Editora: Vozes
ISBN: 978-85-3260-683-9
Compilação: Cláudia Zarvos, Jânio
Savoldi, Márcia Monteiro Miranda e Waldemar Boff
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 136
“As
religiões, em sua significação mais original e positiva, constituem as formas
institucionais que traduzem o relacionamento do homem com o Absoluto. A
religião é sempre re-ação a uma ação prévia; é sempre resposta humana à proposta
divina. É um fenômeno originário, não redutível a outro mais fundamental, que
testemunha a abertura do homem a um Transcendente, a Algo de definitivamente Importante
e a um Sentido que transfigura toda a realidade com todas as suas contradições.
(...) Semelhante valorização teológica da religião não implica numa legitimação
de tudo o que ocorre nela. Nela pode haver elementos diabólicos que traduzem
mal, no nível do discurso, do gesto e da ética, as exigências do Mistério de
Deus e do mistério do homem. A despeito de todas as ambiguidades que se possam
apontar nas religiões do mundo (e também na religião bíblica e cristã), elas
constituem os veículos comunicadores da graça, do perdão e do futuro que Deus
promete aos homens.”
“A salvação anunciada pelo cristianismo constitui
um conceito englobante; não se limita às libertações econômicas, políticas,
sociais e ideológicas, mas tampouco se realiza sem elas.”
“Quem professa Deus e está longe da justiça, quem
crê em Deus e não cria fraternidade, não professa nem crê no Deus verdadeiro,
mas num ídolo.”
“Os
teólogos da libertação não negam nenhum dogma; doutrinariamente, são até
tradicionais; o que fazem é, à luz da verdade evangélica e também dogmática,
tirar as consequências sociais em favor dos oprimidos que sempre estiveram à
margem da história. A questão fundamental é a do pobre. Os que nos combatem na
Igreja têm dificuldade em aceitar a centralidade dos pobres no processo da
revelação e da salvação; escandalizam-se ao ouvir que os pobres, pelo fato de
serem pobres e não pelo fato de serem bons, são os privilegiados de Deus. Deus
é o Deus da vida. Ele toma sempre partido por aqueles que têm sua vida ameaçada
ou são obrigados a morrer antes do tempo. É o caso dos pobres. Por isso, o Deus
da libertação é o Deus dos pobres e marginalizados, cujo grito Ele sempre
escuta, desde o grito dos oprimidos no Egito, até o grito desesperado de Jesus
na cruz.”
“Maria
não se comportou passivamente diante da iniciativa de Deus. Ela agiu dentro da
especificidade própria da mulher. E é aqui que Maria ganha uma relevância
universal. Não está só na história da salvação. Junto a ela está toda a
humanidade feminina. Maria prolonga toda a grandeza, profundidade, capacidade
de escuta e acolhida, de entrega e doação que as mulheres, ao longo de toda a
história, viveram sob a força do Espírito.”
“A
gente está tão cansado de ouvir e de dizer — o Verbo se fez carne — que nem
chega a refletir o que isto significa. Ele quis realmente ser como um de nós,
como eu e como tu, menos no pecado: um homem limitado que cresce, que aprende e
que pergunta; um homem que sabe ouvir e pode responder. Deus não assumiu uma
humanidade abstrata, animal racional. Ele assumiu, desde o seu primeiro momento
de concepção, um ser histórico, Jesus de Nazaré, um judeu de raça e de
religião, que se formou na estreiteza do seio materno, que cresceu na
estreiteza de uma pátria insignificante, que amadureceu na estreiteza de um
povinho de vila interiorana, que trabalhou num meio limitado e pouco
inteligente, que não sabia grego nem latim, as línguas da época, que falava um
dialeto, o aramaico, com sotaque galilaico, que sentiu a opressão das forças de
ocupação de seu país, que conheceu a fome, a sede, a saudade, as lágrimas pela
morte do amigo, a alegria da amizade, a tristeza, o temor, as tentações e o
pavor da morte e que passou pela noite escura do abandono de Deus. Tudo isso
Deus assumiu em Jesus Cristo. A nada foi poupado. Assumiu tudo o que é autenticamente
humano e pertence à nossa condição como a ira justa e a alegria sã, a bondade e
a dureza, a amizade e o conflito, a vida a morte. Tudo isto está presente na
figura franzina do Menino que começa a choramingar no presépio entre o boi e o asno.”
