quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um Diário do Ano da Peste (Parte II), de Daniel Defoe

Editora: Clube Literatura Clássica

ISBN: 978-65-87036-25-0

Tradução: Marcio Hack

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 272

Sinopse: Ver Parte I



“Ora, quando digo que as autoridades paroquiais não fizeram um registro completo, ou que não podemos confiar em seus registros, que qualquer um reflita em como os homens poderiam fazer contagens precisas (do número de mortes) num tempo de tão pavorosa aflição, e quando muitos deles mesmos adoeceram e talvez morreram justo quando deveriam entregar os seus registros. Aqui me refiro aos escreventes das paróquias, além dos funcionários menores; pois, embora aqueles pobres homens corressem todos os riscos, ainda assim longe ficavam de estar isentos da calamidade geral, ainda mais considerando que era verdade a respeito da paróquia de Stepney que esta teve, no espaço de tempo daquele ano, 116 sacristãos, coveiros e assistentes, ou seja, os carregadores dos mortos, os sineiros e os cocheiros das carroças que levavam os cadáveres.

Na realidade, o trabalho não era de tal natureza que lhes permitisse o luxo de anotar uma contagem exata dos cadáveres, que eram amontoados todos juntos no escuro de uma vala; dessa vala ou fosso ninguém podia se aproximar, a não ser correndo o risco mais extremo. Observei muitas vezes que nas paróquias de Aldgate e Cripplegate, Whitechapel e Stepney, quinhentos, seiscentos, setecentos e oitocentos mortos apareceram nos avisos de uma semana, ao passo que, se podemos acreditar na opinião dos que, como eu, continuaram na cidade durante toda a epidemia, às vezes morriam 2.000 em uma semana naquelas paróquias; e vi, em papel assinado por uma pessoa que fez uma investigação tão rigorosa quanto possível dessa questão, que na verdade morreram cem mil pessoas da peste naquele ano, ao passo que dos avisos constavam, como vítimas da peste, somente 68.590 mortos.

Se me permitirem registrar a minha opinião, baseada no que vi com meus olhos e ouvi de outras pessoas que foram testemunhas, em verdade acredito no seguinte: que morreram ao menos 100.000 pessoas da peste, além dos vitimados por outras doenças, e além dos que morreram nos campos e nas estradas, e nos abrigos secretos, fora do âmbito da comunicação, como se costumava chamar, e que não foram anotados nos avisos, embora na verdade pertencessem ao corpo dos habitantes. Era conhecida por todos a abundância de pobres criaturas desesperadas, doentes da peste, e que a situação miserável levara à melancolia ou à imbecilidade, como aconteceu com muitos, que saíram vagando pelos campos e bosques, e adentraram em lugares secretos e estranhos, quase sem critério nenhum, rastejando até um arbusto ou sebe para MORRER.

Os habitantes dos vilarejos adjacentes, por pena, levavam-lhes alimentos, que deixavam a uma distância segura, para que os doentes viessem pegá-los, se pudessem. E às vezes não podiam, e quando tais habitantes retornavam, descobriam que os pobres infelizes estavam mortos e que a comida não fora tocada. O número daquelas figuras miseráveis era grande, e sei de tantos que pereceram dessa forma, e com tal exatidão em que lugar morreram, que acredito que poderia ainda hoje ir até lá e encontrar seus ossos sob a terra; pois as gentes do interior iam e cavavam um buraco a alguma distância dos mortos, e depois, com varas muito longas, e ganchos presos às extremidades destas, arrastavam os corpos até que caíssem naquelas valas, e depois as tapavam com terra, atirada da maior distância possível, para cobri-los, atentando para como soprava o vento, e se posicionando naquele lado que os marinheiros chamam de barlavento, para que o odor dos cadáveres soprasse para longe deles; e, assim, em grandes números, pessoas foram embora deste mundo das quais nunca se teve notícia, ou que nunca foram anotadas nos registros, nem dentro nem fora dos avisos de mortalidade.”

