quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Filosofia e literatura: diálogos, relações e fronteiras – Rafael de Araújo e Viana Leite

Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-443-0320-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 276

Sinopse: Como a filosofia se posiciona em relação à literatura? Como essas duas áreas do conhecimento dialogaram em momentos importantes ao longo da história das ideias? Utilizando essas perguntas como fio condutor, a presente obra investiga as relações possíveis entre a filosofia e a literatura. Para isso, o autor apresenta, ao longo de cinco capítulos, recortes históricos e contribuições de filósofos e literatos.



“A prosa está para a poesia como a caminhada está para a dança.” (Paul Valéry)

 

 

“A filosofia promove um tipo de reflexão, ou melhor, propõe uma investigação e chega a seus resultados por via estritamente racional. Estamos falando de conhecimentos certos e universais, alcançados com base em elementos lógicos que se juntam, legitimando alguma conclusão. No entanto, é preciso lembrar de que a filosofia e a poesia se unem em um aspecto importante, pois ambas representam uma forma de discurso que podemos chamar de não vulgar. Vale a pena ressaltar que vulgar, aqui, nada tem a ver com xingamentos ou conduta questionável. Expliquemos o ponto. Tanto o filósofo quanto o poeta se separam da linguagem cotidiana ou vulgar para desbravar outro reino de possibilidades: o das essências e o da verdade. As conversações cotidianas em forma de prosa — a mesma que o comerciante estabelece com seu comprador, que o político usa durante seus afazeres rotineiros ou que o soldado tem com seus companheiros militares — são exemplos de discursos vulgares: A Filosofia irá diferenciar-se da palavra dos guerreiros e dos políticos porque possui uma pretensão específica, herdada dos poetas [...] não deseja apenas argumentar e persuadir, mas pretende proferir a verdade como aquilo que é o mesmo para todos (Chaui, Introdução à história da filosofia, 2002, p. 44).

O discurso vulgar não se preocupa com o significado último dos termos, sua origem primeira ou a essência das coisas. Imaginemos que alguém pergunte o preço de algum produto vendido pelo hipotético comerciante. Ele não irá questionar o cliente sobre a essência dos números: Eles são entidades existentes por si mesmas ou construções mentais? Um oficial do exército, por sua vez, não entrará em pormenores sobre a essência da virtude caso tenha de punir um soldado por não ter atendido a uma ordem direta proferida por ele. Nenhum deles, nessas circunstâncias, se preocupará com a formação da vida e do mundo. Essas questões que buscam pela essência ultrapassam o terreno da conversação vulgar, mas estão no cerne da preocupação da poesia mitológica e da filosofia.”

 

 

“Para que haja entendimento, é preciso purificar os conceitos, é preciso que saibamos o significado do que dizemos.

Esse é um exercício essencialmente filosófico; de fato, quando pensamos cuidadosamente sobre o assunto, existe a possibilidade de percebermos algo inquietante: que não sabemos de modo preciso o que significam muitas coisas sobre as quais falamos. É o que os diálogos aporéticos colocam em evidência de maneira exemplar. Aporia significa sem saída, algo que termina em impasse. Um diálogo que tenha essa característica é aquele cujo fim não acompanha uma resposta objetiva para a questão investigada. E nem sempre a filosofia chega a respostas inquestionáveis; sua afinidade está mais ligada a um modo rigoroso de questionar.”

 

 

“Nós queremos chamar atenção para a passagem em que Aristóteles compara a poesia* e a história, presente no Capítulo IX da Poética (2011). Ele fala dos objetivos de cada um desses discursos e segue dizendo que não é trabalho do poeta narrar retrospectivamente algo que já aconteceu, porém representar o que poderia acontecer, ou seja, o que é possível, verossímil e também necessário — características que aproximam o poeta do fazer filosófico. Como já adiantamos, não é simplesmente pela estrutura do texto que o historiador e o poeta se diferenciam, ou seja, pelo modo como o discurso se apresenta: em prosa ou em verso. Poderíamos, vale repetir, colocar a obra de Heródoto em versos que isso não faria dele um poeta. Mas no que, então, o poeta e o historiador se diferem exatamente? Vejamos o que esse longo e famoso trecho do livro diz:

