sábado, 12 de fevereiro de 2022

A Cidade Antiga (Parte II), de Fustel de Coulanges

Editora: Editora das Américas

ISBN: 978-85-7232-780-0

Tradução: Frederico Ozanam Pessoa de Barros

Opinião: ★☆☆☆☆

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Páginas: 454

Sinopse: Ver Parte I


 


“O homem, depois da morte, era considerado pessoa feliz e divina, com a condição, porém, de que os vivos lhe oferecessem continuamente banquetes públicos. Se essas ofertas cessassem, o morto decairia para uma esfera inferior, tornando-se demônio desgraçado e malfazejo. Porque, quando as antigas gerações começaram a imaginar a vida futura, não pensaram em recompensas e castigos; acreditaram que a felicidade do morto não dependia da conduta que havia tido em vida, mas da que seus descendentes tinham a seu respeito. Por isso cada pai esperava da sua posteridade a série de banquetes fúnebres que devia assegurar a seus manes repouso e felicidade.

Essa opinião era o princípio fundamental do direito doméstico entre os antigos, derivando daí, em primeiro lugar, a regra de que cada família devia perpetuar-se para sempre. Os mortos tinham necessidade de que sua descendência não se extinguisse. No túmulo, onde viviam, não tinham outra preocupação. Seu único pensamento, como seu único interesse, era ter sempre um varão de seu sangue para levar-lhe ofertas ao túmulo. Também os hindus acreditavam que os mortos repetiam continuamente: “Que nasçam sempre em nossa estirpe filhos que nos tragam arroz, leite e mel.” — Dizia ainda: “A extinção de uma família causa a ruína da religião da mesma; os antepassados, privados das ofertas, precipitam-se na morada dos infelizes(1).”

Os homens da Itália e da Grécia pensaram assim por muito tempo. Se não nos deixaram em seus escritos uma expressão de suas crenças tão nítida como a que encontramos nos velhos livros do Oriente, pelo menos suas leis estão ainda lá, para atestar suas antigas opiniões. Em Atenas, a lei encarregava o primeiro magistrado da cidade de velar para que nenhuma família viesse a se extinguir(2). Da mesma forma, a lei romana cuidava da continuidade do culto doméstico(3). Lê-se em um discurso de orador ateniense: “Não há homem que, sabendo que deve morrer, cuide tão pouco de si mesmo, a ponto de deixar a família sem descendentes, porque então não haveria ninguém para prestar-lhe o culto devido aos mortos(4).” — Cada um, portanto, tinha grande interesse em deixar um filho, convencido de que disso dependia a felicidade de sua vida futura. Era até um dever para com os antepassados, porque sua felicidade durava somente enquanto existisse a família. Também as leis de Manu assim denominavam o filho mais velho: “aquele que é gerado para o cumprimento do dever”.

Tocamos aqui em um dos caracteres mais notáveis da família antiga. A religião, que a formou, exige imperiosamente sua continuação. Uma família que se extingue é um culto que morre. É necessário imaginar essas famílias na época em que as crenças ainda não haviam sido alteradas. Cada uma delas possui religião e deuses próprios, precioso depósito sobre o qual deve velar. A maior desgraça que sua piedade tem a temer é a extinção da estirpe, porque então sua religião desapareceria da terra; seu lar seria extinto, toda a série dos mortos esquecida e abandonada à eterna miséria. O grande interesse da vida humana é continuar a descendência para continuar o culto.”

(1) Bhagavad-Gita, I, 40.

(2) Iseu, De Apollod. hered., 30; Demóstenes, In Macart., 75.

(3) Cícero, De legib., II. 19. Dionísio, IX, 22.

(4) Iseu, VII, De Apollod. her., 30. Cf. Estobeu, Serm. LXVII, 25

 

 

“Os antigos basearam o direito de propriedade sobre princípios que não são mais os das gerações presentes, e daqui resultou que as leis pelas quais o garantiram são sensivelmente diversas das nossas.

