Editora: Zahar
ISBN: 978-65-5979-002-9
Tradução: Carlos
Alberto Medeiros
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Opinião: ★★★★☆
Páginas: 120
Sinopse: A
insegurança é a marca fundamental dos tempos líquido-modernos. Terrorismo,
crime organizado, desemprego e solidão: todos esses são fenômenos típicos de
uma era na qual a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o homem
aos seus temores mais graves.
Segundo Bauman, o desmonte dos mecanismos de proteção aos
menos favorecidos, somado aos efeitos incontroláveis gerados pela globalização,
propiciou um ambiente inseguro por definição. Assim, as metrópoles se tornam o
local por excelência das ansiedades.
“Construídas para fornecer proteção a todos os seus
habitantes, as cidades hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo
que à segurança”, afirma Bauman. Não à toa, para ele, é no medo que se baseia a
legitimidade da política contemporânea, incapaz de alcançar a origem global dos
problemas ― o que acaba por alimentar, ainda mais, as angústias da vida na
modernidade líquida.
“Pelo
menos na parte “desenvolvida” do planeta, têm acontecido, ou pelo menos estão
ocorrendo atualmente, algumas mudanças de curso seminais e intimamente
interconectadas, as quais criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para
as atividades da vida individual, levantando uma série de desafios inéditos.
Em
primeiro lugar, a passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” —
ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que
limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de
rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma
por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem
mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para
que se estabeleçam. É pouco provável que essas formas, quer já presentes ou
apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas não
podem servir como arcabouços de referência para as ações humanas, assim como
para as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua expectativa de
vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta que o tempo que leva para
desenvolver uma estratégia coesa e consistente, e ainda mais curta que o
necessário para a realização de um “projeto de vida” individual.
Em
segundo lugar, a separação e o iminente divórcio entre o poder e a política, a
dupla da qual se esperava, desde o surgimento do Estado moderno e até muito
recentemente, que compartilhasse as fundações do Estado-nação “até que a morte
os separasse” Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao
Estado moderno, agora se afasta na direção de um espaço global {e, em muitos
casos, extraterritorial) politicamente descontrolado, enquanto a política — a
capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma ação — é incapaz de operar
efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. A ausência de
controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de
profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder
torna as instituições políticas existentes, assim como suas iniciativas e seus
empreendimentos, cada vez menos relevantes para os problemas existenciais dos
cidadãos dos Estados-nações e, por essa razão, atraem cada vez menos a atenção
destes. Entre ambos, os dois resultados inter-relacionados desse divórcio
obrigam ou encorajam os órgãos do Estado a abandonar, transferir ou (para usar
os termos que entraram recentemente na moda no jargão político) “subsidiar” e
“terceirizar” um volume crescente de funções que desempenhavam anteriormente.
Abandonadas pelo Estado, essas funções se tomam um play-ground para as forças do mercado, notoriamente volúveis e
inerentemente imprevisíveis, e/ou são deixadas para a iniciativa privada e aos
cuidados dos indivíduos.
Em
terceiro lugar, a retração ou redução gradual, embora consistente, da segurança
comunal, endossada pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais
retira da ação coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e
solapa os alicerces da solidariedade social. A “comunidade”, como uma forma de
se referir à totalidade da população que habita um território soberano do
Estado, parece cada vez mais destituída de substância. Os laços inter-humanos,
que antes teciam uma rede de segurança digna de um amplo e contínuo
investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de interesses
individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo do interesse de
um indivíduo), se tomam cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários. A
exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão de obra e de
mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. Incentiva as atitudes
competitivas, ao mesmo tempo em que rebaixa a colaboração e o trabalho em
equipe à condição de estratagemas temporários que precisam ser suspensos ou
concluídos no momento em que se esgotarem seus benefícios. A “sociedade” é cada
vez mais vista e tratada como uma “rede” em vez de uma “estrutura” (para não
falar em uma “totalidade sólida”): ela é percebida e encarada como uma matriz
de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de
permutações possíveis.
