Editora: Planeta
ISBN: 978-85-7665-361-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 286
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Sinopse: Ver Parte
I
“Pela movimentação da véspera, podia-se esperar
uma sexta-feira, 13, cheia de desassossego. Mas nem a superstição podia adivinhar
que aquele dia iria durar mais de uma década. Costa e Silva, segundo seus exegetas,
acreditava que o AI-5 acabaria em oito ou nove meses. Costa e Silva acabou antes.
Naquele dia 13, o marechal seria protagonista
de um espetáculo em que 22 dos 23 figurantes pareciam dirigidos pela estética de
José Celso Martinez Corrêa, que era capaz de dar a uma tragédia a forma de farsa,
misturando chanchada, teatro de revista, circo e Chacrinha. Em apenas um ato, os
atores que comandavam o país representaram todas as alegorias que o Tropicalismo
havia posto na moda: o Cinismo, a Hipocrisia, o Servilismo, a Pusilanimidade, a
Lisonja, a Subserviência. Mas isso foi mais tarde.
Às 9h30min da manhã, como estava programado, o
presidente compareceu à Escola Naval para presidir as solenidades de formatura de
cadetes e a entrega da Ordem do Mérito Naval. Acompanhado dos seus oficiais de gabinete,
Costa e Silva foi recebido pelo ministro Augusto Rademaker, pelo comandante da Escola
e por outros oficiais.
Antes da cerimônia de declaração dos novos guardas
marinha, haveria a entrega das condecorações no pátio externo da Escola Naval.
Enquanto a comitiva presidencial passava por entre
as 111 personalidades a serem agraciadas – militares, senadores, deputados, embaixadores
– o discreto secretário de imprensa, a alguns metros de distância ia observando
a reação dos diversos militares presentes – do exército, da Aeronáutica e da Marinha.
Heráclio viu, por exemplo, quando um coronel do Exército encontrou-se com o general
César Montagna e perguntou:
– Olá chefe. Como que está o senhor?
– Como é que posso estar rapaz? Estou com meu
clube, quero o AI-5.
Como membro da comitiva, o major D’Aguiar pôde
perceber o mal-estar do ambiente:
O lugar estava engalanado, muito bonito, mas nós
fomos mal-recebidos; as fisionomias estavam fechadas, carrancudas, não havia aquela
espontaneidade, alegria de outras solenidades. O presidente foi recebido quase friamente.
Estava todo mundo desconfiado de todo mundo.
Talvez por isso, o general Portella tenha tido
que repetir tantas vezes o que dissera a noite toda, sem trair o segredo, mas como
uma senha: “Não sei qual é a decisão, mas é pra valer”.
Da solenidade na Escola Naval, o presidente foi
direto para a reunião com seu alto comando, às onze horas no Laranjeiras, onde pediu
a cada um dos presentes que desse a sua opinião sobre a medida que iria adotar.
Ao chegar atrasado, o ministro da justiça provocou os dois únicos momentos de riso
daquele encontro de tenebrosas intenções: o primeiro, quando o presidente resolveu
gozar o atraso de Gama e Silva; o segundo, quando esse fez a sua exposição, começando
por ler um manifesto à nação, para em seguida propor um ato adicional tão radical
que o próprio Lira Tavares interrompeu-o, arrancando risos gerais:
– Assim, não, Gama; assim você desarruma a casa
toda.
Gama e Silva propunha o recesso do Supremo Tribunal
Federal e um fechamento definitivo do Congresso, das Assembleias e das câmaras de
vereadores. Não era aquilo que o presidente queria. Gaminha não se abalou:
tirou rapidamente da pasta o rascunho de outro texto menos drástico.
