Editora: Contracorrente
Opinião: ★★★☆☆
ISBN: 978-85-6922-074-9
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Páginas: 432
Sinopse: Como resposta ao golpe de 64 Florestan
Fernandes publicou “A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica”. Não demorou para que o livro se tornasse um dos clássicos do
pensamento sociológico crítico no país.
Em
2020, ano do centenário do autor, a Editora Contracorrente, em parceria com a
Kotter Editorial, inaugura a Coleção Florestan Fernandes com essa antológica
obra, que conta com prefácio dos Professores André Botelho e Antonio Brasil
Jr., ambos da UFRJ, e um posfácio do Prof. Gabriel Cohn.
A
Coleção Florestan Fernandes é coordenada pelo Professor Bernardo Ricupero, da
USP, para quem “A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação
sociológica” é a culminação da obra de Florestan Fernandes e “corresponde a uma
espécie de encruzilhada, na qual o sociólogo que foi encontra o publicista
revolucionário que se torna. É, portanto, um bom lugar para começar a reedição
da obra desse sociólogo comprometido, no sentido mais pleno do termo”.
“(Depois
da independência) De um lado, como as condições da produção rural destinada à
exportação se mantiveram relativamente constantes, a esfera na qual as
alterações se aceleraram abrangia os dois aspectos da situação de mercado que
foram afetados diretamente pelas consequências econômicas da autonomização
política. Esses dois aspectos são: 1) a internalização de fases da
comercialização do produto que antes se desenrolavam fora do país ou eram
controladas pela administração colonial; 2) as aplicações livres do excedente
econômico em bens de consumo que envolviam um novo estilo de estipêndio do
status senhorial ou em fins economicamente reprodutivos. Ambos os fatores
exerciam influências coincidentes, pois engendravam um mercado interno
nuclearmente heteronômico e voltado para fora. Graças à primeira conexão, o
núcleo mais ativo da situação de mercado se constituía em ligação e em
subordinação aos interesses dos importadores dos “produtos tropicais”; graças à
segunda conexão, o segundo elemento ativo da situação de mercado (por sua ordem
de importância econômica) se constituía em ligação preponderante com os
interesses dos exportadores estrangeiros de bens acabados, que se converteram
nos maiores beneficiários das pressões do comércio interno. De qualquer modo,
ambas as tendências tiveram o mesmo efeito: confinaram a assimilação de padrões
econômicos novos à esfera das atividades comerciais (de exportação e de
importação), nas quais desabrocharia o primeiro florescimento do capitalismo em
um sentido verdadeiramente moderno e extracolonial. De outro lado, a extensão
dos modelos transplantados a outros planos da vida econômica e sua progressiva
universalização como fatores de integração da ordem econômica passaram a
depender da estrutura da situação de mercado. Qualquer mudança na direção de
aumentar as proporções, a intensidade e a eficácia da assimilação dos modelos
econômicos fornecidos pelas economias centrais teria de subordinar-se,
naturalmente, ao aparecimento e ao fortalecimento de tendências de produção e
de consumo suscetíveis de alimentar formas relativamente autônomas de
crescimento econômico. Essas tendências apareceram contemporaneamente às fases
de instauração da autonomia política. Mas só se consolidaram posteriormente.
Suas influências mais precoces se manifestaram em conjunção com as pressões do
desenvolvimento urbano sobre a elevação ou a diferenciação do consumo e o
estímulo que isso representou tanto para a expansão da lavoura de subsistência
ou a criação de gado e a comercialização interna dos mantimentos ou do charque,
quanto para a expansão da produção artesanal e manufatureira. Esse processo
econômico adicionou mais dois elementos básicos à situação de mercado: 1) a
produção agrícola, artesanal ou manufatureira destinada ao consumo interno; 2)
a utilização do excedente econômico como fator de dinamização, de diferenciação
ou de autonomização da vida econômica.2 Até o
presente, os dois elementos apontados jamais chegaram a eliminar os outros
três; nem mesmo conseguiram contrabalançar os efeitos estruturais e dinâmicos
que eles exercem, como fatores de heteronomia econômica. A razão disso está no
fato, mais ou menos patente, de que não surgiu uma situação de mercado nova,
independente dos nexos coloniais ou imperialistas, inerentes ao esquema
exportação-importação controlado de fora. De um modo ou de outro, tais nexos
interferiram e por vezes regularam o aparecimento ou a importância relativa dos
dois elementos diretamente vinculados aos dinamismos internos da economia
brasileira. A esta parte da exposição, o que interessa é que a estrutura da
situação de mercado apontada engendrou processos econômicos que se refletiram,
seja quantitativamente, seja qualitativamente, na absorção dos modelos
econômicos transplantados e, portanto, no grau e na forma de vigência do
capitalismo na sociedade brasileira.
