Editora: Clube Literatura Clássica
ISBN: 978-65-87036-25-0
Tradução: Marcio
Hack
Opinião: ★★★☆☆
Link para compra: Clique aqui
Análise em vídeo: Clique aqui
Páginas: 272
Sinopse: Disse
o antigo sábio que não há nada de novo debaixo do sol. As experiências humanas
repetem-se continuamente ao longo da história: guerras, desastres naturais – e
epidemias.
Como depositária das nossas experiências, tanto
individuais quanto coletivas, não nos surpreende que, entre os grandes
monumentos da literatura, encontremos obras que relatem os traumas e angústias
de viver sob a devastação de uma doença.
Entre esses monumentos encontra-se UM DIÁRIO DO ANO DA
PESTE, de Daniel Defoe.
Nessa obra, o autor recria ficcionalmente a Grande Peste
de Londres de 1665, e, em forma de um diário-reportagem, somos levados a um
emaranhado de recordações, anedotas, estatísticas oficiais e relatos de
sobreviventes de uma epidemia de peste bubônica que marcou definitivamente a
história da Inglaterra. O escritor, aliando rigor jornalístico à exuberância da
forma, dramatiza magistralmente aquela que podemos descrever como situação-limite.
“Anoto com tanta riqueza de detalhes este
caso particular porque talvez seja valioso para os que vierem depois de mim,
caso sejam forçados a passar pela mesma aflição e pelo mesmo impasse, e
portanto desejo que este relato seja recebido como uma história de minhas
próprias ações, visto que talvez de nada valha para eles saber o que se passou
comigo.”
“No geral, a face das coisas, como dizia,
sofrera grandes alterações. O pesar e a tristeza instalavam-se em todos os
rostos, e, embora parte das pessoas ainda não se sentisse opressa, todos
demonstravam uma preocupação profunda. E, como víamos a aparente aproximação da
doença, cada um se via a si mesmo, e á própria família, como vulneráveis ao
pior dos perigos. Fosse possível representar aquela época com exatidão para os
que a não viram, e passar ao leitor uma noção mais exata do horror que se
apresentava por todos os lados, tal horror certamente causaria justas
impressões em suas mentes, e os encheria de surpresa. Poder-se-ia muito bem
dizer que Londres se afogava em lágrimas. Os que choravam os mortos em verdade
não circulavam pelas ruas; os gritos das mulheres e crianças às janelas, e às
portas das de suas casas, onde estavam seus parentes mais queridos, talvez
moribundos, ou simplesmente mortos, eram coisa tão frequente de se ouvir,
quando andávamos pelas ruas, que o som bastava para traspassar o coração mais
robusto do mundo. Lágrimas e lamentos eram vistos em quase todas as casas, em
especial na primeira parte da visitação*, pois, mais para o final, os corações
dos homens haviam endurecido, e a morte estava tão constantemente diante dos
seus olhos que eles não se preocupavam muito com perderem os amigos, pois
esperavam que eles próprios seriam convocados na hora seguinte.”
*: Visitation: Deus “visita” os homens
trazendo-lhes o seu castigo. Optou-se, na tradução, por “visitação”, vocábulo
pouco usual (como a própria palavra inglesa), mas dicionarizado e amplamente
atestado. – N. T.
“As
apreensões das pessoas foram da mesma forma estranhamente intensificadas pelo
engano característico daquele tempo: me parece que as pessoas, por meio de qual
princípio não consigo imaginar, estavam mais viciadas em profecias, conjurações
astrológicas, sonhos e histórias da carochinha do que estavam antes ou ficariam
depois. Se esse infeliz humor foi originalmente causado pelas tolices de alguns
dos com eles lucravam, isto é, ao imprimir previsões e prognósticos, isso não
sei dizer.”
“Além dessas coisas públicas, havia os sonhos
das velhas. Ou, devo dizer, as interpretações que as velhas faziam dos sonhos
alheios; e estas fizeram uma abundância de gente chegar até a perder o juízo.