 

 

“Um dos piores dias que tivemos em toda aquela época, assim me pareceu, foi no início de setembro, quando pessoas de boa índole chegaram mesmo a acreditar que Deus havia resolvido acabar de uma vez por todas com os habitantes desta miserável cidade. Isso foi numa época em que a peste atingira em cheio as paróquias do leste. A paróquia de Aldgate, se posso dar a minha opinião, enterrou mais de mil pessoas por semana ao longo de duas semanas, embora os avisos não trouxessem número tão grande. A doença, porém, me cercava em proporções tão lúgubres que não havia uma casa em vinte que não estivesse infectada nas Minoritas, em Houndsditch, e naquelas partes da paróquia de Aldgate em volta de Butcher Row e nas vielas em frente à minha casa. Naqueles lugares, a morte imperava em todas as esquinas. A paróquia de Whitechapel encontrava-se na mesma condição, e, embora muito menos do que a paróquia em que eu vivia, enterrava perto de 600 por semana, segundo os avisos, e na minha opinião quase o dobro disso. Famílias inteiras, e em verdade as famílias de ruas inteiras, eram varridas ao mesmo tempo; tanto que era frequente os vizinhos chamarem o sineiro para ir a esta ou aquela casa de modo a recolher as pessoas, pois lá estavam todas mortas.

E, de fato, o trabalho de remover os cadáveres usando as carroças agora tornara-se de tal forma odioso e arriscado que começaram a correr reclamações de que os carregadores não tomavam o cuidado de limpar as casas51 em que todos os habitantes haviam morrido, e de que algumas vezes os corpos continuavam insepultos por muitos dias, até que as famílias vizinhas se incomodassem com o fedor, e eram consequentemente infectadas; e essa negligência das autoridades era tal que os fabricários e meirinhos foram intimados a cuidar da questão, e até mesmo os juízes das aldeias foram obrigados a arriscar a vida entre os carregadores, para animá-los e encorajá-los, pois inumeráveis carregadores morriam da peste, infectados pelos corpos dos quais eram obrigados a se aproximar tanto. E não fosse pelo fato de que a quantidade de pobres que precisavam de emprego e de pão (como já disse acima) era tão grande que a necessidade os impelia a aceitar qualquer coisa e a arriscar qualquer coisa, nunca teria sido possível encontrar gente a empregar naquela tarefa. E os corpos dos mortos teriam permanecido acima do chão, e teriam se deteriorado e apodrecido de modo pavoroso.

Mas no tocante a isso não é possível exagerar no louvor aos magistrados: mantiveram uma ordem tão excelente no enterro dos mortos que, tão cedo adoecesse ou morresse alguém que tinha o emprego de levar e enterrar os mortos, como era muito comum acontecer, os magistrados imediatamente forneciam novos trabalhadores aos locais relevantes –, coisa que, por razão do grande número de pobres que não tinham trabalho, como foi descrito acima, não era difícil. Isso fez com que, não obstante o número infinito de pessoas que morriam e que ficavam doentes quase ao mesmo tempo, elas ainda assim fossem apanhadas e levadas todas as noites, de modo que nunca se pôde dizer, a respeito de Londres, que os vivos não conseguiram enterrar os mortos.

Como a desolação foi maior durante aquela época terrível, também cresceu o assombro das pessoas, que faziam milhares de coisas inexplicáveis, impelidas pela violência do pavor que sentiam, assim como outros também faziam quando nas agonias da enfermidade, e isso era de comover o coração. Alguns saíam pelas ruas rugindo, e gritando, e retorcendo as mãos; outros saíam rezando e erguendo as mãos para o céu, rogando pela misericórdia de Deus. Não sei dizer, em verdade, se não faziam isso quando estavam fora de si, mas, mesmo assim, isso era indicativo de uma mente mais séria, quando estavam em perfeito juízo, e era coisa muito melhor, mesmo sendo terrível, do que os berros e gritos apavorantes que todos os dias, e especialmente ao anoitecer, se podia ouvir em algumas ruas.”