Esse
pano de fundo sugere quão emaranhado e desnorteante foi o desencadeamento da
“Revolução Burguesa” numa economia colonial, periférica ou dependente. Não
existiam as condições e os processos econômicos que davam lastro ao
funcionamento dos modelos econômicos transplantados nas economias centrais. Só
podiam ser postos em prática, com eficiência e senso de “previsão econômica”,
nas ações e relações econômicas nas quais a situação de mercado aqui imperante
já reproduzia determinados requisitos institucionais das economias centrais.
Isso se deu, de começo, apenas no mais elevado nível da comercialização: nas
transações econômicas controladas de fora (nos “negócios” de exportação e de
importação); e nas transações econômicas associadas ao desenvolvimento interno
do “alto comércio”.
Além
disso, como a situação de mercado existente combinava, articuladamente,
elementos heteronômicos com elementos autonômicos, boa parte dos modelos
econômicos transplantados não tinha por meta criar processos econômicos de
desenvolvimento interno análogos aos que eram produzidos pela integração das
economias centrais. Ao contrário, suas funções latentes ou manifestas
consistiam em manter e em intensificar a incorporação dependente da economia
brasileira àquelas economias. Desse prisma, os processos econômicos que podiam
ser desencadeados, orientados e organizados através dos modelos econômicos
transplantados visavam a acelerar o desenvolvimento econômico interno segundo
objetivos que o articulavam, heteronomicamente, aos dinamismos das economias
centrais. Daí podia resultar um desenvolvimento paralelo do capitalismo no
Brasil. Esse capitalismo não continha, porém, as mesmas características
estruturais e funcionais do capitalismo vigente nas nações dominantes. Era um
capitalismo de tipo especial, montado sobre uma estrutura de mercado que
possuía duas dimensões uma estruturalmente heteronômica; outra com tendências
dinâmicas autonômicas ainda em via de integração estrutural. Por causa dessa
dupla polarização, a esse capitalismo se poderia aplicar a noção de
“capitalismo dependente”.”
2 As alternativas
implícitas respondem às diversas situações que se poderiam considerar, em
termos setoriais, as quais tomam relevantes as diferenças entre dinamização,
diferenciação e autonomização da vida econômica. Também aqui foi omitida a
explicitação dos fatores socioculturais que explicariam a relação estrutural e
funcional dos dois elementos apontados com a situação de mercado existente.
“Nas “sociedades nacionais” dependentes, de
origem colonial, o capitalismo é introduzido antes da constituição da ordem
social competitiva. Ele se defronta com estruturas econômicas, sociais e
políticas elaboradas sob o regime colonial, apenas parcial e superficialmente
ajustadas aos padrões capitalistas de vida econômica. Na fase de ruptura do
regime colonial, tais estruturas alimentam e tornam possível a adaptação aos
dinamismos econômicos do mercado mundial, que na realidade desencadeiam e
condicionam a transição, e servem de base à gradual formação de uma economia
nacional “independente”. A intensidade e os efeitos estruturais ou dinâmicos
dessa fase dependem, naturalmente, da herança econômica, cultural e política
recebida da época colonial. Na América Latina, em regra, tal fase assumiu o
padrão de uma evolução secular, nos países que lograram organizar e expandir,
com maior rapidez, um mercado interno relativamente diferenciado e integrado,
em bases capitalistas. Isso significa que, num período de tempo que varia de
três quartos de século a um século ou mais, nesses países as estruturas econômicas,
sociais e políticas, herdadas do mundo colonial, interferiram sobre os
dinamismos do mercado mundial, tolhendo ou selecionando os seus efeitos
positivos e restringindo o seu impacto construtivo sobre o crescimento
econômico interno. A rigor, tais estruturas produziram um resultado útil apenas
porque preencheram — onde tal coisa chegou a ocorrer numa escala eficaz — a
função histórica de preservar o controle político de decisões econômicas vitais
em mãos nacionais.