Do que foi dito, também fica evidente que não é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim daquilo que poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou da necessidade. O historiador e o poeta não se diferenciam pelo fato de um usar a prosa e o outro, versos. A obra de Heródoto poderia ser versificada, o que não seria menos obra de história, estando a métrica presente ou não. A diferença está no fato de o primeiro relatar o que aconteceu realmente, enquanto o segundo, que poderia ter acontecido. Consequentemente, a poesia é mais filosófica e mais séria do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal ao que a história se restringe ao particular. (Aristóteles, 2011, p. 55)

Descrita como sendo mais elevada e mais filosófica do que a história, a poesia ganha um estatuto, como estamos vendo, diferente daquele que encontramos no Livro X da obra A República. Para Aristóteles, o poeta não nos ilumina sobre o passado como o historiador faz muito bem, dizendo como as coisas aconteceram em um momento por vezes remoto. O poeta nos ensina sobre nós mesmos, como indivíduos humanos; ele não fala do ocorrido, mas sobre como as coisas poderiam acontecer, Diferença fundamental. Os personagens da tragédia, desse modo, devem ser encarados como emblemáticos, no sentido em que são arquétipos ou tipos humanos e por isso guardam em si a mesma universalidade que o discurso filosófico. Isso não quer dizer que este discurso seja idêntico ao poético. Longe disso. Nesse ponto, estamos mais uma vez de acordo com Marilena Chaui, quando diz que A poesia, ao contrário da Filosofia, não é um conhecimento teórico da natureza humana, mas imita ações e sentimentos, feitos e virtudes, situações e vícios dos seres humanos (Chaui, 2002, p. 483). A poesia não trabalha com conceitos nem tem afinidades com cosmologias; ela é imitativa, porém, é um tipo de imitação cuja pretensão de universalidade a aproxima da atividade filosófica. Guardada a diferença entre filosofia e poesia, importa insistir sobre o seguinte ponto: a poesia tem, sim, uma pretensão que a aproxima da atividade filosófica – atingir o universal, o que a diferencia do trabalho do historiador. Universal aqui é entendido como manifestação de tipos humanos ou, se preferirmos, uma categoria universal do humano. Uma tragédia como Édipo rei (Sófocles, 2015) por exemplo, ainda que fale do indivíduo Édipo e dele narre as aventuras, trata de algo mais amplo do que a individualidade do personagem, ou seja, do destino humano.

O personagem aparece na poesia como trampolim para que a narração tenha uma forma específica e atinja o público em suas emoções, porém, esse mesmo personagem é o mote para que o universal se manifeste. O historiador, por seu lado, fala simplesmente de indivíduos, isto é, fica restrito ao âmbito particular. Ele nos fala de Alcibíades, Péricles ou Demóstenes, mas somente com base em seus feitos, índole e relevância de cada um deles para a história. Já o poeta usa um homem específico para tratar de algo mais amplo e filosófico. Eis a diferença central entre poesia e história.”

*: Quando nos referimos à poesia na Grécia arcaica isso não quer dizer que falamos de uma atividade poética que se assemelhe àquela que vemos nos dias de hoje. Perceba, por exemplo, que enquanto arte imitativa, a pintura, a música e o teatro também serão considerados por Aristóteles como poesia (poiesis). O teatro usará gestos, a música utilizará o ritmo, a dança tanto o ritmo quanto o gesto e a escultura, por fim, as formas e as cores: tudo isso será tido por poesia.

 

 

“O romance tem uma linguagem e uma verdade que lhes são específicas; ele fala algo que só pode ser transmitido pelas especificidades que lhes são únicas: nunca deixarei de repetir que a única razão de ser do romance é dizer aquilo que apenas o romance pode dizer (Kundera, A arte do romance, 2009, p. 40). Estamos falando de um discurso que se filia à imaginação, se insere na existência ficcional de um personagem ou, de acordo com Milan Kundera, exercita um tipo de meditação que é de caráter hipotético, imaginativo:

