Subtítulo: Decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano
Editora: Global
Opinião: ★★★★☆
ISBN: 978-85-260-0835-9
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Páginas: 976
Sinopse: Ver Parte I
“O
estudo minucioso da composição social e, quanto possível, étnica, das nossas
irmandades, é dos que mais contribuem para o esclarecimento das condições de
raça, classe e região que, tomadas em conjunto – nunca isolada umas das outras
– caracterizam a formação brasileira. Sem o exame em conjunto de condições que
quase sempre se interpenetraram entre nós, como as referidas, de raça, de
classe e de região, arrisca-se o estudioso da formação brasileira a
generalizações falsas sobre o indivíduo ou grupo que considere representativo;
pois, no Brasil, generalizações firmadas em critérios de interpretações puras,
válidas para países de maior pureza ou maior nitidez hierárquica na sua
composição social ou étnica, perdem a validez ou o vigor. Assim não se pode
afirmar da nossa formação que tenha sido substancialmente aristocrática no
sentido de uma raça, de uma classe ou de uma região única. O que a nossa
formação tem tido é forma aristocrática dentro da qual vêm variando substâncias
ou conteúdos de raça, de classe e de região, ora exaltando-se como nobre o
branco (e dando-se aos indígenas o direito de adotarem velhos nomes portugueses
de pessoa ou família), ora o caboclo (cujos nomes passaram em certa época a
substituir os europeus); ora glorificando-se o senhor de engenho, isto é, da
região da cana, ora o fidalgo de sobrado, isto é, da região ou área urbana (de
onde a tendência contemporizadora para o senhor rural mais rico ter tido sempre
sobrado na cidade mais próxima de suas terras e, vice-versa, o senhor mais rico
de sobrado ter tido sempre engenho, fazenda ou quinta socialmente decorativa do
seu poder econômico de burguês); ora fazendo-se do homem do
litoral o herói da formação nacional, ora considerando-se o verdadeiro herói
dessa formação o paulista, o sertanejo ou o montanhês; ora fazendo-se do açúcar
o artigo-rei da economia nacional, ora transferindo-se essa majestade para o
café. (...)
Encontram-se
em nossa formação social predominâncias de figuras senhoris ou superiores, pelo
conjunto das condições de região de origem, de classe e de raça, ou por uma
dessas condições, no momento decisiva, de superioridade ou prestígio: o branco
em relação com os indivíduos das raças e sub-raças de cor; o proprietário de
vastas terras de lavoura ou criação e das respectivas casas-grandes de
residência, em relação com os moradores sem eira nem beira dessas terras e com
os escravos ou servos necessários à exploração agrária ou à atividade pastoril
ou mineira; o cristão-velho em relação com o novo e com os demais católicos; o
brasileiro nato em relação com o reinol ou com o brasileiro naturalizado; o
habitante do litoral mais europeizado em relação com o do interior mais
agreste. Mas nenhuma dessas predominâncias foi, muito menos é hoje, absoluta,
tendo havido frequentes casos de inversões e confusões de superioridades:
figuras senhoris sob a pele escura de raça geralmente considerada servil ou
inferior; sertanejos superiores aos homens do litoral em poder econômico e em
prestígio político; proprietários rurais dependentes de tal modo de comissários
de cidades a ponto de tornarem seus vassalos econômicos.”
“Entre as posturas da Câmara Municipal da cidade do Recife – cidade
insistentemente referida neste capítulo por ter sido, na época aqui
considerada, mais característica que qualquer outra capital brasileira, exceção
feita da Metrópole (sob alguns aspectos, atípica), do processo de
reeuropeização, ou europeização, da paisagem, da vida e da cultura brasileiras
– são particularmente significativas as que atingem aqueles pretos cujos costumes
mais cruamente africanos e aqueles escravos cujo comportamento ou cujo trajo,
considerado mais ostensiva ou perigosamente impróprio de sua condição servil,
perturbavam ou inquietavam os indivíduos da raça, da cultura e da classe
dominantes com responsabilidades de administração ou de governo das cidades e
do país. Assim, ficava proibido, na cidade do Recife, a partir de 10 de
dezembro de 1831, fazer alguém “vozerias, alaridos e gritos pelas ruas”,
restrição que atingia em cheio os africanos e as suas expansões de caráter
religioso ou simplesmente recreativo. Ficava, também, proibido que os pretos
carregadores andassem pelas ruas cantando, “desde o recolher até o nascer do
sol”.446 Restrição severa, dado o hábito dos
africanos de adoçarem o trabalho com o canto. Em Salvador, pelas posturas de
1844, proibiam-se “lundus, vozerias e alaridos” só “nas horas de silencio”.447
Mais:
nenhum escravo poderia, na cidade do Recife, andar na rua “de dia ou a noite,
com paos, ou outra qualquer arma, publica ou occulta, sob pena de soffrer de 50
a 150 assoutes na cadeia, conforme a qualidade aggravante da arma, isso
executado será entregue a seo senhor...”. Só “os carregadores de tipoias, ou
redes” poderiam trazer “as competentes furquilhas, que lhes sirvão de descanço,
e aos companheiros, e os que condusem lenha, pequenos paos que ajudem a carga”.448
Desde
remotos dias coloniais que os homens de governo, no nosso País, preocuparam-se
em proibir aos escravos e aos pretos não só a ostentação de joias como a de
armas, considerando-se que umas e outras deviam ser insígnias da raça e da
classe dominantes. As armas não foram consideradas só insígnias, como vantagens
técnicas em caso de luta ou conflito de senhores com servos. Daí,
provavelmente, o fato de ter se desenvolvido entre os negros e mulatos livres
das cidades – sobretudo do Rio de Janeiro e do Recife – a arte da capoeiragem,
através da qual indivíduos desarmados poderiam lutar vantajosamente com polícias
e particulares armados.