A reunião não ofereceu surpresas. Costa e Silva
levara anotações das medidas a serem tomadas e, no final, pediu ao ministro da justiça
e ao deputado Rondon Pacheco que transformasse o esboço no que viria a ser o Ato
Institucional nº 5. Mas antes, por sugestão de Rondon, mandou chamar os ministros
do Planejamento e da Fazenda para saber se a medida provocaria repercussões negativas
na política econômico-financeira do governo. Jayme Portella, o emissário da convocação,
relata: “Os ministros Hélio Beltrão e Delfím Neto declararam que nada a afetava,
podendo ser o ato editado tranquilamente”.
Logo depois da reunião preliminar, às 13 horas,
o presidente autorizou que as decisões ali tomadas fossem comunicadas, em “caráter
sigiloso”, aos escalões subordinados.
Alguns ex-assessores do presidente Costa e Silva
alimentam até hoje a ilusão de que, se o ato proposto tivesse encontrado uma razoável
oposição, alguma fórmula menos radical teria sido encontrada.
“Estou convencido”, diz D’Aguiar, “que se houvesse
uma divisão grande – Pedro Aleixo, por exemplo, e mais oito ou nove de um lado –
o presidente procuraria outra solução que não o AI-5”.
Como é uma hipótese, vale a pena introduzir outra:
se, antes mesmo da oficialização, os principais escalões das Forças Armadas iam
tomar conhecimento da decisão, que exigiam impacientemente há pelo menos 24 horas,
seria possível admitir outro desfecho para a reunião das 17 horas?
Por uma razão ou por outra, Costa e Silva resolveu
realizá-la com toda a liturgia de uma reunião histórica, decisiva, embora na prática
ela só tivesse valor simbólico, já que o Conselho de Segurança Nacional, sem poder
deliberativo, iria apenas sancionar uma decisão já tomada.
O presidente apresentava naquela tarde a disposição
de quem se preparara para não perder nada do espetáculo que ia dirigir; nem a excitação
em que se encontrava ele queria diminuir. Quando, às 16 horas, o seu médico, Dr.
Élcio Simões, tirou-lhe a pressão e, assustado quis medicá-lo imediatamente,– segundo
D’Aguiar, ela atingira 20 por 13, Costa e Silva retrucou:
– Não, hoje preciso dela bem alta.
Com a pressão mantida, o presidente Costa e Silva
abriu uma hora depois, a 43ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, no salão
de despachos no segundo andar do palácio das Laranjeiras.
Quando era conduzido do seu gabinete pelo general
Portella, o presidente encontrou o seu vice, a quem fez o carinho de segurá-lo pelo
braço e levá-lo a um canto para uma conversa a dois. Segundo várias testemunhas,
inclusive familiares, um tinha pelo outro muito apreço e respeito. “Dificilmente”
– escreveria mais tarde José Carlos Brandi Aleixo num livro sobre o pai, “se encontrará
na história republicana, um relacionamento tão correto e cordial entre um presidente
e um vice como no caso de Costa e Silva e Pedro Aleixo”. Aleixo era tido como um
conselheiro que pesava nas decisões do presidente, embora naquele dia isso não fosse
ocorrer.
Observadores da cena, como Portella e D’Aguiar,
calculam que os dois tenham conversado ali na porta do salão uma meia hora. Para
quem estava ansioso em começar a reunião, olhando o relógio a cada instante e chamando
a atenção do chefe do gabinete militar para o horário, o tempo gasto na conversa
dava a medida da importância do interlocutor.
Aleixo que não participara da reunião das onze
horas – vindo de Belo Horizonte, ele chegou depois, acompanhado do ministro Passarinho
– expunha a sua desaprovação à medida a ser adotada. O vice procurava convencer
o presidente de que o Estado de Sítio era o instrumento constitucional indicado
para resolver a crise. A conversa foi interrompida quando os membros do conselho
já estavam entrando no salão para ocupar seus lugares, em frente aos quais havia
uma pasta com algumas folhas de papel datilografadas.
Na cabeceira, dois gravadores iriam funcionar
como incômodos instrumentos da História.