Em
quarto lugar, o colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo,
e o desaparecimento ou enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes
poderiam ser traçados com antecedência, leva a um desmembramento da história
política e das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto
prazo que são, em princípio, infinitos e não combinam com os tipos de sequências
aos quais conceitos como “desenvolvimento”, “maturação”, “carreira” ou
“progresso” (todos sugerindo uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser
significativamente aplicados. Uma vida assim fragmentada estimula orientações
“laterais”, mais do que “verticais”. Cada passo seguinte deve ser uma resposta
a um diferente conjunto de oportunidades e a uma diferente distribuição de
vantagens, exigindo assim um conjunto diferente de habilidades e um arranjo
diferente de ativos. Sucessos passados não aumentam necessariamente a
probabilidade de vitórias futuras, muito menos as garantem, enquanto meios
testados com exaustão no passado precisam ser constantemente inspecionados e
revistos, pois podem se mostrar inúteis ou claramente contraproducentes com a
mudança de circunstâncias. Um imediato e profundo esquecimento de informações defasadas e o rápido envelhecimento de
hábitos pode ser mais importante para o próximo sucesso do que a memorização de
lances do passado e a construção de estratégias sobre um alicerce estabelecido
pelo aprendizado prévio.
Em
quinto lugar, a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por
circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos
indivíduos — dos quais se espera que sejam “free-choosers”
e suportem plenamente as consequências de suas escolhas. Os riscos envolvidos
em cada escolha podem ser produzidos por forças que transcendem a compreensão e
a capacidade de ação do indivíduo, mas é destino e dever deste pagar o seu
preço, pois não há receitas endossadas que, caso fossem adequadamente
aprendidas e diligentemente seguidas, poderiam permitir que erros fossem
evitados, ou que pudessem ser, em caso de fracasso, consideradas responsáveis.
A virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a
conformidade às regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias),
mas a flexibilidade, a prontidão em mudar repentinamente de táticas e de
estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento — e buscar
oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que com as
próprias preferências.
É o
momento de perguntar como essas mudanças modificam o espectro de desafios que
homens e mulheres encontram em seus objetivos individuais e portanto,
obliquamente, como influenciam a maneira como estes tendem a viver suas vidas.
Este livro é uma tentativa de fazer exatamente isso. De indagar, mas não
responder, muito menos pretender fornecer respostas definitivas, visto que,
segundo o autor, todas as respostas seriam peremptórias, prematuras e
potencialmente enganosas. Afinal, o efeito geral das mudanças listadas acima é
a necessidade de agir, planejar ações, calcular ganhos e perdas esperados
dessas ações e avaliar seus resultados em condições de incerteza endêmica. O
melhor que o autor tentou e se sentiu capacitado a fazer foi estudar as causas
dessa incerteza—e talvez desnudar alguns dos obstáculos que impedem a sua
compreensão, e assim também nossa capacidade de enfrentar (individual e,
sobretudo, coletivamente) os desafios que qualquer tentativa de controlá-las
necessariamente apresenta.”
““Se
você quer a paz, cuide da justiça”, advertia a sabedoria antiga — e, diferentemente do conhecimento, a sabedoria
não envelhece. Atualmente, a ausência de justiça está bloqueando o caminho para
a paz, tal como o fazia há dois milênios. Isso não mudou. O que mudou é que
agora a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária,
medida e avaliada por comparações planetárias — e isso por duas razões.
Em
primeiro lugar, num planeta atravessado por “autoestradas da informação”, nada
que acontece em alguma parte dele pode de fato, ou ao menos potencialmente,
permanecer do “lado de fora” intelectual.
Não há terra nulla, não há espaço em branco no mapa mental, não há terra
nem povo desconhecidos, muito menos incognoscíveis. A miséria humana de lugares
distantes e estilos de vida longínquos, assim como a corrupção de outros
lugares distantes e estilos de vida longínquos, são apresentadas por imagens
eletrônicas e trazidas para casa de modo tão nítido e pungente, vergonhoso ou
humilhante como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres humanos próximos
de casa, durante seus passeios diários pelas ruas das cidades. As injustiças a
partir das quais se formam os modelos de justiça não são mais limitadas à
vizinhança imediata e coligidas a partir da “privação relativa” ou dos
“diferenciais de rendimento” por comparação com vizinhos de porta ou colegas
situados próximos na escala do ranking
social.