Uns ouviam vozes que os avisavam para fugir, pois haveria em Londres uma tal peste
que os vivos não teriam como enterrar os mortos. Outros viam aparições nos
ares, e devo ter a liberdade de dizer de ambos – espero que sem faltar com a
caridade – que ouviam vozes que nunca falavam, e enxergavam visões que jamais apareciam. A
imaginação das pessoas realmente se descontrolara e ficara possuída, e não era
de espantar se elas, que continuamente observavam as nuvens, nelas enxergassem
formas e figuras, representações e aparições, que não tinham substância outra
que a dos ares e vapores. Aqui, nos diziam ter visto uma espada flamejante
erguida por mão que emergia de uma nuvem, cuja ponta pendia diretamente sobre a
cidade. Ali, viam cortejos fúnebres, e caixões que pairavam nos ares, levando
gente pra enterrar. E ali novamente viam montes de cadáveres insepultos, e
coisas semelhantes, conforme a imaginação daquelas pobres pessoas aterrorizadas
lhes fornecia matéria-prima com que trabalhar.
Assim a imaginação hipocondríaca representa
Navios, exércitos, batalhas no firmamento
Até que os olhos firmes as exalações dissolvam
E tudo à sua matéria-prima, as nuvens, reduzam24
Eu
poderia encher este livro com os estranhos relatos que tais pessoas faziam
todos os dias do que tinham visto. E todos tinham tanta certeza de ter visto o
que fingiam ver que não havia como contradizê-los, sem com isso faltar com a
amizade, ou ser visto como rude e descortês por um lado, e iconoclasta e de
mente fechada por outro. Certa vez, antes que a peste tivesse início (excetuando,
como eu disse, os mortos de St. Giles), creio ter sido em março, ao ver uma
multidão passando na rua, juntei-me a ela para satisfazer minha curiosidade, e
vi que todas as pessoas encaravam os ares, para ver o que uma mulher lhes dizia
aparecer claramente aos seus olhos: um anjo com vestes brancas, trazendo na mão
uma espada flamejante, agitada ou brandida sobre o alto da própria cabeça. Ela
descreveu cada parte da figura, criando uma imagem vívida. Mostrou-lhes o
movimento e a forma, e as pobres pessoas aceitaram o que era dito com muita
avidez, e muita prontidão. Sim, vejo claramente, disse um. Lá está a
espada, só não vê quem não quer. Um outro viu o anjo. Um viu o rosto
do mesmo anjo, e gritou: Que gloriosa criatura! Um via uma coisa, outro via
outra. Observei com tanta avidez quanto os outros, mas talvez sem tanta
solicitude para sofrer sugestões, e, como já disse, em verdade nada vi exceto
por uma nuvem branca, iluminada de um lado pelo brilho do sol que lhe chegava
pelo outro. A mulher esforçou-se para me mostrar o anjo, mas não conseguiu
obrigar-me a confessar que o tivesse visto, o que, de fato, se tivesse
confessado, seria mentira. Mas a mulher, voltando-se para mim, olhou-me na
cara, e imaginou que eu ria, e nisso também ela foi ludibriada pela imaginação,
pois a verdade é que não ri, e vinha, ao contrário, mui seriamente refletindo
sobre como aquelas pobres pessoas estavam aterrorizadas pela força da sua própria
imaginação. Contudo, ela me deu as costas, me chamou de sujeito profano, e de
escarnecedor; disse-me que era o tempo da Fúria de Deus, e que julgamentos
temíveis se aproximavam, e que desprezadores como eu deviam maravilhar-se e
perecer.25”
22. Jonas 3, 4. N T.
23. Na Guerra dos Judeus VI, 5, 3,
Flávio Josefo relata que, poucos anos
antes da destruição de Jerusalém, apareceram muitos presságios e sinais. Entre
eles, certo Jesus, filho de Ananias, começou a profetizar a queda de Jerusalém
na Festa dos Tabernáculos. Levado ao procurador romano, fustigado e despido de
suas roupas, foi solto, tido como louco, continuando a lamentar pela cidade: “Mas
ele, até o tempo da guerra, não se aproximava de nenhum dos cidadãos nem fora
visto falando, mas todo dia, como uma imprecação premeditada, lamentava: 'Ai,
ai de Jerusalém!' Nem maldizia os que lhe espancavam cotidianamente nem era
afável com quem lhe dava comida: a única resposta para todos era esse
melancólico presságio.”) – NE.
24 “So Hypocondriae Fancy's represent / Skips, Armies, Battles, in the
Firmament; / Till steady Eyes, the Exhalations solve, / And all to its first
Matter, Cloud, resolve”. Defoe cita os versos de seu próprio poema, A
New Discovery of na Old Intreague (1691). – NT.
25. Wonder andperish. Alusão a Atos 13, 41, segundo a+luthorised Version (King James Bible):
Behold, yee despisers, and wonder, andperis/L “Vede, ó desprezadores, e
maravilhai-vos, e perecei.” NE.