Em volta da mesa e do presidente estavam sentados,
os ministros e chefes do Estado Maior, isto é, as 24 autoridades mais poderosas
do país. Costa e Silva abriu a reunião anunciando que o momento era crítico e por
isso teria que tomar “uma decisão optativa”: ou a revolução continuava ou se desagregava.
Ele acreditava que todos ali, além do povo, eram
testemunhas do seu empenho em promover a união da área política e da área militar.
Demonstrando ressentimento pelo que classificava
de falta de apoio político, o presidente não se conformava com a recusa do Congresso.
As “considerações” que o seu governo dispensara aos políticos já lhe tinham criado
inclusive problemas na área militar e revolucionária.
O presidente declarava não ter apego ao cargo
e desejava chegar rapidamente ao fim do governo para passá-lo a quem pudesse promover
a “harmonia entre a área política e a área militar, porque sem ela o Brasil irá
à desagregação”.
Em seguida, comunicou que se retiraria por uns
15 minutos para que os conselheiros pudessem ler mais à vontade o documento que
estava nas pastas, o AI-5.
Vinte minutos depois, Costa e Silva voltava ao
salão, conduzido pelo general Portella, e dava a palavra a Pedro Aleixo, “a maior
autoridade deste conselho”.
O tom sereno do discurso do vice-presidente, a
segurança da argumentação e a coragem de enfrentar uma plateia contrária, iriam
impressionar até quem dele discordava, como o então major D'Agiar, que ainda se
comove com a lembrança: “Ele parecia tocado pelo Divino Espírito Santo: fez uma
corajosa, emocionante, brilhantíssima exposição”.
O orador começou sustentando que o caso Márcio
Alves deveria ser encaminhado mais na área política do que propriamente na área
jurídica, porque não seria legítimo esperar da Câmara um processo contra um dos
seus membros por palavras proferidas durante os discursos, em debates ou em votos
e pareceres. Ele não considerava “aconselhável”, do ponto de vista jurídico, a representação
ao Supremo Tribunal Federal. Como o ato praticado implicaria o máximo, segundo Aleixo,
crime de injúria, difamação e calúnia, as possíveis sanções ao deputado não poderiam
ter o alcance da perda de mandato. O vice-presidente reconhecia o impacto do discurso
nas Forças Armadas e admitia ser aquele “um dos momentos mais graves e mais difíceis
para a vida nacional”.
Nesta oportunidade, pois, o que me parece aconselhável
seria, antes do exame, de um ato institucional, a adoção de uma medida de ordem
constitucional que viesse a permitir um melhor exame do caso em todas as suas consequências.
A medida seria a suspensão da constituição por intermédio do recurso do estado de
sitio, acrescento senhor presidente, que da leitura que fiz do ato Institucional
cheguei a sincera conclusão de que o que menos se faz nele, é resguardar a Constituição
(...) Da constituição, que é, antes de tudo, um instrumento de uma garantia dos
direitos da pessoa humana e da garantia dos direitos políticos, não sobra, nos artigos
posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente parecido com uma caracterização
do regime democrático (...) Pelo Ato Institucional, o que me parece, adotado este
caminho, é que estaremos com uma aparente ressalva da existência de vestígios dos
poderes constitucionais decorrentes da Constituição de 24-1-67, e instituindo o
processo equivalente a uma própria ditadura.
Enfim, a palavra que dava nome real aos verdadeiros
objetivos daquela solene encenação: ditadura. Aleixo admitia que pudesse haver necessidade
de adotá-la, mas nesse caso, do ponto de vista jurídico, não havia dúvida: “O Ato
Institucional elimina a própria Constituição”. Ele não entendia nenhum ato institucional
que não significasse “uma nova revolução”, que não era, para ele, como “a de 31
de março de 1964”.
“Um dos estudiosos do período, o jornalista Elio
Gaspari – quem talvez mais se tenha debruçado sobre os documentos dessa época –
acha que Pedro Aleixo cometeu o monumental equívoco de fixar-se numa argumentação
jurídica aceitando a possibilidade da ditadura, desde que, ela não se pretendesse
constitucional”. Gaspari baseia-se, principalmente, no trecho em que o vice-presidente
afirma: “Caso se torne necessário se fazer essa Revolução, é uma matéria que pode
ser debatida e acredito até que se possa demonstrar que essa necessidade existe”.