Em
segundo lugar, num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias,
o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas
de todos os outro lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode ser
considerado com certeza num “lado de fora” material.
Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por muito tempo, indiferente a
qualquer outra coisa: intocado e intocável. O bem-estar de um lugar, qualquer
que seja, nunca é inocente em relação à miséria de outro. No resumo de Milan
Kundera, essa “unidade da espécie humana”, trazida à tona pela globalização,
significa essencialmente que “não existe nenhum lugar para onde se possa escapar”.1”
1.
Milan Kundera, L’art du roman. Gallimard, 1986.
“Se
a ideia de “sociedade aberta” era originalmente compatível com a
autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura, ela agora
traz à mente da maioria de nós a experiência aterrorizante de uma população
heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por
forças que não controla nem entende totalmente; uma população horrorizada por
sua própria vulnerabilidade, obcecada com a firmeza de suas fronteiras e com a
segurança dos indivíduos que vivem dentro delas — enquanto é justamente essa
firmeza de fronteiras e essa segurança da vida dentro delas que geram um
domínio ilusório e parecem ter a tendência de permanecer como ilusões enquanto
o planeta for submetido unicamente à globalização negativa. Num planeta negativamente globalizado, a segurança não
pode ser obtida, muito menos assegurada, dentro de um único país ou de um grupo
selecionado de países — não apenas por seus próprios meios nem
independentemente do que acontece no resto do mundo.”
“Uma
vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma lógica de
desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum
investimento adicional para crescer e se espalhar — irrefreavelmente. Nas
palavras de David L. Altheide, o principal não é o medo do perigo, mas aquilo
no qual esse medo pode se desdobrar, o que ele se torna.6 A vida
social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças,
dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de
artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir
o senso de desordem que nossas ações buscam evitar.
Os
medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação
defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que
reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à
palavra. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas;
praticamente não precisa de outros estímulos exteriores, já que as ações que
estimula, dia após dia, fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele
necessita para se reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do
modelo de sonhos do motoperpétuo, a autorreprodução do emaranhado do medo e das
ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar uma posição de
destaque.
É
como se os nossos medos tivessem ganhado a capacidade de se autoperpetuar e se
autofortalecer; como se tivessem adquirido um ímpeto próprio — e pudessem
continuar crescendo com base unicamente nos seus próprios recursos. Essa
aparente autossuficiência é, evidentemente, apenas uma ilusão, tal como no caso
dos outros numerosos mecanismos que anunciam o milagre do movimento perpétuo
capaz da autopropulsão e da autonutrição. Obviamente, o ciclo do medo e das
ações por ele ditadas não deslizaria tão tranquilamente nem continuaria
ganhando velocidade se não continuasse a extrair sua energia de tremores
existenciais.
A
presença desses tremores não é exatamente novidade: os sismos existenciais têm
acompanhado os seres humanos ao longo de toda a sua história, pois nenhum dos
ambientes sociais em que as realizações da vida humana têm sido conduzidas
jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino” (assim
chamados para distingui-los das adversidades que os seres humanos poderiam evitar, e para comunicar nem
tanto a natureza peculiar desses golpes em si, mas o reconhecimento da incapacidade humana de prevê-los, que
dirá evitá-los ou controlá-los).”
6. David L. Altheide, “Mass media, crime, and the discourse of fear”
Hedgehog Review, 5/3 (outono de 2003), p.9-25.