“Um mal sempre abre caminho para outro: esses
terrores e apreensões das pessoas as levaram a mil atos de fraqueza, tolice e
malignidade, para cujo encorajamento não faltava um tipo de gente realmente
maligno.”
“Mas até mesmo aquelas meditações saudáveis e
justas – que, se fossem levadas com correção, teriam felizmente levado as
pessoas a caírem de joelhos, confessarem os seus pecados, e voltarem o olhar
para o piedoso Salvador, pedindo perdão, implorando que tivesse compaixão
delas, naquele tempo da sua aflição, de tal forma que poderíamos ser como uma segunda
Nínive33 – causavam um extremo muito contrário entre as pessoas comuns,
que, ignorantes e estúpidas em suas reflexões assim como antes eram estouvadas e
de uma maldade estúpida, agora eram levadas pelo seu temor aos extremos da
tolice, e, como eu já disse, corriam para os feiticeiros e bruxos, e buscavam
toda espécie de impostor, para saber o que lhes aconteceria, os quais
alimentavam os seus medos, e as mantinham sempre alarmadas, e atentas, com o
propósito de iludi-las, e bater-lhes as carteiras. Estavam, pois, loucas quando
corriam atrás de curandeiros e charlatães, e de todas as velhas do ofício,
buscando antídotos e remédios, fazendo estoque de uma tal imensidão de pílulas,
poções e preservativos, como eram chamados, que não só gastavam seu dinheiro, como
também se envenenavam de antemão, por medo do veneno da infecção, e preparavam
seus corpos para a peste, em vez de se preservarem contra ela. Por outro lado,
é incrível, e difícil de imaginar, a que ponto os postigos das casas e as
esquinas das ruas estavam recobertos de avisos médicos e panfletos de sujeitos
ignorantes, que se fingiam e brincavam de médicos, e convidavam as pessoas a
vir até eles para receber remédios; avisos que normalmente começavam com
floreios assim: “INFALÍVEIS pílulas preventivas contra a peste. NÃO TEM ERRO:
preservativos contra a infecção. Tônico SOBERANO contra a corrupção dos ares. Instruções
EXATAS para o tratamento do corpo no caso de infecção: pílulas
antipestilenciais. INCOMPARÁVEL poção contra a peste, nunca antes vista Um
remédio UNIVERSAL para a peste. O ÚNICO tônico EFICAZ contra a peste. O
ANTÍDOTO IMPERIAL contra todos os tipos de infecção.” E tantos mais que eu não
saberia contar. E, se soubesse, precisaria de um livro inteiro para anotá-los.”
33. Após ouvirem a pregação de Jonas, o povo
ninivita, desde o mais pobre até o rei, se arrependeu e se converteu. Cf. Jonas
3:5-10. N E.
“Tudo isso efeito do rebuliço que as pessoas
tiveram, depois que entre elas começou a correr pela primeira vez a noção de
que a peste batia às portas. Podemos dizer que isso aconteceu por volta do dia
de São Miguel36 de 1664, porém mais particularmente depois que os
dois homens morreram em St. Giles, no início de dezembro. E novamente após mais
um alarme em fevereiro. Pois quando a peste se espalhava com toda evidência,
eles logo começaram a perceber a tolice que era confiar naquelas criaturas inúteis,
que lhes haviam arrancado dinheiro por meio de fraude; e aí seus medos começaram
a trabalhar em outra direção, isto é, a da perplexidade e da estupidez, não sabendo
que caminho tornar, ou o que fazer, para se ajudarem ou conseguirem algum alívio.
Corriam de lá para cá, da casa de um vizinho para a casa de outro, e até mesmo
pelas ruas, de porta em porta, repetindo o grito: Senhor, tende piedade de
nós, o que haveremos de fazer?