Segundo o jornalista, que está escrevendo um livro sobre os governos militares,
a linha de argumentação de Aleixo desabou à medida em que ele estava numa mesa de
senhores interessados em proclamar uma ditadura, e não em discutir a legalidade
do ato”.
Mesmo assim, há indícios evidentes de que o discurso
de Pedro Aleixo desagradou a maioria dos presentes, não só pela impaciência com
que alguns o ouviram– a ponto de obrigar o presidente, a certa altura, a pedir silêncio
– como pelos votos que se seguiram, todos os 22 a favor da edição do AI-5.
Quanto à reação do presidente, há um mistério.
Observadores da reunião, como Heráclio Sales e Hernani D’Aguiar, um, assessor de
Imprensa, e outro, de Relações Públicas, o primeiro contra o AI-5 e o segundo a
favor, mas tendo em comum a mesma vontade de isenção., afirmam que Costa e Silva
ficou tão impressionado com a fala de Aleixo que pediu ao sargento que cuidava dos
gravadores que voltasse a fita. O pretexto era dar oportunidade aos que, sentados
do outro lado da mesa, não perdessem nada do que fora dito. Na verdade, conforme
aquelas testemunhas, Costa e Silva teria usado um hábil estratagema para, quem sabe,
abalar algumas das convicções presentes e até reverter opiniões.
“Ele tinha esperança de que o Conselho de Segurança
Nacional votasse contra”, garante Heráclio que reconstituiu o episódio:
Ficou aquele silêncio constrangedor e a voz de
Pedro Aleixo massacrando novamente aquele colegiado todo favorável ao AI-5. Os argumentos
jurídicos, políticos, éticos, morais e de conveniência apresentados com aquela lucidez,
aquela articulação verbal, um negócio extraordinário.
O depoimento do assessor de Relações Públicas
é semelhante.
Ouvida a mesa, determinou o presidente que se
repetisse a gravação de toda a exposição de Pedro Aleixo. Talvez movido pelo seu
subconsciente, recomendou que todos meditassem sobre as palavras do “ilustre brasileiro
Pedro Aleixo”. No mais profundo e respeitoso silêncio, a gravação foi escutada por
inteiro. Depois disso o presidente perguntou a cada um dos presentes se mantinham
o voto anterior, ou se modificava em face da argumentação repetida.
D’Aguiar não entende porque o seu amigo Jayme
Portella não registrou a cena – logo ele, um arguto repórter moderno, nunca desprezou
detalhes de hora, clima, gestos, inclusive pequenos flagrantes do presidente fazendo
palavras cruzadas em momentos críticos –, enfim tudo aquilo que faz do seu livro,
ainda que mal escrito, imprescindível documento para a reconstituição da época.
O único registro oficial da 43ª reunião do Conselho
de Segurança Nacional, porém, não se refere ao incidente. Nem a gravação feita por
dois gravadores, nem a consequente ata da histórica sessão, arquivadas sigilosamente
na Secretaria-Geral do CSN, fornecem sequer vestígios da cena. Sensível, a fita
era, porque em uma hora de gravação captou inclusive ruídos de sirene vindos do
exterior.
Também a cópia do discurso do vice-presidente,
que o general Golbery do Couto e Silva ofereceu à família Aleixo, não contém qualquer
registro do gesto de Costa e Silva.