Sabemos que há raças que jamais chegaram a instituir entre si a propriedade privada; outras só a admitiram depois de muito tempo e a muito custo. Com efeito, não é um problema fácil, na origem das sociedades, saber se o indivíduo pode apropriar-se do solo, e estabelecer uma união tão forte entre si e uma parte da terra a ponto de poder dizer: Esta terra é minha, esta terra é como que parte de mim mesmo. Os tártaros admitem direitos de propriedade quando se trata de rebanhos, e não o compreendem quando se trata do solo. Entre os antigos germanos, de acordo com alguns autores, a terra não pertencia a ninguém; todos os anos a tribo designava a cada um de seus membros um lote para cultivar, lote que era trocado no ano seguinte. O germano era proprietário da colheita, e não da terra. O mesmo acontece ainda em uma parte da raça semítica, e entre alguns povos eslavos.

Pelo contrário, as populações da Grécia e da Itália, desde a mais remota antiguidade, sempre reconheceram e praticaram a propriedade privada. Não ficou nenhuma lembrança histórica de época em que a terra fosse comum(1) e também nada se vê que se assemelhe a essa divisão anual dos campos, praticada entre os germanos. Há até um fato bastante notável. Enquanto as raças que não concediam ao indivíduo a propriedade do solo, concedem-lhe pelo menos tal direito sobre os frutos do trabalho, isto é, das colheitas, entre os gregos acontecia o contrário. Em algumas cidades os cidadãos eram obrigados a reunir em comum as colheitas, ou, pelo menos, a maior parte delas, e deviam consumi-las em comum(2); o indivíduo, portanto, não era absoluto senhor do trigo que havia colhido; mas ao mesmo tempo, por notável contradição, tinha absolutos direitos de propriedade sobre o solo. A terra para ele valia mais que a colheita. Parece que entre os gregos a concepção do direito de propriedade tenha seguido caminho absolutamente oposto ao que parece natural. Não se aplicou primeiro à colheita e depois ao solo. Seguiu-se a ordem inversa.”

(1) Alguns historiadores são da opinião de que em Roma a propriedade a princípio fora pública, e só se tornara particular sob o governo de Numa. Esse erro vem de uma falsa interpretação de três textos, de Plutarco (Numa, 16), de Cícero (República, II, 14) e de Dionísio (II, 74). Esses três autores, com efeito, dizem que Numa distribuiu certas terras aos cidadãos; mas indicam com muita clareza que essa divisão só dizia respeito às terras que as últimas conquistas de seu predecessor acrescentaram ao primitivo território romano. — Quanto ao ager Romanus, isto é, ao território que rodeava Roma a uma distância de cinco milhas (Estrabão, V, 3, 2), já era propriedade particular desde a origem da cidade. Vide Dionísio, II, 7; Varrão, De re rustica, I, 10; Nônio Marcelo, ed. Quicherat, p. 61.

(2) Assim, em Creta cada um dava para os banquetes comuns a décima parte das colheitas (Ateneu, IV, 22). Do mesmo modo em Esparta, cada um devia fornecer de seu patrimônio uma quantidade determinada de farinha, vinho e de frutos para as despesas da mesa comum (Aristóteles, Polít., II, 7, ed. Didot, p. 515; Plutarco, Licurgo, 12; Dicearca, em Ateneu, IV, 10).

 

 

“A família não recebeu suas leis da cidade. Se a cidade houvesse estabelecido o direito privado, é provável que teria feito tudo diferente do que vimos até agora. Teria regulamentado, de acordo com outros princípios, o direito de propriedade e o direito de sucessão, porque não tinha interesse em que a terra fosse inalienável e o patrimônio indivisível. A lei que permite que o pai venda ou tire a vida ao filho, lei que encontramos tanto na Grécia como em Roma, não foi imaginada pela cidade. A cidade teria antes dito ao pai: “A vida de tua mulher e de teu filho não te pertence mais que sua liberdade; eu as protegerei, mesmo contra ti. Eles não serão julgados por ti, que haverás de matá-los caso falhem; eu serei seu juiz.” — Se a cidade não fala desse modo, aparentemente, é porque não pode fazê-lo. O direito privado existiu antes dela. Quando começou a escrever suas leis, encontrou esse direito já estabelecido, vivo, enraizado nos costumes, fortalecido pela adesão universal. Ela o aceitou, não podendo agir de outra maneira, e não ousando modificá-lo, senão com o correr do tempo. O antigo direito não é obra de um legislador; pelo contrário, foi imposto ao legislador. Nasceu na família. Surgiu espontaneamente, e já formado, dos antigos princípios que a constituíam. É a decorrência natural de crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos, e que exerciam império sobre as inteligências e as vontades.”