51. Clear such houses..., isto é, retirar os cadáveres das casas. NE.

 

 

“Era realmente coisa deplorável ouvir as miseráveis lamentações das pobres criaturas moribundas, que chamavam aos gritos os sacerdotes para que as consolassem e rezassem com elas, para que as guiassem e aconselhassem, clamando a Deus por perdão e misericórdia, e confessando em voz altas os pecados cometidos. O mais robusto coração sangraria ao ouvir quantas advertências foram então dadas aos outros pelos penitentes à beira da morte, para que não adiassem e retardassem seu arrependimento para o Dia da Aflição; que uma época de calamidade como aquela não era hora de se arrepender, não era hora de clamar por Deus. Eu gostaria de poder repetir o som mesmo dos gemidos e exclamações que ouvi de algumas pobres criaturas moribundas quando estavam no auge de suas agonias e aflições; gostaria de fazer o leitor dessas palavras ouvir, como neste momento penso ouvi-lo, pois o som parece até hoje ressoar em meus ouvidos.”

 

 

“Assim como os mais ricos entraram em navios, os de classe mais baixa entraram em batelões, sumacas, fragatas e barcos de pesca; e muitos, em especial marinheiros, dormiam em seus barcos; mas muitos se conduziram de modo infeliz, especialmente estes últimos, pois, saindo para obter mantimentos, e talvez para conseguir sua subsistência, a infecção penetrou entre eles, causando uma temível devastação. Muitos dos marinheiros morreram sozinhos em seus botes enquanto navegavam por seus caminhos, tanto acima quanto abaixo da ponte, e às vezes não eram encontrados até que suas condições já não permitissem que alguém se aproximasse deles ou os tocasse.

Deveras, a aflição do povo naquela região da cidade em que tantos navegantes habitavam era verdadeiramente deplorável, e merecedora da maior comiseração. Mas, infelizmente, aquela era uma época em que a preocupação com a segurança pessoal era tão imediata para todos que a ninguém sobrava uma margem que permitisse apiedar-se das aflições dos outros, pois a morte, por assim dizer, batia à porta de todos, e já circulava inclusive em meio às famílias de muitos. E as pessoas não sabiam o que fazer ou onde encontrar refúgio.

Isso, como venho dizendo, nos levava toda a compaixão. A autopreservação naquele momento parecia ser, de fato, a primeira das leis. Pois os filhos fugiam dos pais enquanto estes definhavam em meio à aflição mais absoluta. E em alguns lugares, embora esse caso não fosse tão frequente quanto o anterior, os pais faziam o mesmo com os filhos. Mais ainda: houve alguns casos pavorosos, e especial dois deles numa semana, de mães aflitas, delirantes e fora de si, que mataram os próprios filhos. Um deles se deu não muito longe de minha própria casa, a pobre e lunática criatura não sobrevivendo por tempo o suficiente para aperceber-se do pecado que cometera, e menos ainda para ser punida por ele.

E não era, de fato, de se espantar: pois o perigo da nossa própria morte imediata nos desentranhava o amor, e toda a preocupação que podíamos ter pelos outros. Falo aqui em termos gerais, pois houve muitos exemplos de afeição, piedade e dever inamovíveis, em muitas pessoas, e alguns deles chegaram ao meu conhecimento, isto é, por ouvir dizer.

Pois não assumirei a responsabilidade de asseverar a verdade dos detalhes de cada caso.