Ficavam,
ainda, proibidos, na cidade do Recife, por decisão dos seus vereadores de 1831,
“os jogos pelas ruas, praças, praias ou escadas, que costumão os pretos e
vadios, faserem, sob pena de soffrerem os que forem livres, de 2 a 6 dias de
cadeia, e os escravos, de 12 a 36 bolos dados na mesma cadeia, e logo depois
serem entregues a seos senhores...”. Pormenor interessante é o de que essa
“graduação de pena” seria “em proporção das idades dos transgressores”. A pena
variava, portanto, não só com a condição de livre ou escravo do transgressor
como com a sua condição de idade.
A mais
se estendia o cuidado da Câmara Municipal do Recife de 1831 no sentido de dar à
vida da cidade aparência tão europeia quanto possível: todo indivíduo que fosse
“achado nu em beiras de praia”, ou “tomando banho com os corpos descubertos,
sem a devida decencia”, seria punido com prisão ou bolos. Excetuavam-se os
indivíduos pertencentes a “corporações militares”, que seriam entregues “aos
seos commandantes respectivos para estes lhes faserem applicar a correspondente
pena de prisão...”.
A
despeito do rigor dessas proibições, documentos extraoficiais da época indicam
que até mesmo na segunda metade do século continuou o costume de recifenses
pobres ou médios se banharem nus, às vezes perto das próprias pontes principais
da cidade e à vista das senhoras dos sobrados mais nobres; e na cidade de Belém
do Pará o norte-americano Warren, quando ali chegou em 1850, viu homens,
mulheres e meninos do povo banhando-se nus, com a maior sem-cerimônia deste
mundo.449 Aliás, veio até quase nossos dias o
hábito, no Norte do País, da própria gente senhoril tomar nua seus banhos de
rio, perto às casas de subúrbio ou no interior. Apenas despiam-se pudicamente
em banheiros de palha à beira ou dentro da água. As senhoras e as crianças
desciam ao rio numa hora; os senhores, em outra. O banho tinha assim todas as
vantagens do verdadeiro banho, sem que o corpo se revestisse dos pesados trajos
de baeta escura que só se propagaram entre a gente senhoril no Brasil, com a
moda dos banhos de mar, iniciada no Rio de Janeiro ainda na primeira metade do
século XIX; mas só generalizada na segunda.450
A
gente do povo das cidades, porém, que não tinha banheiro de palha onde
despir-se, para o banho de regalo ou de higiene, se via obrigada a despir-se no
meio do mato e daí caminhar nua para a água do rio ou do mar, escandalizando
aqueles moradores de sobrado que não compreendiam a vista ou a paisagem que se
gozava do alto de suas varandas maculada por manchas pardas, pretas e amarelas
de nudez plebeia. Além do que havia “prejuízo da saude dos habitantes” que
bebiam água de rios conspurcados pelos banhos da mesma plebe. Pelo que às
câmaras foram-se juntando os juízes de paz na perseguição aos indivíduos pobres
e de cor que, com seus banhos, conspurcavam as águas dos rios e “representavam
figuras contrarias á moral publica”, incorrendo assim nas penas estabelecidas
pelo Código do Processo Criminal no seu § 7º, artigo 12; e não apenas nos
castigos das posturas das câmaras.
O que
indicam várias dessas imposições e proibições no interesse só de um grupo, ou
apenas de uma classe, de uma raça ou de uma cultura de minoria e de região –
raramente no interesse do público ou do grosso ou da maioria da população
nacional – é que, paralelo ao processo de europeização ou reeuropeização do
Brasil que caracterizou, nas principais áreas do país, a primeira metade do
século XIX, aguçou-se, entre nós, o processo, já antigo, de opressão não só de
escravos ou servos por senhores, como de pobres por ricos, de africanos e
indígenas por portadores exclusivistas da cultura europeia, agora encarnada
principalmente nos moradores principais das cidades. Nos moradores ou senhores
dos sobrados e das casas assobradadas. Opressão que não poderia deixar de
criar, como criou, revoltas ou insurreições como as já referidas: a dos
“Cabanos”, a dos “Balaios”, a dos “Quebra-Quilos”; e como a dos Malês, na
Bahia, em 1835.
Não
era possível que se conservassem noutro estado senão no de crispação, no de
ressentimento e no de insurreição, grupos aos quais se proibiam de modo tão
simplistamente policial expansões de fervor religioso e de ardor recreativo à
maneira de suas velhas tradições e de velhos costumes de sua cultura materna:
cantos de trabalho; trajos regionais; joias, adornos, balangandãs. Os
indivíduos, aparentemente livres, aos quais se obrigava – como aos sertanejos,
aos matutos ou aos roceiros – num requinte de humilhação, que não entrassem nas
cidades montados ou sentados nos seus animais de carga, mas ao lado ou à frente
deles; e humildemente, a passo, pisando o chão e a lama como peões indignos de
se apresentarem aos olhos dos moradores de sobrados com aparência ou modos de
cavaleiros.
O
direito de galopar ou esquipar ou andar a trote pelas ruas das cidades
repita-se que era exclusivo dos militares e dos milicianos. O de atravessá-las
montado senhorilmente a cavalo era privilégio do homem vestido e calçado à
europeia. A água dos rios poluía-se quando nela se banhava o moleque, o homem
do povo, o escravo. O ar das cidades enchia-se de ruídos como que nefandos
quando eram os africanos que cantavam seus cantos de trabalho, de xangô ou de
maracatu, tão diversos no som e nas palavras das ladainhas cantadas nas
procissões católicas, nas festas de pátio de igreja, nos terços diante dos
nichos.