O Brasil corresponde normalmente
a essa regra. Nele, as estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade
colonial não só moldaram a sociedade nacional subsequente: determinaram, a
curto e a largo prazos, as proporções e o alcance dos dinamismos econômicos
absorvidos do mercado mundial. Elas se revelaram bastante plásticas em face do
que se poderia chamar de reorganização do mercado colonial, adaptando-se
rapidamente à dupla polarização dos negócios de exportação e de importação,
contrariados economicamente por um centro hegemônico externo, mas dirigidos
politicamente a partir de dentro. No entanto, as mesmas estruturas mostraram-se
pouco elásticas e por vezes até rígidas na absorção dos dinamismos econômicos
que eram centrais para a expansão interna do capitalismo. Nessa esfera, os
condicionamentos externos dependiam, para ter êxito a curto e a longo prazos,
da rapidez com que ruíssem as estruturas coloniais de vida econômica, social e
política. O grau de resistência encontrada pode ser avaliado pela posição que a
Inglaterra se viu forçada a tomar no combate à escravidão e ao tráfico, bem
como pelos conflitos daí decorrentes. A seleção das influências dinâmicas do
mercado mundial seguiu, portanto, uma linha relativamente rígida, em grande
parte determinada pelos interesses econômicos da aristocracia agrária. Só numa
escala menor e subordinada foram esses interesses compensados pelos interesses
econômicos do setor especificamente comercial, ligado aos “negócios de
importação”. As consequências limitativas dessa situação, no que se refere à
intensidade e ao desenvolvimento interno do capitalismo, podem ser apreciadas
facilmente (mesmo sem recurso a comparações com a evolução econômica dos
Estados Unidos). Contudo, também é evidente que se resguardaram, assim,
principalmente no nível político1, a integridade
territorial do país e uma relativa autonomia do seu crescimento econômico
interno.
Essas considerações sugerem duas
coisas. Primeiro, a ordem social escravocrata e senhorial não se abriu
facilmente aos requisitos econômicos, sociais, culturais e jurídico-políticos
do capitalismo. Mesmo quando eles se incorporavam aos fundamentos legais
daquela ordem, estavam condenados à ineficácia ou a um atendimento parcial e
flutuante, de acordo com as conveniências econômicas dos estamentos senhoriais
(largamente condicionadas e calibradas pelas estruturas econômicas, sociais e
políticas herdadas do mundo colonial). Segundo, a emergência e o
desenvolvimento da ordem social competitiva ocorreram paulatinamente, à medida
que a desintegração da ordem social escravocrata e senhorial forneceu pontos de
partida realmente consistentes para a reorganização das relações de produção e
de mercado em bases genuinamente capitalistas. Sob esse aspecto, nem sempre as
dificuldades à expansão interna do capitalismo procederam da “resistência à
mudança’’ por parte dos estamentos senhoriais. É a própria situação
“periférica” e “marginal” das economias capitalistas dependentes origem colonial
que explica tal fenômeno, com seus reflexos estruturais e dinâmicos sobre a
ordem social competitiva correspondente.”
1 Terreno, aliás, em que a
questão era colocada formalmente pela aristocracia agrária, em termos de
“soberania nacional”.
“Na
visão de mundo do senhor, o realismo econômico conduzia não a uma percepção
secularizada e “racional” da competição, vista em termos do equilíbrio dinâmico
do mercado, mas a uma compreensão cataclísmica das forças econômicas. Como a
segurança pessoal do agente e o êxito do seu empreendimento se projetavam nessa
compreensão, ela acabou engendrando uma forma típica de privatismo econômico.
Trata-se da iniciativa privada “moderna” que podia florescer numa sociedade de
castas e estamental: ela própria constituía uma objetivação cultural de
critérios estamentais de organização do poder e de concepção do mundo. Para o
agente econômico privilegiado de uma economia escravista, era natural
privilegiar sua posição-chave e utilizá-la como uma armadura contra os riscos
conjuráveis. Ao proceder dessa maneira, porém, incorporava a própria condição
de agente econômico capitalista numa estrutura social extra e anticapitalista.
Convertia a “livre iniciativa” e a “empresa privada” em privilégios
estamentais, que deviam ser respeitados e protegidos fora e acima de qualquer
racionalidade inerente aos processos econômicos propriamente ditos.