 

 

Pode-se adivinhar todo o respeito e afeto recíproco que essas crenças inspiravam na família. Os antigos davam às virtudes domésticas o nome de piedade: a obediência do filho ao pai, o amor que dedicava à mãe, eram piedade: pietas erga parentes; o afeto do pai ao filho, a ternura da mãe, eram ainda piedade: pietas erga liberos. Tudo era divino na família. Sentimento de dever, afeição natural, ideia religiosa, tudo se confundia e se exprimia pela mesma palavra.

Parecerá talvez estranho contar o amor do lar entre as virtudes, e esta era uma das virtudes dos antigos. Esse sentimento era profundo e poderoso em suas almas. Vede Anquises, que, à vista de Tróia em chamas, não quer contudo abandonar a velha casa. Vede Ulisses, a quem oferecem todos os tesouros, até a imortalidade, e nada deseja, senão rever a chama de seu lar. Avancemos até Cícero; não é mais um poeta, é um homem de Estado que fala: “Aqui está minha religião, aqui está minha raça, aqui estão as pegadas de meus pais; não sei que encanto é este que penetra meu coração e meus sentidos(14).” — É necessário que nos coloquemos em pensamento entre as mais antigas gerações, para compreender como esses sentimentos, já enfraquecidos nos tempos de Cícero, haviam sido vivos e poderosos. Para nós a casa é somente um domicílio, um abrigo; deixamo-la e nos esquecemos dela sem muito sacrifício, e, se a amamos, não o fazemos senão pela força do hábito e das recordações. Porque para nós a religião não está no lar; nosso Deus é o Deus do universo, e nós o encontramos em toda parte. Entre os antigos não se dava o mesmo: era no interior das casas que encontravam sua principal divindade, sua providência, aquela que os protegia individualmente, que escutava suas orações e atendia-lhes os votos. Fora do lar o homem não sentia mais deus; o deus do vizinho era um deus hostil. O homem amava então a casa como agora ama a igreja(15).

Destarte as crenças das primeiras idades não ficaram estranhas ao desenvolvimento moral dessa parte da humanidade. Seus deuses prescreviam a pureza, e proibiam o derramamento de sangue; a noção de justiça, se não se originou dessa crença, pelo menos se tornou forte por meio dela. Seus deuses pertenciam em comum a todos os membros de uma mesma família; a família se encontra assim unida por forte laço, e todos seus membros aprenderam a se respeitar e amar uns aos outros. Os deuses viviam no interior de cada casa: o homem, portanto, amava a própria casa, morada fixa e duradoura, que herdara dos antepassados, e que legaria aos filhos como um santuário.

A antiga moral, pautada por essas crenças, ignorava a caridade, mas, pelo menos, ensinava as virtudes domésticas. O isolamento da família foi, entre essas raças, o início da moral. Então os deveres apareceram claros, precisos, imperiosos, mas confinados a um círculo restrito. E não nos devemos esquecer, na continuação deste livro, desse caráter restrito da moral primitiva, porque a sociedade civil, fundada mais tarde sobre idênticos princípios, revestiu-se dos mesmos caracteres, e muitos traços singulares da antiga política terão nela sua explicação(16).”

14) Cícero, De legib., II, 1; Pro domo, 41.

(15) Daí a santidade do domicilio, que os antigos sempre consideraram inviolável; Demóstenes, In Androt., 52; In Evergum, 60. Digesto, De in jus voc., II. 4,

(16) Haverá necessidade de advertir que neste capítulo tentamos apenas a antiga moral dos povos, que depois se tornaram os gregos e os romanos? Haverá necessidade de acrescentar que essa moral com o tempo se modificou, sobretudo entre os gregos? Já na Odisseia encontraremos novos e diferentes costumes; a continuação deste livro o mostrará.

 

 

“A mentira procura sempre imitar a verdade.”

 

 

“O homem não se liberta facilmente das opiniões que uma vez o dominaram.”

 

 

Pode-se, pois, entrever um longo período durante o qual os homens não conheceram nenhuma outra forma de sociedade além da família. Foi então que surgiu a religião doméstica, que não teria podido nascer em sociedade constituída de modo diverso, e que por muito tempo serviu até de obstáculo ao desenvolvimento social. Estabeleceu-se então o antigo direito privado, que mais tarde achou-se em desacordo com os interesses de uma sociedade pouco desenvolvida, mas que estava em perfeita harmonia com o estado da sociedade na qual se formou.