O que
se verificava repita-se que era vasta tentativa de opressão das culturas não
europeias pela europeia, dos valores rurais pelos urbanos, das expansões
religiosas e lúdicas da população servil mais repugnantes aos padrões europeus
de vida e de comportamento da população senhoril, dona das câmaras municipais e
orientadora dos juízes de paz e dos chefes de polícia. Como esperar que a
primeira metade do século XIX fosse, entre nós – nas nossas áreas social ou
culturalmente decisivas – um período diverso do que foi? Foi um período de tão
frequentes conflitos sociais e de cultura entre grupos da população – conflitos
complexos com aparência de simplesmente políticos – que todo ele se distingue
pela trepidação e pela inquietação.
Nos
séculos anteriores, houvera, talvez, maior prudência, maior sabedoria, mais
agudo senso de contemporização da parte das autoridades civis (quando não
também das eclesiásticas) e dos grandes senhores patriarcais, com relação a
culturas e a populações consideradas por eles inferiores; e encarnadas por
elementos quando não servis, oprimidos, degradados ou simplesmente
ridicularizados pelos brancos, pelos cristãos-velhos e pelos moradores de áreas
urbanas ou dominadas por casas-grandes mais requintadas em sua organização ou
na sua estrutura senhoril. Degradados ou ridicularizados por peculiaridades de
raça e de classe, de cultura e de região que repugnavam aos grupos dominantes
da população, representados por aquelas predominâncias de raça, de classe e de
cultura que se consideravam superiores.”
448 “Postura da camara”, Diário
de Pernambuco, 13 de dezembro de 1831.
449 John Warren, Pará;
or scenes and adventures on the banks of the Amazon, Nova York, 1851, p. 9.
450 Os primeiros banhos
públicos de mar da gente senhoril no Brasil não foram abertamente nas praias
mas em “casas de banho” ou em barcas de banho como a Fluctuante que nos
começos do século XIX fundeava “defronte do largo do Paço” no Rio de Janeiro,
recomendando-se pela “segurança, decencia [...] lugares separados para homens,
e senhoras”. O tempo do banho devia ser de “1/2 hora pelo preço de 320 reis” (Gazeta
do Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1811).
“Há quem tenha por exagerada a importância por nós atribuída ao Oriente na
formação da cultura que aqui se desenvolveu com a sociedade patriarcal e foi,
em várias de suas formas, condicionada pelo tipo absorvente de organização de
economia e de política, de recreação e de arte, de religião e de assistência social,
de educação e de transporte – e não apenas de família, no sentido apenas
biológico da palavra – que é o patriarcal. A verdade é que o Oriente chegou a
dar considerável substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais vistosos
de cor, à cultura que aqui se formou e à paisagem que aqui se compôs dentro de
condições, predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e de
exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em
particular. E não só substância e cor à cultura: o Oriente concorreu para
avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós: os modos
hierárquicos de viver o homem em família e em sociedade. Modos de viver, de
trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar.
Só o
vigor do capitalismo industrial britânico na sua necessidade às vezes sôfrega
de mercados não só coloniais como semicoloniais para sua produção, de repente
imensa, de artigos de vidro, ferro, carvão, lã, louça e cutelaria – produção
servida por um sistema verdadeiramente revolucionário de transporte –
conseguiria acinzentar, em tempo relativamente curto, a influência oriental
sobre a vida, a paisagem e a cultura brasileira. Pois o que parece é que, ao
findar o século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra área americana o
palanquim, a esteira, a quitanda, o chafariz, o fogo de vista, a telha côncava,
o banguê, a rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de mulher, a casa
caiada de branco ou pintada de cor viva e em forma de pagode, as pontas de beiral
de telhado arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a mangueira da
Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz, o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce
com canela, o cravo das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de Cochim, o chá
da China, a cânfora de Bornéu, a muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da
China e da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimado com o mesmo à
vontade que no Brasil; e formado com valores indígenas, europeus e de outras
procedências o mesmo conjunto simbiótico de natureza e cultura que chegou a
formar no nosso País. É como se ecologicamente nosso parentesco fosse antes com
o Oriente do que com o Ocidente que, em sua mística de pureza etnocêntrica ou
em sua intolerância sistemática do exótico, só se manifestaria, entre nós,
através de alguns daqueles estilos e de algumas daquelas substâncias inglesas e
francesas de cultura generalizadas no litoral brasileiro após a chegada de D.
João VI ao Rio de Janeiro. Ou por meio de um ou outro arreganho de
ocidentalismo ortodoxo da parte de portugueses mais em desarmonia com o quase
instinto ou a quase política portuguesa de expansão, que sempre se afirmou no
sentido da conciliação dos valores orientais com os ocidentais.”
“Confirma-se
aqui o fato de que o brasileiro do litoral ou de cidade viveu, durante a
primeira metade do século XIX – na verdade durante o século inteiro – sob a
obsessão dos “olhos dos estrangeiros”. Preocupado com esses olhos. Sob o temor
desses olhos como outrora vivera sob o terror dos olhos do jesuíta ou dos da
Santa Inquisição. E os “olhos dos estrangeiros” eram os olhos da Europa. Eram
os olhos do Ocidente. Do Ocidente burguês, industrial, carbonífero, com cujos
estilos de cultura, modos de vida, composições de paisagem, chocavam-se as
nossas, particularmente impregnadas de sobrevivências do Oriente. Penetrado ou
desvirginado por Portugal, o Oriente como que se vingara do ousado conquistador
semiocidental avivando nele empalidecidos traços orientais de cultura e até de
sangue; e acrescentando a antigos característicos africanos e asiáticos dos
portugueses, vários novos. Desses traços muitos foram transmitidos ao Brasil
desde os primeiros anos de colonização; e aqui se desenvolveram a seu modo sob
o favor da política de segregação da Europa adotada pelos portugueses com
relação à sua colônia americana depois que se descobriram nesta parte da
América esmeraldas e diamantes, além do ouro das Gerais.