A
competição emergia historicamente, portanto, com um aspecto dúplice. Um fator
multiplicativo do poder de ação do agente econômico privilegiado; e, ao mesmo
tempo, um fator destrutivo para o equilíbrio econômico global da sociedade.
Esta teve de suportar todas as manipulações através das quais ela própria era
usada para suster e fomentar o tipo descrito de “privatismo econômico”. No fim,
medidas cambiais ou alfandegárias e políticas de preços (com referência ao
mercado interno, para garantir custos baixos para certas utilidades, e com
relação ao mercado externo, para garantir na medida do possível certos níveis
de lucro), ou políticas de empréstimos e de taxação do consumo, bem como outros
expedientes, tudo desaguava no mesmo rio. A coletividade arcava com os riscos e
suportava, por mecanismos diretos e indiretos, a posição privilegiada do agente
econômico. Isso indica que a competição não se inseria nas vias socialmente
construtivas que relacionaram, nas sociedades capitalistas avançadas,
propriedade privada, livre iniciativa e redistribuição da renda e do poder. Ela
foi rapidamente redefinida, tanto economicamente quanto social e politicamente,
como um fator de distribuição estamental — e portanto fortemente desigual — da
renda e do poder. Por essa razão, nos mecanismos apontados ela não engendra
transferências estruturais de renda e de poder. A sua função latente não era
essa. Ela se convertera no que deveria ser no contexto de uma economia colonial
exportadora, de fundamento escravista, e numa economia capitalista dependente
em formação: o meio pelo qual a sociedade protegia, através da posição do seu
agente econômico privilegiado, a sua única fonte básica de produção e de
incremento da riqueza.2”
2 É claro que o padrão descrito se aplicava à
natureza e às funções da competição com referência a outros agentes econômicos
(qualquer que fosse a base de suas operações mercantis: comercial ou manufatureira),
pois todos se protegiam, de uma forma ou de outra, a partir de algum
privilegiamento estamental. O que ocorria com o setor fundamental repetia-se
nos demais.
“Essa elaboração estrutural e dinâmica da competição como força social é
fundamental. Ela evidencia como a ordem social escravocrata e senhorial
deformou esse processo, vinculando-o, definida e definitivamente, a um contexto
ultraconservador e terrivelmente egoísta de absorção das inquietações sociais e
das inovações institucionais inevitáveis. Dessa perspectiva, o privatismo dos
estamentos intermediários fazia contraponto ao do estamento senhorial. Ele se
objetivou socialmente como se os interesses particularistas dos grupos que
podiam empolgar a “propriedade privada” e manejar a “livre iniciativa”
constituíssem o verdadeiro altar da pátria. Tudo lhes seria “naturalmente”
devido. Essa conexão psicocultural da competição só se converteu numa
influência socialmente construtiva para a evolução da sociedade nacional no
momento em que a decomposição da ordem senhorial atingiu o seu clímax. Então,
as inconsistências entre o “status atribuído” e o “status real”
dos estamentos intermediários serviram como um fluido que ampliou a fogueira,
sem criá-la. Os ressentimentos e frustrações encontraram, por fim, uma válvula
de escape, a qual alimentou uma pasmosa mudança de orientação de atitudes e
comportamentos. No entanto, atravessando o ponto alto da crise e da euforia que
os levou a apoiar, no último entreato, a queda da monarquia e a implantação da
República, esses estratos sociais retornaram à rotina precedente: continuaram a
apegar-se, agora como “classe média emergente”, à modernização e à
democratização como meros expedientes de privilegiamento de seus interesses e
do seu destino social. De uma ponta a outra, jamais almejaram sequer a
revolução dentro da ordem, o reino do tipo de equidade que é consagrado pela
ordem social competitiva, porque sempre se mantiveram medularmente presos ao antigo
regime, embora combatendo-o em sua ordenação e na sua superfície. Ficaram
entregues a uma obscura missão histórica, de fiadores da perpetuação crônica do
“poder conservador” e dos privilégios estamentais mais odiosos, que
sobreviveram ao desaparecimento histórico tanto da sociedade colonial quanto da
sociedade imperial.”
