Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3260-683-9
Compilação: Cláudia Zarvos, Jânio
Savoldi, Márcia Monteiro Miranda e Waldemar Boff
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136
“Eu
já ando pelos 40 anos. Sinto já o peso de uma vida curtida na reflexão e na
busca da Palavra que tudo ilumina. Às vezes me sinto velho. Creio que todo o
teólogo possui uma velhice venerável, porque carrega sobre si, como tarefa, os
problemas mais árduos do mistério humano. Mas ao mesmo tempo, na medida em que interioriza
Deus, reconquista — não diria a juventude — mas a jovialidade e sabor de todas
as coisas. É o que peço a Deus todos os dias: não me amargurar, não me
perturbar, não deixar nunca de crer que o que definitivamente conta e tem
futuro é ser límpido, puro, transparente, bondoso, sincero e bom. Para mim o
mais importante que se disse de Jesus no NT não é tanto que ele é Deus, Filho
de Deus e Messias, mas que Ele passou pelo mundo fazendo o bem, curando a uns, consolando
a outros. Como gostaria que se dissesse de cada um e se dissesse isso também de
mim.”
“Se
fizermos uma rápida retrospectiva destes 25 anos, discernimos a seguinte
trajetória: primeiro vem o entusiasmo pela ordem franciscana, depois pelo
sacerdócio, em seguida pela teologia; da teologia passei à Igreja, da Igreja ao
povo; do povo aos pobres, dos pobres à humanidade; da humanidade ao mistério da
criação. Na medida em que o leque ia se abrindo e o horizonte se dilatando, iam
também crescendo em mim as dimensões de universalidade e de autêntica
liberdade. As chances de ser mais humano e, por isso, de sentir-me unido ao
destino da inteira humanidade e de todo o criado foram se interiorizando. Hoje
vejo com clareza que o presbiterato, a vida religiosa, a teologia só possuem
sentido radical se nos aproximarem mais diretamente dos demais humanos,
companheiros e companheiras de caminhada.”
“Não
julgo imprescindível, como outros, manter-me numa cátedra acadêmica para fazer
teologia: a cátedra do povo e da vida contém hoje, possivelmente, maior
amplitude do que a outra, porque aí estão sentados os grandes problemas e os
desafios exigentes. Aí reside o sofrimento. Mais que a admiração, é o
sofrimento que faz pensar. Pelo menos isso os pobres nos têm ensinado.”
“A
minha opção é pela profunda democracia, que nunca existiu no Brasil. Eu acho
que a democracia é a proposta mais revolucionária que tem, e eu vejo que cada
vez mais o capitalismo é incompatível com a democracia.”
“Na
medida em que vou vivendo, cresce em mim a percepção do mistério. Mistério é
muito mais que um enigma. Como os antigos sabiam melhor que nós, mistério
consiste num desígnio cujo último sentido nos escapa, mas que passa por nós,
nos usa como um subsistema de algo maior para prosseguir sua trajetória que
termina no coração do próprio Deus. Cada um representa como num teatro. Não escolheu
a peça, nem o papel, nem fundamentalmente sabe qual será seu término. Apenas
entrevê que está a serviço daquele que disse ser o alfa e o ômega, o princípio
e o fim, numa palavra, o Senhor da vida e da história.
“O
espírito não é experimentado como parte do ser humano, mas como uma totalidade
vital. Espírito é o nome para dizer a energia e a vitalidade de todas as
manifestações humanas. Neste sentido, espírito não se opõe a corpo. Inclui-o.
Espírito se opõe à morte. A grande oposição, portanto, não é entre espírito e
matéria ou entre alma e corpo, mas entre vida e morte.”
“O
ser humano apresenta uma dimensão voltada para o mundo e participa do destino
do mundo. Tudo no mundo da natureza e da história se revela como mortal, caduco
e passageiro. Existe a debilidade, as necessidades de toda ordem que, não
satisfeitas, causam sofrimento e opressão. Não existe nenhuma realidade que
consiga se subtrair à força corrosiva do tempo. Por isso a mortalidade caracteriza
todas as realidades e os empreendimentos humanos. Esta condição humana é
objetiva e independe das interpretações que lhe conferimos. Constitui uma
experiência primordial e um fato primeiro.
As
escrituras chamam a esta situação existencial de viver na carne.”
“Viver
religiosamente consiste, portanto, num modo específico de ser no mundo:
consiste em ver tudo e viver tudo como penetrado pela Presença de Deus. Se ele
é o único Absoluto, então tudo o que existe é revelação dele. Buscar sua
vontade, detectar sua presença e decifrar o sentido de sua atuação (sinais dos
tempos) em tudo o que acontece: esta é a angústia e a tarefa de toda alma
verdadeiramente religiosa.”