Para apresentar um deles, deixem-me primeiro mencionar que um dos casos mais deploráveis em toda aquela calamidade foi o das mulheres grávidas, as quais, quando chegavam à hora do sofrimento, e eram tomadas pelas dores, não podiam contar nem com esta nem com aquela ajuda. Nem parteiras nem vizinhas se aproximavam. As parteiras, em sua maioria, estavam mortas, especialmente aquelas que trabalhavam para os pobres. E muitas, senão todas, as parteiras mais eminentes haviam fugido para o interior, de modo que era praticamente impossível para uma mulher pobre, que não tinha como arcar com um preço excessivo, ter uma parteira consigo, e, se tivesse, as parteiras que achava geralmente eram criaturas incompetentes e ignorantes; e a consequência disso foi que um número deveras incomum e incrível de mulheres foi reduzido à aflição mais absoluta. Algumas foram partejadas e prejudicadas pela imprudência e pela ignorância das que fingiam ajudá-las. Incontáveis crianças foram, posso dizê-lo, assassinadas pela mesma ignorância, mas de um tipo mais justificável: as parteiras fingiam que salvariam a mãe, não importando o que acontecesse à criança. E muitas vezes mãe e criança morriam da mesma forma. E especialmente quando a mãe tinha a peste, ninguém ousava aproximar-se e às vezes mãe e criança pereciam. Às vezes a mãe morria da peste, e a criança ainda não terminara de nascer, ou tinha nascido mas ainda não fora separada da mãe. Algumas morriam com as dores do parto, sem dar à luz. E tantos foram os casos desse tipo que é difícil dizer quantos. (...)

Não há margens para dúvida de que a miséria das que amamentavam era, proporcionalmente, da mesma dimensão. Nossos avisos de mortalidade pouca luz podiam lançar sobre esse fato, mas ainda assim esclareciam alguma coisa. Havia um número muito maior de crianças de peito que morriam de fome, mas isso não era nada. A miséria estava em, primeiro, passarem fome por falta de peito, tendo a mãe morrido, e toda a família e as crianças sendo encontradas mortas junto com elas, por simples carência. E, se posso dar minha opinião, acredito que muitas centenas de pobres e indefesos bebês pereceram dessa maneira. Em segundo lugar, morriam não de fome, mas envenenados pela ama de leite. E digo mais, mesmo quando a mãe podia amamentar, estando infectada, envenenava a criança, isto é, infectava-a com o seu leite antes mesmo que soubesse que ela própria estava infectada. E não raro a criança morria, nesses casos, antes da mãe. Impossível não me lembrar de deixar registrada essa advertência: se alguma vez no futuro uma visitação terrível como essa voltar a ocorrer na cidade, todas as mulheres que estiverem grávidas ou amamentando devem ir embora, se houver alguma possibilidade disso, pois o infortúnio delas, se forem infectadas, será muito maior que o das outras pessoas.

Eu poderia aqui contar lúgubres histórias de bebês que foram encontrados sugando os seios das mães, ou amas de leite, depois que estas haviam morrido da peste. De uma mãe, na paróquia em que eu morava, que, tendo uma criança que não estava bem, mandou vir um boticário para examiná-la. E quando ele chegou, segundo se conta, a mãe a amamentava, aparentemente estando muito bem de saúde. Mas quando o boticário se aproximou da mulher, viu os sinais da doença naquele seio com o qual ela dava de mamar à criança. Isso o surpreendeu, é certo, mas, não querendo assustar demais a pobre mulher, pediu que ela lhe entregasse a criança. Ele então a pegou no colo, e foi até um berço que havia no cômodo, e a deitou ali. Abrindo as roupas da criança, encontrou também nela os sinais da doença, e ambas morreram antes que ele pudesse chegar em casa para enviar um remédio preventivo ao pai da criança, ao qual informara sobre as condições de mãe e bebê. Se a criança infectou a mãe que a amamentava ou se a mãe infectou a criança, isso não se sabe, mas o segundo caso é o mais provável.

Poderia também contar de um bebê que foi devolvido à casa dos pais, vindo de uma ama que morrera da peste, mas mesmo assim a terna mãe não se recusou a aceitar a criança, e a colocou em seu peito, e por ela foi infectada, e morreu tendo a criança nos braços já morta.