“Formou-se, assim, uma tensão que afetava o padrão de integração e de
equilíbrio da “sociedade nacional”. A ordem social constituída não podia
adaptar-se, sem se decompor, destruindo-se, às formas econômicas emergentes,
nascidas da incorporação direta ao mercado mundial e da absorção de
instituições econômicas, que iriam regular a organização, o funcionamento e o
crescimento do mercado interno segundo padrões e princípios universais
especificamente capitalistas. No início, a tensão podia ser facilmente diluída
e neutralizada, apesar das pressões externas para agravá-la e conduzi-la à
eclosão. Uma economia de estrutura colonial é pouco sensível a tais pressões,
se estiver amparada sobre um sistema social estável e em formas autocráticas de
organização do poder político (naturalmente, “centralizadas para dentro”). Em
tais condições, é quase impossível fomentar, por semelhantes meios, uma crise
suficientemente profunda para abalar os fundamentos sociais e políticos da
ordem estabelecida. No entanto, a aparente segurança, resultante da
estabilidade social e do uso rígido do poder, concorre para provocar o que as pressões
externas, por si sós, não conseguem: uma espécie de cegueira crônica e
obstinada, graças à qual é o timoneiro que acaba levando o barco na direção do
abismo. No caso brasileiro, essa regra mostra-se em ação de maneira exemplar.
Mesmo preservando-se intocáveis a escravidão e a dominação senhorial, abriam-se
vários caminhos que permitiriam adaptar o regime social existente tanto à
integração ao mercado mundial quanto à expansão interna do “setor novo”
especificamente capitalista e predominantemente urbano-comercial. Esse seria,
aliás, o caminho lógico para preparar-se o país para a transição das formas
econômicas coloniais para formas econômicas capitalistas. Contudo, os
estamentos senhoriais e suas elites ficaram cegos a esse caminho, fascinados
pela aparente segurança da ordem escravocrata e senhorial e pelo poder
autocrático que ela lhes conferia; assim se explica, sociologicamente, a
drástica redução deliberada do âmbito da ação política desses estamentos e de
suas elites, que praticamente bloquearam, por causa de suas ambições, estilo de
vida e uma ideologia crescentemente inadequada, sua capacidade de decisão e de
condução da história. Na verdade, não foram poucos os componentes dos
estamentos dominantes (ou presos a por interesses econômicos e lealdade
política) que perceberam o sentido real da situação, em todas as correntes do
pensamento político. Raramente, porém, mesmo em se tratando de figuras de proa
nos partidos e na cena política, suas ideias ou convicções passavam pelo crivo
seletivo da “opinião pública”, compactamente determinada pelo consenso
ultraconservador dos estamentos dominantes (senhoriais ou não). Isso apenas
sucedia em matérias de interesse comum (para esses círculos), mais ou menos
pacíficas; e com referência a problemas que impunham, materialmente, um mínimo
ele inovações deliberadas, além do mais suscetíveis de controle direto ou
indireto eficiente (deixando de ser, portanto, uma fonte de ameaças visível ao
equilíbrio da ordem escravocrata e senhorial).
Esse
mecanismo global revelou-se útil e eficaz em termos imediatistas e a médio
prazo, assegurando aos estamentos dominantes notório êxito político (graças ao
qual mantiveram o máximo possível da própria ordem colonial, através da
perpetuação da escravidão e da dominação senhorial; e lograram preservar, com a
“ordem interna”, a unidade do país, tanto territorial quanto econômica e
socialmente). Em termos mais amplos e a largo prazo, porém, o mesmo mecanismo
mostrou-se nocivo, pois tomou os estamentos senhoriais e suas elites impotentes
para enfrentar e vencer a tormenta, quando ela irrompeu através de pressões
internas. Primeiro, a ausência de um esforço, consciente e inteligente, de
coordenação e de orientação das forças e das formas econômicas emergentes,
deixou a ordem escravocrata e senhorial incapacitada para lutar por sua
sobrevivência a largo prazo. Ela não se adaptara, estrutural e dinamicamente,
ao controle da nova ordem econômica em formação e expansão no setor urbano, nem
segundo seus próprios interesses de fomento do desenvolvimento interno do
capitalismo, nem segundo os requisitos econômicos, sociais e políticos de um
mercado interno integrado em bases especificamente capitalistas.7
Quando as forças dessa nova ordem econômica emergiam, o processo de sua eclosão
e crescimento tomou uma forma espontânea e desordenada, e elas próprias
passaram a ser extremamente letais quer para a perpetuação da escravidão, quer
para a continuidade da dominação senhorial: elas minavam e destruíam a “velha
ordem social”, que não tentou entendê-las, absorvê-las e controlá-las, enquanto
seria possível uma composição entre passado e futuro. Segundo, a ausência de um
esforço, consciente e inteligente, de coordenação e de orientação das forças e
formas econômicas emergentes impediu que o longo período de sobrevivência da
ordem escravocrata e senhorial operasse, construtivamente, como um meio de
preparação da “economia nacional” para as exigências do futuro, que impunham a
plena mercantilização de todos os níveis e fases do sistema econômico “nacional”.