“O
terreno sobre o qual se presume que nossas perspectivas de vida se assentem é
reconhecidamente instável — tal como são os nossos empregos e as empresas que
os oferecem, nossos parceiros e nossas redes de amizade, a posição que
desfrutamos na sociedade mais ampla e a autoestima e a autoconfiança que o
acompanham. O “progresso”, que já foi a manifestação mais extrema do otimismo
radical e uma promessa de felicidade universalmente compartilhada e permanente,
se afastou totalmente em direção ao polo oposto, distópico e fatalista da
antecipação: ele agora representa a ameaça de uma mudança inexorável e
inescapável que, em vez de augurar a paz e o sossego, pressagia somente a crise
e a tensão e impede que haja um momento de descanso. O progresso se transformou
numa espécie de dança das cadeiras interminável e ininterrupta, na qual um
momento de desatenção resulta na derrota irreversível e na exclusão
irrevogável. Em vez de grandes expectativas e sonhos agradáveis, o “progresso”
evoca uma insônia cheia de pesadelos de “ser deixado para trás” — de perder o
trem ou cair da janela de um veículo em rápida aceleração.
Incapazes
de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua
direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos
assegurados de que podemos influenciar: tentamos calcular e reduzir o risco de
que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no
momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco
e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós. Nossa atenção é
chamada para observar “os sete sinais do câncer” ou “os cinco sintomas da
depressão”, ou para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de
colesterol, do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos substitutos sobre os quais possamos
descarregar o medo existencial excedente que foi barrado de seus escoadouros
naturais, e encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas
precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a ingestão
de comida gordurosa ou de “más” bactérias (ao mesmo tempo em que sorvemos os
líquidos que prometem conter as “boas”), a exposição ao sol ou o sexo
desprotegido. Aqueles que podem dar-se ao luxo de se fortalecerem contra todos
os perigos, visíveis ou invisíveis, atuais ou previstos, familiares ou ainda
desconhecidos, difusos, porém ubíquos, protegendo -se por trás de muros,
equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando seguranças
armados, dirigindo carros blindados (como os notórios veículos utilitários
esportivos), , usando trajes à prova de balas ou aprendendo artes marciais. “O
problema”, para citar mais uma vez David L. Altheide, “é que essas atividades
reafirmam e ajudam a produzir um senso de desordem que nossas ações
precipitam.” Cada fechadura extra na porta da frente, em reação aos sucessivos
rumores sobre criminosos de aparência estrangeira cobertos por mantos cheios de
adagas, e cada revisão da dieta, em resposta aos sucessivos “pânicos
alimentares”, fazem o mundo parecer mais
traiçoeiro e assustador, e estimulam mais
ações defensivas — que vão, infelizmente, acrescentar vigor à capacidade do
medo de se autopropagar.”
“O
lema “lei e ordem”, cada vez mais reduzido à promessa de segurança pessoal (mais
exatamente corporal), se tornou uma
grande, talvez a maior, bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas
eleitorais, enquanto a exibição de ameaças à segurança pessoal se tornou um
grande, talvez o maior, trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação
de massa, reabastecendo constantemente o capital do medo e ampliando ainda mais
o sucesso tanto de seu marketing quanto de seu uso político.”
“As
mensagens dirigidas dos centros do poder político tanto para os ricos como para
os infelizes apresentam “mais flexibilidade” como a única cura para uma
insegurança já insustentável — e assim retratam a perspectiva de mais
incerteza, mais privatização dos problemas, mais solidão e impotência e, na
verdade, mais incerteza ainda. Elas excluem a possibilidade de uma segurança
existencial que se baseie em alicerces coletivos e assim não oferecem incentivo
a ações solidárias; em lugar disso, encorajam seus ouvintes a se concentrarem
na sua sobrevivência individual ao estilo “cada um por si e Deus por todos”-
num mundo incuravelmente fragmentado e atomizado, e portanto cada vez mais
incerto e imprevisível.”
“A
vida solitária de tais indivíduos pode ser alegre, e é provavelmente atarefada
— mas também tende a ser arriscada e assustadora. Num mundo assim, não restam
muitos fundamentos sobre os quais os indivíduos em luta possam construir suas
esperanças de resgate e a que possam recorrer em caso de fracasso pessoal. Os
vínculos humanos são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo,
terrivelmente precários, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto
compreender seus benefícios, e mais ainda suas virtudes morais.