O mais endurecido dos corações se comoveria perante os casos, que frequentemente se podia encontrar, de ternas mães que cuidavam e velavam por seus queridos filhos, e que chegavam até a morrer na frente deles, e às vezes pegando a doença do filho e morrendo, quando a criança pela qual o afetuoso coração fora sacrificado já se curara da doença e escapara da morte.

Coisa semelhante ocorreu a um comerciante de East Smithfield, cuja esposa estava já nos últimos tempos da gravidez do primeiro filho, e entrou em trabalho de parto, estando doente da peste. Ele não conseguiu encontrar parteira que pudesse prestar ajuda à esposa ou enfermeira que cuidasse dela, e as duas criadas que ele tinha fugiram ambas da patroa. Ele correu de casa em casa como se estivesse fora de si, mas não conseguiu encontrar ajuda. O máximo que conseguiu foi que um vigia, responsável por uma casa infectada que fora fechada, prometesse mandar uma enfermeira na manhã seguinte. O pobre homem, com o coração partido, voltou para casa, ajudou a mulher até onde podia, fazendo o papel de parteiro, deu à luz a criança já morta, e a esposa, dentro de uma hora, morreu em seus braços. Em seu abraço segurou firmemente 0 cadáver da esposa até o amanhecer, quando apareceu o vigia trazendo a enfermeira, como havia prometido. E, ao subir as escadas (pois o homem deixara a porta aberta, ou destrancada), toparam com o homem sentado segurando a esposa nos braços, e tão devastado pela tristeza que morreu dentro de poucas horas, sem apresentar em si nenhum sinal da infecção; mas simplesmente oprimido pelo peso de seu pesar.”

 

 

“Sei que os habitantes das cidades adjacentes a Londres foram muito responsabilizados pela crueldade no tratamento dado aos pobres que fugiam do contágio, aflitos que estavam, e muitas medidas extremamente severas foram tomadas, como se pode ver pelo que relatei acima. Mas não posso me omitir de dizer também que, onde havia margem para a caridade e para o socorro às pessoas, sem que isso implicasse num perigo evidente para os que ajudavam, eles tinha a boa vontade de ajudar e socorrer. Mas, como acontecia de cada cidade ser a juíza de seu próprio caso, os pobres que viajavam fugindo, e se encontravam em situações extremas, muitas vezes eram maltratados e forçados a retornar à cidade. E, isso causou infinitas exclamações e protestos contra as cidades as cidades do interior, e fez com que esse clamor fosse muito difundido entre o povo.”

 

 

“Deve-se aqui, contudo, observar que, depois que os funerais passaram a ser tão numerosos que as pessoas não podiam tocar o sino, lamentar ou chorar, ou vestir o negro umas pelas outras, como faziam antes – não, nem sequer caixões podiam fazer para todos os que morriam –; assim, passado um tempo, a fúria da infecção pareceu ter se intensificado de tal maneira que, em suma, as casas deixaram de ser trancadas. Parecia suficiente que todas as medidas daquele tipo tivessem sido usadas até o momento em que se percebeu que eram inúteis, e que a peste tivesse se propagado com uma fúria irresistível. De modo que, assim como o incêndio do ano seguinte se propagou, e queimou com tal violência que os cidadãos, em desespero, desistiram de seus esforços para extingui-lo, também a peste alcançou enfim tal violência que as pessoas se reduziram a ficar sentadas, em silêncio, olhando umas para as outras, parecendo totalmente entregues ao desespero. Ruas inteiras pareciam despovoadas: não apenas as casas estavam cerradas, como também pareciam esvaziadas de seus habitantes. Portas eram deixadas abertas, as janelas se estilhaçavam com o vento em casas vazias, pois não havia ninguém ali para fechá-las. Em suma, as pessoas começaram a se entregar a seus medos, e a acreditar que todos os procedimentos e métodos eram em vão, e que não se podia ter esperança alguma, pois o único fim possível era uma desolação universal. E foi exatamente no auge desse desespero generalizado que Deus achou por bem suster a própria Mão, e arrefecer a fúria do contágio de tal maneira que chegou a ser surpreendente, assim como fora o seu início, e demonstrou tratar-se de sua própria Mão, e ela acima de tudo, ainda que não sem a agência dos meios, como tratarei de observar quando for adequado.”