No
próprio Portugal, os traços orientais chegaram ao século XIX com uma vivacidade
que talvez só fosse maior, na Europa inteira, na Turquia Asiática ou na parte
asiática da Rússia. Formavam eles forte contraste com os traços da Europa
propriamente ocidental, da qual, chegando ao Brasil, o Príncipe Regente e seus
orientadores tudo fizeram para aproximar o Brasil, mesmo afastando-o de
Portugal. É que os orientadores do Regente e ele próprio agiram menos em função
de uma política castiçamente portuguesa ou ibérica com relação ao Brasil, do
que de uma política imperialmente inglesa, ou britânica, de absorção e dominação
de povos e culturas extraeuropeias, para maior expansão dos produtos de suas
indústrias. Os “olhos dos estrangeiros”, ou antes, dos ingleses, é que passaram
a governar o Brasil através menos de cônsules e de caixeiros-viajantes, que
daqueles portugueses e brasileiros anglófilos do tipo do conde de Linhares e do
economista Silva Lisboa, para quem a salvação de Portugal ou do Brasil estava
em perderem, com a possível rapidez, quanto fosse forma ou cor oriental de
cultura para adquirirem as formas, as cores e os gestos dominantes no Ocidente
perfeitamente civilizado. E para eles o Ocidente perfeitamente civilizado eram
a Inglaterra e a França. Principalmente a Inglaterra. Donde o sentido
sociológico da frase que desde os princípios do século XIX se generalizou no
Brasil: “para inglês ver”.
Os
“olhos dos estrangeiros”, sob os quais o Brasil devia ascender à condição de
Nação ou de Reino civilizado, seriam principalmente os olhos dos ingleses. Eram
eles que deviam substituir o olhar duro, exigente, tutelar dos jesuítas e da
Santa Inquisição na direção “política e moral” das atividades brasileiras. O
próprio anglófilo a quem já se fez referência a propósito do significativo
incidente de destruição das rótulas nos sobrados do Rio de Janeiro, é como
procura justificar a violência policial que então se praticou contra os
senhores dos mesmos sobrados: invocando “muitos motivos de consideração moral e
política”. Entre os de consideração política, estariam, como já sugerimos
noutro ensaio, os de política econômica que várias evidências indicam terem
concorrido para o desejo inglês de que as rótulas ou gelosias de madeira das
cidades principais do Brasil fossem substituídas, nos sobrados – só nos
sobrados – por janelas de vidraça e varandas de ferro.
O fato
de alcançar a medida apenas os sobrados parece indicar que o costume da rótula
só era considerado “bisonho” neste tipo nobre de edifício: os “motivos de
consideração moral e política” contra as gelosias como que deixavam de existir
quando elas revestiam o tipo médio, ainda que já muito generalizado, de casa
urbana, que era a casa térrea: meio-termo entre o sobrado e o mucambo; entre o
palácio de rico e a palhoça de pobre ou miserável. Pelo ato violentamente
policial que acabou com as rótulas na cidade do Rio de Janeiro, deviam elas
desaparecer das “janellas dos sobrados [...] no termo de oito dias”,
tolerando-se pelo “espaço de seis mezes” as dos peitoris daquelas casas que não
tivessem ainda “grades de ferro”, para, durante esses breves seis meses,
processar-se a substituição da madeira pelo ferro, e não apenas do xadrez
mourisco pelo vidro de fabrico inglês. Excetuavam-se, porém, da violência, as
gelosias das já numerosas “casas terreas que nada influem na belleza do
prospecto...”.470
Que
não influísse o casario térreo na beleza do “prospecto” ou do conjunto urbano,
é duvidoso. O que parece certo, porém, é que os moradores ou os proprietários
desse casario médio fossem, na sua maioria, indivíduos economicamente incapazes
de substituir em dias ou meses as gelosias de suas residências por janelas
envidraçadas. Razão para que só fossem consideradas “disformes” e “funebres” as
gelosias dos sobrados.
O
Padre Sanctos informa terem elas caído por terra no meio de “geral satisfação”.
“Geral satisfação”, ao que parece, dos ocidentalistas que eram os reformistas
ou os modernistas da época, revoltados contra “os prejuisos, com que nos
criarão os nossos avós!”.
Para
esses ocidentalistas era como se o desaparecimento de característico tão
oriental da arquitetura doméstica como a gelosia de madeira marcasse a vitória
decisiva do Ocidente sobre o Oriente na luta entre culturas ou civilizações a
que o Brasil vinha servindo há anos de campo; e ora tomando feições nitidamente
orientais nos costumes, nos gestos – inclusive no modo de sentar-se a mulher e
mesmo o homem: de pernas cruzadas, “como os turcos”, segundo notaram Kidder, no
Norte, e Debret, no Rio de Janeiro471 – na
arquitetura, nos meios de transporte da gente e das coisas e na paisagem dos
jardins e das estradas; ora assumindo aspectos ocidentais de cultura e paisagem
que superavam os orientais. O sentimento que animava os ocidentalistas era,
porém, o de superação total do Ocidente na vida brasileira de modo a tornar-se
o Brasil área ocidental ou subeuropeia de cultura.
