segunda-feira, 1 de abril de 2024

Tempos líquidos (Parte I), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-002-9

Tradução: Carlos Alberto Medeiros

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 120

Sinopse: A insegurança é a marca fundamental dos tempos líquido-modernos. Terrorismo, crime organizado, desemprego e solidão: todos esses são fenômenos típicos de uma era na qual a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o homem aos seus temores mais graves.

Segundo Bauman, o desmonte dos mecanismos de proteção aos menos favorecidos, somado aos efeitos incontroláveis gerados pela globalização, propiciou um ambiente inseguro por definição. Assim, as metrópoles se tornam o local por excelência das ansiedades.

“Construídas para fornecer proteção a todos os seus habitantes, as cidades hoje em dia se associam com mais frequência ao perigo que à segurança”, afirma Bauman. Não à toa, para ele, é no medo que se baseia a legitimidade da política contemporânea, incapaz de alcançar a origem global dos problemas ― o que acaba por alimentar, ainda mais, as angústias da vida na modernidade líquida.



“Pelo menos na parte “desenvolvida” do planeta, têm acontecido, ou pelo menos estão ocorrendo atualmente, algumas mudanças de curso seminais e intimamente interconectadas, as quais criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividades da vida individual, levantando uma série de desafios inéditos.

Em primeiro lugar, a passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida” — ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. É pouco provável que essas formas, quer já presentes ou apenas vislumbradas, tenham tempo suficiente para se estabelecer, e elas não podem servir como arcabouços de referência para as ações humanas, assim como para as estratégias existenciais a longo prazo, em razão de sua expectativa de vida curta: com efeito, uma expectativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e consistente, e ainda mais curta que o necessário para a realização de um “projeto de vida” individual.

Em segundo lugar, a separação e o iminente divórcio entre o poder e a política, a dupla da qual se esperava, desde o surgimento do Estado moderno e até muito recentemente, que compartilhasse as fundações do Estado-nação “até que a morte os separasse” Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora se afasta na direção de um espaço global {e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente descontrolado, enquanto a política — a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma ação — é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. A ausência de controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições políticas existentes, assim como suas iniciativas e seus empreendimentos, cada vez menos relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos dos Estados-nações e, por essa razão, atraem cada vez menos a atenção destes. Entre ambos, os dois resultados inter-relacionados desse divórcio obrigam ou encorajam os órgãos do Estado a abandonar, transferir ou (para usar os termos que entraram recentemente na moda no jargão político) “subsidiar” e “terceirizar” um volume crescente de funções que desempenhavam anteriormente. Abandonadas pelo Estado, essas funções se tomam um play-ground para as forças do mercado, notoriamente volúveis e inerentemente imprevisíveis, e/ou são deixadas para a iniciativa privada e aos cuidados dos indivíduos.

Em terceiro lugar, a retração ou redução gradual, embora consistente, da segurança comunal, endossada pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e solapa os alicerces da solidariedade social. A “comunidade”, como uma forma de se referir à totalidade da população que habita um território soberano do Estado, parece cada vez mais destituída de substância. Os laços inter-humanos, que antes teciam uma rede de segurança digna de um amplo e contínuo investimento de tempo e esforço, e valiam o sacrifício de interesses individuais imediatos (ou do que poderia ser visto como sendo do interesse de um indivíduo), se tornam cada vez mais frágeis e reconhecidamente temporários. A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão de obra e de mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, ao mesmo tempo em que rebaixa a colaboração e o trabalho em equipe à condição de estratagemas temporários que precisam ser suspensos ou concluídos no momento em que se esgotarem seus benefícios. A “sociedade” é cada vez mais vista e tratada como uma “rede” em vez de uma “estrutura” (para não falar em uma “totalidade sólida”): ela é percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um volume essencialmente infinito de permutações possíveis.

