Editora: Campus
ISBN: 978-85-7001-641-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 104
Sinopse: Ver Parte
I
“Na Filosofia
do Direito, Hegel parte da convicção de que o ser humano, por natureza,
não é bom nem mau: é um ser que não se deixa determinar exclusivamente pelo que
lhe é natural. É um ser capaz de autodeterminação, capaz de vontade própria.
Essa vontade (Wille) se
distingue do desejo (Wunsch), porque nela está presente a
razão, como dimensão essencial da liberdade. “Tal como o peso é uma
determinação fundamental do corpo, a liberdade é uma determinação fundamental da
vontade” (§ 4). A representação usual da liberdade é aquela que a reduz ao arbítrio
(Willkür), à ideia de “fazer o que quisermos”. Mas o problema
está naquilo que queremos. A vontade só é livre quando se autodetermina, quando
chega a conhecer seu objeto. “O homem comum acha que é livre quando lhe
permitem agir arbitrariamente; contudo, é no arbítrio que se constata
que ele não é livre” (§ 15). O arbítrio confirma, fortalece e tende a eternizar
a contraposição rígida entre a vontade do indivíduo isolado e a comunidade sem
a qual esse indivíduo não poderia existir. O arbítrio contrapõe uma parte do
indivíduo (a parte que se isolou) à outra parte dele, que é aquela que o liga
necessariamente a outras pessoas, que o integra à humanidade, através do todo
social.
A vontade se exerce numa superação do
arbítrio, pondo-se nas coisas, atuando no mundo. A razão se realiza na vontade:
por meio da vontade, a razão consegue lidar eficazmente com a particularidade e
evita perder-se na abstração. É na ação das pessoas particulares, dos sujeitos
individuais, que a razão se expressa, pegando carona na vontade. Porém, a
vontade das pessoas só proporciona carona para a razão quando vai além do arbítrio
e abre a consciência do indivíduo para enriquecer o conhecimento de si mesmo,
completando a compreensão de sua particularidade com a assimilação da dimensão
essencial de seu intercâmbio constante com os outros.
Indivíduos concretamente livres existem em
sociedade. E o processo pelo qual eles realizam o movimento que expressa a liberdade
é o que Hegel chama de eticidade (Sittlichkeit). A eticidade
comporta três momentos distintos: a família, a sociedade civil-burguesa e o
Estado. Na família, o indivíduo toma consciência, sensivelmente, de modo
natural, de sua unidade com outras pessoas; percebe que seu destino está
entrelaçado ao delas. Na sociedade civil-burguesa, o indivíduo assume sua autonomia,
persegue seus interesses privados, orienta-se de acordo com suas paixões e
necessidades particulares, mas também é pressionado no sentido de reconhecer os
vínculos objetivos que o ligam aos outros, num âmbito muito mais vasto que o da
família. No Estado, por fim, o indivíduo supera o quadro constituído pelo
egoísmo generalizado, ultrapassa o horizonte limitado das “corporações” (grupos
organizados em torno de motivações específicas), para se elevar à universalidade
da cidadania.
No parágrafo 153, o autor da Filosofia
do Direito contava que um filósofo pitagórico, na antiguidade,
respondeu a um pai que queria saber como educar seu filho: “torná-lo cidadão de
um Estado que tenha boas lei?. A cidadania era, para ele, o coroamento de um
processo de efetivação da razão e da liberdade. Tornando-se cidadão de um
Estado provido de boas leis, o sujeito seria livre como indivíduo e, ao mesmo
tempo, serviria à comunidade, contribuindo ativamente não só para preservar as
leis boas como para aperfeiçoá-las.
Ao contrário do que pensam alguns críticos da
filosofia hegeliana, nosso pensador não esmagava o indivíduo sob o peso de
todos os deveres, subordinando-o a todos os direitos concentrados nas mãos do
Estado. Um intérprete brasileiro observa, com razão: “Na verdade, o direito do
indivíduo é um dever do Estado e, inversamente, o direito do Estado é um dever
do indivíduo” (Denis L. Rosenfield, em Política e Liberdade em Hegel).
O Estado, na Filosofia do Direito, é “o
claro dia festivo da vida ética”, segundo palavras de Rosenzweig (Hegel und
der Staat). Na sociedade civil-burguesa, o sujeito encontra uma
dificuldade enorme para ultrapassar os limites do discernimento, para
articular o exercício de sua liberdade com o reconhecimento da necessidade. A
sociedade civil-burguesa induz o sujeito a confundir imediatamente o universal
com o particular. É no âmbito do Estado que ele pode superar essa
confusão e se elevar à razão.
A família constitui uma comunidade que
amalgama naturalmente as pessoas que a integram. A sociedade civil-burguesa atomiza
os indivíduos, separa-os, pulveriza-os, coloca-os uns contra os outros,
torna-os autônomos, porém danifica a dimensão comunitária de suas vidas. O
Estado aparece como a comunidade a que os indivíduos se reintegram,
voluntariamente, numa opção madura e refletida, como cidadãos: a liberdade, guiada
pela razão, os leva a reconhecer e assumir a necessidade.
Contudo, é preciso advertir que os três
momentos não se sucedem em ordem mecânica. Na realização da eticidade, o
que vem depois não elimina o que veio antes. O momento subsequente não cancela
aquele que o precedeu; a sociedade civil-burguesa não destrói a família, e o Estado
não anula a sociedade civil-burguesa.
Para compreender a passagem do sujeito de um
nível para o outro, não podemos deixar de recorrer a um conceito essencial da
filosofia hegeliana: o conceito de superação dialética (“Aufhebung”).
“Aufheben — o verbo — significa, na acepção que lhe dá o filósofo,
ao mesmo tempo negar algo, aproveitar o conteúdo válido daquilo
que está sendo negado e elevá-lo a um nível superior. Essa tríplice
operação nos permite articular no desenvolvimento (no “tornar-se”) a continuidade
e a ruptura, a inovação qualitativa radical e a persistência.
A sociedade civil-burguesa supera
dialeticamente a família, negando seus princípios, esvaziando-a, diminuindo seu
papel, sem no entanto fazê-la desaparecer. O Estado supera dialeticamente a
sociedade civil-burguesa, negando sua pulverização estrutural, mas precisa
conservar, em sua síntese superior, as exigências ligadas à conquista da
autonomia por parte dos indivíduos. O movimento da eticidade — o
movimento dos indivíduos na sociedade, concretizando seus anseios, fazendo suas
opções, definindo suas responsabilidades, respeitando e modificando seus
costumes, formando e transformando suas instituições — realiza-se através de
constantes Aufhebungen.
O Estado é o nível superior da realização desse
movimento; é a “efetividade da ideia ética”, a unidade da consciência
subjetiva e da ordem objetiva. Ao mesmo tempo, contudo, ele é o resultado de
processos históricos particulares, nos quais intervêm fatores diversos: os
Estados empiricamente existentes conservam traços dessa intervenção, quer
dizer, conservam marcas de motivações particulares, critérios familiares e
corporativos, elementos que de algum modo lhes cerceiam o movimento em direção
à universalidade.
Quando Hegel fala do Estado, na Filosofia
do Direito, ele discorre — filosoficamente — sobre o conceito de
Estado; mas deixa claro que sabe muito bem que, na diversidade dos caminhos da
atuação política, o Estado se defronta com enormes dificuldades para
corresponder ao seu conceito. “O Estado existe no mundo; com isso, existe na
esfera do arbítrio, do acaso e do erro; ações perversas podem desfigurá-lo de
muitos lados” (S 258, acréscimo).
Exatamente para superar essa desfiguração, o
Estado precisa organizar seu funcionamento de acordo com uma constituição,
e essa constituição será tanto mais racional quanto melhor corresponder à
natureza do conceito de Estado.
O conceito de Estado custou a amadurecer. Na
concepção de Platão, o Estado não respeitava a liberdade subjetiva. Mas o Estado
moderno precisa de uma constituição que assegure justamente essa liberdade
subjetiva a seus cidadãos: ele “possui uma alma que lhe dá vida e que é
justamente a subjetividade” (S 270, acréscimo). O Estado é um “hieróglifo
da razão”: os sujeitos humanos devem aprender a decifrá-lo para nele poderem
realizar objetivamente sua liberdade subjetiva.”
“No entanto, a objeção mais reiteradamente
formulada contra a Filosofia do Direito acabou sendo uma manifestação de
desconfiança feita a partir de um ângulo de “esquerda”: uma recusa da tese,
apresentada no prefácio da obra, segundo a qual — na tradução a que estamos
acostumados — “o que é racional é real, e o que é real é racional”.
Essa tese tem suscitado muitas controvérsias
apaixonadas. A frase — uma das mais famosas que Hegel escreveu — foi interpretada
como uma apologia conservadora do existente. O Estado prussiano não era real?
Era. Então, dever-se-ia concluir, logicamente, que ele era racional. A
filosofia de Hegel, por conseguinte, legitimava a situação política mantida
pelo governo do imperador Friedrich Wilhelm III, atribuindo-lhe a dignidade da
razão.
Mas o real, para Hegel, não se reduzia ao
existente. A palavra que o filósofo utilizou, wirklich, vem de wirken,
que significa atuar, efetuar. A Wirklichkeit é a efetividade, a
realidade apreendida em sua dinâmica, em seu movimento profundo, que nunca
se restringe ao meramente dado. A razão se expressa na atividade realizada, mas
também na atividade que está se realizando e na que ainda vai se realizar. O sentido
do real provém do movimento que passa a se realizar pela atuação dos homens.
Theodor Wiesengrund Adorno, em Drei Studien zu Hegel, adverte: “O
real só pode ser tido por racional na medida em que seja transparente à ideia
da liberdade, isto é, à autodeterminação real da humanidade.” Os homens,
buscando realizar sua liberdade, efetuam ações modificadoras sobre o real; e a
realidade efetiva, racional, é aquela que existe incorporando as modificações
reais efetuadas sobre ela, que são parte de sua constante autotransformação.
O Estado existente não coincide,
automaticamente, com o Estado real-efetivo: ele só se aproxima da efetividade e
só se torna a encarnação da razão na medida em que corresponde ao conceito de
Estado. Num acréscimo ao parágrafo 270 da Filosofia do Direito, Hegel já
se mostrava empenhado em enfrentar as objeções que lhe estavam sendo feitas,
esclarecendo que sua proposta de “reconciliação” do pensamento com a realidade (que
obrigava o pensamento a acatar a racionalidade do real) não implicava a
capitulação da consciência diante de um dado objetivamente existente, qualquer
que ele fosse. E dizia: “Um Estado ruim é um Estado que se limita a existir. Um
corpo doente também existe, mas não possui mais uma verdadeira realidade. Uma
mão cortada ainda parece ser uma mão real: ela continua existindo, porém não é
mais efetiva.”
A “reconciliação com a realidade” não leva
inevitavelmente o pensamento à aceitação resignada do dado: por um lado, ela impede
que o sujeito delire, evita que ele descambe para a embriaguez do subjetivismo;
por outro, no entanto, ela implica uma crítica ativa do existente, em nome da
fidelidade ao movimento da realidade efetiva, que atravessa o quadro momentâneo
atual e envolve o sujeito em seus desdobramentos, desafiando-o a intervir no
que virá em seguida, isto é, forçando os homens a encarar um processo que
também depende deles.
Essa dimensão crítica inerente à compreensão
da dinâmica da realidade efetiva e à necessidade de enfrentar o desafio representado
pela coagulação do existente (obstáculo que precisa ser superado) nem sempre
bastaram para conferir à perspectiva de Hegel, na Filosofia do Direito,
uma expressão avançada consequente. O livro contém evidentes traços de
impregnação conservadora. Em alguns momentos, o filósofo deixou transparecer preconceitos
risíveis a respeito das mulheres, quando, por exemplo, comparou os
representantes do sexo masculino a animais e as representantes do sexo feminino
a plantas, acrescentando que as mulheres podiam ser cultas, espertas, argutas, porém
não tinham acesso às formas superiores do ideal, do espírito. “Quando as
mulheres se acham à frente do governo” — afirmou — “o Estado está em perigo”. E
ainda acrescentou: “Elas não agem de acordo com as exigências do universal, mas
segundo inclinações casuais e meras opiniões” (§ 166, acréscimo). Em outros
momentos, o pensador se esforçou em vão e com argumentos frouxos numa defesa um
tanto constrangedora da necessidade lógica de um comando unitário para o
Estado, personificado em um monarca, cujo poder seria ao mesmo tempo “o mais singular
e o mais universal” (§275, acréscimo).
Outra indicação de uma possível infiltração
conservadora poderia ser localizada na conhecida frase do penúltimo parágrafo do
prefácio do livro: “a coruja de Minerva só alça voo quando chega o crepúsculo”.
A afirmação está apoiada em razões respeitáveis. A filosofia não depende de uma
superação do saber imediato? O conhecimento que ela nos proporciona não resulta
da paciência do conceito e da reconstituição das mediações? Esse trabalho não
carece de tempo para produzir seus frutos? Então, como poderia a coruja de
Minerva, símbolo da prudência, aventurar-se a levantar voo num céu demasiado
claro, arriscando-se a perder seu rumo, cega pelo brilho das falsas evidências,
ofuscada pela intensa luz enganadora da percepção sensorial? Mas a sábia espera
do crepúsculo e de suas suavidades também tem seus problemas, seus percalços.
Na medida em que se condena a esperar, a coruja renuncia implicitamente à
riqueza do conhecimento que só lhe poderia vir de sua participação ativa na
gestação do novo. Esquivando-se aos riscos inerentes a essa participação, ela
passa a ter do novo, do que está nascendo (e ainda não nasceu), uma
visão predominantemente exterior; e vai deixando de ter acesso à
compreensão da dimensão interior da realidade in fieri (que
lhe aparece pronta, feita por forças que lhe são estranhas). A coruja,
portanto, pode estar assumindo uma postura contemplativa, obrigando-se a
acompanhar tudo post festum, depois que outros animais puseram a
mesa e acabaram com o banquete.
O tom do discurso de Hegel na Fenomenologia
era, predominantemente, épico. A Filosofia do Direito, contudo,
nos dá a impressão de falar, muitas vezes, num timbre elegíaco. O pensamento já
não enfrenta, com galhardia, a tarefa de saudar a nova forma que o espírito
está assumindo: limita-se a identifica-la quando ela já está assumida.
Lukács observa que, para o Hegel de lena, o
momento decisivo da história moderna era a Revolução Francesa, devidamente corrigida
por Napoleão; para o Hegel de Berlim, no entanto, esse momento decisivo recua
no tempo e se desloca do plano sócio-político para o plano religioso: passa a
ser a Reforma luterana.
Hegel certamente não era um reacionário. Mas
sua perspectiva idealista, abstrata, não lhe permitiu, em Berlim, preservar sua
tese da necessária “reconciliação com a realidade” contra elementos de uma
erosão conservadora, que a reduzia à aceitação impotente de alguns elementos
indigestos do estado de coisas existente.
Reconhecida essa limitação da filosofia
hegeliana — sobre a qual ainda voltaremos a falar, mais adiante — precisamos
reafirmar que, com todos os seus recuos, com todas as suas concessões, o
filósofo representou, nos treze anos de seu período berlinense, uma das expressões
mais significativas do avanço do pensamento na história da Europa. E, por
extensão, na história mundial.”
“A relação de Hegel com a arte estava longe
de ser a de um leigo. Por sua densidade, por sua intensidade, o vínculo do pensador
com a arte jamais poderia ser considerado um vínculo amadorístico. Hegel reassumia
a convicção de Kant de que a arte era uma expressão extremamente importante da
criatividade do sujeito humano. E ainda ia além: se em Kant essa criatividade
se via limitada ao plano da atividade do conhecimento, em Hegel
ela se estendia ao plano do próprio ser. Em sua perspectiva
ontológica, Hegel enxergava o sujeito atuando sobre o mundo, transformando-o e
compreendendo-o melhor para transformá-lo ainda mais; e a arte desempenhava um
papel decisivo nessa dinâmica auto-afirmadora do espírito humano. (...)
No entanto, ao se empenhar em dar conta da
ordenação do movimento do real, o sistema de Hegel acaba situando a arte num lugar
secundário, em relação à filosofia. Na atividade do espírito, a intuição, a
representação e o conceito correspondiam a três degraus sucessivos e
ascendentes, que eram os da arte, da religião e da filosofia.
Logo na introdução do volume que seus alunos
editaram, após sua morte, com as aulas sobre estética, Hegel deixou claro que
não se interessava pelo “belo natural”. Para ele, a beleza existente na
natureza era inferior à beleza produzida pelos seres humanos. A significação da
beleza crescia na medida em que passava a expressar o espírito dos homens. Hegel
chegou a afirmar, polemicamente, que a mais pobre das ideias que passa pela
cabeça de um idiota é mais elevada do que o mais lindo espetáculo proporcionado
pela natureza.
Na arte, segundo Hegel, a aparência sensível
está sempre penetrada pelo espírito. Para não permanecer abstrata, a essência precisa
aparecer; por isso, a aparência, em si mesma, não é inessencial; ao
contrário, ela constitui um momento decisivo, ineliminável, do movimento da
essência. O que aparece na arte não é mera ilusão superficial: é a
manifestação de uma verdade profunda.
Hegel se interessa apaixonadamente pela arte;
seu sistema filosófico, porém, estabelece que a expressão artística se
aprimorou na antiguidade, alcançou seu apogeu entre os gregos da época clássica
e depois começou a declinar. A arte contribuiu para a suavização daquilo que
existia de bárbaro nos seres humanos (Hegel usa a expressão francesa: “l'adoucissement
de la barbarie”). Ela fortaleceu na sensibilidade das pessoas a percepção de
que cada um pode se beneficiar da assimilação das experiências dos outros.
Ajudou cada um a dominar seus ímpetos, seus instintos, a administrar seus
desejos (em vez de ser dominado por eles). Através do convívio com a expressão do
sentimento dos outros, os seres humanos desenvolveram, na arte, um meio de
superar aquilo que a natureza fazia deles.
De início, os homens utilizaram símbolos.
Os símbolos já existiam antes da criação artística propriamente dita, mas
foram aproveitados e enriquecidos pela expressão estética; a arte assumiu um caráter
predominantemente simbólico (a arte oriental). Depois, verificou-se
uma “interpenetração do espiritual e do natural”, o encontro do conteúdo livre
com a forma livre, a realização perfeita do ideal, que se deu na arte clássica.
Por fim, na história moderna, vinha prevalecendo, segundo Hegel, a arte romântica,
na qual o espírito passa a saber que sua verdade não se realiza plenamente no
plano corporal-sensível-exterior, porque depende de um movimento voltado para a
pura interioridade.
O movimento interno da arte romântica aponta,
portanto, no sentido de sua superação. A arte romântica se insurge contra um tempo
antiartístico. “As condições gerais 'de nossa época” — sustentava o pensador — “não
são, de modo algum, favoráveis à arte”. Só que, no movimento em que se insurge
contra uma sociedade hostil, a arte é levada a se defrontar com seus próprios limites.
A dinâmica interior da arte romântica aponta no sentido de sua própria
superação, que é, e não pode deixar de ser, a superação da arte como tal. “A arte”
— concluía o filósofo — “traz em si mesma seus limites; e deve, portanto, ceder
lugar a formas de consciência mais elevadas.”
Algo análogo, a seu ver, acontecia com a
religião. Hegel, cristão convicto, sustentava que a religião era a atividade do
espírito tanto em si como para si; porém, advertia que, na forma da religião, o
espírito só era considerado em seu caráter imediato. Para Hegel,
não havia dúvida de que existia verdade e existia razão na religião. Por isso,
ele polemizava com os filósofos materialistas franceses do século XVIII,
repelia a crítica iluminista da religião e considerava a atitude do Iluminismo
uma manifestação da “vaidade do discernimento”. Usurpando o lugar da razão, o “discernimento”
se permitia desqualificar como “irracional” o procedimento religioso que não se
acomodava aos parâmetros de uma concepção estreita da racionalidade. (...)
Tanto a religião como a arte, na concepção
hegeliana, comportavam — e até exigiam — um movimento reflexivo, um movimento
pelo qual o sujeito se mostra capaz de reflectere (em latim: debruçar-se
outra vez) sobre um objeto que não se deu a conhecer suficientemente num
primeiro contato, numa relação imediata.
Na Estética, Hegel criticava asperamente
a tese romântica de que o artista genial é guiado por uma força misteriosa e
não tem consciência do que está fazendo. Ele dizia: “Sem reflexão, sem escolhas
conscientes, sem comparações, o artista é incapaz de dominar o conteúdo que
deseja expressar. E é um equívoco pensar que o verdadeiro artista não sabe o
que faz.”
Na Filosofia da Religião, aparecia a ideia
de que a religião corresponde a uma demanda profunda dos seres humanos e tem se
transformado historicamente, assumindo formas cada vez mais pensadas e
refletidas, para melhor dar conta dessa demanda. A Fenomenologia do Espírito
já advertia: “na facilidade com que o espírito se satisfaz pode-se medir a
extensão de sua perda”. A religião não podia se satisfazer com dogmas
simplistas e sentimentos ingenuamente intensos.”
“Não se esqueça de que o senhor é mais
jovem do que eu e, por conseguinte, ainda não está tão endurecido no hábito das
renúncias.” (Hegel)
“Não é por acaso — Hegel nos diz — que a
palavra história tem dois sentidos: ela designa tanto o movimento
realizado e vivido como sua reconstituição narrada ou analisada. De fato, é o próprio
movimento que, para se realizar, exige a reflexão crítica a respeito de seu
sentido.
A história se apresenta imediatamente aos
nossos olhos, como um imenso quadro de acontecimentos, de ações, de figuras infinitamente
variadas de povos, Estados e indivíduos que se sucedem uns aos outros,
incessantemente. Nos acontecimentos históricos, manifestam-se a atividade e os
sofrimentos dos homens. Em toda parte, somos levados a nos reconhecer a nós mesmos,
somos levados a tomar partido, a assumir posição, a favor ou contra, com respeito
a determinadas ações. Somos envolvidos por uma confusão vertiginosa, que nos
arrasta. E, diante desse quadro, perguntamo-nos: será que essa mudança tumultuada
tem mesmo algum sentido?
Ora, o sentido da história passa, justamente,
por nossa indagação a respeito dele, por nosso exercício da reflexão. A necessidade
que sentimos de tentar compreender o real reflete a necessidade que o movimento
do real tem de, por meio dos seres humanos pensantes, compreender-se a si
mesmo.
A razão subjetiva completa e enriquece a
razão objetiva: o sentido do movimento da história se dá a nós na medida em que
o assumimos como um movimento nosso. Só quem olha racionalmente o mundo é capaz
de reconhecer a racionalidade dele. Assim como, na Fenomenologia, cada
consciência era desafiada a superar as estreitezas de seus particularismos, de
sua percepção imediata e de sua passividade, para se elevar à razão e,
superando-se a si mesma, alcançar a forma do espírito, do mesmo modo, na história,
a humanidade precisa se desdobrar nas experiências diversas dos diferentes
povos, precisa suportar os dramas nacionais, atravessando sofrimentos enormes,
para que os povos, amadurecendo, façam a história mundial e se aproximem do
que, para Hegel, seria uma plena realização daquilo que ele chama de “espírito
do mundo”.
A compreensão da razão, em sua dimensão
universal, é extremamente trabalhosa para as pessoas; elas só conseguem apreendê-la
aos poucos, através de múltiplos tropeços e por meio das mediações proporcionadas
por seus interesses particulares, suas paixões e seus desejos. Quando as
pessoas se reconhecem integradas em povos, elas dão um passo à frente;
no Estado, são levadas a articular suas motivações privadas com o
respeito às motivações privadas alheias protegidas pelo direito, e são
levadas a assumir responsabilidades públicas.
Os povos, contudo, ainda são povos
particulares. Os Estados modernos continuam sendo diversos e, assumindo
interesses diferentes, colidem uns com os outros. O movimento da história tem
se realizado por meio dessas colisões. “A história mundial não é o lugar da
felicidade”, afirmava Hegel; e acrescentava: “nela, os períodos de felicidade
são páginas em branco.”
Tal como na Fenomenologia a
consciência, em seu movimento, devia passar pela dolorosíssima experiência da dilaceração
e atravessar a dialética perversa do senhor e do escravo, o espírito do mundo,
no movimento da história, só pode se realizar através de hediondas guerras
entre os povos. Os homens estão feitos de tal maneira que só conseguem fazer
sua história perseguindo “objetivos finitos e interesses particulares”. Kostas
Papaioannou sublinhou o pessimismo subjacente a essa concepção da história.
Mas Hegel não se deixa paralisar por esse
pessimismo. Ele constata que, nos conflitos entre os indivíduos e nas grandes
conflagrações entre os Estados, vão se acumulando as ruínas; e a razão, em sua
teimosa universalidade, vai cavando túneis por baixo do campo de batalha, feito
uma toupeira. Até que, em determinado momento, tudo desaba. E os homens se veem
obrigados a iniciar uma etapa inteiramente nova em sua caminhada.
Nessas horas de desabamento do próprio chão
em que os homens pisavam, os mais inteligentes entre eles enxergam a ação da razão;
e podem repetir as palavras que Hamlet pronunciou a respeito de seu pai, na
peça de Shakespeare: “Trabalhaste bem, toupeira esperta!”
A razão só pode atuar assim, recorrendo à
esperteza. É interessante ver Hegel empregando no curso berlinense de filosofia
da história a mesma expressão que utilizara no curso que dava em Iena, no
período de preparação da Fenomenologia: “Ardil (ou astúcia) da razão”
(em alemão: List der Vernunft). Em Iena, a razão astuciosa do sujeito
humano trabalhador punha as forças da natureza a seu serviço. Em Berlim, a
razão ardilosa da história mundial aproveita o poder das paixões e dos
interesses particulares para realizar o universal.
A razão, na história, precisa da paixão para
produzir resultados significativos, mudanças concretas. E são as grandes
paixões que geram os grandes homens, os seres humanos que Hegel chama de “indivíduos
histórico-mundiais”. Esses indivíduos histórico-mundiais não são propriamente modelos
de virtudes, e podem apresentar até traços mesquinhos e lamentáveis em suas
respectivas personalidades; são, no entanto, desencadeadores de transformações
sociais necessárias (ainda que “explosivas”).
Hegel dá o exemplo de César. Se tivesse
ouvido as advertências do republicano Cícero, César não teria sido ninguém. “César
sabia que a república romana estava transformada numa mentira, que os discursos
de Cícero eram vãos, que a forma republicana oca precisava ser substituída por
uma forma nova, que era aquela que ele trazia.” Por isso, César seguiu seu
caminho, que acarretava tantas turbulências, mas fazia a história avançar.
Os indivíduos histórico-mundiais são levados
a passar muitas vezes por cima dos direitos estabelecidos, porém — sustenta Hegel
— não tem sentido censurá-los moralmente, já que neles “a paixão é inseparável
da realização do universal”. “O universal pressupõe o particular e, ao mesmo
tempo, a negação do particular. O particular é finito e, como tal, deve
sucumbir. Os objetivos particulares se chocam uns com os outros e uma parte deles
é necessariamente destruída. Mas é precisamente com essa luta, com essa
destruição de particulares, que se produz, na história, o universal. E o
universal não perece, não se destrói nos conflitos, não corre nenhum perigo.
Permanece ileso, servindo-se das motivações particulares e das paixões como
escudos, como anteparos protetores, destinados a receber os golpes que são
desferidos no combate.”
A razão articula os interesses privados e as
paixões dos indivíduos histórico-mundiais aos movimentos dos povos, à realização
do “espírito do povo” a que tais indivíduos pertencem. Jean Hyppolite escreveu
a esse respeito: “Reduzido a si mesmo, o indivíduo, para Hegel, é apenas uma
abstração” (Introduction à la philosophie de l'histoire de Hegel). As
energias da ação individual, por mais notáveis que sejam, só fazem história
quando servem a um povo.
É pela dinâmica do “espírito do povo” que os
seres humanos particulares podem dar passos concretos na direção da efetiva
realização do “espírito do mundo”. Os povos, para promover a realização desse
avanço universalizador, se organizam em Estados.
Nesse ponto, o curso de filosofia da
história retoma a concepção do Estado adotada na Filosofia do Direito: o
Estado é visto como o coroamento da “eticidade”. “Na história mundial” — assegura
Hegel — “só contam os povos que constituíram Estados.”
Para sustentar essa tese — encarada hoje com
compreensível consternação pela imensa maioria dos antropólogos — Hegel alega
que os povos sem Estado são “povos sem história”: permanecem demasiado próximos
da natureza e não conhecem inovações significativas. A natureza não engendra o novo;
só o espírito é capaz de engendrá-lo.”
“Hegel procurou analisar o movimento pelo
qual, da antiguidade clássica até o começo do século XIX, os filósofos tinham
pensado a relação sujeito-objeto, a unidade dessa tensa contradição na qual o
ser humano (“portador do por-vir do espírito”) se empenha em impor
infinitamente seu domínio sobre uma realidade objetiva infinita (e, portanto,
inesgotável).
A história da filosofia foi dividida em três
grandes períodos: 1) de Tales
de Mileto a Plotino; 2) de Plotino a Descartes;
3) de Descartes ao idealismo
alemão. As contribuições dos pensadores são inseridas num esforço incessante
que a consciência realiza para compreender como o sujeito humano pode se “objetivar”
melhor em sua atuação no mundo e como o movimento da realidade objetiva é “subjetivado”
pelos homens que passam a ser cada vez mais responsáveis por sua realização. O
curso levou em conta o fato de que esse esforço da consciência não se
expressou, na história da filosofia, como um caminho linear. Hegel fez questão
de lembrar sempre a seus alunos que o espírito não realiza avanços retilíneos,
não abandona o que foi trabalhado anteriormente: limita-se a retrabalhá-lo, ampliando-o,
modificando-o. O espírito, na aquisição de conhecimentos filosóficos, constrói
círculos maiores que vão incorporando círculos menores. Para debruçar-se
reflexivamente sobre si mesmo, o círculo maior precisa da matéria-prima
proporcionada pelos círculos menores que ele conseguiu incorporar. Daí a
conclusão a que Hegel chegou, de que “cada filosofia que existiu foi
necessária; e, por tê-lo sido, continua a sê-lo”.
Imbuído dessa convicção, ele tratou de expor
não só os limites, mas também aforra de cada filósofo. Mais ainda: decidiu que
só abordaria as falhas depois de ter reconhecido os acertos. “Dar-se por
satisfeito com refutar um sistema filosófico é uma forma de não o compreender; é
preciso saber enxergar a verdade que ele contém. Só depois de termos
reconhecido essa verdade é que podemos falar de suas limitações.”
As limitações, por sua vez, são inevitáveis,
porque resultam do enraizamento da filosofia em seu tempo. “Nenhuma filosofia vai
além de seu tempo”, advertia Hegel. Por isso, nenhuma filosofia do passado pode
corresponder inteiramente às necessidades dos seres humanos das épocas
posteriores.
Essa compreensão tanto do vigor como da
caducidade das construções teóricas combinava-se, no curso, com o encadeamento das
ideias umas como as outras; e combinava-se também com a inserção de cada
filosofia no movimento da sociedade que a via nascer. As preleções de Hegel
alcançaram, assim, um resultado sem precedentes; embora não tenham atraído um
público tão numeroso com as que foram dedicadas à estética, elas exerceram, ao
que tudo indica, uma influência mais profunda e duradoura. Publicadas em livro,
deixaram uma marca inapagável em leitores de diversas gerações, a começar por
Marx e Engels.
Nunca, antes, um pensador tinha apresentado
um quadro tão coerente e tão vasto da história da filosofia. Cada filósofo entrava
em cena na hora certa para desempenhar o papel que lhe cabia; e as principais ideias
de cada “ator” eram avaliadas em função da importância que tinham para
determinar o alcance e a natureza da contribuição que ele trazia para o
esclarecimento da questão decisiva: a questão da dialética sujeito-objeto. Por
trás do esclarecimento da dialética sujeito-objeto estava o problema da liberdade:
as condições existentes em cada sociedade, em cada época, delimitam
sempre o campo de possibilidades que se abrem tanto para a ação livre dos
homens como para sua reflexão a respeito da livre afirmação do sujeito em face do
objeto.
O curso ensinava que, no Oriente, só um era
livre (o déspota); na Grécia antiga, alguns eram livres (e foi
possível à filosofia refletir, com um mínimo de universalidade, sobre a liberdade
do sujeito humano em geral). E, com a sociedade civil-burguesa, no mundo
moderno, apresentava-se pela primeira vez a ocasião de se pensar, mais
universalmente, a liberdade para toda a humanidade (o que permitia aos filósofos
uma nova compreensão, muito mais completa, da relação do sujeito com o objeto).
Para aproveitar a ocasião, entretanto, os
homens deveriam atravessar zonas de turbulência e avançar aos tropeções, até
chegar a dispor de um conhecimento efetivamente adequado para orientá-los nas
ações imprescindíveis à realização da liberdade.”
“De certo modo, a revisão crítica (sobre a
obra de Hegel) começou logo após sua morte, quando o hegeliano Marx (não
devemos esquecer que Marx foi hegeliano do início de 1837 até meados de 1843) empreendeu
um vigoroso acerto de contas com o autor da Filosofia do Direito.
Marx exaltou a genialidade da concepção
hegeliana do homem como um ser que se criou a si mesmo e continua se criando (o
processo de autocriação constante) através de sua atividade específica, que é o
trabalho humano. Hegel pensou essa autocriação e também seu avesso: a
exteriorização e o estranhamento do sujeito humano naquilo que ele põe
na realidade objetiva. Para Marx, no entanto, o acerto fundamental dessa concepção
ficava prejudicado pela extrema abstratividade do desenvolvimento que Hegel lhe
deu.
Hegel era, inequivocamente, um idealista:
subordinava o movimento da realidade material, dos objetos sensíveis, a um princípio,
a uma ideia, que lhe esclarecia o sentido. Desse modo, o homem concreto, de
carne e osso, em sua dimensão insuprimivelmente corpórea, tendia a ser visto
como um ser meio evanescente, que só existia tomando consciência de sua
autonomia espiritual. Virava um sujeito abstrato: “o saber é seu único comportamento
objetivo”, dizia Marx.
O homem se reduzia à autoconsciência, sua
atividade se reduzia ao pensamento. E Marx acusava: “O único trabalho que Hegel
conhece e reconhece é o trabalho abstratamente intelectual.” Então a atividade
específica pela qual os homens se realizam e desrealizam, genialmente
entrevista, sofria uma descaracterização. E a história da humanidade — o
movimento geral dos seres humanos se realizando em suas atividades concretas — tendia
a se deixar enquadrar por um modelo lógico. Nas palavras de Marx: em vez de se
empenhar em apreender “a lógica da coisa” (o sentido do movimento das coisas
materiais), Hegel entronizava “a coisa da lógica” (o império de entidades que
só têm existência efetiva dentro de um determinado enquadramento lógico
prévio).
As consequências da adoção desse esquema
podiam ser vistas na concepção hegeliana do Estado: transformado
especulativamente em “coisa da lógica”, em ente de razão, o Estado passava a
comandar o movimento da família e da sociedade civil-burguesa. E Marx,
prosseguindo em sua crítica, escrevia: “Família e sociedade civil-burguesa são
pressupostos do Estado. São elas as realidades efetivamente ativas. Na
especulação, contudo, verifica-se uma inversão.” O Estado não se limita a
coroar o processo de realização da eticidade; ele passa a dar sentido
ao que veio antes (e lhe fica subordinado). Com isso, alertava Marx, o
Estado passava a alimentar a ilusão de que determinava a propriedade privada
(elemento da sociedade civil-burguesa), mesmo quando seus movimentos eram
claramente determinados pela propriedade privada.”
Um comentário:
ótimo :D
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