Quando
os ocidentalistas eram também, como os industriais ingleses e os franceses da
primeira metade do século XIX, fabricantes de artigos de casa, de vestuário, de
gozo, de alimentação, de transporte, de recreação, ou importadores, como vários
brasileiros da mesma época, desses artigos domésticos e civis, ao sentimento
juntava-se o interesse: o interesse na absoluta ocidentalização da vida
brasileira para que daqui desaparecesse a tradição de artigos orientais ou o
gosto pelo seu uso. Donde a necessidade, enxergada com olhos quase de ingleses
e franceses, por ocidentalistas brasileiros, de levantarem-se as novas gerações
do seu País contra os “prejuisos dos avós” – caturras apegados a gelosias, a
esteiras e a palanquins do Oriente; a sedas, a porcelanas, a perfumes e a leques
da China; e até ao costume dos adultos, e não apenas dos pequenos,
divertirem-se soltando fogos de vista orientais e empinando papagaios de papel
de seda à maneira dos chineses. Costume – o de adultos empinarem papagaios,
como forma de recreação nobre ou fidalga – que viria até quase nossos dias,
devendo notar-se que foi empinando – já moço ilustre e até bacharel – baldes e
gamelas, que Augusto Severo de Albuquerque Maranhão teve seu interesse
particularmente voltado para o problema da navegação aérea, de que seria
mártir, com a queda do balão Pax, em Paris. Seu companheiro de recreação
oriental fora o seu primo, igualmente já adulto e grave, José Antônio Gonsalves
de Melo que, na República, seria um dos mais severos “bispos” do Tesouro
Nacional, do qual foi diretor.
Para
os ocidentalistas, do que o Brasil necessitava era do que um deles, regozijado
com a violenta destruição das gelosias nos sobrados no Rio de Janeiro, em 1809,
chamava expressivamente de “desassombramento”.472
Desassombramento através do vidro inglês nas casas e nas carruagens ainda
orientalmente revestidas de gelosias e cortinas: as casas de “grades de xadrez”
que a Walsh recordaram as dos turcos.473
Desassombramento nas cidades, através de ruas largas como as do Ocidente que
substituíssem os becos orientalmente estreitos do Rio de Janeiro, de Salvador,
do Recife, de São Luís do Maranhão, de São Paulo, de Olinda, de todos os burgos
antigos do país. Desassombramento nas igrejas, através da substituição, pelas
senhoras, de capas, mantos, mantilhas ou xales orientalmente espessos, por
transparentes véus franceses que não escondessem os encantos de rosto e de
peito das iaiás. Desassombramento no rosto dos homens, por meio do corte, com
as tesouras e as navalhas inglesas de que se encheram as lojas brasileiras na
segunda metade do século XIX, dos excessos das barbas chamadas de “mouros”, de
“turcos”, de “nazarenos” – barbas ao mesmo tempo orientais e ortodoxamente
patriarcais, que seriam aos poucos substituídas por suíças, peras e cavaignacs
burgueses ou semiburgueses. Desassombramento através de poderosos
sistemas ocidentais de iluminação das ruas, das praças, das casas que
substituíssem o azeite de peixe, a vela de sebo, a lanterna oriental de papel,
a chamada “cabeça de alcatrão”, pelo lampião de querosene, pelo candeeiro
inglês, ou belga, também de querosene, pelo bico de gás. Desassombramento
nos costumes, nas maneiras, nos hábitos, nos gestos, nas relações entre homem e
mulher e entre pai e filho.
Veremos
mais adiante que “desassombrando-se” sob a influência de técnicas ocidentais de
produção, de transporte, de urbanização, de iluminação, de pavimentação de
estradas, de habitação, de conservação e preparação de alimentos, de recreação,
de saneamento de ruas e de casas, o Brasil entrou em nova fase de vida moral e
material. Mas sem que essa fase nova fosse marcada só por vantagens para a
nossa gente e para a nossa cultura ainda em formação. Sob vários aspectos, o
que havia já entre nós de imitado, assimilado ou adotado do Oriente representava
uma já profunda e, às vezes, saudável adaptação do homem ao trópico, que aquele
“desassombramento” rompeu ou interrompeu quase de repente.
Pois
não se vence o trópico sem de algum modo ensombrá-lo à moda dos árabes ou dos
orientais. Sem ruas estreitas. Sem xales, panos da Costa, guarda-sóis
orientalmente vastos para as caminhadas sob o sol dos dias mais quentes. Sem
sombras de grandes árvores asiáticas e africanas, como a mangueira, a jaqueira,
a gameleira, em volta das casas, nas praças e à beira das estradas. Sem telha
côncava nos edifícios. Sem largos beirais arrebitados nas pontas em cornos de
lua. Sem casas de telhado acachapado no estilo dos pagodes da China. Sem
varanda ou copiar, à moda indiana, ou dos bangalôs da Índia, nas habitações
rústicas. Sem cortinas, sem rótulas ou sem gelosias nas casas ou sobrados de
cidade. Sem esteiras dentro das casas, forrando o chão. Sem colchas da Índia
nas camas dos ricos. Sem refrescos de tamarindo, de limão, de água de coco, nas
horas de calor mais ardente. Sem muito azeite, muito cravo, muita pimenta,
muito açafrão avermelhando a comida, avivando-a, requeimando-a para melhor
despertar o paladar um tanto indolente das pessoas amolecidas pelo calor. E
esses valores orientais, o Brasil assimilara-os através do português, do mouro,
do judeu, do negro. O Brasil fizera-os valores seus. Ao findar o século XVIII
eram valores brasileiros. Ligavam amorosamente o homem e a sua casa à América
tropical. Não podiam deixar de afetar a mentalidade ou o espírito dos homens,
certo como é que o hábito tende a fazer o monge: tanto o hábito-trajo como o
hábito-costume.”