De fato, os pobres eram dignos de dó num
aspecto particular, no qual tiveram pouco ou nenhum socorro, e que desejo
mencionar num espírito de sério respeito e séria reflexão; um aspecto que
talvez nem todos os leitores apreciem: isto é, que a morte agora começava não
só, como podemos dizer, a pairar sobre as cabeças de todos, como também a
espiar suas casas e quartos, e a olhar-lhes nos olhos. Embora pudesse haver
alguma estupidez, e torpor da mente, (e houve, em grande medida), ainda assim
havia uma medida muito grande de simples alarme, que soava no mais profundo da
alma, se é que assim posso falar a respeito dos outros. Muitas consciências
foram despertadas, muitos corações endurecidos se desfizeram em lágrimas,
muitas confissões penitentes foram feitas de crimes há muito ocultados. Qualquer
cristão teria a alma ferida ao ouvir os gemidos de morte de muitas criaturas
desesperadas, e ninguém ousava se aproximar para oferecer-lhes conforto: muitos
roubos, muitos assassinatos foram naquele tempo confessados em voz alta, sem
que ninguém sobrevivesse para registrar a prestação de contas. Podia-se ouvir até
mesmo nas ruas, quando passávamos por elas, as pessoas pedindo misericórdia a
Deus por meio de Jesus, e dizendo, fui ladrão, fui adúltero, fui assassino, e coisas
semelhantes. E ninguém ousava parar e investigar minimamente tais coisas, ou então
confortar as pobres criaturas, que, angustiadas em corpo e alma, assim gritavam.
Alguns dos ministros realmente visitaram os doentes no início, e por pouco tempo,
mas era coisa que não havia como continuar fazendo. Entrar em algumas das casas
seria morte certa. Os próprios coveiros dos mortos, as mais endurecidas
criaturas da cidade, às vezes se amedrontavam, e ficavam tão aterrorizados que
não ousavam entrar nas casas, onde famílias inteiras eram dizimadas ao mesmo
tempo, e onde as circunstâncias eram mais particularmente horríveis, como
acontecia no caso de algumas. Mas isso se deu no primeiro surto da enfermidade.
O tempo os acostumou a tudo, e depois disso
não havia lugar em que não se arriscassem a entrar, sem hesitações, como terei
ocasião de descrever longamente no futuro.
Estou supondo agora que a peste havia
iniciado, e que os magistrados haviam começado a considerar seriamente as
condições em que se encontravam as pessoas. Sobre o que fizeram no que diz
respeito à regulamentação dos habitantes, e também das famílias infectadas, disso
falarei separadamente. Mas no que diz respeito à questão da saúde, é apropriado
mencionar aqui que, havendo atentado para o humor estulto do povo, que o fazia
correr atrás de charlatões e curandeiros, feiticeiros e videntes, coisa que
faziam como descrito acima, chegando ao ponto da loucura, o Senhor Prefeito, um
cavalheiro muito sóbrio e muito religioso, nomeou médicos e cirurgiões para o
socorro dos pobres, quero dizer, dos pobres infectados, e, particularmente,
ordenou que o Colégio de Médicos publicasse receitas de remédios baratos para
os pobres que se encontravam em todas as circunstâncias da enfermidade. Esta,
de fato, foi uma das coisas mais caridosas e judiciosas que se podiam fazer naquela
época, pois assim se fez com que os pobres passassem a assombrar menos as
portas de todos os distribuidores de receitas, e com que engolissem cegamente,
e sem reflexão, veneno por remédio, e morte em vez de vida.”
36. 29 de setembro. N E.
“Mas retorno ao assunto das famílias
infectadas e trancadas em casa pelos magistrados. Não é possível exprimir o
sofrimento de tais famílias e era geralmente de tais casas que vinham os gritos
e brados das pobres pessoas, amedrontadas e até mesmo aterrorizadas até a morte
pela visão do estado em que se encontravam sues familiares mais queridos, e
pelo terror de estarem aprisionadas como estavam.
Eu me lembro, e enquanto escrevo esta
história parece-me poder ouvir o som, de uma certa senhora com uma única filha
– uma jovem donzela de cerca de dezenove anos – e que possuía uma fortuna muito
considerável. Eram as únicas habitantes da casa em que moravam. A senhorita, a mãe
e a criada tinham viajado por algum motivo, não lembro qual, pois a casa não estava
trancada. Mas cerca de duas horas depois que voltavam para casa, a senhorita
reclamou de não estar se sentindo bem. Passados outros quinze minutos, vomitou
e sentiu uma violenta dor de cabeça. “Queira Deus”, disse a mãe, terrivelmente
assustada, “que minha filha não tenha a infecção!” A dor de cabeça tendo
aumentado, a mãe mandou que se aquecesse a cama, e decidiu ali deitar a filha,
e preparou coisas que ajudassem a filha a suar – o que era o tratamento
habitualmente usado quando começavam as primeiras apreensões da enfermidade.