Ponhamo-nos, portanto, com o pensamento no meio dessas antigas gerações, cuja lembrança não pôde perecer por completo, e que legaram suas crenças e leis às gerações seguintes. Cada família tem sua religião, seus deuses, seu sacerdócio. O isolamento religioso é sua lei; seu culto é seu segredo. Na mesma morte, e na existência que se lhe segue, as famílias não se confundem: cada uma continua a viver à parte em seu túmulo, de onde os estranhos são excluídos. Cada família tem também sua propriedade, isto é, a parte de terra que lhe está ligada inseparavelmente pela religião; seus deuses Termos guardam-lhe os limites, e seus manes a protegem. O isolamento da propriedade é de tal modo obrigatório, que dois domínios não podem avizinhar-se, e devem deixar entre si uma faixa de terra neutra, que se torna inviolável. Enfim, cada família tem seu chefe, como uma nação teria um rei; tem suas leis, que sem dúvida não são escritas, mas que a crença grava no coração de cada homem; tem sua justiça interior, acima da qual não há nenhuma outra à qual possa apelar. Tudo aquilo de que o homem tem rigorosa necessidade para sua vida material ou para sua vida moral, a família o possui em si. Não precisa de coisa alguma de fora; é um estado organizado, uma sociedade autossuficiente.

Mas essa família das antigas idades não está reduzida às proporções da família moderna. Nas grandes sociedades a família se desmembra, e diminui, mas na ausência de qualquer outra sociedade ela se estende, se desenvolve, ramifica-se sem se dividir. Os ramos mais novos continuam agrupados ao redor do mais velho, perto do lar único e do túmulo comum.

Outro elemento ainda entra na composição dessa família antiga. A necessidade recíproca que o pobre tem do rico, e que o rico tem do pobre, criou os servos. Mas nessa espécie de regime patriarcal, servos ou escravos, tudo é a mesma coisa. Com efeito, concebe-se que o princípio do serviço livre, voluntário, podendo cessar à vontade do servidor, não se pode coadunar com um estado social em que a família vive isolada. Aliás, a religião doméstica não permite admitir na família nenhum estranho. É necessário, portanto, que por algum meio o servo se torne membro e parte integrante da família, o que se consegue por uma espécie de iniciação do recém-vindo no culto doméstico.

Um costume curioso, que por muito tempo subsistiu nas casas atenienses, mostra-nos como o escravo entrava para a família. Faziam-no aproximar do lar, colocavam-no em presença da divindade doméstica, derramavam-lhe sobre a cabeça a água lustral, e faziam-no compartilhar com a família de alguns bolos e frutas(1). Essa cerimônia tinha analogia com a do casamento e da adoção. Significava sem dúvida que o novo membro, outrora estranho, de agora em diante passava a ser membro da família, cuja religião adotava. Assim, o escravo assistia às preces e participava das festas(2). O lar o protegia; a religião dos deuses lares pertencia-lhe tanto quanto a seu dono(3). É por essa razão que o escravo devia ser enterrado na sepultura da família.

Mas, por isso mesmo que o servo adquiria o culto e o direito de orar, perdia a liberdade. A religião era uma cadeia que o retinha. Estava ligado à família por toda a vida, e mesmo para o tempo que se seguia à morte.

Seu senhor podia libertá-lo, e tratá-lo como homem livre. Mas o servo não deixava por isso a família. Como estava ligado a ela pelo culto, não podia sem impiedade separar-se da mesma. Sob o nome de liberto ou de cliente, continuava a reconhecer a autoridade do chefe ou patrono, e não deixava de ter obrigações para com ele. Não se casava senão com sua autorização, e seus filhos continuavam a dever-lhe obediência(4).

Formava-se assim, no seio da grande família, certo número de pequenas famílias clientes e subordinadas. Os romanos atribuíam o estabelecimento da clientela a Rômulo, como se uma instituição dessa natureza pudesse ser obra de um só homem. A clientela é mais antiga que Rômulo. Aliás, existia em toda parte, tanto na Grécia como em toda a Itália(5). Não foram as cidades que estabeleceram regras: pelo contrário, como veremos mais adiante, elas pouco a pouco diminuíram-nas, destruíram-nas. A clientela é uma instituição do direito doméstico, e existiu nas famílias antes que existissem cidades.