Em quarto lugar, o colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traçados com antecedência, leva a um desmembramento da história política e das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo que são, em princípio, infinitos e não combinam com os tipos de sequências aos quais conceitos como “desenvolvimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (todos sugerindo uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser significativamente aplicados. Uma vida assim fragmentada estimula orientações “laterais”, mais do que “verticais”. Cada passo seguinte deve ser uma resposta a um diferente conjunto de oportunidades e a uma diferente distribuição de vantagens, exigindo assim um conjunto diferente de habilidades e um arranjo diferente de ativos. Sucessos passados não aumentam necessariamente a probabilidade de vitórias futuras, muito menos as garantem, enquanto meios testados com exaustão no passado precisam ser constantemente inspecionados e revistos, pois podem se mostrar inúteis ou claramente contraproducentes com a mudança de circunstâncias. Um imediato e profundo esquecimento de informações defasadas e o rápido envelhecimento de hábitos pode ser mais importante para o próximo sucesso do que a memorização de lances do passado e a construção de estratégias sobre um alicerce estabelecido pelo aprendizado prévio.

Em quinto lugar, a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos indivíduos — dos quais se espera que sejam “free-choosers” e suportem plenamente as consequências de suas escolhas. Os riscos envolvidos em cada escolha podem ser produzidos por forças que transcendem a compreensão e a capacidade de ação do indivíduo, mas é destino e dever deste pagar o seu preço, pois não há receitas endossadas que, caso fossem adequadamente aprendidas e diligentemente seguidas, poderiam permitir que erros fossem evitados, ou que pudessem ser, em caso de fracasso, consideradas responsáveis. A virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformidade às regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias), mas a flexibilidade, a prontidão em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento — e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que com as próprias preferências.

É o momento de perguntar como essas mudanças modificam o espectro de desafios que homens e mulheres encontram em seus objetivos individuais e portanto, obliquamente, como influenciam a maneira como estes tendem a viver suas vidas. Este livro é uma tentativa de fazer exatamente isso. De indagar, mas não responder, muito menos pretender fornecer respostas definitivas, visto que, segundo o autor, todas as respostas seriam peremptórias, prematuras e potencialmente enganosas. Afinal, o efeito geral das mudanças listadas acima é a necessidade de agir, planejar ações, calcular ganhos e perdas esperados dessas ações e avaliar seus resultados em condições de incerteza endêmica. O melhor que o autor tentou e se sentiu capacitado a fazer foi estudar as causas dessa incerteza—e talvez desnudar alguns dos obstáculos que impedem a sua compreensão, e assim também nossa capacidade de enfrentar (individual e, sobretudo, coletivamente) os desafios que qualquer tentativa de controlá-las necessariamente apresenta.”

 

 

““Se você quer a paz, cuide da justiça”, advertia a sabedoria antiga — e, diferentemente do conhecimento, a sabedoria não envelhece. Atualmente, a ausência de justiça está bloqueando o caminho para a paz, tal como o fazia há dois milênios. Isso não mudou. O que mudou é que agora a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária, medida e avaliada por comparações planetárias — e isso por duas razões.

Em primeiro lugar, num planeta atravessado por “autoestradas da informação”, nada que acontece em alguma parte dele pode de fato, ou ao menos potencialmente, permanecer do “lado de fora” intelectual. Não há terra nulla, não há espaço em branco no mapa mental, não há terra nem povo desconhecidos, muito menos incognoscíveis. A miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, assim como a corrupção de outros lugares distantes e estilos de vida longínquos, são apresentadas por imagens eletrônicas e trazidas para casa de modo tão nítido e pungente, vergonhoso ou humilhante como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres humanos próximos de casa, durante seus passeios diários pelas ruas das cidades. As injustiças a partir das quais se formam os modelos de justiça não são mais limitadas à vizinhança imediata e coligidas a partir da “privação relativa” ou dos “diferenciais de rendimento” por comparação com vizinhos de porta ou colegas situados próximos na escala do ranking social.