Enquanto a cama era aquecida, a mãe tirou as
roupas da moça, e justo quando ela foi colocada na cama, a mãe, examinando o
corpo da filha com a ajuda de uma vela, imediatamente descobriu os fatídicos sinais
da doença na parte de dentro de suas coxas. A mãe, não conseguindo se conter,
atirou a vela ao chão e gritou de maneira tão terrível que bastaria para levar
o horror ao mais intrépido coração do mundo. E tampouco foi apenas um grito, ou
um brado, mas, tendo o terror se apossado do seu espírito, ela primeiramente
desmaiou, e depois se recuperou, e depois correu pela casa inteira, subindo e
descendo as escadas, como louca, e de fato estava louca, e continuou a guinchar
e a berrar por muitas horas, totalmente sem juízo, ou ao menos sem o governo
dos sentidos. Segundo me disseram, ela nunca mais voltou inteiramente a si depois
disso. Quanto à jovem donzela, a partir daquele momento já era um cadáver, pois
a gangrena que ocasiona as manchas havia se espalhado por todo o seu corpo, e
ela morreu em menos de duas horas. Mas a mãe continuou a berrar, não sabendo
mais nada do que acontecia com a filha, isso muitas horas depois que a filha já
havia morrido. Isso já faz tanto tempo que não sei dizer com certeza, mas creio
que a mãe nunca mais se recuperou, e morreu duas ou três semanas depois.”
“Digo que já tinham cavado diversas valas em
outro terreno quando a enfermidade começou a espalhar-se por nossa paróquia, e
especialmente quando as carroças dos mortos começaram a circular, o que não aconteceu,
em nossa paróquia, antes do início de agosto. Em cada uma dessas valas, tinham
colocado talvez cinquenta ou sessenta corpos; depois disso fizeram buracos
maiores, onde enterraram todos os que a carroça tinha trazido em uma semana, o
que, quando estávamos na metade de agosto, variava entre 200 e 400 por semana;
e não podiam simplesmente cavar buracos maiores, devido à ordem dos magistrados,
que os obrigava a deixar corpos acima dos sete palmos subterrâneos. E como a
água aparecia a aproximadamente cinco metros de profundidade, eles não poderiam
simplesmente, como eu dizia, colocar mais mortos em uma vala. Mas agora, no
início de setembro, com a peste se alastrando terrivelmente, e o número de enterros
em nossa paróquia aumentando e até mesmo superando a quantidade de mortos enterrados
de qualquer paróquia de Londres que fosse menor ou do mesmo tamanho, ordenaram
que aquele apavorante golfo fosse cavado – pois era mais um golfo do que uma
vala.
Tinham imaginado que essa vala seria
suficiente para um mês ou mais do que isso quando a cavaram, e alguns culparam
os fabricários* por tolerarem coisa tão medonha, dizendo-lhes que estavam se preparando
para enterrar a paróquia inteira, e coisas afins. Mas o tempo fez transparecer
que os fabricários conheciam as condições da paróquia melhor do que os que
reclamaram. Pois, a vala tendo sido concluída no dia 4 de setembro, creio eu,
começaram a enterrar no dia 6, e quando chegou o dia 20 – um período de apenas
duas semanas – haviam jogado lá dentro 1.114 corpos quando foram obrigados a
tapá-la, sendo que os corpos haviam alcançado a linha dos sete palmos
subterrâneos. Não duvido que existam alguns anciãos até hoje vivos nesta paróquia
que podem confirmar o fato, e podem mostrar até mesmo o local do cemitério em
que a vala está, melhor do que eu poderia. A marca da vala durante muitos anos
também permaneceu visível na superfície do cemitério, estando em comprimento
paralela à passagem que ladeia o muro oeste do cemitério, que começa em
Houndsditch e vai novamente para leste, entrando por Whitechapel, saindo perto
da estalagem das Três Freiras.
Foi por volta do dia 10 de setembro que a
minha curiosidade me levou, ou, melhor dizendo, me impeliu, a ir ver novamente
essa vala, quando haviam sido enterradas nela quase 400 pessoas. E não me
contentei com vê-la à luz do dia, como fizera antes, pois assim não haveria
nada a ser visto senão a terra solta; pois todos os corpos jogados lá dentro
eram imediatamente cobertos de terra por aqueles que eram chamados de
enterradores,46 que em outras épocas eram chamados de carregadores.
Assim, resolvi ir à noite e ver alguns mortos sendo atirados lá dentro.