Toda essa controvérsia, no entanto – se a cena
de fato ocorreu, se o trecho foi apagado –, tudo isso poderia ser facilmente esclarecido,
assim como o verdadeiro desempenho dos personagens. Talvez por efeito do tempo,
o que eles disseram na histórica sessão do CSN tem sido oferecido à opinião pública
em versões que, ou foram maquiladas pela imaginação, ou sofreram reparações cosméticas
operadas pela vergonha retrospectiva de cada um. Neste ano de 88, quando a edição
do AI-5 completa duas décadas e a Constituinte extinguiu o CSN, criando o Conselho
de Defesa Nacional, alguns dos signatários – como Passarinho, Beltrão, Delfim, por
exemplo – prestariam um grande serviço a suas biografias e à História tentando liberar
o acesso à fita e à ata, se é que não têm nada a temer.
De mais a mais, a não ser por um suspeito sigilo,
não existe razão para manter secreto o registro de uma reunião que foi ostensivamente
gravada para a posteridade e da qual participaram duas dúzias de personalidades,
além da assistência de uma dezena de observadores: assessores, ajudantes-de-ordens
e oficiais de gabinete.
A rigor, o único que deveria temer pela divulgação
da fita seria José Celso Martinez Corrêa, porque ela permite descobrir que na verdade
a mais autêntica encenação tropicalista do ano não saiu de sua cabeça.
Mas de qualquer maneira, com ou sem reprise, o
memorável discurso de Pedro Aleixo não mudou a opinião de qualquer dos outros 22
conselheiros.
Para votar a proposta presidencial, estavam ali
dez oficiais-generais (Augusto Haman Rademaker Grunewald, ministro da Marinha; Aurélio
de Lira Tavares, ministro do Exército; Márcio de Souza Mello, ministro da Aeronáutica;
Afonso Albuquerque Lima, ministro do Interior; Emílio Garrastazu Médici, chefe do
SNI; almirante Adalberto de Barros Nunes, chefe do Estado-Maior da Armada; general
Adalberto Pereira dos Santos, chefe do Estado-Maior do Exército; general Orlando
Geisel, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; tenente-brigadeiro Carlos Alberto
Huet Sampaio, chefe do Estado-Maior da Aeronáutica; e general Jayme Portella, chefe
da Casa Militar, três oficiais da Reserva (Mário David Andreazza, ministro dos Transportes;
Jarbas G. Passarinho, ministro do Trabalho e Previdência Social; e José Costa Cavalcanti,
ministro das Minas e Energias) e dez civis (Pedro Aleixo, vice-presidente da República;
José de Magalhães Pinto, ministro das Relações Exteriores; Antônio Delfim Netto,
ministro da Fazenda; Ivo Arzua Pereira, ministro da Agricultura; Leonel Miranda,
ministro da Saúde; Tarso Dutra, ministro da educação, Hélio Beltrão, ministro do
Planejamento; Carlos F. de Simas, ministro das Comunicações; Rondon Pacheco, chefe
da Casa Civil; e Luís Antônio Gama e Silva, ministro da Justiça).
Entre eles, seis eram parlamentares: Aleixo, Passarinho,
Magalhães, Tarso, Rondon e Costa Cavalcanti.
No papel de memorando em que fazia questão de
anotar os votos, o presidente Costa e Silva pôde colocar sim em todos os nomes,
com exceção de Pedro Aleixo, à frente do qual escreveu “estado de sítio”,
sublinhado várias vezes.
Os 22 eleitores do sim não apresentaram
objeções nas suas justificativas de voto. Ressalte-se, ao contrário, o cuidado deles
em não deixar dúvidas quanto à disposição de se colocarem intransigentemente a favor.
Se Costa e Silva estava de fato esperando resistências, ele não chegou a encontrar
nem hesitações. Uns, por inato desapego à dignidade, outros abrindo mão de suas
histórias pessoais e muitos, por não tê-las, renunciando à oportunidade de começar
a construí-las, aqueles 22 atores preferiam desempenhar o papel que o medo e a covardia
lhes impunham. Era, como se disse, uma peça tropicalista: não havia lugar para a
ética.
