sexta-feira, 17 de abril de 2020

A esquerda que não teme dizer seu nome (Parte I) – Vladimir Safatle

Editora: Três estrelas
ISBN: 978-85-6533-904-9
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 88
Sinopse: A esquerda que não teme dizer seu nome lança um desafio político de grande envergadura: reafirmar os princípios que orientam historicamente o pensamento da esquerda e renová-los, a partir das demandas da época.
Para o ensaísta e professor de filosofia Vladimir Safatle, a esquerda, nas últimas décadas, abriu mão dos fundamentos de sua luta política, acuada pelas críticas feitas às experiências comunistas no século XX, enfraquecida pelas políticas multiculturais e, quando no governo, seduzida pelos confortos do poder e pelas negociações do consenso.
Contra a acomodação e o esquecimento, o autor propõe que a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que é “inegociável”: a defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência.
Em contraposição às políticas multiculturalistas, ele postula a necessidade de a esquerda ser “indiferente às diferenças” e retomar o universalismo.
Polêmico, Safatle diz que a esquerda precisa entender as necessidades do sujeito contemporâneo e que não há equívoco maior, atualmente, que contrapor o desejo dos indivíduos ao igualitarismo.
A esquerda que não teme dizer seu nome é uma leitura urgente e essencial para todos os que não têm medo da política e buscam a justiça social.



“Somos obrigados a ouvir compulsivamente que “a divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia de evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é utilizada para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político ou, para ser mais claro, de que não há mais nada a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. Não se trata mais de pensar a modificação dos padrões de partilha de poder, de distribuição de riquezas e de reconhecimento social. Trata-se de uma questão de gestão de modelos que se reconhecem como defeituosos, mas que ao mesmo tempo se afirmam como os únicos possíveis.
A função atual da esquerda é, por isso, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que evidencia sinais de profundo esgotamento. Cabe à esquerda insistir na existência de questões eminentemente políticas que devem voltar a frequentar o debate social.
Uma maneira de iniciar a discussão é identificando quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da política exige que a determinação dos problemas do presente defina a configuração de nossa posição. Isso significa que o pensamento político deve ter uma dimensão profundamente “estratégica”. Ele se move de acordo com os problemas postos pela vida social. Muitas vezes, várias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em uma espécie de “petrificação do discurso” que acabou por afastá-los da capacidade de pautar a opinião pública.
Essa reflexão sobre as posições que caracterizam a esquerda pode nos mostrar como a política é, em seu fundamento, a decisão a respeito do que será visto como inegociável. Ela não é simplesmente a arte da negociação e do consenso, mas a afirmação taxativa daquilo que não estamos dispostos a colocar na balança. O que falta hoje à esquerda é mostrar o que, segundo seu ponto de vista, é inegociável. Por exemplo, quais processos e resultados são fundamentais para uma verdadeira coesão social que não seja submersa por clivagens e desigualdades.”


“A sociedade capitalista contemporânea procura dar aos sujeitos a impressão de eles terem possibilidades infinitas, de poderem decidir sobre tudo a todo momento. Um pouco como as decisões de consumo, cada vez mais “customizadas” e particularizadas. No entanto, talvez seja correto dizer que essa ação não é um verdadeiro agir, pois é incapaz de mudar as possibilidades de escolha, que já foram previamente determinadas. Ela não produz seus próprios objetos, apenas seleciona objetos e alternativas que já foram previamente postos na mesa. Por isso, essa ação não é livre.”


“Talvez a posição atual mais decisiva do pensamento de esquerda seja a defesa radical do igualitarismo. Juntamente com a defesa da soberania popular, a defesa radical do igualitarismo fornece a pulsação fundamental do pensamento de esquerda.
Tal defesa do igualitarismo traz orientações muito claras a respeito de questões centrais no campo social e econômico. Por “igualitarismo” devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política. Ela submete todas as demais.
Nossas sociedades capitalistas de mercado são sociedades “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. Quebrar esse paradoxo é tarefa da política.”


“De fato, nenhuma pessoa sensata poderia ser contrária à meritocracia e à recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais valores apenas encobrem o pior cinismo quando não vêm associados à luta contra a desigualdade de oportunidades e condições. A diversidade de talentos é, muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é um problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento individual por mérito.”


“A esquerda deve meditar um pouco sobre esta afirmação de Warren Buffet, um dos homens mais ricos do mundo: “É verdade que há uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e ganhando”.”


“O Estado democrático excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de Direito. Experimenta direitos que ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à conservação de um pacto tacitamente estabelecido, mas que se forma a partir de focos que o poder não pode dominar inteiramente.” (Claude Lefort – A invenção democrática)


“Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social. Nessas situações, a democracia reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal.


“Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de Direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o Direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, em que leis de vários matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro? A Constituição de 1988, por exemplo, não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de Direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir?
Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o Direito objeto possível de uma desconstrução que visa a expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”.12 Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o Direito? Quem pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do Direito termina necessariamente da maneira mais justa? Por isso, nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo. Ao contrário, o ordenamento jurídico de uma sociedade democrática reconhece sua própria fragilidade, sua incapacidade de ser a exposição plena e permanente da soberania popular.
A democracia admite, por essas razões, o caráter “desconstrutível” do Direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal, trabalhadores sem-terra que invadem fazendas improdutivas, Antígona que enterra seu irmão: em todos esses casos, o Estado de Direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça.
No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, com certeza nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao Direito.
Uma sociedade que tem medo de tais momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que temos e aos meios que dispomos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – se se leva em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação).
No fundo, essa é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a política pela polícia. A violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Ela é, antes, a força da urgência de exigências de justiça”
12 Derrida, Jacques. Força de lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


“Devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte de ação uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas das instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direção a uma democracia real.
Não deixa de ser dramático ver membros de certa esquerda citando Tocqueville, certos de que a democracia exige instituições fortes: a democracia não exige um poder instituído forte e não deve depender de instituições que sempre funcionaram mal. Do ponto de vista institucional, a democracia tem uma plasticidade natural. Ela depende, e isso é totalmente diferente, de um poder instituinte soberano e sempre presente. Ou seja, depende de um aprofundamento da transferência do poder para instâncias de decisão popular que podem e devem ser convocadas de maneira contínua.
Estamos muito acostumados com a ideia de que a democracia se realiza naturalmente como democracia parlamentar. Isso, no entanto, é falso. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização de mecanismos de poder de participação popular direta. Lembremos apenas que, com o desenvolvimento das novas mídias, é cada vez mais viável, do ponto de vista material, certa “democracia digital” que permita a implementação constante de mecanismos de consulta popular.”


“O verdadeiro desafio democrático consiste, desse modo, em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica plebiscitária de participação popular. Tal dinâmica é desacreditada pelo pensamento conservador, pois ele procura vender a ideia inacreditável de que o aumento da participação popular seria um risco à democracia – como se as formas atuais de representação fossem tudo o que podemos esperar da vida democrática. Contra essa política que tenta nos resignar às imperfeições da nossa democracia parlamentar, devemos dizer que a criatividade política em direção à realização da democracia apenas começou. Há muito ainda por vir.
Como dizia Derrida, eis a razão pela qual só podemos falar em democracia por vir, e nunca em democracia como algo que se confunde com a configuração atual do nosso Estado de Direito. Contra os arautos do Estado democrático de Direito, que procuram nos resignar às imperfeições atuais da democracia parlamentar, devemos afirmar os direitos de uma democracia por vir, que só poderá ser alcançada se assumirmos a realidade da soberania popular. Estas são, pois, as duas pernas de toda política de esquerda que não teme dizer seu nome: igualitarismo e soberania popular. Garantidos esses dois valores, o resto, como diz o Evangelho, virá por si mesmo.”


“A verdadeira democracia não é medida pela estabilidade de suas instituições e suas regras. Afinal, quantas vezes a França (só para ficar em um exemplo) mudou as regras de seu sistema eleitoral e de seu sistema de partilha de poder? Quantas vezes aquele país modificou o funcionamento da instituição presidencial? Lembremos como mesmo a “estável” Inglaterra debate hoje modificações profundas em seu próprio sistema.
A verdadeira democracia é medida, na verdade, pela possibilidade dada ao poder instituinte popular de manifestar-se e criar novas regras e instituições. Não é só em eleições que tal poder se manifesta. Há uma plasticidade política própria à vida democrática que só arautos do pensamento conservador compreendem como “insegurança jurídica”. O plebiscito é simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática, e falar em “golpe plebiscitário” é uma das maiores aberrações que se possa imaginar. O dia em que um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, então nossa noção de democracia estará completamente esvaziada. Ela perderá todo seu valor.”


“Talvez seja o caso de dizer claramente que a alternativa chavista é apenas uma deriva populista e bonapartista da esquerda. De fato, o conceito de “populismo” existe e não é apenas um dispositivo de desqualificação política, embora muitas vezes seja usado apenas para isso. Populista é um governo profundamente personalista e centralizado cuja figura do mandatário do Executivo encarna o ideal de condução e, por isso, confunde-se com a figura do poder;13 é um governo incapaz de permitir o desenvolvimento de mecanismos de transferência do poder em direção à democracia direta, pois, nesse caso, a democracia direta é subordinada ao poder central. O populismo esquece que o verdadeiro líder democrático é aquele que não tem medo de expor sua própria efemeridade, sua própria contingência. O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.”
13 Por isso há algo de piada de mau gosto na afirmação de que o Brasil conheceu, entre 1945 e 1964, uma “república populista”. Só mesmo uma historiografia revisionista, que visa a desqualificar o único momento na história brasileira em que a participação popular foi efetiva, poderia dizer algo dessa natureza. Nesse caso, nota-se como “populista” não é usado como descrição analítica, mas como injúria. Gostaria que alguém explicasse, por exemplo, em que Dutra e Juscelino eram “populistas” e em que João Goulart encarnava o ideal de condução que se confunde com a figura do poder estatal.


““Por fim, vale a pena lembrar que a noção de soberania popular implica processo institucionalizado de transferência de poderes em direção à democracia direta. Ele não é uma simples arma utilizada pelo Executivo em situações de conflito de poderes. Sua melhor figura é a institucionalização de decisões que só poderiam, a partir de então, ser tomadas por meio da manifestação direta da soberania popular. Isso significa transferência de poder tanto do Legislativo quanto do Executivo. (...)
A Islândia tem algo a nos ensinar sobre isso.
Um dos primeiros países atingidos pela crise econômica de 2008, a Islândia decidiu que o uso de dinheiro público para indenizar bancos seria objeto de plebiscito. O resultado foi o apoio maciço ao calote. Mesmo sabendo dos riscos de tal decisão, o povo islandês preferiu realizar um princípio básico da soberania popular. Se a conta vai para a população, é ela quem deve decidir o que fazer, e não um conjunto de tecnocratas que terão seus empregos garantidos nos bancos, tampouco parlamentares cujas campanhas são financiadas por esses bancos.
Como disse o presidente islandês, Ólafur Ragnar Grímsson, “a Islândia é uma democracia, não um sistema financeiro”. Alguns poderiam contra-argumentar que é absurdo que decisões de inegável complexidade técnica passem para a democracia direta. Bem, outros diriam apenas que quem paga a orquestra escolhe a música. Esta é uma boa maneira de se perguntar: afinal, no caso de nosso Parlamento e de nosso Executivo, quem paga a orquestra?”

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