Havia uma ordem estrita de impedir as pessoas
de se aproximar daquelas valas, e isso era apenas para prevenir a infecção. Mas
depois de algum tempo essa ordem tornou-se mais necessária, pois pessoas
infectadas e próximas do fim, e também delirantes, corriam até essas valas, envoltas
em cobertores ou tapetes, e se jogavam lá dentro, e, como dizia o povo, se
enterravam a si mesmas. Não posso dizer que os funcionários tenham permitido
deliberadamente que alguma pessoa ficasse lá dentro; mas ouvi dizer que, uma
grande vala de Finsbury, na paróquia de Cripplegate, estando aberta para o lado
dos campos, pois ainda não havia muros em volta, muitos vinham e se atiravam lá
dentro, e lá morriam, antes que alguma terra fosse jogada em cima deles. E que
quando chegavam para enterrar outros corpos e os encontravam lá, estavam já inteiramente
mortos, embora ainda não frios.
Isso pode servir um pouco para descrever a
terrível situação que encontrei naquele dia, embora seja impossível dizer algo
capaz de passar uma verdadeira ideia de como era a situação para quem não a
viu, exceto por isto: que era, de fato, muito, muito, muito apavorante, e tal
que língua nenhuma seria capaz de exprimir.
Permitiram a minha entrada no cemitério
porque eu conhecia o sacristão que trabalhava ali; o qual, embora não tenha de
forma alguma se negado a me atender, contudo tentou com fervor me persuadir a
não fazê-lo, dizendo-me com muita seriedade (pois era um homem bom, religioso e
sensato) que era de fato trabalho e dever deles se aventurar, e correr todos os
riscos, e que nisso eles poderiam ter a esperança de ser preservados; mas que
eu não tinha nada que me chamasse claramente a ir, exceto pela minha
curiosidade, a qual, disse ele, acreditava que eu não fingiria ser suficiente
para justificar que eu corresse aquele risco. Disse a ele que andava aflito
para ir ver, e que talvez fosse algo instrutivo, e talvez não inútil. “Assim”,
disse o bom homem, “se esse é o motivo de vossa ousadia, por Deus, entrai,
pois, tenha certeza que vos será um sermão, talvez o melhor que já ouvistes em
vossa vida. É uma visão que fala”, disse ele, “e que tem uma voz, sim, uma voz
alta, para nos convocar a todos ao arrependimento.” E, dizendo isso, abriu a
porta e disse: “Ide, se quiserdes.”
O discurso dele estremecera um pouco a minha
determinação, e fiquei hesitando por um bom tempo, mas justamente nesse tempo
vi duas tochas se aproximando do final da Minoritas,47 e ouvi o
sineiro, e depois apareceu a carroça dos mortos, como a chamavam, vindo pelas ruas.
Então não pude mais resistir ao meu desejo de ver, e entrei. Não havia ninguém,
ao que pude perceber de início, no cemitério, ou que estivesse entrando nele,
exceto pelos enterradores e pelo sujeito que dirigia a carroça, ou melhor
dizendo, que guiava cavalo e carroça. Mas quando se aproximaram da vala, viram
um homem que ia e voltava, encoberto por um manto marrom, e fazia movimentos
com as mãos sob o manto, como se estivesse em grande agonia; os coveiros
imediatamente o cercaram, supondo que se tratasse de uma daquelas pobres
criaturas, delirantes ou desesperadas, que costumavam tentar, como já disse, se
enterrar a si mesmas. Ele nada disse quando passei por ali, mas duas ou três vezes
gemeu muito alto e profundamente, e suspirou como se o coração lhe estivesse a
ponto de se fazer em pedaços.