Os tropicalistas achavam que o absurdo brasileiro
só poderia ser devolvido artisticamente pelo choque de elementos dramáticos antagônicos
– o moderno e o arcaico, o rural e o urbano, a tecnologia e o artesanato, Ipanema
e Iracema, banda e Carmem Miranda – encenados sob a forma de paródia. O resultado,
hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo. O problema
é que às vezes a realidade permanecia mais absurda do que sua paródia, deixando
o surreal aquém do real. Naquele palco, por exemplo, José Celso teria pouco a acrescentar.
Os personagens reais eram suas próprias caricaturas, e o choque entre o que se propunha
e as razões pelas quais se dizia aceitar o proposto era um jogo de cinismo que nenhuma
transposição dramática conseguiria superar. Além disso, uma retórica de elipses
e eufemismos produzia subversões semânticas capazes de colocar a palavra democracia
que estava sendo expulsa daquela mesa e do país em quase todos os discursos, enquanto
a ditadura, que se instaurava, era tratada como uma ausente distante. Houve até
quem usasse o artifício de condená-la no passado para melhor aderir à do presente.
Outros, considerando-a inevitável, aproveitaram para seguir o cínico conselho de
reação ao estupro: experimentaram um forçado prazer.
Melhor do que ler a sinopse, porém, é assistir
a peça. Era, como nenhum dos atores desconhecia, uma farsa. Eles estavam reunidos
para celebrar um ritual, uma espécie de missa negra. Podia-se fingir ali qualquer
reação, menos ingenuidade. Todos sabiam que aquele ato significava o início de uma
ditadura explícita e declarada cujos efeitos eram óbvios.
Como anunciava o texto que todos foram obrigados
a ler, ia-se fechar o Congresso por tempo indeterminado, interrompiam-se as garantias
constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, podia-se cassar,
demitir, transferir, reformar funcionários civis e militares a vontade e suspendia-se
o habeas corpus, o que – com o reforço da posterior Lei de Segurança Nacional
– permitia manter qualquer preso acusado de delito político em regime de incomunicabilidade
por dez dias – cinco a mais do que o Alvará de 1705, usado para extorquir as confissões
dos Inconfidentes.
Para encenar esse rito de celebração, que inaugurava
o reino do Arbítrio e da Tortura, o elenco se apresentava completo.”
“A palavra ditadura só foi usada, depois de Aleixo,
por três conselheiros: Magalhães Pinto, Passarinho e Hélio Beltrão. O primeiro admitia,
citando o vice-presidente, que realmente aquele ato estava instituindo uma ditadura,
mas “se ela é necessária, devemos tomar as responsabilidades de fazê-la”.
Passarinho não tinha dúvida de que era “uma ordem
ditatorial” o que se estava instalando ali. “Repugna enveredar pelo caminho da ditadura”,
confessava, para ressalvar: “É esta que está diante de nós”. Se era inevitável,
propunha, então o ministro do Trabalho: “Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos
de consciência”.”
“Sobre Pedro Aleixo, Costa e Silva disse: “Peço
a Deus que não me venha convencer amanhã de que ele é que estava certo, porque ele
admitiu mesmo a hipótese do Ato final, porque entendo, como entende o Conselho na
sua sabedoria de maioria, de quase unanimidade, que nesta escalada o degrau proposto
se torna evidentemente desnecessário”.
O presidente terminou a sua exposição com um desabafo:
“Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e ideias que adoto
uma atitude como esta. Adoto-as convencido de que elas são do interesse do país,
do interesse nacional, que demos um basta à contrarrevolução”.”
“Às 22h30min, o ministro da Justiça e o locutor
Alberto Cury, liam, em cadeia de TV, os seis considerandos e os 12 artigos que compunham
o Ato Institucional nº 5, e mais o Ato Complementar n° 38, que decretava o recesso
do Congresso. Foi uma leitura monótona e ameaçadora como uma sentença de morte:
“O presidente da República poderá decretar...” repetiu incansavelmente o locutor.
A exemplo daquelas orações, todas regidas por
um único sujeito, 90 milhões de brasileiros, a partir daquele momento, iriam ser
comandados também por uma única vontade.”