Existe uma diferença fundamental entre a maneira de pensar de um filósofo e a de um romancista. Fala-se frequentemente da Filosofa de Tchekhov, de Kafka, de Musil etc. Mas experimente extrair uma Filosofia coerente de seus escritos! Mesmo quando exprimem diretamente suas ideias em seus livros, essas são mais exercícios de reflexões, jogos de paradoxos, improvisações que a afirmação de um pensamento. (Kundera, 2009, p. 77)

Essa parece ser a mesma oposição explicitada por Paul Valéry (Variedades, 1999), ainda que ele não seja adepto dela. Pensamento abstrato de um lado e, no outro polo, o pensamento lírico. O romance, segundo Kundera, não seria lugar para disseminação de ideias filosóficas nem para a defesa de teses teóricas que se pretendam universais. Agora temos argumentos suficientes para dizer que o romanesco enfrenta o mundo como uma ambiguidade, como um modo de explicitar a vivência de um personagem em toda sua contradição: essa é sua especificidade. Não temos uma atmosfera propícia para a argumentação inequívoca que esperamos, como é natural no caso da filosofia, por uma conclusão apoiada em premissas previamente aceitas.

Kundera, ademais, é radicalmente contra a literatura como ferramenta política. No seu dicionário de termos, de fato, podemos ler no verbete ideia: A aversão que experimento por aqueles que reduzem uma obra a suas ideias. O horror que tenho de ser arrastado ao que se denomina ‘debates de ideias’. O desespero que me inspira a época obscurecida pelas ideias, indiferente às obras (Kundera, 2009, p. 123). Note que a afirmação citada não usa argumentação lógica para defender algum ponto. O autor recorre repetidamente a sentimentos particulares para expor sua posição: ele fala em aversão, horror e até mesmo desespero, termos usados para mostrar como ele percebe a intromissão de teses que podemos chamar de filosóficas em uma obra romanesca.

O adversário do autor, por assim dizer, parece ser a perspectiva daquele que percebe na literatura algum grau de engajamento legítimo que a lançaria para além da arte. Ainda segundo o dicionário de termos de Kundera, especificamente no verbete misomusa, lemos que sujeitar a arte à política seria um modo de manifestação de ódio para com ela; em outras palavras, seria uma forma de reduzi-la. A doutrina da arte engajada: a arte como meio de uma política. Professores para quem uma obra de arte não é senão um pretexto para o exercício de um método (psicanalítico, semiológico, sociológico etc.) (Kundera, 2009, p. 131).

Preservar o aspecto estético da linguagem romanesca é evitar sujeitá-la à prática política, é deixá-la aberta para a imaginação e o sonho que, de fato, em muitos casos pode mesmo preceder e motivar o sentido de uma obra de romance. O leitor não pode exigir da investigação existencial romanesca quaisquer respostas argumentadas ou passos lógicos que orientaram de modo rígido a exposição de alguma tese universal. O caso é outro: É preciso, portanto, ler essa narrativa (a romanesca) deixando-se transportar pela imaginação. Sobretudo não como um enigma a decifrar. Foi esforçando-se para decifrá-lo que os kafkólogos mataram Kafka (Kundera, 2009, p. 124). Esse assassinato simbólico não foi da pessoa, naturalmente, mas do romancista. Os especialistas dos textos de Kafka constrangeram sua produção literária e acabaram por reduzi-la a uma mera exposição de ideias, algo que ela não poderia comportar e, segundo a maneira de ver de Kundera, essa aproximação com a filosofia significa o aniquilamento do romance.”

 

 

“O filósofo posiciona-se como um juiz e confere valor, articula conceitualmente a realidade e tem um olhar sistemático sobre o mundo. O poeta trabalha com o ambíguo, é criador de fantasias e não se insere em um sistema. Caberia à literatura o papel do entretenimento estético, sem a sistematicidade exigida em um discurso lógico universalizante.

Razão de um lado e imaginação de outro: eis o que separaria inequivocamente esses dois tipos de discurso. Citando Antoine Compagnon (2012, Literatura para quê? p. 64): A Literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à empatia. O esquema a seguir mostra as diferenças estruturais, segundo a perspectiva disjuntiva, entre esses dois termos.”