Quando se aproximaram dele, os enterradores
logo descobriram que não se tratava de uma pessoa infectada e em desespero,
como observei acima, ou de uma pessoa mentalmente desequilibrada – mas sim de alguém
oprimido por um fardo de sofrimento deveras pavoroso, estando a sua esposa e
muitos dos seus filhos todos na carroça que acabara de chegar junto com ele,
que a seguira, agoniado, esmagado pela tristeza. Ele se lamentava
vigorosamente, como era fácil de ver, mas com uma espécie de desolação viril,
que não podia encontrar vazão em lágrimas; e calmamente desafiando os
enterradores a que o deixassem em paz, disse que ficaria até ver os corpos
atirados lá dentro, depois do que iria embora, de modo que eles desistiram de
importuná-lo. Mas logo que a carroça foi colocada de ré e os corpos atirados
promiscuamente à vala, o que foi para ele uma surpresa, pois ele ao menos
esperava que seriam pousados respeitosamente lá dentro embora depois tenha
entendido que tal coisa era impraticável –, como eu dizia, assim que viu
aquilo, gritou, incapaz de conter-se. Não pude ouvir o que dizia, mas vi que recuou
dois ou três passos e caiu para trás, desmaiado. Os coveiros correram até ele e
o ergueram, e em pouco tempo voltou a si; eles o levaram à Pye-Tavern, do outro
lado do final da rua Houndsditch, onde, ao que parece, o homem era conhecido, e
onde cuidaram dele. Ele lançou um novo olhar para dentro da vala ao ir embora,
mas os enterradores haviam encoberto os corpos tão imediatamente com a terra
que jogaram lá dentro que, embora iluminação não faltasse, pois havia
lanternas, e velas nas lanternas, que durante toda a noite circundavam as margens
da vala – lanternas sobre montes de terras, sete ou oito deles, talvez mais que
isso – ainda assim, nada pôde ser visto.
Foi mesmo uma cena pesarosa, e que me afetou
quase tanto quanto todo o resto. Mas a outra cena foi medonha e cheia de
terror. A carroça trazia dezesseis ou dezessete corpos; alguns estavam
enrolados em lençóis de linho, outros em trapos, outros ainda por pouco não
estavam nus, ou tão frouxo estava o tecido que os cobria que se separava dos corpos
quando estes eram atirados da carroça, e caíam inteiramente nus sobre os
outros; mas a questão não era muito séria para eles, ou a indecência muito
grande para qualquer outra pessoa, visto que estavam todos mortos, e que seriam
amontoados na cova comum da humanidade, como podemos chamá-la, pois não se
faziam distinções, e os pobres iam junto com os ricos. Não havia outro modo de
enterrar, e nem era possível que houvesse, pois não era possível conseguir
caixões que bastassem para os prodigiosos números dos que eram abatidos por tal
calamidade.
Correu uma notícia que gerava escândalo a
respeito dos coveiros: a de que, se um cadáver lhes era entregue decentemente
atado, como dizíamos então, numa mortalha com nós na cabeça e nos pés, coisa
que alguns faziam, e geralmente em linho de qualidade; como eu dizia, correu a
notícia de que os coveiros eram perversos a ponto de desvestir os corpos na
carroça e enterrá-los inteiramente nus. Mas como não me é fácil atribuir tal
vilaneza aos cristãos, e ainda numa época tão cheia de terrores como aquela, só
o que posso fazer é relatar sem afiançamentos.”
*: Responsáveis pela administração das
igrejas. N E.
46. Buryers.
Há um trocadilho com bearers, a
seguir. A palavra inglesa para “coveiro”, diga-se, é gravediggrer. – NE.
47. Rua da City, cujo nome deriva da antiga abadia que abrigou irmãs clarissas
(minoritas) até a reforma de Henrique VIII. – NE.
“Mal se consegue acreditar nos casos pavorosos
que todos os dias aconteciam nesta ou naquela família. Pessoas no furor da
enfermidade, ou atormentadas pelos próprios inchaços – coisa que era de fato intolerável
–, perdendo o controle de si mesmas, delirantes e enlouquecidas, e muitas vezes
cometendo violência contra si mesmas, jogando-se das janelas, atirando em si
mesmas &c.; mães que em sua loucura assassinavam os próprios filhos,
algumas morrendo de simples tristeza, que era como uma paixão; outras morriam
de simples susto e surpresa, sem sofrer infecção nenhuma; outras o pavor
idiotizara e as fazia cometer tolas loucuras; havia algumas que o pavor
desesperava e tornava lunáticas, outras ainda que por ele eram levadas a uma
loucura melancólica.
A dor do inchaço era, em especial, muito
violenta, e para alguns, intolerável. Dos médicos e cirurgiões pode-se dizer
que torturaram muitas pobres criaturas até a morte. Os inchaços em alguns
endureciam, e eles aplicavam violentos emplastros para extraí-los, ou
cataplasmas para rompê-los, e quando esses não funcionavam, cortavam e
escarificavam os inchaços de um modo terrível. Em alguns, tais inchaços
endureciam em parte pela força da enfermidade, e em parte pelas tentativas
muito violentas de extraí-los, e endureciam tanto que não havia instrumento capaz
de cortá-los; nesses casos, queimavam-nos com substancias cáusticas, de modo
que muitos morreram delirantes de loucura com esse tormento, e alguns durante o
próprio procedimento feito sobre o inchaço. Nessas aflições, alguns, por não
terem quem os segurassem na cama, ou quem lhes cuidasse, tratavam-se com as
próprias mãos, como mencionado acima. Alguns disparavam pelas ruas, às vezes
nus, e corriam diretamente para o rio, se não fossem detidos pelo vigia ou por
outras autoridades, e mergulhavam n'água onde quer que a encontrassem.