“Em dez anos de vigência, o AI-5 já tivera tempo
de punir 1607 cidadãos, dos quais 321 cassados: seis senadores, 110 deputados federais
e 161 estaduais, 22 prefeitos, 22 vereadores – mais de seis milhões de votos anulados.
Além da cassação, todos os senadores e 100 deputados federais tiveram seus direitos
políticos suspensos por 10 anos. Entre as punições a funcionários públicos, estavam
o afastamento de três ministros do Supremo Tribunal Federal – Hermes Lima, Evandro
Lins e Silva e Vítor Nunes Leal – e de professores universitários como Caio Prado
Júnior – condenado a quatro anos e meio de prisão por uma entrevista a um jornal
estudantil – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Mário Schemberg, Vilanova
Artigas, Hélio Lourenço de Oliveira e uma dezena de pesquisadores do Instituto Oswaldo
Cruz, entre outros, muitos outros.
Paralelamente a essa caçada aos criadores, o AI-5
desenvolveu um implacável expurgo nas obras criadas. Em dez anos, cerca de 500 filmes,
450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais
de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela foram
censurados. Só Plínio Marcos teve 18 peças vetadas. O índex reunia um elenco variado,
que ia de Chico Buarque, um dos artistas mais censurados e perseguidos da época,
a Dercy Gonçalves e Clóvis Bornay. A violência, que o marechal Costa e Silva confessou
ter sentido ao editar o AI-5, ia deixar de ser uma figura de retórica. A partir
do dia 13 de dezembro de 1968, ela se abateria de fato sobre a alma e a carne de
toda uma geração.”
“O que se pretendia fazer com o ex-presidente
Juscelino Kubitschek, o escritor Carlos Heitor Cony pôde sentir nessa mesma noite
ao ser preso no Leme. Conduzido para o Batalhão de Guardas, em São Cristóvão, ele
assustou-se com a tropa embarcada num camburão. Cony contaria mais tarde:
– Um oficial muito moço, levando-me para a cela,
onde já estava o jornalista Joel Silveira, explicou-me: “Esse pessoal aí de fora
vai ter hoje muito trabalho”.
– Que tipo de trabalho? – indagou o prisioneiro.
- Vamos fuzilar o Juscelino e o Lacerda.
Não se sabe por que essa vontade não foi cumprida,
mas em compensação Juscelino sofreu muito nesses dias em que esteve preso. Em janeiro,
uma junta de quatro médicos – Drs. Aloysio Salles, Oswaldo Pinheiro Campos, Décio
de Souza e Ruy Goyanna – assinou um laudo sobre o paciente: “Para seu adequado tratamento,
julgamos absolutamente inconveniente a situação de reclusão em que se encontra”.
Fundamentando essa conclusão, os médicos forneciam
o diagnóstico do doente:
a) arteriosclerose coronariana; b) hipertensão
arterial; c) diabete; d) gota; e) infecção urinária recidivante pós-operatória;
f) rotura traumática do tendão de Aquiles esquerdo (em período de imobilização,
após tratamento cirúrgico); g) síndrome de depressão psíquica.
Aos 66 anos e mesmo nesse estado, o criador de
Brasília não perdia o humor, o que fez dele o mais doce e amoroso presidente que
o Brasil já teve. Logo depois de deixar a prisão, ele se encontrou com Vitório Cabral,
que se surpreendeu com o gesso na perna do amigo. Rindo, JK explicou:
– Pois é, aqueles merdas me obrigavam a ficar
horas e horas em pé respondendo a perguntas idiotas.
O atual secretário de Planejamento do Estado do
Rio comove-se com a lembrança:
– Juscelino dizia isso sem ódio, quase brincando,
com uma grandeza impressionante. Ele sabia que tudo aquilo ia sair na urina da História.
De fato, todos os majores, coronéis e generais
que maltrataram Juscelino Kubitschek naqueles tempos seguintes saíram, ao contrário
dele, na urina da História.”
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