mais geral e profundo, produzido pela comunidade de interesses, valores e estilo de vida dos estamentos dominantes. Os que eram mais visível e visceralmente burgueses não foram segregados em um estamento à parte; viram-se aceitos com reserva, de início, e abertamente, logo em seguida, no “alto mundo” em que se fundiram “nobreza” e “fortuna”. Não havia como ser de outra maneira, já que a própria estrutura da ordem social existente fundia, numa mesma sociedade civil, todos os que pertenciam aos estamentos intermediários e altos, o que fazia com que a socialização pela comunidade de interesses e valores se propagasse do estamento senhorial, verdadeiramente hegemônico, aos demais, tomando-os solidários entre si e “dominantes”.”

 

 

Superada a curta fase neocolonial e sob a plena crise que as imperativas medidas emancipacionistas acarretavam, os papéis econômicos centrais deslocaram-se do trabalho escravo para o trabalho livre. Apesar de sua debilidade, este já se configura, a partir dos meados do século XIX, como o fulcro de organização do sistema econômico em expansão na cidade e em propagação desta para o campo. A presença do trabalho escravo e sua importância histórica para a viabilidade simultânea da produção agrária e da ordem estamental, porém, condicionam e determinam evoluções inexoráveis. O trabalho livre não nasce, aqui, sob o signo de um mercado que divide e opõe, mas, ao mesmo tempo, valoriza e classifica. Surge como expressão das convenções e das regularidades imperantes na sufocante ordem social escravocrata e senhorial brasileira. Em vez de fomentar a competição e o conflito, ele nasce fadado a articular-se, estrutural e dinamicamente, ao clima do mandonismo, do paternalismo e do conformismo, imposto pela sociedade existente, como se o trabalho livre fosse um desdobramento e uma prolongação do trabalho escravo. A ruptura, que se iria dar no último quartel do século XIX, foi antes “mecânica” e “estática” que societária, histórica e política, como pura decorrência das incompatibilidades existentes entre trabalho escravo e trabalho livre, mercado colonial e mercado capitalista, produção colonial e produção capitalista. O liberto e o homem livre dependente não ofereciam, nas zonas em intenso e rápido crescimento econômico, alternativas para a reordenação do sistema de trabalho na economia urbano-comercial tanto quanto na economia rural. Como acontecera com o desenvolvimento capitalista do mercado interno, a expansão do trabalho livre se iniciará como um processo de incorporação ao mercado mundial, mediante a imigração estrangeira e a implantação de “núcleos de colonização”. Assim se constitui a torrente que iria absorver gradualmente, ainda que de forma irregular e inconstante, os contingentes dos “homens livres” e “semilivres” da população interna (os libertos e ex-escravos lançam-se nessa torrente, mas em condições peculiares, que não podem ser mencionadas aqui).”

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