Quadro 3.1 – Características específicas segundo a perspectiva disjuntiva

Filosofia

Literatura

Universalidade

Particularidade

Razão

Imaginação

Conceitos

Figuras de linguagem

 

 

3.5 – Caio Prado Junior e o objeto da filosofia

Caio Prado Junior, no livro O que é filosofia?, apesar de aceitar a relação entre filosofia e literatura, separa as duas ciências. A primeira, para ser mais pura, deveria investigar o que ele chama de objeto último e profundo da especulação filosófica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemática de que a Filosofia vem através dos séculos e em todos os lugares se ocupando (Prado Junior, 1991, p. 8). Que objeto é esse com o qual deveria se ocupar a Filosofia? O conhecimento do conhecimento. Devemos nos explicar melhor. O objetivo dessa atividade, para o autor, seria uma investigação conceitual, tendo como enfoque o mesmo objeto das ciências, mas, diferente da física ou da química, é predominantemente teórico e busca ele mesmo explicitar em sua completude ideias que orientam nossa experiência e mesmo o fazer científico.

Se o historiador se interessa por um acontecimento que tomou lugar em certo tempo, o filósofo, diferentemente, se perguntará sobre o estatuto do tempo. Se o físico e o químico estudam os componentes da natureza, para Caio Prado Junior, o filósofo voltará sua atenção para o modo como chegamos ao conhecimento das coisas. Estamos diante de um olhar que se interessa pelo essencial, o originário. Se o poeta, enfim, fala do amor tal qual ele entende, talvez até de maneira contraditória, o filósofo, como estamos vendo, terá preferência pela origem das emoções. Esses seriam exemplos de questões filosóficas por excelência. Características que limitam a produção desse ramo do conhecimento a um estudo eminentemente conceitual epistemológico. Não à toa, ética e filosofia política não são contempladas suficientemente pelo livro citado.”

 

 

“Já para o filósofo francês Jean-Paul Sartre, a literatura não poderia ficar isolada de seu contexto sociopolítico. Vejamos brevemente sua posição, pois, ao que parece, se contrapõe diretamente àquela de Milan Kundera. No ensaio Que é literatura?, Sartre (2004) estabelece sua posição sobre o tema. (...)

Seria mesmo difícil, para Sartre, falar em literatura não engajada, isso porque todos estaríamos, de alguma maneira, comprometidos com a realidade que nos cerca: O homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter a imparcialidade, nem mesmo Deus. Pois Deus, se existisse; estaria, como bem viram certos místicos, em situação em relação ao homem (Sartre, 2004, p. 21). Toda pessoa, portanto, uma vez inserida em certo ambiente sociocultural, se engaja em uma relação com outras pessoas. O mesmo se passa com a literatura.

A literatura tem uma função social, e a produção resultante dela pode ser caracterizada como uma forma de apelo, um comunicado, e justamente por isso é uma forma de engajamento. O escritor deve confrontar sua própria época colocando-se, dessa maneira, em relação ao seu tempo. Sem tirar todas as implicações do pensamento de Sartre, podemos dizer que o escritor, no momento mesmo em que se dispõe a escrever algo, que se coloca na situação de comunicante, enfim, é revestido de engajamento político. Mesmo deixar de dizer, nesse quadro, é tomar uma posição em relação ao mundo: Mas desde já podemos concluir que o escritor decidiu desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira responsabilidade (Sartre, 2004, p. 21).

Sartre segue dizendo, duas páginas adiante da citação anterior, marcando ainda mais sua posição, que arte pura e arte vazia seriam sinônimas. Ninguém escreve um livro para não falar de nada. O caso é que não podemos fugir do engajamento com o mundo; à força ou de bom grado todo escritor está engajado (Sartre, 2004, p. 53). A ele, portanto, cabe o enfrentamento de sua tarefa. O autor não pode escapar para o reino do lirismo, fingindo que não precisa se comprometer com a realidade e os outros homens. Em uma sentença lapidar, Sartre afirma como escritor e para os escritores que Nosso papel está definido: enquanto negatividade, a Literatura questionará a alienação do trabalho; enquanto criação e superação, apresentará o homem como ação criadora e o acompanhará em seus esforços para superar a alienação presente, rumo a uma situação melhor (Sartre, 2004, p. 173).”