Não devemos julgar a clientela dos tempos antigos pelos clientes que vemos no tempo de Horácio. É claro que o cliente foi por muito tempo um servo ligado ao patrão. Mas havia então algo que constituía sua dignidade: ele tomava parte no culto, e estava associado à religião da família. Tinha o mesmo lar, as mesmas festas, os mesmos sacra que o patrono. Em Roma, em sinal dessa comunidade religiosa, tomava o nome da família. Era considerado membro da mesma pela adoção. Daí um laço estreito, e uma reciprocidade de deveres entre o patrono e o cliente. Ouvi a velha lei romana: “Se o patrono causou dano ao cliente, que seja maldito — sacer esto — que morra(6).” — O patrono deve proteger o cliente por todos os meios e todas as forças de que dispõe: por sua oração como sacerdote; por sua lança, como guerreiro; por sua lei, como juiz. Mais tarde, quando a justiça da cidade chamar o cliente, o patrono deverá defendê-lo, deverá mesmo revelar-lhe as fórmulas misteriosas da lei que o farão ganhar a causa(7). Pode-se testemunhar em justiça contra um cognado, mas nunca contra um cliente(8), e os deveres para com os clientes continuarão a ser considerados muito acima dos deveres para com os cognados(9). Por que? Porque um cognado, ligado somente pelas mulheres, não é parente, e não toma parte na religião da família. O cliente, pelo contrário, tem a comunidade do culto; goza, por mais inferior que seja, do verdadeiro parentesco, que consiste, segundo expressão de Platão, em adorar os mesmos deuses domésticos.

A clientela é um laço sagrado que a religião formou, e que nada poderá romper. Uma vez que se é cliente em uma família, não se pode mais separar-se dela. A clientela desses tempos primitivos não é relação voluntária e passageira entre dois homens: é hereditária; é-se cliente por dever, de pai a filho(10).

Por tudo isso vemos que a família nos tempos antigos, com seu ramo mais velho e seus ramos mais novos, seus servos e clientes, podia formar um grupo de homens muito numeroso. Uma família, graças à religião, que a mantinha unida; graças a seu direito particular, que a tornava indivisível; graças às leis da clientela, que mantinha seus servos, chegou a formar com o tempo uma sociedade muito extensa, que tinha seu chefe hereditário. Foi de um número indefinido de sociedades dessa natureza que a raça ariana parece haver sido composta durante uma longa série de séculos. Esses milhares de pequenos grupos viviam isolados, com poucas relações entre si, sem necessidade uns dos outros, sem estarem unidos por nenhum laço, nem religioso, nem político, tendo cada um seu domínio, cada um seu governo interior, cada um seus deuses particulares.”

(1) Demóstenes, In Stephanum, I, 74. Aristófanes, Plutus, 768. Esses dois escritores indicam claramente uma cerimônia, mas não a descrevem. Os escoliastes de Aristófanes acrescentam alguns detalhes. Vide, em Ésquilo, como Clitemnestra recebe uma nova escrava: “Entra nesta casa, pois Júpiter deseja que participes das abluções da água lustral, com meus outros escravos, junto a meu lar doméstico” (Ésquilo, Agamemnon, 1035-1038).

(2) Aristóteles, Econômicas, I, 5: “É pelos escravos, mais do que pelas pessoas livres, que se devem celebrar os sacrifícios e as festas.“ — Cícero, De legibus, II, 8: Ferias in famulis habento. — Nos dias de festa era proibido fazer o escravo trabalhar (Cíc., De legib., II, 12).

(3) Cícero, De legib., II, 11. — O escravo podia até celebrar o ato religioso em nome do senhor; Catão, De re rustica, 83.

(4) Quanto às obrigações dos libertos em direito romano, vide Digesto, XXXVII, 144, De jure patronatus; XII, 15, De obsequiis parentibus et patronis praestandis; XIII, 1, De operis libertorum — O direito grego, no que diz respeito à alforria e à clientela, transformou-se muito mais depressa que o direito romano. Por isso restam-nos muito poucos esclarecimentos sobre a antiga condição dessa classe de pessoas; ver, contudo, Lísias, em Harpocrácio, na palavra Apostasíon, Crisipo em Ateneu, VI, 93, e uma passagem curiosa de Platão, Leis, XI, p. 915. Disso resulta que o liberto sempre tinha deveres para com o antigo senhor.