Ela engendrou uma espécie de diferenciação adaptativa do comportamento
econômico, que permitia ao agente econômico privilegiado da ordem escravocrata
e senhorial monopolizar as vantagens simultâneas decorrentes seja da
preservação de estruturas econômicas extracapitalistas da produção escravista,
seja da eclosão inicial do “setor econômico novo”. Essa bifurcação não poderia
manter-se indefinidamente, sem adaptações estruturais e dinâmicas mais
profundas. Ela estimulou um “paralelismo do crescimento econômico”, em que tudo
correu bem para os estamentos dominantes enquanto os fundamentos escravistas e
senhoriais da ordem existente puderam garantir a referida posição
monopolizadora. É claro que, desde que essa condição fosse rompida, nada
poderia resguardar a ordem escravocrata e senhorial; e os estamentos sociais
dominantes se veriam condenados a terminar com as próprias mãos a destruição
daquela ordem, para salvarem o privilegiamento de sua situação econômica por
“outros meios” (naturalmente sociais e políticos). Foi o que ocorreu quando a
“crise do trabalho servil” atingiu a fase aguda, levando consigo a ordem
escravocrata e senhorial (mas não o seu substrato social e político; a base
oligárquica do poder autocrático dos “ricos” e “privilegiados”).
Até
onde se pode avançar, numa interpretação sociológica segura, é legítimo
concluir-se que a falta de elasticidade da ordem social escravocrata e
senhorial, diante da emergência e da expansão do capitalismo como uma realidade
histórica interna, gerou uma acomodação temporária de formas econômicas opostas
e exclusivas. Dessa acomodação resultou uma economia “nacional” híbrida, que
promovia a coexistência e a interinfluência de formas econômicas variavelmente
“arcaicas” e “modernas”, graças à qual o sistema econômico adaptou-se às
estruturas e às funções de uma economia capitalista diferenciada, mas
periférica e dependente (pois só o capitalismo dependente permite e requer tal
combinação do “moderno” com o “arcaico”, uma descolonização mínima, com uma
modernização máxima). Sob esse aspecto, a mencionada acomodação tanto pode ser
encarada como “historicamente necessária” quanto como “economicamente útil”.
Ela estendeu os limites da duração de um sistema pré-capitalista de produção,
que excluía parcial ou totalmente a produção agropecuária e extrativa da
mercantilização do trabalho, em pleno processo de eclosão e de expansão
acelerada de um mercado capitalista interno (e, portanto, de um mercado
capitalista de trabalho). Ao mesmo tempo, forneceu ao setor urbano-comercial condições
para expandir-se e diferenciar-se, de modo lento mas constante, embora
retirando-lhe o impulso de crescimento que poderia nascer da rápida
mercantilização das relações de produção no campo e da universalização das
relações de mercado em escala nacional. Por fim, organizou um fluxo permanente
de renda que favoreceu o incremento e a dinamização do uso do excedente
econômico nas duas direções concomitantemente, entrelaçando, por um elo
estrutural e dinâmico, a coexistência do “ultramoderno” com o “ultra arcaico”.
Esses três desenvolvimentos são fundamentais para o aparecimento do Brasil
moderno, qualquer que seja a perspectiva da qual cada um deles, de per si, e
todos eles, em conjunto, possam ser avaliados sociologicamente.”
7 Na primeira alternativa, prevaleceria o
intuito de aproveitar as oportunidades de uma "economia colonial"
(como continuava a ser largamente a economia brasileira) na dinamização
acelerada mas dirigida do crescimento econômico interno. Na segunda, teria de imperar
(como sucedeu nos Estados Unidos na época da Independência) a ambição de
conjugar autonomização política com crescimento capitalista independente.