“O
homem Jesus de Nazaré revelou em sua humanidade tal grandeza e profundidade que
os Apóstolos e os que o conheceram, no final de um longo processo de
decifração, só puderam dizer: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E
começaram então a chamá-lo de Deus. A partir deste momento, os Apóstolos, que
eram judeus, deixaram de ser judeus para tomarem-se cristãos.”
“O
sentido universal da vida e da morte de Cristo está, pois, em que suportou até
o fim o conflito fundamental da existência humana: de querer realizar o sentido
absoluto deste mundo diante de Deus, a despeito do ódio, da incompreensão, da
traição e da condenação à morte. O mal para Jesus não estava aí para ser
compreendido, mas para ser assumido e vencido pelo amor. Esse comportamento de Jesus
abriu uma possibilidade nova para a existência humana, exatamente, uma
existência de fé num sentido absoluto, mesmo frente ao absurdo, como foi a
morte conferida pelo ódio a quem só amou e só buscou fazer o bem entre os homens.”
“Jesus
não procurou a morte; esta lhe foi imposta de fora e ele a aceitou não
resignadamente, mas como expressão de sua liberdade e fidelidade à causa de
Deus e dos homens.”
“Jesus
não está só na cruz. Estão os seus seguidores. Assumem sua causa, imitam sua
vida e o seguem em seu destino.”
“A
cruz é invenção humana. Foi excogitada para torturar o corpo dos profetas e
ferir os membros que produzem a prática libertadora, as mãos, os pés e o
coração. A cruz é instrumento de opressão.
Mas
ela é também bênção. Jesus abraçou a cruz para ser senhor sobre a dor e a morte
produzida pelo desprezo. Por ela quis solidarizar-se, não, quis identificar-se
com os crucificados da história. Eles nunca mais morrerão sós. Jesus morre crucificado
com eles.”
“Para
o religioso manter sua identidade religiosa, para levar a sua contribuição
específica deverá permanentemente ser alimentado pela oração, pela meditação e
pelo doloroso processo de interiorização. Contudo, a oração e a meditação
deverão emergir de um olhar contemplativo da ação. O engajamento somente é
verdadeiro se nascer de um dinamismo evangélico e de uma profunda experiência
interior de Deus e de Jesus Cristo, alimentada e expressa na oração pessoal e
comunitária.”
“Rezar
— seja feita a vossa vontade — equivale a rezar: que se faça como Deus quiser!
Nisso não há lamúria nem desesperança, mas entrega confiante como uma criança
se entrega aos braços da mãe. Deus é Pai e Mãe de infinita bondade. Ele tem seu
Desígnio eterno; nós apenas temos projetos.”
“O cristianismo da pequena burguesia e da classe
média abastada apresenta-se, não raro, como puramente sacramentalista. É uma fé
de uma hora por semana, por ocasião da missa dominical ou de alguns momentos
importantes da vida, como por exemplo de um batizado, de algum casamento, ou de
um sepultamento. Fazem-se ritos, mas não se vive uma fé viva. Na vida concreta
vivem-se valores opostos à fé; prossegue a exploração do homem pelo homem; campeia
ganancia de acumular mais e mais.”
“Devemos,
seguramente, ajudar a Igreja para que não se converta num reduto de machismo,
de pretenso monopólio da salvação, de dominação clerical, mas em espaço onde a humanidade
se sinta ainda mais humana, porque se vê potenciada em suas aspirações e
encontra um lugar para alimentar seus sonhos de um mundo, finalmente, mais
reconciliado consigo mesmo e com a própria natureza.”
“É
coisa de Deus gostar dos últimos e pisoteados.”