“Frente
a Deus deve o homem comportar-se como filho. Aqui valem as relações filiais de
amor, de obediência, de confiança e de entrega. Frente ao mundo deve ser
senhor. Ele não deve deixar-se escravizar nem pelo trabalho nem pelos elementos
inimigos do homem como doenças, pobreza, subdesenvolvimento, etc., que ele,
pelo trabalho e pela razão prática, pode e deve dominar e criar para si uma ordem
mais fraterna e humana. Frente ao outro deve comportar-se não como senhor nem
como filho mas como irmão, onde reina a mútua ajuda e o espírito realmente
fraterno e amigo.”
“Estes
são sinais da presença do Espírito: quando há entusiasmo no trabalho da
comunidade; quando há coragem para inventar caminhos novos para novos
problemas; quando há resistência contra toda a opressão; quando há a vontade de
libertação que comece pela justiça dos pobres; quando há fome e sede de Deus e
unção no coração.”
“Somos
muitas vezes cruz para nós mesmos e nos devemos carregar a nós próprios com
toda a imensa carga de fragilidade, mesquinharias e estreitezas de coração.”
“Quando
nos entregamos ao mistério da vida, quando não nos pertencemos mais, quando não
nos colocamos mais em primeiro lugar, quando nos fazemos serviço e doação aos demais,
quando cremos e esperamos que, apesar de tudo, nada escapa ao desígnio do
Mistério e que por isso nenhum mal e nenhuma desgraça, por mais cruel que se
antolhar, nos podem separar do Amor de Deus, então experimentamos aquela
realidade que o cristianismo chama de graça.”
“A
graça não é algo de Deus; é Deus mesmo, se autocomunicando, dando-se como
Sentido, Esperança, Amor, Fortaleza.”
“O
pecado não rompe apenas nosso cordão umbilical com Deus; ele nos cinde por
dentro e afeta nossa identidade interior.”
“Para
sabermos se alguém é de fato religioso, não devemos observar como ele fala de Deus,
mas como ele fala do mundo.” (Simone Weil)
“Outra
tarefa imprescindível da realização pessoal é saber conviver com a morte. Quem vê
sentido na morte, este vive com sentido a vida. Quem não vê sentido na morte
não dá sentido à vida. Morte porém não é nosso último instante de vida. A vida
mesma é mortal. Em outras palavras, vamos morrendo lentamente, em prestações,
porque quando nascemos começamos já a morrer, a nos desgastar e nos despedir da
vida. Primeiro nos despedimos do ventre materno e morremos para ele. Depois nos
despedimos da infância, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna,
da idade adulta, de algumas de nossas tarefas, de cada momento que passa e por
fim nos despedimos da própria vida.”
“O
AMOR COMO FERMENTO DE RESSURREIÇÃO
Pelo
exemplo de seu fundador e pelo mandamento maior que ele deixou para seus
seguidores, o cristianismo poderia ser chamado a religião do amor. Nem sempre,
é verdade, isto se faz transparente. Muitas vezes, as leis disciplinares e as
verdades doutrinárias suplantam o preceito do amor. Mas, mesmo assim, ele
continua sendo a alma sacramental da Igreja e sempre que o amor triunfa sobre o
rigor frio da justiça e o ser humano se abre para o louvor de Deus e as
necessidades do irmão, a vida recebe um pouco do fermento da ressurreição. O
amor não conhece limites, é sadiamente louco por natureza e vive nos transbordamentos
de sua fantasia criadora. O amor liberta para a doação. Quem ama, por isso, o
faz, num gesto de entrega, com o coração na mão.”
“O
próximo, para o Evangelho, não é o vizinho, o compatriota, o irmão de fé.
Próximo é todo homem desde que me aproximo dele com amor.”
“O
verdadeiro poder entre os homens se assenta no amor. E o poder do amor não reside
na sujeição do outro, mas no seu serviço, não na sua escravidão, mas no
respeito de sua liberdade. Onde não reina liberdade não pode haver amor.”
“Ou
o amor é gratuito ou não é amor. Por isso a graça é definida como a comunicação
do amor de Deus aos homens.”
“Se
alguém comunga, deve ser elemento de comunhão no grupo em que vive. Se alguém
celebra o sacrifício de Cristo e sua morte violenta, deve estar disposto ao
mesmo sacrifício e viver de tal maneira sua fé cristã que inclui, como normal,
ser perseguido, preso e morto violentamente. Se alguém batiza e se deixa
batizar deve ser, na comunidade, testemunho de fé. Se alguém busca a
reconciliação e encontra o perdão pelo sacramento da volta, deverá ser sinal de
reconciliação no meio dos conflitos da sociedade. (...)
Sem
a conversão a celebração do sacramento é ofensa a Deus. Significa jogar pérolas
aos porcos, querer colocar os gestos da máxima visibilidade de Cristo no mundo sem
a adequada purificação interior. Para o encontro deve-se estar com o coração na
mão. Para o amor, puro. Para a festa, reconciliado. Sem o preparo, o encontro é
formalismo. O amor, paixão. A festa, orgia.”