Em segundo lugar, num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas de todos os outros lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode ser considerado com certeza num “lado de fora” material. Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por muito tempo, indiferente a qualquer outra coisa: intocado e intocável. O bem-estar de um lugar, qualquer que seja, nunca é inocente em relação à miséria de outro. No resumo de Milan Kundera, essa “unidade da espécie humana”, trazida à tona pela globalização, significa essencialmente que “não existe nenhum lugar para onde se possa escapar”.1

1. Milan Kundera, L’art du roman. Gallimard, 1986.

 

 

“Se a ideia de “sociedade aberta” era originalmente compatível com a autodeterminação de uma sociedade livre que cultivava essa abertura, ela agora traz à mente da maioria de nós a experiência aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e possivelmente sobrepujada por forças que não controla nem entende totalmente; uma população horrorizada por sua própria vulnerabilidade, obcecada com a firmeza de suas fronteiras e com a segurança dos indivíduos que vivem dentro delas — enquanto é justamente essa firmeza de fronteiras e essa segurança da vida dentro delas que geram um domínio ilusório e parecem ter a tendência de permanecer como ilusões enquanto o planeta for submetido unicamente à globalização negativa. Num planeta negativamente globalizado, a segurança não pode ser obtida, muito menos assegurada, dentro de um único país ou de um grupo selecionado de países — não apenas por seus próprios meios nem independentemente do que acontece no resto do mundo.”

 

 

“Uma vez investido sobre o mundo humano, o medo adquire um ímpeto e uma lógica de desenvolvimento próprios e precisa de poucos cuidados e praticamente nenhum investimento adicional para crescer e se espalhar — irrefreavelmente. Nas palavras de David L. Altheide, o principal não é o medo do perigo, mas aquilo no qual esse medo pode se desdobrar, o que ele se torna.6 A vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar.

Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas; praticamente não precisa de outros estímulos exteriores, já que as ações que estimula, dia após dia, fornecem toda a motivação e toda a energia de que ele necessita para se reproduzir. Entre os mecanismos que buscam aproximar-se do modelo de sonhos do motoperpétuo, a autorreprodução do emaranhado do medo e das ações inspiradas por esse sentimento está perto de reclamar uma posição de destaque.

É como se os nossos medos tivessem ganhado a capacidade de se autoperpetuar e se autofortalecer; como se tivessem adquirido um ímpeto próprio — e pudessem continuar crescendo com base unicamente nos seus próprios recursos. Essa aparente autossuficiência é, evidentemente, apenas uma ilusão, tal como no caso dos outros numerosos mecanismos que anunciam o milagre do movimento perpétuo capaz da autopropulsão e da autonutrição. Obviamente, o ciclo do medo e das ações por ele ditadas não deslizaria tão tranquilamente nem continuaria ganhando velocidade se não continuasse a extrair sua energia de tremores existenciais.

A presença desses tremores não é exatamente novidade: os sismos existenciais têm acompanhado os seres humanos ao longo de toda a sua história, pois nenhum dos ambientes sociais em que as realizações da vida humana têm sido conduzidas jamais ofereceu um seguro infalível contra os golpes do “destino” (assim chamados para distingui-los das adversidades que os seres humanos poderiam evitar, e para comunicar nem tanto a natureza peculiar desses golpes em si, mas o reconhecimento da incapacidade humana de prevê-los, que dirá evitá-los ou controlá-los).”

6. David L. Altheide, “Mass media, crime, and the discourse of fear” Hedgehog Review, 5/3 (outono de 2003), p.9-25.

 

 

“O terreno sobre o qual se presume que nossas perspectivas de vida se assentem é reconhecidamente instável — tal como são os nossos empregos e as empresas que os oferecem, nossos parceiros e nossas redes de amizade, a posição que desfrutamos na sociedade mais ampla e a autoestima e a autoconfiança que o acompanham. O “progresso”, que já foi a manifestação mais extrema do otimismo radical e uma promessa de felicidade universalmente compartilhada e permanente, se afastou totalmente em direção ao polo oposto, distópico e fatalista da antecipação: ele agora representa a ameaça de uma mudança inexorável e inescapável que, em vez de augurar a paz e o sossego, pressagia somente a crise e a tensão e impede que haja um momento de descanso. O progresso se transformou numa espécie de dança das cadeiras interminável e ininterrupta, na qual um momento de desatenção resulta na derrota irreversível e na exclusão irrevogável. Em vez de grandes expectativas e sonhos agradáveis, o “progresso” evoca uma insônia cheia de pesadelos de “ser deixado para trás” — de perder o trem ou cair da janela de um veículo em rápida aceleração.