470 O padre Luiz Gonçalves
dos Sanctos, em suas Memorias para servir á historia do reino do Brasil
[...] Escriptas na Corte do Rio de Janeiro no anno de 1821 e offerecidas a S.
Magestade elrei Nosso Senhor D. João VI, Lisboa, 1825, I, p. 137.
471 Em um almoço típico de
gente média do campo de que participou em Itamaracá, Kidder notou que a mesa,
presidiu-a “the Senhor, sitting à la Turque” (Daniel P. Kidder, Sketches
of residence and travels in Brazil, Filadélfia, 1845, II, p. 163). O costume
era ainda muito generalizado nas áreas rurais e, nas urbanas, limitado às
senhoras ou às mulheres. Já Debret observara, no Rio de Janeiro, entre senhoras
da classe alta, que, nas igrejas, sentavam-se à asiática (“à l’asiatique”),
“usage” – acrescenta – “qu’on retrouve dans les réunions
particulières des classes inférieures de la population, toujours assises par
terre” (op. cit., II, p. 91). Asiatismo ou orientalismo deve ser também
considerado o hábito de as mesmas senhoras não usarem em casa sapatos, mas
conservarem-se descalças, quando sentadas à asiática no meio de suas mucamas,
utilizando-se, para andarem dentro das salas, de “une paire de souliers
fanés qui leur sert de pantoufles pour ne pas marcher pieds nus dans la maison”
(ibid., p. 91).
472 Padre Luiz Gonçalves
dos Sanctos, op. cit., II, p. 137.
473 R. Walsh, Notices of
Brazil in 1828 and 1829, Londres, 1830, I, p. 86. Nas palavras do observador
inglês: “The windows were barred up like those of the Turks, with lattices
of cross-barred laths, which acarcely admitted the light, and throught which it
was impossible to see or to be seen”.
“Os
anúncios de jornal revelam, desde os primeiros dias em que começou a haver
imprensa no Brasil até o terceiro decênio do século XIX, como persistiu na
população, resistindo ao impacto da produção industrial europeia, o gosto pelos
artigos orientais a cujo uso ou gozo o brasileiro se afeiçoara durante longo
período de sua experiência colonial; e que correspondiam melhor que os europeus
– produtos de uma civilização individualista, racionalista, secularista – ao
seu sistema de vida e aos seus estilos de cultura impregnados, como os do
Oriente, de familismo, de patriarcalismo e de religionismo ou misticismo. Os
conteúdos ou as substâncias eram, por certo, diferentes e até antagônicos; mas
as formas dos dois sistemas de vida – o oriental e o brasileiro – semelhantes.
Donde terem persistido, do modo por que persistiram, as afinidades entre as
duas áreas.”
“Infiltrações mais sutis que as de paladar, de olfato, de gesto, de trajo,
de formas de arquitetura, de moral e mesmo de estética, do Brasil pelo Oriente
teriam substituição mais lenta por equivalentes ou contrários europeus. Ou
substituição, durante longos anos, mais aparente do que real.
Oriental
não fora só, no Brasil-Colônia e dos primeiros tempos do Império, o costume de
homens e mulheres se sentarem de pernas cruzadas sobre tapetes, esteiras ou no
chão – costume seguido pelas mulheres até nas festas de igreja. Fora, também, o
de bater a pessoa palmas à porta das casas, para se anunciar,537 o costume ainda hoje muito
brasileiro. Fora o gosto pelo chapéu de sol, não só para resguardar do sol o
homem importante como para marcar-lhe a condição socialmente superior de pessoa
fina. Fora o hábito das unhas crescidas, outra ostentação de importância social
ou de condição senhoril nos homens e nas mulheres fidalgas ou parafidalgas.
Fora o costume das sinhazinhas serem dadas em casamento ainda meninas a homens
às vezes mais velhos que seus próprios pais. O hábito de não aparecerem as
senhoras a estranhos. O de se revestirem de mantilhas ou de xales. O de armarem
as senhoras o cabelo em penteados altos – de preferência ao uso europeu de
chapéu – e o de adornarem as mucamas a cabeça com turbantes. O gosto pelas
cores quentes, pelos perfumes fortes, pelas comidas avivadas por temperos
também fortes.
Fora
também oriental o rito de se reverenciarem, em solenidades oficiais, com
zumbaias características do extremo respeito dos governados pelos governantes,
quando não as pessoas, os retratos dos monarcas ou dos príncipes (prática que a
protestantes mais severos pareceu tão repugnante quanto a do beija-mão nos
palácios reais). Oriental o costume de se ajoelharem todos na rua à passagem da
rainha ou de qualquer dos príncipes da Família Real, desde que a ilustre
família se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro; ou o da gente servil
curvar-se diante da senhoril em gestos que se tornaram conhecidos entre nós por
aquele nome indiano: zumbaias. Zumbaias também trocadas entre iguais na classe,
na raça e na cultura regional.
“Bien
des Portugais sont Nègres par cet usage”, escreveu, referindo-se ao hábito
de se ajoelharem as pessoas à passagem da rainha ou dos príncipes, o francês
Arago,538
para quem só gente de raça inferior ou de classe servil, como a negra ou a
africana, era capaz de se pôr humildemente de joelhos diante de príncipes. A
verdade é que no Oriente quase inteiro – inclusive no mais civilizado –
continuavam os príncipes, no século XIX, a despeito da Revolução Francesa e da
“Época das Luzes”, a ser pessoas quase divinas para seus súditos, que diante
deles se prostravam como os católicos do Ocidente diante não só do Santíssimo
Sacramento como do Santo Padre; e desses costumes de tal modo se impregnara o
português que só aos poucos a “grande Revolução” ou a “Época das Luzes” o
afetaria nos seus modos semiorientais de reverenciar príncipes, pais e avós.