 

 

“Mas, retornando às observações específicas que fiz durante essa parte terrível da visitação: cheguei agora, como já disse, ao mês de setembro, que foi o mais terrível dos meses, acredito eu, que Londres já viu. Pois, segundo todos os cálculos que vi a respeito das visitações anteriores ocorridas em Londres, nada foi como aquele mês, com o numero no aviso semanal chegando a quase 40.000 no período de 22 de agosto a 26 de setembro, composto de apenas cinco semanas. (...)

Já era um número prodigioso em si mesmo, mas se eu acrescentasse os motivos que tenho para acreditar que esse cálculo era deficiente, e em que medida era deficiente, o leitor, junto comigo, não hesitaria em acreditar que morreram cerca de dez mil pessoas por semana durante todas aquelas semanas, uma seguida da outra, e uma boa porção desse número durante várias semanas tanto antes quanto depois. A confusão que naquela época reinava entre as pessoas, em especial na City, era inexprimível. O terror finalmente chegara a tal dimensão que a coragem das pessoas encarregadas de levar os mortos embora começou a faltar-lhes; e digo mais, muitos deles morreram, embora houvessem adoecido antes da infecção e se recuperado, e alguns deles caíram mortos enquanto carregavam os cadáveres, até mesmo à beira da vala comum, prontos para ser atirados lá dentro. E essa confusão era maior na City, pois ali se haviam lisonjeado com a esperança de escapar à doença, e acreditavam que o amargor da morte já era passado. Uma carroça, nos contaram que subia por Shoreditch, foi privada dos carroceiros, ou lhe restou um único homem para guiá-la, que morreu em plena rua; os cavalos, seguindo caminho, fizeram tombar a carroça, e deixaram para trás os corpos, alguns arremessados para aquele lado, outros para este, de um modo terrível. Outra carroça foi, ao que parece, encontrada na grande vala de Finsbury Fields, o carroceiro estando morto, ou tendo ido embora e a abandonado, e, como os cavalos corriam próximos demais à vala, a carroça caiu lá dentro, arrastando consigo também os cavalos. Sugeriu-se que o carroceiro teria sido atirado lá dentro também, e que a carroça teria caído sobre ele, já que viram o seu chicote na vala em meio aos corpos, mas isso, suponho, não podia ser afirmado com certeza.

Em nossa paróquia de Aldgate, as carroças de mortos foram muitas vezes, segundo me contaram, encontradas às portas do cemitério, cheias de corpos, mas não havia sineiro, ou carroceiro, ou ninguém mais junto dela. Tampouco nesses casos ou em muitos outros eles sabiam que cadáveres transportavam na carroça, pois estes eram às vezes descidos, por meio de cordas, das janelas e varandas, e às vezes os carregadores os levavam até a carroça, e as vezes eram outras pessoas que carregavam. Tampouco, como um dos próprios homens afirmou, eles se incomodavam em manter alguma conta de quantos cadáveres transportavam.”

 

 

“Aqui devo também acrescentar uma observação que pode ser útil à posteridade, a respeito de que modo as pessoas se infectaram umas às outras. Isto é, não foi apenas dos doentes que a peste foi imediatamente recebida pelos que estavam saudáveis, mas dos que tinham boa saúde também. Explico-me: quando falo dos doentes, refiro-me àqueles que se sabiam doentes, que estavam acamados, em processo de cura, ou que então tinham em si os inchaços e tumores, e sintomas do tipo. Quanto a estes, todos podiam acautelar-se; estavam ou acamados ou em condições tais que não podiam ser ocultadas.