(5) Clientela, entre os sabinos (Tito Lívio, II, 18; Dionísio, V, 40); entre os etruscos (Dionísio, IX, 5); entre os gregos (Dionísio, II, 9).

(6) Lei das Doze Tábuas, citada por Sérvio, ad Aen., VI, 609. Cf. Virgílio: Aut fraus innexa clienti. — Sobre os deveres dos patronos, vide Dionísio, II, 10.

(7) Horácio, Epist., II, 1, 104, Cícero, De orat., III, 33.

(8) Catão, em Aulo Gélio, V, 3; XXI, 1.

(9) Aulo Gélio XX, 1.

(10) Essa verdade, em nossa opinião, está bem clara em dois fatos que nos são contados, um por Plutarco, outro por Cícero. C. Herênio, chamado para testemunhar contra Mário, alegou ser contrário às regras antigas que um patrono testemunhasse contra seu cliente; e, como se admirassem aparentemente de que Mário, que já havia sido tribuno, fosse qualificado de cliente, ele acrescentou que efetivamente “Mário e sua família, desde os tempos mais remotos, sempre haviam sido clientes da família dos Herênios”. — Os juízes admiram-se do argumento, mas Mário, que não se importava por se ver reduzido a essa condição, replicou que no dia em que havia sido eleito para uma magistratura libertara-se da clientela, “o que não era bem verdade, acrescenta o historiador, porque nenhuma magistratura libertava da condição de cliente; somente os magistrados curuis tinham esse privilégio” (Plut., Vida de Mário, 5). A clientela, portanto, era, salvo essa única exceção, obrigatória e hereditária; Mário a havia esquecido, o que não aconteceu com os Herênios. — Cícero menciona um processo discutido em seu tempo entre os Cláudios e os Marcelos; os primeiros, a título de chefes da gens Cláudia, pretendiam, em virtude do direito antigo, que os Marcelos fossem seus clientes; estes em vão ocupavam há dois séculos os primeiros postos do Estado: os Cláudios persistiam em sustentar que o vínculo de clientela não podia ter sido destruído. — Esses dois fatos, salvos do esquecimento, permitem-nos julgar o que era a primitiva clientela.

 

 

A religião doméstica proibia a duas famílias unir-se ou confundir-se. Mas era possível que várias famílias, sem nada sacrificar de sua religião particular, se unissem pelo menos para a celebração de outro culto, que lhes fosse comum. E foi o que aconteceu. Certo número de famílias formaram um grupo, que a língua grega chamava fratria, e a latina cúria(1). Existiria entre as famílias de um mesmo grupo algum laço de nascimento? É impossível afirmá-lo. O que é certo é que essa associação nova não se fez sem certo progresso da ideia religiosa. No mesmo momento em que se uniam, essas famílias conceberam uma divindade superior às divindades domésticas, um deus comum a todas, e que velava sobre todo o grupo. Levantaram-lhe um altar, acenderam um fogo sagrado, e instituíram um culto(2).

Não havia cúria ou fratria que não tivesse seu altar e seu deus protetor. O ato religioso conservava as mesmas características que na família. Consistia essencialmente em um banquete fúnebre, realizado em comum; o alimento era preparado sobre o próprio altar, e, conseqüentemente, era sagrado, e era consumido enquanto se recitavam preces; a divindade estava presente, e recebia seu quinhão de alimentos e bebidas(3).

Essas refeições fúnebres da cúria subsistiram por tempo em Roma; Cícero fala delas, Ovídio descreve-as(4). Nos tempos de Augusto ainda conservavam sua forma antiga. — “Vi nessas moradas sagradas — diz um historiador da época — a refeição servida diante do deus; as mesas eram de madeira, de acordo com o uso dos antepassados, e a baixela de barro. Os alimentos eram pão, bolos de flor de farinha, e algumas frutas. Vi que faziam libações, que não caíam de cálices de ouro ou prata, mas de vasos de argila; e admirei os homens de hoje, que continuam tão fiéis aos ritos e costumes de seus pais(5).” — Em Atenas, em dias de festa, tais como as Apatúrias e as Targélias, cada fratria se reunia ao redor do altar; imolava-se uma vítima; as carnes, cozidas sobre o fogo sagrado, eram divididas entre todos os membros da fratria, e cuidava-se muito para que nenhum estranho delas participasse(6).