“Não há país em que os filhos testemunhem maior respeito aos pais”, observou o
mesmo Arago no Brasil. “Depois da refeição, sempre lhes beijam as mãos e nunca
se sentam em sua presença, a menos que autorizados por um gesto ou olhar.”539 É
claro que Arago referia-se aos países ocidentais do seu conhecimento; pois o
Oriente encontraria ainda maiores demonstrações de respeito dos filhos aos pais
– e não apenas dos súditos aos monarcas – do que as observadas no Brasil do
tempo de D. João.”
537
Debret, op. cit., III, p. 147. Debret escreve: “L’usage des cordons de sonnettes, encore inconnu,
laisse subsister l’ancienne coutume asiatique de frapper plusieurs dans les
mains pour s’annoncer: signal auquel descend le nègre valet de chambre et qui
se charge de vous conduire, et de vous reconduire au besoin”.
538 J. Arago, Promenade autour du monde, Paris, s.
d., I, p. 115.
539 Ibid., I, p. 108.
“Em Minas Gerais, viu Mawe damas vestidas com fazendas inglesas e uma “profusão
de correntes de ouro em volta ao pescoço, sempre usadas quando as senhoras
fazem ou recebem visitas”.566 Orientalismo do bom em
combinação com o ocidentalismo dos vestidos. Notou também o inglês ser ainda
raro entre as senhoras mineiras o hábito europeu das mulheres usarem chapéu. A
não ser as velhas,567 nas quais tornou-se insígnia
de idade e de classe senhoril, até o fim do século XIX, o uso de capotas,
geralmente pretas. Enquanto as pobres ou de classe ou raça servil se cobriam
com xales, panos da costa ou baetas. Nos dias de Mawe no Brasil as senhoras,
mesmo vestidas à europeia, apresentavam-se sem chapéus, com o cabelo
orientalmente adornado de pentes “frequentemente de ouro”. Ficaram elas
espantadas de saber que as senhoras inglesas usavam chapéus.568
Esse
orientalismo – o uso de grandes pentes no cabelo, em vez de chapéus – parece
explicar por que só no meado do século XIX o chapéu para senhora, de fabrico
inglês ou francês, se apoderou verdadeiramente do mercado brasileiro, fazendo
declinar o uso dos grandes pentes de ouro, de marfim e de tartaruga da Índia ou
de Moçambique, chamados “tapa-missas” ou “trepa-moleques”. Fazendo declinar
também o uso das mantilhas, mantos e xales entre as senhoras da classe alta.
Mantos e xales foram tornando-se insígnias de classe inferior, de raça negra ou
de mulher da roça. Os adornos de rendas – rendas de ouro ou de veludo – das
mantilhas ou dos mantos de mulher – que outrora distinguiam as classes ou
subclasses – passaram assim a perder seus antigos significados, ao lado
daquelas distinções de origem regional, dentro da procedência africana das
mulheres servis, indicadas pelo modo de usarem seus xales ou seus panos da
Costa que, antes do professor M. J. Herskovits na América do Norte, tentamos
estudar no norte do Brasil com a colaboração do Sr. Cícero Dias como
desenhista.569 (...)
Das
nossas igrejas da época colonial sabe-se que mais de uma se embelezou com
objetos vindos do Oriente, alguns dos quais podem ser vistos em museus como o
de Arte Sacra de Salvador. Schaeffer, quando esteve no Brasil em 1849,
admirou-se de ver num mosteiro do Rio de Janeiro, construído – diz ele – em
1671 – “a large China figure of our Saviour in the Cross” – numa capela
que brilhava de cores orientais: “the walls with porcelain and China
squares, relived by gilt and scarlet lines”.576
Em Sabará, em Minas Gerais, umas das igrejas por nós visitada em 1936 na
companhia do historiador Afonso Arinos de Melo Franco, ostenta adornos
orientais que dão ao interior do templo católico cores quase de pagode. De modo
que é possível que a cristianização ou a catequização dos indígenas por meio da
“pintura decorativa”, nas igrejas – pintura a que se refere o Sr. Luís Jardim,
em sugestivo estudo sobre igrejas de Minas Gerais577
– tenha se feito, mais de uma vez, no Brasil, com o emprego de adornos ou
decorações orientais. Buda e Islã parecem ter concorrido, no nosso País, para
conduzir a Cristo ou a Roma indígenas fascinados por vermelhos, amarelos e
azuis do Oriente.
Oriental
– mouro, ao que parece – na origem mais remota dos seus requintes volutuosos
parece que se deve considerar o hábito, que o Brasil herdou de Portugal, das
senhoras, dos meninos e dos próprios senhores das casas-grandes e até dos
sobrados deixarem catar o cabelo ou coçar a cabeça por mãos ou dedos de
escravos que matavam, ou simulavam matar, piolhos, com pequenos trincos
característicos: os cafunés. Pois na ausência de piolhos, regalavam-se ioiôs ou
iaiás mais dengosas com trincos ou cafunés de mucamas, na cabeça e por entre o
cabelo, isto é, com a catação simulada ou simbólica de piolhos pelas pontas das
unhas finas das mulatas ou das negras. Às vezes era o contrário que se
verificava: a iaiá branca catava a mucama ou o malungo. No seu Vocabulário
pernambucano, Pereira da Costa recorda, a propósito desse tipo de cafuné,
os versos populares:
“Eu
adoro uma iaiá
Que
quando está de maré
Me
chama muito em segredo
Pra me
dar seu cafuné
Não
sei que jeito ela tem
No
revolver dos dedinhos
Qu’eu
fecho os olhos, suspiro
Quando
sinto os estalinhos”.