O
novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da
solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os
contornos nebulosos da “globalização negativa”. Em sua forma atual, puramente
negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta
da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. Citando
mais uma vez Attali, as nações organizadas em Estados “perdem sua influência na
direção geral das coisas e, no processo de globalização, sofrem o confisco dos
meios de que precisariam para orientar seu destino e resistir às numerosas
formas que o medo pode assumir”.
A
sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que
confie na proteção oferecida por este. Ela agora está exposta à rapacidade de
forças que não controla e não espera, nem pretende, recapturar e dominar. É por
essa razão, em primeiro lugar, que os governos dos Estados em luta, dia após
dia, para resistir às tempestades atuais, caminham aos tropeções de uma
campanha ad hoc de administração da
crise e de um conjunto de medidas de emergência para outro, sonhando apenas
permanecer no poder após a próxima eleição, mas desprovidos de programas ou
ambições de longo alcance, que dirá de projetos para uma solução radical dos
problemas recorrentes da nação. “Aberto” e cada vez mais indefeso de ambos os
lados, o Estado-nação perde sua força, que agora se evapora no espaço global,
assim como a sagacidade e a destreza políticas, cada vez mais relegadas à
esfera da “vida política” individual e “subsidiadas” a homens e mulheres. O que
resta de força e de política a cargo do Estado e de seus órgãos se reduz
gradualmente a um volume talvez suficiente para guarnecer pouco mais que uma
grande delegacia de polícia. O Estado reduzido dificilmente poderia conseguir
ser mais que um Estado da proteção pessoal.
Tendo
fugido de uma sociedade aberta compulsoriamente pelas pressões das forças
globalizadoras, o poder e a política se afastam cada vez mais. O problema, e a
enorme tarefa que provavelmente confrontará o século atual como seu desafio
supremo, é unir novamente o poder e a política. A união dos parceiros separados
dentro do domicílio do Estado-nação talvez seja a menos promissora das
possíveis respostas a esse desafio.
Num
planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas — os
metaproblemas que condicionam o enfrentamento de todos os outros — são globais e, sendo assim, não admitem
soluções locais. Não há nem pode haver soluções locais para problemas
originados e reforçados globalmente. A união do poder e da política pode ser
alcançada, se é que pode, no nível planetário. Como Benjamin R. Barber
pungentemente afirma: “Nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em
sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas suas.
Os europeus não desfrutarão por muito tempo de suas liberdades se as pessoas de
outras partes do mundo permanecerem excluídas e humilhadas.”19 A democracia e a
liberdade não podem mais estar plena e verdadeiramente seguras num único país,
ou mesmo num grupo de países; sua defesa num mundo saturado de injustiça e
habitado por bilhões de pessoas a quem se negou a dignidade humana vai
corromper inevitavelmente os próprios valores que os indivíduos deveriam
defender. O futuro da democracia e da liberdade só pode se tornar seguro numa
escala planetária — ou talvez nem assim.
O
medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas
sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a
incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos
tolerável. Essa insegurança e essa incerteza, por sua vez, nascem de um
sentimento de impotência: parecemos não estar mais no controle, seja
individual, separada ou coletivamente, e, para piorar ainda mais as coisas,
faltam-nos as ferramentas que possibilitariam alçar a política a um nível em
que o poder já se estabeleceu, capacitando-nos assim a recuperar e reaver o
controle sobre as forças que dão forma à condição que compartilhamos, enquanto
estabelecem o âmbito de nossas possibilidades e os limites à nossa liberdade de
escolha: um controle que agora escapou ou foi arrancado de nossas mãos. O
demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente, construirmos) tais ferramentas.”
19.
Ver Benjamin R. Barber em conversa com Artur Domoslawski, Gazeta Wyborcza,
24-26 dez 2004, p.19-20.
“Um
dos efeitos mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A
maior parte das ações belicosas dos dias de hoje, e das mais cruéis e
sangrentas entre elas, são travadas por entidades não-estatais, que não se
sujeitam a leis estatais ou quase-estatais, nem às convenções internacionais.