Há costumes que duraram até os últimos tempos da história grega, e que lançam alguma luz sobre a natureza da antiga fratria. Assim vemos que nos tempos de Demóstenes, para se fazer parte de uma fratria, era necessário nascer de casamento legítimo, em uma das famílias que a compõem. Porque a religião da fratria, como a da família, não se transmitia senão pelo sangue. O jovem ateniense era apresentado à fratria pelo pai, que jurava ser ele seu filho. A admissão era realizada sob forma religiosa. A fratria imolava uma vítima, cuja carne era cozida sobre o altar; todos os membros estavam presentes. Recusavam admitir o novo candidato, como de direito, quando duvidavam da legitimidade do nascimento, casos em que deviam tirar as carnes de sobre o altar. Se não o faziam, se depois de cozidas eles dividiam com o candidato as carnes da vítima, o jovem era admitido, e se tornava irrevogavelmente membro da associação(7). O que explica essas práticas é que os antigos acreditavam que todo alimento preparado sobre o altar, e dividido entre várias pessoas, estabelecia entre elas um laço indissolúvel, uma união santa, que não cessava com a morte(8).

Cada fratria ou cúria tinha um chefe, curião ou fratriarca, cuja principal função era presidir aos sacrifícios. Talvez suas atribuições a princípio tenham sido mais extensas. A fratria tinha suas assembleias, suas deliberações, e podia promulgar decretos(9). Nela, como na família, havia um deus, um culto, um sacerdote, uma justiça e um governo. Era uma pequena sociedade, modelada exatamente sobre a da família.

A associação, naturalmente, continuou a crescer, e da mesma maneira. Várias cúrias ou fratrias agruparam-se, e formaram a tribo.

Esse novo círculo teve também sua religião; em cada tribo havia um altar e uma divindade protetora(10).

O deus da tribo era ordinariamente da mesma natureza que o da fratria ou o da família. Era um homem divinizado, um herói. Dele a tribo tirou seu nome: também os gregos chamavam-nos heróis epônimos, com um dia consagrado à sua festa anual. A parte principal da cerimônia religiosa era um banquete, do qual toda a tribo participava(11).

A tribo, como a fratria, tinha assembleias e promulgava decretos, aos quais todos os membros deviam submeter-se. Tinha um tribunal e direito de justiça sobre seus membros. Tinha um chefe, tribunus, phylobasiléus(12). Pelo que nos resta da instituição das tribos, vemos que havia sido constituída, em sua origem, para ser uma sociedade independente, como se não tivesse nenhum poder social sobre si(13).”

(1) Esse modo de geração da fratria está claramente Indicado em curioso fragmento de Dicearca (Fragm. hist. gr., ed. Didot, t. II, p. 238). — As fratrias são assinaladas em Homero como instituições comuns a toda a Grécia: Ilíada, II, 362. Pólux, III, 52. Demóstenes, In Macartatum, 14; Iseu, De Philoct. hered., 10. — Havia fratrias em Tebas (Escoliastes de Píndaro, Isthm., VI, 18); em Corinto (ibid., Olymp., XIII, 127); na Tessália (ibid., Isthm., X, 85); em Neápolis (Estrabão, V, p. 246); em Creta (Boeckh, Corp. Inscr., n.° 2555). Alguns historiadores pensam que os obai de Esparta correspondiam às fratrias de Atenas. — As palavras fratria e cúria eram consideradas sinônimas; Dionísio de Halicarnasso (II, 85), e Díon Cásslo (fragm. 14) traduzem-nas uma pela outra,

(2) Demóstenes, In Macart.,14, e Iseu, De Apollod. hered., mencionam o altar da fratria e o sacrifício que nele celebravam. Cratino (em Ateneu, XI, 3. p. 460) fala do deus que preside à fratria. Cf. Pólux, III, 52.

(3) Ateneu, V, 2; Festo, p. 64.

(4) Cícero, De orat., I, 7; Ovídio, Fast., VI, 305; Dionísio, II, 65.