“Os esforços de modernização mais avançados paravam nas fronteiras do
sistema econômico conglomerado, de acomodação, que privilegiava a ordem social
escravocrata e senhorial, reafirmando o primado das formas econômicas
“arcaicas” na determinação do padrão de equilíbrio dinâmico de todo o sistema
econômico. A ordem social escravocrata e senhorial falhava, pois, em várias
direções essenciais: l) não adaptava as tendências incipientes de formação de
uma economia de mercado capitalista aos requisitos da integração econômica
nacional e da autonomização econômica do país através do capitalismo; 2) não
adaptava as mesmas tendências no sentido de facilitar e acelerar a transição do
antigo mercado, herdado da situação colonial, ao novo mercado de tipo
capitalista moderno; 3) não fomentava (ao contrário, inibia ou neutralizava) as
tendências à mercantilização universal do trabalho e à livre manifestação das
relações de mercado propriamente capitalistas, congelando deliberadamente, em
várias áreas, a desagregação do mercado colonial (o que se tornou,
naturalmente, um foco de redução e de concentração da mudança econômica, social
e política, predominantemente limitada ao comércio que mais interessasse aos
“interesses da lavoura” e predominantemente localizada nas cidades de maior
vigor econômico).
Por
aí se vê, claramente, que a falta de elasticidade da ordem social escravocrata
e senhorial, por paradoxal que pareça, engolfou a geração da Independência (e
as outras subsequentes) na construção das próprias bases do capitalismo
dependente e do beco sem saída que ele representava para o Brasil. Não houve
uma passagem do padrão colonial de crescimento econômico para o padrão de
desenvolvimento capitalista. Mas uma rotação do crescimento colonial para o
neocolonial e, em seguida (e isso com muita rapidez), para o padrão capitalista
de crescimento econômico dependente e de subdesenvolvimento (processo similar
ao que ocorrera na Europa com vários países, inclusive Espanha e Portugal, e
que seria comum na América Latina). Parece que as coisas não poderiam transcorrer
de outro modo na cena brasileira e que os ganhos acumulados com a transição do
estado colonial para o capitalismo dependente tanto econômica, quanto social e
politicamente, foram consideráveis. Entretanto, usar a história como expediente
para explicar a limitação das ações humanas não é uma boa regra de método, pois
são os homens que criam a história socialmente. O fato de não se querer um
destino histórico, para se cair nele da pior forma possível, é algo em si mesmo
deveras importante do ponto de vista interpretativo. Ele constitui um índice
objetivo do tipo de querer e de vontade sociais que animou o homem como agente
histórico, em suas decisões e omissões, positivas ou negativas para a sociedade
nacional como um todo (para aquele momento e para a evolução ulterior do país).
No caso, parece evidente que o mundo capitalista não era o universo histórico
dos estamentos sociais dominantes e que suas elites, por isso mesmo, não
enfrentaram o presente nem previram o futuro nessa direção, na escala do capitalismo
como aspiração e estilo de vida. Estavam todos totalmente imersos numa
laboriosa defesa da própria antítese do ‘’espírito burguês” e da “racionalidade
capitalista”, empenhando-se na continuidade da escravidão e da dominação
senhorial (e não em sua destruição e superação, tão rapidamente quanto fosse
possível). As forças que iriam construir a economia capitalista e sua ordem
social competitiva teriam de irromper, portanto, desse solo, mas por sua conta
e contra a maré, de modo acanhado, destrutivo e desorientado, como se a
verdadeira luta pela descolonização não começasse com o processo de emancipação
política, mas quase um século depois.”
“Usar a história como expediente
para explicar a limitação das ações humanas não é uma boa regra de método, pois
são os homens que criam a história socialmente.”
“Tornava-se
praticamente impossível universalizar e institucionalizar os mecanismos de
mercado modernos em um mundo no qual prevaleciam, lado a lado, essa modalidade
de trabalho e a mercantilização segmentária do trabalho livre. O homem que não
aprende a estimar o valor do seu trabalho através do mercado também não sabe
medir suas necessidades através do mercado. Por conseguinte, a modernização
institucional do comércio especialmente intensa no nível dos negócios de
exportação e de importação ou no nível do “alto comércio” — e as tendências à
depuração de práticas econômicas arcaicas caíam, de fato, num terrível vácuo
histórico. O homem, a peça central do drama, não entrava por inteiro no mercado
e recusava-se a abrir as comportas que o transformariam, com o tempo, no
próprio cerne da vida econômica.