São simultaneamente o resultado e as causas auxiliares, porém poderosas, da
erosão contínua da soberania do Estado e das permanentes condições de fronteira
que prevalecem no espaço global “supraestatal”. Os antagonismos intertribais
vêm à tona graças ao enfraquecimento dos braços do Estado; no caso dos “novos
Estados”, de braços que nunca tiveram tempo (ou permissão) para criar músculos.
Uma vez iniciadas, as hostilidades tornam as incipientes ou arraigadas leis do
Estado inaplicáveis e, para todos os fins práticos, nulas e inúteis.
A
população geral de um Estado se vê assim num espaço sem lei. A parte dela que
resolve e consegue fugir do campo de batalha encontra-se em outro tipo de
anarquia, a da fronteira global. Uma vez fora das fronteiras de seu país natal,
os fugitivos são, além de tudo, privados do apoio de uma autoridade de Estado
reconhecida que possa colocá-los sob sua proteção, fazer valer seus direitos e
interceder em seu favor junto a potências estrangeiras. Os refugiados são
pessoas sem Estado, mas num novo sentido: sua carência é elevada a um nível
inteiramente novo pela inexistência, ou pela presença fantasma, de uma
autoridade estatal à qual sua cidadania pudesse referir-se. Eles são, como afirma
Michel Agier em seu criterioso estudo sobre refugiados na era da globalização, hors du nomos — fora da lei;8
não desta ou daquela lei vigente neste ou naquele país, mas da lei em si, São degredados e foragidos de
um novo tipo, produtos da globalização, a mais completa epítome e encarnação de
seu espírito de fronteira. Citando novamente Agier, foram lançados a uma
condição de “flutuantes liminares”, e não sabem nem podem saber se esta é
transitória ou permanente. Mesmo que permaneçam estacionários por algum tempo,
estão numa jornada que nunca se completa, já que seu destino (seja de chegada
ou de retorno) continua eternamente incerto, enquanto o lugar que poderiam
chamar de “definitivo” permanece para sempre inacessível. Nunca estarão livres
de um persistente senso de transitoriedade e indefinição, assim como da
natureza provisória de qualquer assentamento.
A
sorte dos refugiados palestinos, muitos dos quais nunca experimentaram viver
fora dos campos improvisados e montados de forma precária mais de 50 anos
atrás, tem sido bem documentada. Quando, porém, a globalização cobra seu
tributo, novos campos (menos conhecidos, que não atraem atenção ou foram
esquecidos) surgem em profusão em tomo de áreas conflagradas, prefigurando o
modelo que, na opinião de Tony Blair, o Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados deveria tornar obrigatório. Por exemplo, os três campos de
Dabaab, cujo número de habitantes é igual ao do resto da província queniana de
Garissa, onde foram alocados em 1991-92, não mostram sinais de fechamento
iminente, embora mais de uma década depois ainda não apareçam nos mapas do país
— foram concebidos, evidentemente, como soluções temporárias, apesar de seu
caráter obviamente permanente. O mesmo se aplica aos campos de Ilfo (que
começou a funcionar em setembro de 1991), Dagahaley (março de 1992) e Hagadera
(junho de 1992).9
Uma
vez refugiado, sempre refugiado. As estradas que levam de volta ao paraíso
doméstico perdido (ou melhor, já inexistente) foram praticamente fechadas, e
todas as saídas do purgatório dos campos conduzem ao inferno... A sucessão de
dias vazios dentro do perímetro do campo sem perspectiva pode ser dura de
aguentar, mas Deus não permita que os plenipotenciários da humanidade, nomeados
ou voluntários, cujo trabalho consiste em manter os refugiados dentro do campo,
mas longe da perdição, tirem o plugue da tomada. E, no entanto, eles o fazem,
repetidamente, sempre que os poderes constituídos decidem que os exilados não
são mais refugiados, já que aparentemente “é seguro voltar” àquela terra natal
que há muito tempo deixou de ser seu lar e nada tem que pudesse ser oferecido
ou que seja desejado.”
8.
Ver Michel Agier, Auxbords dit monde, les réfugiés. Flammarion, 2002, p.55-6.
9.
Ibid., p.86.
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