Incapazes de reduzir o ritmo estonteante da mudança, muito menos prever ou controlar sua direção, nos concentramos nas coisas que podemos, acreditamos poder ou somos assegurados de que podemos influenciar: tentamos calcular e reduzir o risco de que nós, pessoalmente, ou aqueles que nos são mais próximos e queridos no momento, possamos nos tornar vítimas dos incontáveis perigos que o mundo opaco e seu futuro incerto supostamente têm guardado para nós. Nossa atenção é chamada para observar “os sete sinais do câncer” ou “os cinco sintomas da depressão”, ou para exorcizar o espectro da pressão alta, do nível alto de colesterol, do estresse ou da obesidade. Em outras palavras, buscamos alvos substitutos sobre os quais possamos descarregar o medo existencial excedente que foi barrado de seus escoadouros naturais, e encontramos esses alvos paliativos ao tomarmos cuidadosas precauções contra a inalação da fumaça do cigarro de outra pessoa, a ingestão de comida gordurosa ou de “más” bactérias (ao mesmo tempo em que sorvemos os líquidos que prometem conter as “boas”), a exposição ao sol ou o sexo desprotegido. Aqueles que podem dar-se ao luxo de se fortalecerem contra todos os perigos, visíveis ou invisíveis, atuais ou previstos, familiares ou ainda desconhecidos, difusos, porém ubíquos, protegendo-se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando seguranças armados, dirigindo carros blindados (como os notórios veículos utilitários esportivos), usando trajes à prova de balas ou aprendendo artes marciais. “O problema”, para citar mais uma vez David L. Altheide, “é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir um senso de desordem que nossas ações precipitam.” Cada fechadura extra na porta da frente, em reação aos sucessivos rumores sobre criminosos de aparência estrangeira cobertos por mantos cheios de adagas, e cada revisão da dieta, em resposta aos sucessivos “pânicos alimentares”, fazem o mundo parecer mais traiçoeiro e assustador, e estimulam mais ações defensivas — que vão, infelizmente, acrescentar vigor à capacidade do medo de se autopropagar.”

 

 

“O lema “lei e ordem”, cada vez mais reduzido à promessa de segurança pessoal (mais exatamente corporal), se tornou uma grande, talvez a maior, bandeira nos manifestos políticos e nas campanhas eleitorais, enquanto a exibição de ameaças à segurança pessoal se tornou um grande, talvez o maior, trunfo na guerra de audiência dos meios de comunicação de massa, reabastecendo constantemente o capital do medo e ampliando ainda mais o sucesso tanto de seu marketing quanto de seu uso político.”

 

 

“As mensagens dirigidas dos centros do poder político tanto para os ricos como para os infelizes apresentam “mais flexibilidade” como a única cura para uma insegurança já insustentável — e assim retratam a perspectiva de mais incerteza, mais privatização dos problemas, mais solidão e impotência e, na verdade, mais incerteza ainda. Elas excluem a possibilidade de uma segurança existencial que se baseie em alicerces coletivos e assim não oferecem incentivo a ações solidárias; em lugar disso, encorajam seus ouvintes a se concentrarem na sua sobrevivência individual ao estilo “cada um por si e Deus por todos” — num mundo incuravelmente fragmentado e atomizado, e portanto cada vez mais incerto e imprevisível.”

 

 

“A vida solitária de tais indivíduos pode ser alegre, e é provavelmente atarefada — mas também tende a ser arriscada e assustadora. Num mundo assim, não restam muitos fundamentos sobre os quais os indivíduos em luta possam construir suas esperanças de resgate e a que possam recorrer em caso de fracasso pessoal. Os vínculos humanos são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo, terrivelmente precários, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefícios, e mais ainda suas virtudes morais.