Quando falo dos que tinham boa saúde, me refiro àqueles que tinham sofrido o contágio, e realmente traziam a peste consigo e em seu sangue, mas não mostravam as consequências dela em seus aspectos; não, não chegavam sequer a estar cientes do próprio estado, como acontecia a muitos, por períodos de muitos dias. Estes espalhavam a morte pelo hálito em toda parte, e sobre todos que deles se aproximassem. Mais ainda, suas próprias roupas retinham a infecção, suas mãos infectavam os objetos tocados, em especial se estivessem suados e com o corpo quente, e geralmente costumavam estar suados.

Ora, era impossível saber quem eram essas pessoas, e tampouco elas, às vezes, como já relatei, sabiam estar infectadas. Essas eram as pessoas que tantas vezes tombavam ao chão e desmaiavam pelas ruas; pois era comum que saíssem as ruas até o dia em que morriam, até que, subitamente, tivessem uma crise de suor, sentissem tontura, se sentassem na soleira de uma porta e morressem. É verdade que, vendo-se nessas condições, buscavam com todas as forças voltar à porta da própria casa, ou, em outros casos, conseguiam apenas entrar em casa e imediatamente morrer. Em outros casos ainda, continuavam circulando até que os sinais surgissem em seus corpos, e ainda assim de nada sabiam, e morriam em uma ou duas horas depois de retornarem à casa, tendo estado em boas condições durante todo o tempo em que circulavam. Essa era a gente perigosa; esses eram os que os verdadeiramente sãos deveriam ter temido. Todavia, era impossível saber quem eram.

E esse é o motivo pelo qual, em uma visitação, é impossível prevenir o contágio da peste até mesmo pela mais extrema vigilância humana: ou seja, é impossível diferenciar os infectados dos saudáveis, ou os infectados conhecerem perfeitamente as próprias condições. Eu soube de um homem que manteve contato livremente com os outros em Londres, durante toda a temporada da peste de 1665, e que levava consigo um antídoto ou tônico com o propósito de tomá-lo quando acreditasse correr algum risco; sua regra para reconhecer o risco ou dele ser alertado era tal que jamais encontrei antes ou depois. Até que ponto se pode confiar nela, eu não sei. Ele tinha um ferimento na perna, e sempre que se via em meio a pessoas que não estivessem saudáveis, e sempre que a infecção começava a afetá-lo, ele afirmava poder sabê-lo por aquele sinal, isto é, 0 de que sentia fisgadas em seu ferimento, que empalidecia e ganhava um aspecto branco; dessa forma, assim que ele sentia a fisgada, era hora de retirar-se, ou então de precaver-se, tomando de sua poção, que ele sempre carregava consigo para aquele propósito. Ora, ao que parece, sentia sua ferida fisgar muitas vezes quando estava em companhia de pessoas que se acreditavam saudáveis, e que aparentavam saúde aos olhos dos outros. Mas ele imediatamente se levantava e dizia em alto e bom tom: “Amigos, há alguém aqui nesta sala que está com a peste”, e então imediatamente se afastava daquela companhia. Isso era, de fato, uma fiel advertência para todas as pessoas de que não há como evitar a peste quando promiscuamente se mantém contato com os outros em uma cidade infectada, e de que as pessoas têm a doença quando não o sabem, e de que, da mesma forma, a transmitem às outras pessoas quando elas próprias não sabem que a carregam. E, nesse caso, fechar a fonte ou remover os doentes não é o bastante, a menos que possam voltar e isolar todos aqueles com os quais os doentes tiveram contato antes que eles próprios se soubessem doentes, e ninguém sabe até qual momento do passado essa prática deveria estender-se, ou em que ponto parar, pois ninguém sabe quando, ou onde, ou como, podem ter recebido a infecção, ou de quem.