“Se se
acreditasse nas más línguas, algumas damas tinham razões mais poderosas para
cultivar assiduamente o cafuné do que o desejo de uma doce superexcitação de
nervos, seguido de um estado de prostração que chega ao êxtase”, escreveu
Charles Expilly.578 Pormenoriza o europeu
escandalizado com o costume brasileiro volutuosamente oriental: “À hora do
grande calor [...] as senhoras recolhidas no interior dos aposentos deitam-se
no colo da mucama favorita, entregando-lhe a cabeça. A mucama passa e repassa
seus dedos indolentes na espessa cabeleira que se desenrola diante dela. Mexe
em todos os sentidos naquela luxuriante meada de seda. Coça delicadamente a
raiz dos cabelos, beliscando a pele com habilidade e fazendo ouvir, de tempos a
tempos, um estalido seco entre a unha do polegar e a do dedo médio. Esta
sensação torna-se uma fonte de prazer para o sensualismo das crioulas. Um
volutuoso arrepio percorre os seus membros ao contato dos dedos acariciadores.
Invadidas, vencidas pelo fluido que se espalha em todo o seu corpo, algumas
sucumbem à deliciosa sensação e desfalecem de prazer sobre os joelhos da
mucama”.579 De onde a interpretação psicanalítica do
cafuné inteligentemente oferecida pelo professor Roger Bastide no seu
Psicanálise do cafuné.580 Transcreve o professor
Roger Bastide do cronista francês do meado do século XIX581
a informação de ter sido o hábito do cafuné também regalo dos senhores, embora
principalmente das senhoras.
Ao que
se deve acrescentar o regalo – este principalmente dos meninos das
casas-grandes e dos sobrados – de terem os pés catados por bonitas mucamas,
peritas na extração de bichos: extração quase sempre precedida de volutuosa
comichão, a que os dedos das mulatas sabiam dar alívio, abrandando-a numa
espécie de coceira pós-operatória. Era a extração de bicho-de-pé em menino ou
menina, por mão macia de mucama de sobrado ou casa-grande, uma como catação de
piolho nos pés. Volutuosa, também, como o cafuné. Em viagem, os próprios
adultos tinham em áreas como a mineira os pés catados por peritos em extrair
bichos: “at which operation they are very expert”,582
escreveu dos mineiros o inglês James Holman que, cego, parece ter tido olhos, e
não apenas sensibilidade, nas pontas dos dedos dos pés: olhos para acompanharem
as operações de extração de bichos, precedidas da lavagem dos pés em bacia ou
alguidar, por mãos de escravo ou escrava. Ora, o lava-pés mais ou menos
volutuoso pode ser incluído entre os orientalismos que caraterizam a vida
patriarcal no Brasil. O lava-pés e a catação, real ou simbólica, de piolhos na
cabeleira das mulheres ou no cabelo dos homens. Costumes de origem
evidentemente oriental. O cafuné, parece que não só de origem oriental como,
particularmente, moura. (...)
Evidentemente,
um caso extremo de gordura oriental de iaiá a tornar ridículo o uso de artigos
femininos inspirados nas formas ocidentais de mulher. Mas o fato é que o comum,
no Brasil patriarcal, eram as senhoras gordas ou moles. Ou corpulentas, como as
matronas que Luccock conheceu nos princípios do século XIX. Só as iaiazinhas
eram de ordinário finas e franzinas.”
566 Travels in the interior of Brazil, 2ª ed., Londres, 1821, p. 218
569 Sobre o assunto
apresentamos nota prévia ao 1º Congresso Afro-Brasileiro, reunido no Recife em
1934. Extraviaram-se a nota e as excelentes ilustrações, feitas pelo pintor
Cícero Dias, dos diferentes modos por nós observados, de mulheres do povo de
Pernambuco usarem, até época recente, xales ou mantas, de acordo com diferentes
estilos dominantes nas áreas africanas de procedência de grupos cujas tradições
se conservaram no Brasil.
576 L. M. Shaeffer, Sketches
of travels in South America, Mexico and California, Nova York, 1860, p.
14-15.
577 Luís Jardim, “A pintura
decorativa em algumas igrejas de Minas”, Revista do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, 1939.
O
historiador mineiro Augusto de Lima Júnior no seu estudo A capitania das
Minas Gerais (Lisboa, 1940) recorda à página 78 que do Oriente vieram para
Minas Gerais, na era colonial, “muitas reproduções em vulto, cortadas em
ébano”, da Virgem de São Lucas, da qual se fizeram, no Brasil, cópias em
jacarandá. Também em bens arrolados de padres ou bacharéis de Minas Gerais,
daquela época, encontravam-se peças de louça da Índia, destacando o historiador
mineiro à página 118 do seu ensaio: “... guarneciam as residências grande cópia
de louças da Índia, assim denominadas as procedentes do Oriente...”. Explica-se
assim que às igrejas tivessem também chegado peças decorativas do Oriente ou de
estilo oriental, fabricadas no Reino.
578 Charles Expilly, Mulheres
e costumes do Brasil (trad. de Gastão Penalva), São Paulo, 1940, p. 369.
580 Psicanálise do
cafuné e estudos de sociologia estética brasileira, Curitiba, 194l.
582 James Holman, Travels
in Madeira, Sierra Leone, Teneriffe, S. Jago, Cape Coast, Fernando Po, Princess
Island etc., Londres, 1840, I, p. 487.
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