(5) Dionísio, II, 73. Apesar disso, já se haviam introduzido algumas mudanças. O banquete da cúria não passava de mera formalidade, boa para os sacerdotes. Os membros da cúria dispensavam-no de bom grado, introduzindo-se o costume de substituir a refeição comum por uma distribuição de víveres e de dinheiro: Plauto, Aululária, V, 69 e 137.

(6) Iseu De Apollod. hered., 15-17. descreve um desses banquetes; em outro lugar (De Astyph. hered., 33), fala de um homem que, tendo saído de sua fratria, em virtude de uma adoção, era considerado nela como estranho; em vão se apresentava em todas as refeições sagradas, pois não lhe davam nenhuma parte das carnes sagradas da vítima. Cf. Lísias, Fragm., 10 (ed. Didot, t. II, p. 255): “Se um homem, nascido de pais estrangeiros, se junta a uma fratria, qualquer ateniense poderá processá-lo judicialmente.”

(7) Demóstenes, In Macartatum, 13-15. Iseu, De Philoct. hered, 21-22; De Cironis hered., 18. — Lembremo-nos de que uma adoção regular produzia sempre os mesmos efeitos que a filiação legitima, chegando mesmo a substituí-la.

(8) Essa mesma opinião é o princípio da antiga hospitalidade. Não é nosso propósito descrever essa curiosa instituição. Digamos somente que a religião nela tinha grande parte. O homem que conseguisse chegar ao lar não podia mais ser considerado estrangeiro; tornava-se eféstios (Sófocles, Trachin., 262; Eurípides, Íon, 654; Ésquilo, Eumênidas, 577; Tucídides, I, 137). Aquele que participasse de um banquete sagrado estava sempre em comunhão religiosa com o hóspede; é por isso que Evandro diz aos troianos: Communem vocate Deus (Virgílio, Eneida, VIII, 275). — Aqui vemos um exemplo do que há sempre de sabiamente ilógico na alma humana: a religião doméstica não é feita para estrangeiros; ela o repele por essência, mas, por isso mesmo, o estrangeiro, uma vez admitido, torna-se mais sagrado. Desde que tocou o lar, torna-se absolutamente necessário que deixe de ser estrangeiro, o mesmo princípio que ontem o repelia exige que hoje. e para sempre, ele se torne membro da família.

(9) A respeito do curio, ou magister curiae, vide Dionísio, II 64; Varrão, De ling. lat., V, 83; Festo. p. 126. O fratriarca é mencionado em Demóstenes, In Eubul., 23. A deliberação e o voto são descritos em Dem., In Macart., 82. Várias inscrições contêm decretos promulgados por fratrias; vide Corpus inscr. attic., t. II, ed. Kohler, n.°s 598, 599, 600.

(10) Pólux, VIII, 110.

(11) Ateneu, V, 2; Pólux, III, 67; Demóstenes, In Boeot., de nom., 7. Sobre as quatro antigas tribos de Atenas, e suas relações com as fratrias e os ghéne, vide Pólux, VIII, 109-111, e Harpocrácio, v. Trittys, segundo Aristóteles. A existência de antigas tribos, em número de três ou quatro, é acontecimento vulgar em todas as cidades gregas, dóricas ou jônicas: Ilíada, II, 362 e 668; Odisséia, XIX, 177; Heródoto, IV, 161; V, 68 e 69; vide Otf. Müller, Dorier, t. II, p. 79. Há uma distinção a ser feita entre as tribos religiosas dos primeiros tempos e as tribos simplesmente locais dos tempos posteriores; mais adiante voltaremos ao assunto. Somente as primeiras estão em relação com as fratrias e os ghéne.

(12) Pólux, VIII, 111. Cf. Aristóteles, fragmento citado por Fócio, v. Naukraria.

(13) A organização política e religiosa das três tribos primitivas de Roma deixou poucos vestígios nos documentos. Tudo o que se sabe é que eram compostas de cúrias e de gentes, e que cada uma delas tinha seu tribunus. Seus nomes, Ramnes, Tities, Luceres, foram conservados, assim como algumas cerimônias do culto. Essas tribos, aliás, eram corporações muito consideráveis para que a cidade deixasse de querer enfraquecê-las e tirar-lhes a independência. Também os plebeus trabalharam para fazê-las desaparecer.

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