“Há
apenas um deslocamento de atenção. Uma Igreja pensa em Deus, na oração, na
missa, nos sacramentos. A outra se fixa mais no amor ao próximo. É praticar
justiça mais do que falar de justiça. Mais do que pregar o reino de Deus é
realizar o reino de Deus. Uma Igreja não exclui a outra. Mas, no final, seremos
julgados mais pelo amor do que pelo número de vezes que fomos à missa, ou por
nossa fé nos dogmas, como a Imaculada Conceição ou a infalibilidade do papa.”
“TEOLOGIA
COMO CIÊNCIA E VIDA
O
teólogo não fala sobre Deus, mas a partir d’Ele. Diante de Seu mistério, o
teólogo é mais um contemplativo admirado do que um afoito pesquisador. Neste
sentido, cada ser humano é teólogo, pois a todos é dada a experiência de Deus.
A teologia tem, aparentemente, um lugar privilegiado que é a geografia
eclesial, mas ela se desenvolve, sem pesquisas ou discursos disciplinados, nos
espaços concretos das pessoas, pois Deus antes de ser um estudo é uma vivência.
O teólogo é um ser perigoso, pois confronta a experiência pessoal de Deus com
os discursos da religião. Ele, o teólogo, alimenta duas paixões: uma por Deus e
outra pelo povo,
e, por isso, diz 0 Autor, “ele não pode ter grande amor ao próprio pescoço”.”
“É importante distinguir o que é fé e o que é
explicação da fé. (...) Acolhemos a fé com o coração aberto, a explicação da fé
podemos discutir e até rejeitar. A fé é a resposta à revelação divina, a
explicação da fé é a resposta da razão às questões que a fé suscita.”
“Nascida da fé, a teologia deve regressar à fé,
alimentá-la e não liquidá-la, torná-la mais lúcida e não mais confusa. Trata-se
sim de uma ciência especulativa; para ser teólogo não basta ser piedoso e bom;
há que ser inteligente, produzir luz e conhecimentos. Entretanto, a especulação
é apenas um momento da teologia; em última instância quer ser uma ciência
prática. Ela deve terminar numa práxis de amor e de felicidade. Crer em um só
Deus, também o creem os demônios, nos assevera São Tiago (2,19), e certamente possuem
uma teologia mais lúcida que a do maior teólogo. Entretanto não possuem o amor
e por isso “nada são” (1Cor 15,2). Ver para fazer; conhecer para amar: eis a
função última da teologia.”
“A
teologia foi por séculos argumentativa. Queria falar à inteligência dos homens
e convencê-los da verdade religiosa. Os sucessos foram parcos. Convencia,
geralmente, só aos já convencidos. Elaborara-se na ilusão de que Deus, seu desígnio
salvífico, o futuro prometido ao homem, o mistério do Homem-Deus Jesus Cristo
pudessem ser aceitos intelectualmente sem antes terem sido acolhidos na vida e transformado
o coração. Esquecera-se, ao menos ao nível da teologia manualística e no
discurso apologético, o fato de que a verdade religiosa jamais é uma fórmula
abstrata e o termo de um raciocínio lógico. Primeira e fundamentalmente ela é
uma experiência vital; um encontro com o Sentido definitivo. Somente depois, no
esforço da articulação cultural, ela é traduzida numa fórmula e é explicitado o
momento racional que ela contém.”
“A
fé sempre procurou vislumbrar o que significa dizer: Jesus é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem. A fé que procura entender se chama teologia, no caso,
cristologia. A teologia (cristologia) não quer nem deve checar a fé. Quer
antes, pelo contrário, ajudar e esclarecer a fé. Quer ser uma forma de fé:
crítica, racional, científica (se possível), preocupada em analisar melhor a
vida de fé, não para violar-lhe a intimidade mas para poder detectar a racionalidade
e a lógica graciosa de Deus e poder assim amá-lo de forma mais intensa e
humana. O falar cristológico jamais poderá ser um falar sobre Jesus.”
“A
estrutura crística é anterior ao Jesus histórico de Nazaré. Ela preexistia
dentro da história da humanidade. Todas as vezes que o homem se abre para Deus
e para o outro, sempre que se realiza verdadeiro amor e superação do egoísmo,
quando o homem busca justiça, solidariedade, reconciliação e perdão aí se dá
verdadeiro cristianismo e emerge dentro da história humana a estrutura
crística. (...)
Cristianismo
é a vivência concreta e consequente na estrutura crística, daquilo que Jesus de
Nazaré viveu como total abertura ao outro e ao Grande Outro, amor
indiscriminado, fidelidade inabalável à voz da consciência e superação daquilo
que amarra o homem ao seu próprio egoísmo.”
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