Esse é o motivo, no meu entendimento, para que muitos falem da corrupção e infecção do ar, e de não precisarem ser cautelosos a respeito dos contatos que mantinham – pois o contágio estaria no ar. Já as vi tomadas de estranhas surpresas e inquietações no tocante a isso. “Nunca me aproximei de nenhum infectado”, diz a pessoa perturbada. “Não tive contato senão com os sãos e saudáveis, mas ainda assim peguei a infecção !” “Estou certo de que fui atingido pelos Céus”, diz outro, e esse é dos mais sérios. Novamente, o primeiro segue exclamando: “Não me aproximei de nenhuma infecção ou pessoa infectada. Tenho certeza de que a infecção está no ar. Ao respirar, inspiramos a morte, e portanto a coisa é um ato de Deus. Não há como resistir.” E isso terminou por fazer com que muitos, já insensíveis ao perigo, se preocupassem menos com ele, e passassem a ser menos cautelosos nos últimos tempos da infecção, quando esta chegou ao auge, do que eram no início. E então, com uma espécie de predestinacionismo turco*, diziam que, se Deus achava por bem abatê-las, pouca diferença fazia permanecerem em casa ou saírem às ruas. Não era possível escapar à doença, e portanto circulavam com arrojo por todos os lugares, entrando mesmo em casas infectadas e mantendo a companhia de gente infectada; visitavam os doentes, e, em suma, deitavam na cama com suas mulheres ou parentes quando estes tinham a infecção. E qual foi a consequência disso, se não a mesma consequência que houve na Turquia, e naqueles países em que se age da mesma forma – isto é, que outra coisa, senão serem eles infectados também, e morrerem às centenas e aos milhares?”

*: Os europeus sempre foram críticos do suposto “fatalismo” islâmico, segundo o qual tudo está escrito e determinado por Deus. – N.E.

 

 

“Sob todas essas observações devo dizer que, embora a Providência parecesse dirigir minha conduta para outro rumo, ainda assim tenho a opinião – e devo deixá-la aqui como uma prescrição – de que o melhor remédio contra a peste é correr para longe dela. Sei que as pessoas buscam se encorajar dizendo que Deus pode nos salvar quando estamos em meio ao perigo, e pode nos alcançar quando já nos imaginamos fora dele. E esse pensamento manteve na cidade milhares de pessoas cujas carcaças foram para as grandes valas depois de encher muitas carroças, e que, se tivessem fugido do perigo, acredito, se poriam a salvo do desastre. Pelo menos, isso é provável.

E se esse aspecto muito fundamental for devidamente considerado pelas pessoas que passarem por ocasiões futuras dessa mesma natureza, estou persuadido de que isso as faria tomar, para lidar com as pessoas, medidas inteiramente diferentes daquelas tomadas em 1665, ou de qualquer medida que tenha sido tomada no exterior, entre as que chegaram ao meu conhecimento. Em uma palavra, elas considerariam a ideia de separar as pessoas em agrupamentos menores, e os distanciariam um do outro em tempo hábil – e não deixariam que um contágio como esse, que é principalmente perigoso para agrupamentos de pessoas, encontrasse um milhão de pessoas num agrupamento só, como anteriormente passou muito perto de acontecer, e certamente aconteceria se a peste aparecesse de novo.

A peste, assim como um grande incêndio, se houver apenas algumas casas contíguas umas às outras onde ela aparecer, pode queimar somente algumas poucas casas. Ou, se começar em uma casa sozinha, ou, como dizemos, solitária, poderá queimar apenas aquela casa solitária em que tiver início. Mas se começar em uma cidade, pequena ou grande, em que as construções são próximas umas das outras, e tiver prosseguimento, lá a sua fúria será maior: devastará o lugar inteiro, e consumirá tudo o que puder alcançar.”

 

 

“A peste é um inimigo formidável, e vem armada de terrores que nem todo homem é forte ou preparado o bastante para suportar.”

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