Muitas vezes sentia-me traspassado até a alma
ao ouvir os gemidos e gritos dos que sofriam tais tormentos, mas das duas
formas que a doença assumia, essa era considerada a mais promissora de toda a infecção,
pois se fosse possível deter tais inchaços, e rompê-los e fazer com que
escorressem, ou, então, como dizem os cirurgiões, digeri-los, o paciente
geralmente se recuperava. Já os que, como a filha daquela senhora, eram
atingidos pela morte logo no início, e nos quais os sinais da doença apareciam,
muitas vezes seguiam vivendo sem perceberem nada, com tranquilidade e
indiferença, até pouco antes de morrerem, e alguns até o momento em que caíam
mortos, como muitas vezes acontece nas apoplexias e nas epilepsias. Estes se
sentiam mal repentinamente, e corriam até um banco ou a um muro, ou até
qualquer lugar conveniente que se oferecesse, ou até às próprias casas se fosse
possível, como mencionei anteriormente, e lá se sentavam, desmaiavam e morriam.
Esse tipo de morte era praticamente o mesmo que acontecia com aqueles que
morrem de gangrenas comuns, que morrem desmaiando, e, por assim dizer, se vão
como que sonhando. Os que morriam assim tinham muito pouco conhecimento de
estarem infectados até que a gangrena estivesse espalhada por todo o corpo; e
tampouco os próprios médicos conseguiam saber ao certo o que havia acontecido
com elas até que lhe abrissem os peitos ou outras partes do corpo e vissem os
sinais.
Nesse tempo nos contavam uma imensa
quantidade de histórias pavorosas sobre as enfermeiras e os vigias que cuidavam
dos moribundos. Isto é, enfermeiras contratadas, que cuidavam dos infectados, e
que os tratavam de maneira bárbara, deixando que passassem fome, ou que os
sufocavam, ou que por outros meios apressavam o seu fim, isto é, os assassinavam.
E dos vigias, postos para guardar as casas que eram trancadas quando lá dentro
restava apenas uma pessoa, que talvez estivesse doente e de cama, dizia-se que
invadiam a casa e assassinavam aquela pessoa, e imediatamente a jogavam para
dentro da carroça dos mortos! E assim foram para a cova, seus corpos mal tendo
esfriado.
Não posso negar que alguns assassinatos assim
foram cometidos, e acho que dois culpados foram presos, mas morreram antes que
pudessem ir a julgamento. E ouvi dizer que três outros, em momentos distintos,
foram perdoados por assassinatos dessa espécie. Mas devo dizer que não acredito
nem um pouco que este fosse um crime tão comum quanto alguns desde então
insistem em dizer, e tampouco parecia ser um ato muito racional nos casos em
que as pessoas estavam doentes a ponto de não conseguirem se defender, pois
estas pessoas raramente se recuperavam, e não havia a tentação de cometer um
assassinato, ao menos não uma tentação que correspondesse ao fato, quando se
tinha certeza de que as pessoas morreriam em tão pouco tempo, sem chance de
sobreviverem.
Que muitos roubos e práticas iníquas foram
cometidos até mesmo naquela época terrível eu não nego. O poder da cobiça era
em alguns tão forte que corriam todos os riscos para poder roubar e saquear. E
particularmente nas casas em que todas as famílias ou todos os habitantes já
haviam morrido e sido levados, eles invadiam, não importando a que preço, e sem
considerar o perigo da infecção, e tiravam até as roupas dos cadáveres e os
lençóis de sob os corpos.
Este, suponho, deve ter sido o caso de uma
família de Houndsditch, em que um homem e a filha – o resto da família já tendo
sido, suponho, levado embora pela carroça dos mortos – foram encontrados inteiramente
nus, cada um em seu quarto, mortos e deitados no chão, e as roupas de cama, do
que se imagina que tenham sido recolhidas pelos ladrões, tinham desaparecido, e
não se encontravam em lugar nenhum.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário