Editora: Três
estrelas
ISBN: 978-85-6533-904-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
Sinopse: A esquerda
que não teme dizer seu nome lança um desafio político de grande
envergadura: reafirmar os princípios que orientam historicamente o pensamento
da esquerda e renová-los, a partir das demandas da época.
Para o ensaísta e professor de filosofia Vladimir
Safatle, a esquerda, nas últimas décadas, abriu mão dos fundamentos de sua luta
política, acuada pelas críticas feitas às experiências comunistas no século XX,
enfraquecida pelas políticas multiculturais e, quando no governo, seduzida pelos
confortos do poder e pelas negociações do consenso.
Contra a acomodação e o esquecimento, o autor propõe que
a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que é “inegociável”: a
defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à
resistência.
Em contraposição às políticas multiculturalistas, ele
postula a necessidade de a esquerda ser “indiferente às diferenças” e retomar o
universalismo.
Polêmico, Safatle diz que a esquerda precisa entender as
necessidades do sujeito contemporâneo e que não há equívoco maior, atualmente,
que contrapor o desejo dos indivíduos ao igualitarismo.
A esquerda que não teme dizer seu nome é uma leitura urgente e essencial para todos os que não têm medo
da política e buscam a justiça social.
“Somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a
divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições
políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente
antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro
nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical
está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais
nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar
o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais
de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de
riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de
modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam
como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso,
mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos
resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social
que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo
esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente
políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Uma maneira de iniciar a discussão é
identificando quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento
de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da política exige que a
determinação dos problemas do presente defina a configuração de nossa posição.
Isso significa que o pensamento político deve ter uma dimensão profundamente “estratégica”.
Ele se move de acordo com os problemas postos pela vida social. Muitas vezes,
várias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em uma
espécie de “petrificação do discurso” que acabou por afastá-los da capacidade
de pautar a opinião pública.
Essa reflexão sobre as posições que caracterizam
a esquerda pode nos mostrar como a política é, em seu fundamento, a
decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é
simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa
daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta hoje à
esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável. Por
exemplo, quais processos e resultados são fundamentais para uma verdadeira
coesão social que não seja submersa por clivagens e desigualdades.”
“A sociedade capitalista contemporânea
procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de
poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de
consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez
seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de
mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela
não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que
já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.”
“Talvez a posição atual mais decisiva do
pensamento de esquerda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente
com a defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo fornece a
pulsação fundamental do pensamento de esquerda.
Tal defesa do igualitarismo traz orientações
muito claras a respeito de questões centrais no campo social e econômico. Por “igualitarismo”
devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social
e econômica é a principal luta política. Ela submete todas as demais.
Nossas sociedades capitalistas de mercado são
sociedades “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da
riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é
tarefa da política.”
“De fato, nenhuma pessoa sensata poderia ser
contrária à meritocracia e à recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais
valores apenas encobrem o pior cinismo quando não vêm associados à luta contra
a desigualdade de oportunidades e condições. A diversidade de talentos é,
muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é
um problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento individual por
mérito.”
“A esquerda deve meditar um pouco sobre esta
afirmação de Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo: “É verdade que
há uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e
ganhando”.”
“O Estado democrático excede os limites
tradicionalmente atribuídos ao Estado de Direito. Experimenta direitos que
ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não
se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a
partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” (Claude Lefort – A
invenção democrática)
“Mesmo a tradição política liberal admite, ao
menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao
tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um
estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social.
Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda
ação contra um governo ilegal é uma ação legal.”
“Muitos gostam de dizer que, no interior da
democracia, toda forma de violação contra o Estado de Direito é inaceitável. Mas
e se, longe ser de um aparato monolítico, o Direito em sociedades democráticas
for uma construção heteróclita, em que leis de vários matizes convivem,
formando um conjunto profundamente instável e inseguro? A Constituição de 1988,
por exemplo, não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela
Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos.
Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de Direito condições para
que exigências mais amplas de justiça se façam sentir?
Foi pensando em situações dessa natureza que
Derrida afirmava ser o Direito objeto possível de uma desconstrução que visa a
expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesse
econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”.12 Quem
pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar,
reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate
social de forças na determinação do Direito termina necessariamente da maneira mais
justa? Por isso, nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo. Ao
contrário, o ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece sua
própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena e permanente da soberania
popular.
A democracia admite, por essas razões, o caráter
“desconstrutível” do Direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que
poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam
na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados
(afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios
cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar,
trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que
lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de
trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios
públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, trabalhadores
sem-terra que invadem fazendas improdutivas, Antígona que enterra seu irmão: em
todos esses casos, o Estado de Direito é quebrado em nome de um embate em torno
da justiça.
No entanto, é graças a ações como essas que
direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas,
com certeza nossa situação de exclusão social seria significativamente pior.
Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao
Direito.
Uma sociedade que tem medo de tais momentos,
que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a
política a um mero acordo referente às leis que temos e aos meios que dispomos
para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor
possível – se se leva em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se
claramente compreender o caráter absurdo da colocação).
No fundo, essa é uma sociedade que tem medo
da política e que gostaria de substituir a política pela polícia. A violação política
nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do
opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da
população ou em golpes de Estado. Ela é, antes, a força da urgência de exigências
de justiça”
12 Derrida, Jacques. Força de lei. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
“Devemos insistir em que a esquerda não pode
permitir que desapareça do horizonte de ação uma exigência profunda de
modernização política que vise à reforma, não apenas das instituições, mas do
processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles
que exigem a criatividade política em direção a uma democracia real.
Não deixa de ser dramático ver membros de
certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições
fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de
instituições que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a
democracia tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso é totalmente
diferente, de um poder instituinte soberano e sempre presente. Ou seja, depende
de um aprofundamento da transferência do poder para instâncias de decisão
popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua.
Estamos muito acostumados com a ideia de que
a democracia se realiza naturalmente como democracia parlamentar. Isso, no
entanto, é falso. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve falar
com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização
de mecanismos de poder de participação popular direta. Lembremos apenas que,
com o desenvolvimento das novas mídias, é cada vez mais viável, do ponto de
vista material, certa “democracia digital” que permita a implementação constante
de mecanismos de consulta popular.”
“O verdadeiro desafio democrático consiste,
desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica
plebiscitária de participação popular. Tal dinâmica é desacreditada pelo
pensamento conservador, pois ele procura vender a ideia inacreditável de que o aumento
da participação popular seria um risco à democracia – como se as formas
atuais de representação fossem tudo o que podemos esperar da vida democrática.
Contra essa política que tenta nos resignar às imperfeições da nossa democracia
parlamentar, devemos dizer que a criatividade política em direção à realização
da democracia apenas começou. Há muito ainda por vir.
Como dizia Derrida, eis a razão pela qual só
podemos falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo que
se confunde com a configuração atual do nosso Estado de Direito. Contra os
arautos do Estado democrático de Direito, que procuram nos resignar às imperfeições
atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma democracia
por vir, que só poderá ser alcançada se assumirmos a realidade da soberania
popular. Estas são, pois, as duas pernas de toda política de esquerda que
não teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular. Garantidos
esses dois valores, o resto, como diz o Evangelho, virá por si mesmo.”
“A verdadeira democracia não é medida pela
estabilidade de suas instituições e suas regras. Afinal, quantas vezes a França
(só para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema eleitoral e de seu
sistema de partilha de poder? Quantas vezes aquele país modificou o
funcionamento da instituição presidencial? Lembremos como mesmo a “estável” Inglaterra
debate hoje modificações profundas em seu próprio sistema.
A verdadeira democracia é medida, na verdade,
pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar
novas regras e instituições. Não é só em eleições que tal poder se manifesta.
Há uma plasticidade política própria à vida democrática que só arautos do
pensamento conservador compreendem como “insegurança jurídica”. O plebiscito é
simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática, e falar em “golpe
plebiscitário” é uma das maiores aberrações que se possa imaginar. O dia em que
um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, então nossa noção de democracia
estará completamente esvaziada. Ela perderá todo seu valor.”
“Talvez seja o caso de dizer claramente que a
alternativa chavista é apenas uma deriva populista e bonapartista da esquerda.
De fato, o conceito de “populismo” existe e não é apenas um dispositivo de desqualificação
política, embora muitas vezes seja usado apenas para isso. Populista é um
governo profundamente personalista e centralizado cuja figura do mandatário do Executivo
encarna o ideal de condução e, por isso, confunde-se com a figura do
poder;13 é um governo incapaz de permitir o desenvolvimento de
mecanismos de transferência do poder em direção à democracia direta, pois,
nesse caso, a democracia direta é subordinada ao poder central. O populismo esquece
que o verdadeiro líder democrático é aquele que não tem medo de expor sua
própria efemeridade, sua própria contingência. O líder democrático é aquele que
nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.”
13 Por isso há algo de piada de mau gosto na
afirmação de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma “república populista”.
Só mesmo uma historiografia revisionista, que visa a desqualificar o único
momento na história brasileira em que a participação popular foi efetiva, poderia
dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como “populista” não é usado
como descrição analítica, mas como injúria. Gostaria que alguém explicasse, por
exemplo, em que Dutra e Juscelino eram “populistas” e em que João Goulart
encarnava o ideal de condução que se confunde com a figura do poder estatal.
““Por fim, vale a pena lembrar que a noção de
soberania popular implica processo institucionalizado de transferência de
poderes em direção à democracia direta. Ele não é uma simples arma utilizada pelo
Executivo em situações de conflito de poderes. Sua melhor figura é a
institucionalização de decisões que só poderiam, a partir de então, ser tomadas
por meio da manifestação direta da soberania popular. Isso significa
transferência de poder tanto do Legislativo quanto do Executivo. (...)
A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.
Um dos primeiros países atingidos pela crise
econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para
indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado foi o apoio maciço ao
calote. Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu
realizar um princípio básico da soberania popular. Se a conta vai para a
população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de
tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos, tampouco
parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos.
Como disse o presidente islandês, Ólafur
Ragnar Grímsson, “a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro”. Alguns
poderiam contra-argumentar que é absurdo que decisões de inegável complexidade
técnica passem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas que quem
paga a orquestra escolhe a música. Esta é uma boa maneira de se perguntar:
afinal, no caso de nosso Parlamento e de nosso Executivo, quem paga a
orquestra?”
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