Nesse
contexto, os ramos de atividades comerciais, que se inseriam no núcleo
específica ou predominantemente capitalista do mercado interno, é que lhe
imprimiam suas feições peculiares e uma forte (para não dizer insanável)
deformação. Privilegiados tanto econômica e socialmente quanto politicamente,
absorveram de modo insensível mas rápido os critérios estamentais da ordem
social escravocrata e senhorial. Por isso, o austero homem de negócios, do
nascente e próspero “alto comércio” urbano, impunha-se o mesmo código de honra,
aspirava aos mesmos ideais e, se não igualava, suplantava o estilo de vida da
aristocracia agrária (confundindo, na paisagem social em mudança, os dois
mundos mentais, o da “Casa-Grande” e o do “Sobrado”). Seu objetivo supremo
deslocava-se, aos poucos, para a conquista de um status senhorial
(através da nobilitação ou de alguma espécie consagradora de titulação), que
coroasse o “êxito econômico”, sublimando-o e dignificando-o na escala de
prestígio e de valores de uma sociedade de castas e estamental. Esse desfecho
era quase inevitável, pois o condicionamento resultante da socialização
econômica propriamente dita era marginal à ordem social escravocrata e
senhorial, não possuindo bastante vitalidade e autonomia para sobrepor-se ao
condicionamento mais geral e profundo, produzido pela comunidade de interesses,
valores e estilo de vida dos estamentos dominantes. Os que eram mais visível e
visceralmente burgueses não foram segregados em um estamento à parte; viram-se
aceitos com reserva, de início, e abertamente, logo em seguida, no “alto mundo”
em que se fundiram “nobreza” e “fortuna”. Não havia como ser de outra maneira,
já que a própria estrutura da ordem social existente fundia, numa mesma
sociedade civil, todos os que pertenciam aos estamentos intermediários e altos,
o que fazia com que a socialização pela comunidade de interesses e valores se
propagasse do estamento senhorial, verdadeiramente hegemônico, aos demais,
tomando-os solidários entre si e “dominantes”.”
“Superada a curta fase neocolonial e sob a plena crise que as imperativas
medidas emancipacionistas acarretavam, os papéis econômicos centrais
deslocaram-se do trabalho escravo para o trabalho livre. Apesar de sua
debilidade, este já se configura, a partir dos meados do século XIX, como o
fulcro de organização do sistema econômico em expansão na cidade e em
propagação desta para o campo. A presença do trabalho escravo e sua importância
histórica para a viabilidade simultânea da produção agrária e da ordem
estamental, porém, condicionam e determinam evoluções inexoráveis. O trabalho
livre não nasce, aqui, sob o signo de um mercado que divide e opõe, mas, ao
mesmo tempo, valoriza e classifica. Surge como expressão das convenções e das
regularidades imperantes na sufocante ordem social escravocrata e senhorial
brasileira. Em vez de fomentar a competição e o conflito, ele nasce fadado a
articular-se, estrutural e dinamicamente, ao clima do mandonismo, do
paternalismo e do conformismo, imposto pela sociedade existente, como se o
trabalho livre fosse um desdobramento e uma prolongação do trabalho escravo. A
ruptura, que se iria dar no último quartel do século XIX, foi antes “mecânica”
e “estática” que societária, histórica e política, como pura decorrência das
incompatibilidades existentes entre trabalho escravo e trabalho livre, mercado
colonial e mercado capitalista, produção colonial e produção capitalista. O
liberto e o homem livre dependente não ofereciam, nas zonas em intenso e rápido
crescimento econômico, alternativas para a reordenação do sistema de trabalho
na economia urbano-comercial tanto quanto na economia rural. Como acontecera
com o desenvolvimento capitalista do mercado interno, a expansão do trabalho
livre se iniciará como um processo de incorporação ao mercado mundial, mediante
a imigração estrangeira e a implantação de “núcleos de colonização”. Assim se
constitui a torrente que iria absorver gradualmente, ainda que de forma irregular
e inconstante, os contingentes dos “homens livres” e “semilivres” da população
interna (os libertos e ex-escravos lançam-se nessa torrente, mas em condições
peculiares, que não podem ser mencionadas aqui).”
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