O novo individualismo, o enfraquecimento dos vínculos humanos e o definhamento da solidariedade estão gravados num dos lados da moeda cuja outra face mostra os contornos nebulosos da “globalização negativa”. Em sua forma atual, puramente negativa, a globalização é um processo parasitário e predatório que se alimenta da energia sugada dos corpos dos Estados-nações e de seus sujeitos. Citando mais uma vez Attali, as nações organizadas em Estados “perdem sua influência na direção geral das coisas e, no processo de globalização, sofrem o confisco dos meios de que precisariam para orientar seu destino e resistir às numerosas formas que o medo pode assumir”.

A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este. Ela agora está exposta à rapacidade de forças que não controla e não espera, nem pretende, recapturar e dominar. É por essa razão, em primeiro lugar, que os governos dos Estados em luta, dia após dia, para resistir às tempestades atuais, caminham aos tropeções de uma campanha ad hoc de administração da crise e de um conjunto de medidas de emergência para outro, sonhando apenas permanecer no poder após a próxima eleição, mas desprovidos de programas ou ambições de longo alcance, que dirá de projetos para uma solução radical dos problemas recorrentes da nação. “Aberto” e cada vez mais indefeso de ambos os lados, o Estado-nação perde sua força, que agora se evapora no espaço global, assim como a sagacidade e a destreza políticas, cada vez mais relegadas à esfera da “vida política” individual e “subsidiadas” a homens e mulheres. O que resta de força e de política a cargo do Estado e de seus órgãos se reduz gradualmente a um volume talvez suficiente para guarnecer pouco mais que uma grande delegacia de polícia. O Estado reduzido dificilmente poderia conseguir ser mais que um Estado da proteção pessoal.

Tendo fugido de uma sociedade aberta compulsoriamente pelas pressões das forças globalizadoras, o poder e a política se afastam cada vez mais. O problema, e a enorme tarefa que provavelmente confrontará o século atual como seu desafio supremo, é unir novamente o poder e a política. A união dos parceiros separados dentro do domicílio do Estado-nação talvez seja a menos promissora das possíveis respostas a esse desafio.

Num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas — os metaproblemas que condicionam o enfrentamento de todos os outros — são globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. Não há nem pode haver soluções locais para problemas originados e reforçados globalmente. A união do poder e da política pode ser alcançada, se é que pode, no nível planetário. Como Benjamin R. Barber pungentemente afirma: “Nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas suas. Os europeus não desfrutarão por muito tempo de suas liberdades se as pessoas de outras partes do mundo permanecerem excluídas e humilhadas.”19 A democracia e a liberdade não podem mais estar plena e verdadeiramente seguras num único país, ou mesmo num grupo de países; sua defesa num mundo saturado de injustiça e habitado por bilhões de pessoas a quem se negou a dignidade humana vai corromper inevitavelmente os próprios valores que os indivíduos deveriam defender. O futuro da democracia e da liberdade só pode se tornar seguro numa escala planetária — ou talvez nem assim.

O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época. Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que produzem e alimentam o medo mais apavorante e menos tolerável. Essa insegurança e essa incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência: parecemos não estar mais no controle, seja individual, separada ou coletivamente, e, para piorar ainda mais as coisas, faltam-nos as ferramentas que possibilitariam alçar a política a um nível em que o poder já se estabeleceu, capacitando-nos assim a recuperar e reaver o controle sobre as forças que dão forma à condição que compartilhamos, enquanto estabelecem o âmbito de nossas possibilidades e os limites à nossa liberdade de escolha: um controle que agora escapou ou foi arrancado de nossas mãos. O demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente, construirmos) tais ferramentas.”