“Se
Deus tem um lugar nesse mundo, é ao lado dos pobres, dos que não aceitam a
pobreza e se organizam na solidariedade para superar a pobreza (...) Deus não
quer ricos nem pobres, quer pessoas que trabalhem, que vivam na solidariedade e
na justiça. Para isso o marxismo nos ajudou a entender que o pobre não é
somente um pobre, mas é um oprimido e que essa opressão é produzida por um processo
de exploração do trabalho pelo capital. A pobreza não é inocente, não é produto
da natureza, não é querida por Deus: é o resultado de um processo que produz de
um lado riqueza e de outro, pobreza.”
“Aceitar
o pobre como pobre é aceitar o Jesus pobre. Ele se esconde, incógnito, atrás de
cada face humana. A fé nos manda olhar com profundeza no rosto do irmão, amá-lo,
dar-lhe de comer, de beber, de vestir e visitá-lo no cárcere, porque
visitando-o, vestindo-o, dando-lhe de beber e de comer, estamos hospedando e
servindo ao próprio Cristo. Por isso que o homem é a maior aparição, não só de Deus,
mas também do Cristo ressuscitado no meio do mundo. Quem rejeita seu irmão
rejeita o próprio Cristo, porque quem repele a imagem e semelhança de Deus e de
Cristo repele o próprio Deus e o próprio Cristo (cf. Gn 9,6; Mt 25,42-43). Sem
o sacramento do irmão, ninguém poderá salvar-se. Por aqui transparece a
identidade do amor ao próximo com o amor a Deus.”
“A
celebração da eucaristia não pode ser feita no espírito de Jesus se junto com
ela não estiver a fome e sede de justiça. Traímos a memória do Senhor se por
ela ocultamos ou tornamos irrelevante a presença de relações injustas na
comunidade dos fiéis que celebram e assistem à eucaristia.”
“A
prática de Jesus é instauradora do Reino porque é uma prática de comunhão com
os pobres, de reconciliação com os pecadores, de convivência com todos,
particularmente com os marginalizados, e de serviço indiscriminado a cada um
que encontra.”
“O
pobre não existe como fatalidade; sua existência não é politicamente neutra,
nem eticamente inocente. O pobre é o subproduto do sistema no qual vivemos e do
qual somos responsáveis. Na verdade o pobre é um empobrecido, isto é, um
esbulhado, roubado e defraudado do fruto do seu trabalho e de sua dignidade.
Este empobrecimento cria um apelo para o amor cristão, não apenas para aliviar
o fardo aviltante da pobreza pobre mas para criar condições de superação desta
situação.”
“A
solidariedade com o pobre por causa do Evangelho leva o religioso a romper com
um tipo de vida e de relações próprias dos setores privilegiados da sociedade.
Sua presença no mundo se torna um sinal crítico e profético. O pobre com o qual
se solidariza não é simplesmente pobre: é um empobrecido, aquele a quem lhe
foram tirados os meios para ser um membro da sociedade, e dela foi posto à margem.
Um amor inteligente ao pobre obriga a compreender a fundo a estrutura social
que gera a pobreza, como subproduto da riqueza das minorias opulentas. Daí a
necessidade de o religioso ser crítico e não ingênuo e de estar sempre atento
às manipulações que o status quo pode continuamente fazer na
instrumentalização da vida religiosa para um assistencialismo que acalma a
consciência e cria a ilusão de estar servindo realmente ao mundo dos pobres. A
presença crítica do religioso implica por um lado denúncia de uma situação que
contradiz o plano de Deus e a mensagem evangélica e por outro anúncio de real
fraternidade e de repartição dos bens e dos encargos e pesos a serem carregados
por todos.”
“Para
mim ser franciscano é um desafio para ser simples, para o encontro com Deus na
terra, no irmão, especialmente no pobre, na fidelidade ao sangue e às raízes
telúricas de nossa existência visitada pelo Filho de Deus que se fez nosso
irmão nisso tudo e não apesar disto tudo.”