 

 

“Quem nunca ouviu alguém dizer que sobre religião, política e futebol não se discute? Contudo, essa postura não parece filosófica, pois se esconde sem dar a chance de conhecer o diferente, sem promover uma autocrítica motivada pelo que é distinto de nós mesmos.”

 

 

“É pelo olhar do outro que a verdade melhor pode irromper para mim mesmo.”

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Teoria e prática em antropologia – Alessandra Stremel Pesce Ribeiro

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-250-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 252
Sinopse: Aquele que se aventura nos caminhos da antropologia tem suas percepções de mundo e de si mesmo alteradas, ampliando e renovando seu olhar em relação ao desconhecido, ao outro e ao diferente. Com base em um estudo sobre cultura, etnocentrismo, identidade, alteridade e fronteiras culturais, veremos que tomar consciência de diferentes costumes e crenças pode desfazer a ideia do indivíduo de que seus valores e modos de vida são unânimes. Portanto, por meio da reflexão crítica sobre nossa realidade, esta obra pretende desfazer preconceitos, estereótipos e mitos.



“Um dos principais objetivos da antropologia é demonstrar que todos os indivíduos e grupos sociais, nos mais variados tempos e lugares, significam suas ações e dão sentido ao mundo. A espécie humana não vive apenas uma, mas múltiplas realidades. Por muito tempo, o conceito de cultura foi a resposta para equacionar a diversidade humana e, ao mesmo tempo, a unidade da espécie.”


“Em seu livro Cultura: um conceito antropológico, o antropólogo Roque Laraia (2002) desconstruiu a ideia de que os instintos ou o ambiente são determinantes para o comportamento humano. Esse autor fez diversos questionamentos ao leitor, por exemplo: De que modo é possível falar em instinto de sobrevivência em face de fenômenos como o suicídio? Como falar em instinto materno se, em várias sociedades, a morte de recém-nascidos portadores de características específicas pode ser provocada? Como é possível afirmar que o homem é determinado pelo ambiente se, ao compararmos sociedades distintas vivendo em ambientes semelhantes, verificamos respostas e estratégias diferentes de adaptação?


“De modo geral, o dualismo entre natureza e cultura perpassou toda a obra de Lévi-Strauss. Em As estruturas elementares do parentesco (1982), esse mesmo autor argumentou que a passagem da natureza para a cultura ocorre no estabelecimento da primeira regra: a proibição do incesto, que consiste em interditar o ato sexual com algumas pessoas de acordo com a relação de parentesco entre elas.
A importância de tal proibição, para Lévi-Strauss, é emblemática, por forçar o estabelecimento de relações (alianças) fora das fronteiras do grupo. As trocas entre grupos, sendo a troca matrimonial a mais poderosa, revelam semelhança com a linguagem, pois ambas são tidas como processos comunicativos.
Mesmo reconhecendo a interdependência entre os planos da natureza e da cultura, Lévi-Strauss considerava que o aparato conceitual da cultura permitiria organizar o plano da natureza. Segundo o antropólogo, são os processos lógicos de classificação do mundo que dão forma e coerência à realidade. Para esse autor (1989; O pensamento selvagem, 1982), o que transformaria o homem em um ser social — isto é, quando ele escapa às determinações impostas pela natureza — seria a criação do universo das regras.”


“Segundo o antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917), a cultura (e a civilização) seria “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade” (Tylor, 1871, p. 1, citado por Denys Cuche, A noção de cultura nas ciências sociais, 1999, p. 35).
Embora outros etnólogos já tivessem utilizado o termo cultura antes de Tylor, ele o utilizou como um conceito. A cultura, para o autor, adquire um status coletivo, capaz de abarcar a totalidade do social. Nota-se que o conceito de Tylor é amplo o bastante para envolver o homem em várias dimensões. A cultura, ao ser tratada como algo adquirido, escapa às determinações biológicas.”