19. Ver Benjamin R. Barber em conversa com Artur Domoslawski, Gazeta Wyborcza, 24-26 dez 2004, p.19-20.

 

 

“Um dos efeitos mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A maior parte das ações belicosas dos dias de hoje, e das mais cruéis e sangrentas entre elas, são travadas por entidades não-estatais, que não se sujeitam a leis estatais ou quase-estatais, nem às convenções internacionais. São simultaneamente o resultado e as causas auxiliares, porém poderosas, da erosão contínua da soberania do Estado e das permanentes condições de fronteira que prevalecem no espaço global “supraestatal”. Os antagonismos intertribais vêm à tona graças ao enfraquecimento dos braços do Estado; no caso dos “novos Estados”, de braços que nunca tiveram tempo (ou permissão) para criar músculos. Uma vez iniciadas, as hostilidades tornam as incipientes ou arraigadas leis do Estado inaplicáveis e, para todos os fins práticos, nulas e inúteis.

A população geral de um Estado se vê assim num espaço sem lei. A parte dela que resolve e consegue fugir do campo de batalha encontra-se em outro tipo de anarquia, a da fronteira global. Uma vez fora das fronteiras de seu país natal, os fugitivos são, além de tudo, privados do apoio de uma autoridade de Estado reconhecida que possa colocá-los sob sua proteção, fazer valer seus direitos e interceder em seu favor junto a potências estrangeiras. Os refugiados são pessoas sem Estado, mas num novo sentido: sua carência é elevada a um nível inteiramente novo pela inexistência, ou pela presença fantasma, de uma autoridade estatal à qual sua cidadania pudesse referir-se. Eles são, como afirma Michel Agier em seu criterioso estudo sobre refugiados na era da globalização, hors du nomos — fora da lei;8 não desta ou daquela lei vigente neste ou naquele país, mas da lei em si, São degredados e foragidos de um novo tipo, produtos da globalização, a mais completa epítome e encarnação de seu espírito de fronteira. Citando novamente Agier, foram lançados a uma condição de “flutuantes liminares”, e não sabem nem podem saber se esta é transitória ou permanente. Mesmo que permaneçam estacionários por algum tempo, estão numa jornada que nunca se completa, já que seu destino (seja de chegada ou de retorno) continua eternamente incerto, enquanto o lugar que poderiam chamar de “definitivo” permanece para sempre inacessível. Nunca estarão livres de um persistente senso de transitoriedade e indefinição, assim como da natureza provisória de qualquer assentamento.

A sorte dos refugiados palestinos, muitos dos quais nunca experimentaram viver fora dos campos improvisados e montados de forma precária mais de 50 anos atrás, tem sido bem documentada. Quando, porém, a globalização cobra seu tributo, novos campos (menos conhecidos, que não atraem atenção ou foram esquecidos) surgem em profusão em tomo de áreas conflagradas, prefigurando o modelo que, na opinião de Tony Blair, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados deveria tornar obrigatório. Por exemplo, os três campos de Dabaab, cujo número de habitantes é igual ao do resto da província queniana de Garissa, onde foram alocados em 1991-92, não mostram sinais de fechamento iminente, embora mais de uma década depois ainda não apareçam nos mapas do país — foram concebidos, evidentemente, como soluções temporárias, apesar de seu caráter obviamente permanente. O mesmo se aplica aos campos de Ilfo (que começou a funcionar em setembro de 1991), Dagahaley (março de 1992) e Hagadera (junho de 1992).9

Uma vez refugiado, sempre refugiado. As estradas que levam de volta ao paraíso doméstico perdido (ou melhor, já inexistente) foram praticamente fechadas, e todas as saídas do purgatório dos campos conduzem ao inferno... A sucessão de dias vazios dentro do perímetro do campo sem perspectiva pode ser dura de aguentar, mas Deus não permita que os plenipotenciários da humanidade, nomeados ou voluntários, cujo trabalho consiste em manter os refugiados dentro do campo, mas longe da perdição, tirem o plugue da tomada. E, no entanto, eles o fazem, repetidamente, sempre que os poderes constituídos decidem que os exilados não são mais refugiados, já que aparentemente “é seguro voltar” àquela terra natal que há muito tempo deixou de ser seu lar e nada tem que pudesse ser oferecido ou que seja desejado.”

8. Ver Michel Agier, Auxbords dit monde, les réfugiés. Flammarion, 2002, p.55-6.

9. Ibid., p.86.

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