Natal:
A eterna criança que vive em nós
O
Natal é muito mais que uma festa do calendário cristão. É uma festa universal
do coração humano, da fé pura e simples. Esta fé nos assegura: não precisamos
ter medo de Deus. Ele é uma criança. Seu choro meigo não afugenta ninguém. Seus
braços estão enfaixados. Eles não são ameaçadores. Mais que o senhor dos
exércitos e o Onipotente que tudo cria ou destrói, Deus é ternura e humanidade.
Ele não quis nos visitar apenas. Ele decidiu morar conosco. Ter pele, sentidos,
sentimentos, coração, alegria e saudades. Por isso o Natal é a festa da
reconciliação com um dos desejos mais profundos do ser humano: o de sentir-se
aceito definitivamente, de não ser ameaçado por ninguém, de encontrar o coração
caloroso de Deus.
O
Natal é também a festa de uma fé muito humana que se transforma em esperança. A
fé-esperança reside nisso: a última palavra não a tem o interesse, o lucro, 0
conflito e a dura luta pela vida. Mas a ternura, a gratuidade, o jogo, a
bem-querença e o amor. Neste sentido, a Criança que jaz entre o boi e o asno no
presépio não representa o começo da vida. É: o seu símbolo e a sua plenitude. A
fé-esperança nos garante que, apesar de todas as camadas de cinzas que
acumulamos sobre o nosso coração, ele sempre pode vibrar. Ele conserva uma
inocência original. Nele habita uma criança que um dia fomos e que nunca
deixamos de ser.
Ocorre
que o tipo de vida a que historicamente nos submetemos, pelo menos nos últimos
quinhentos anos — a famosa modernidade — nos leva a correr de cá para lá, a fazer tudo às pressas, a romper todos os
ritmos naturais, do dia e da noite, do perto e do longe, a ponto de sentirmo-nos
frequentemente envelhecidos. A criança que somos, capaz de tomar o seu tempo
para a conversa de família e dos amigos, capaz de combinar o sério com o
jocoso, o trabalho com o lazer, a gratuidade com o dever, se retrai para o
fundo do coração. É aí que começa a viver de sonhos. Mas estes sonhos são parte
de nossa própria realidade séria. A criança em nós sonha com um mundo
reconciliado, com uma atmosfera de festa, onde as pessoas são todas amigas. Sonha
como o profeta Isaías, há quase três mil anos atrás: o lobo morará com o
cordeiro, o leão e o boi comerão juntos e a criança, sem receios, brincará na
toca da serpente. Atualizando, sonha com cidades sem favelas, com um convívio
sem violência, com nossas florestas respeitadas, com os indígenas defendidos,
com as mulheres libertadas, com os negros livres das discriminações.
Que
seria de nós se não pudéssemos sonhar? Afogar-nos-íamos na brutalidade dos
fatos quotidianos. Ficaríamos presos nas malhas de nossas próprias construções,
sempre limitadas. O sonho nos libera para frente e para cima. Desfataliza nossa
história, porque ela sempre pode ser diferente. O milagre é possível. A magia
existe. Há magia maior do que esta:
Jesus
ser o Deus encarnado na forma de uma criança num presépio?
No
Natal, por um momento, por uma noite, podemos vislumbrar a verdade do sonho. As
pessoas se sentam ao redor da mesa e celebram a ceia. É a comunhão plena, com
as pessoas, com as luzes, com as comidas, com os presentes. Nesta noite santa,
por um momento, sentimos que somos importantes para alguém. Não somos um
ninguém. Trocamos presentes como expressão da amizade, do carinho e da
excelência. A criança que mora em nós nasce. Neste dia ela ocupa a centralidade
da vida. Por causa da criança do Natal, recuperamos a coragem de viver, apesar de
todas as opressões que pesam sobre nossa existência ou que sobrecarregam nossa
consciência. É bom sermos humanos, homens e mulheres, e tentar cada dia
construir nossa própria humanidade. Por causa da criança que dormita em nós
estamos convencidos de que a luz tem mais direito do que as trevas, luz que nos
dá todas as razões de continuar a viver e a lutar.”
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