“Segundo Denys Cuche (1999), havia em Durkheim uma profunda preocupação com os aspectos simbólicos, os quais aproximaram o sociólogo de uma abordagem antropológica da sociedade. Ao menos dois aspectos do pensamento durkheimiano indicam sua preocupação com questões antropológicas:
1. a explicação de como o vínculo social é estabelecido, ou seja, como se dá a relação entre indivíduo e sociedade;
2. a ênfase nas representações coletivas — a ideia de consciência coletiva consistia em um conjunto de valores, ideais e sentimentos compartilhados impostos ao indivíduo.
Durkheim concebia a sociedade como uma totalidade orgânica, na qual todos os aspectos da vida social seriam interdependentes. A metáfora da sociedade como organismo foi inspiradora para vários pensadores. A noção da sociedade como totalidade orgânica teve grande impacto sobre os antropólogos ingleses, os quais, no início do século XX, estavam realizando seus primeiros trabalhos de campo. As ideias de Durkheim, quando confrontadas com outras sociedades, pareciam oferecer conceitos poderosos para se analisar a totalidade do social, objetivo último dos funcionalistas. Grosso modo, o conceito de função, desenvolvido por autores como Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), considerava que todas as instituições sociais estavam interligadas e desempenhavam um papel específico (ou seja, tinham uma função) para a manutenção da coesão social.”


“O etnocentrismo é produzido quando o encontro entre grupos diferentes acontece. Ao nos depararmos com as diferenças, que podem ser as mais variadas (éticas, estéticas, religiosas etc.), ocorre um esforço para darmos sentido ao diferente este é o momento da tradução. No etnocentrismo, a tradução se dá ao interpretarmos as coisas do outro de nosso ponto de vista.”


“Se foi difundida uma visão de uma democracia racial à brasileira, foi porque a valorização do caráter miscigenado camuflou os processos históricos de conflitos e a dominação do sistema colonial. Apesar de hierárquico e conservador, o Brasil se pensa tolerante, liberal e igualitário.”


“Dumont foi um antropólogo francês que propôs uma interpretação da ideologia moderna de modo comparativo, partindo do seu oposto, a hierarquia. Em sua obra, o estudo da sociedade indiana mostrou ser uma importante ferramenta, pois permitiu um distanciamento do Ocidente, para olhar de modo analítico aquilo que antes era natural. Dumont (Homo Hierarchicus, 2008) estabeleceu dois modelos sociais e ideológicos* distintos:
1. Hierárquico — É o modelo predominante em sociedades tradicionais, em especial, na sociedade indiana. De modo geral, podemos afirmar que a hierarquia pressupõe que a ênfase é dada à totalidade, não às partes. Cada pessoa ou grupo ocupa um lugar definido na ordem social. As partes não ocupam os mesmos lugares, isto é, estes são diferentes, e é na relação entre os homens que a sociedade (o todo) adquire sentido.
2. Individualista — Trata-se de um modelo historicamente construído no Ocidente, e sua ênfase, ao contrário da hierarquia, não está no todo, mas nas partes (indivíduos ou grupos sociais). Nesse modelo, todos os indivíduos são considerados iguais, pois cada um é concebido como uma encarnação da sociedade inteira. A ideologia individualista pressupõe que a sociedade é constituída por um conjunto de indivíduos.
Roberto DaMatta aplicou o modelo de Dumont para analisar a sociedade brasileira. Segundo DaMatta (A casa e a rua, 1985), enquanto países como os Estados Unidos e a França obedeciam à lógica individualista, o Brasil seria um híbrido, combinando elementos individualistas e hierárquicos. Formalmente, no Brasil, o Estado, a Constituição e todos os modelos oficiais foram elaborados seguindo valores ocidentais — modernos e individualistas.
No entanto, as relações entre as pessoas são hierárquicas e tradicionais. O resultado é a navegação do brasileiro entre esses dois modelos, para os quais DaMatta (1985) utilizou a metáfora da rua e da casa.
A rua representa esse modelo impessoal e individualista, ao passo que a casa encarna o universo da rede de relações pessoais no interior da qual o sentido de pertencimento ao todo é possível. Nessa leitura do Brasil, o mundo da rua não é confortável, tanto que as redes de relações às quais pertencemos são acionadas sempre que possível. Daí as estratégias de aproximação com estranhos, procurando-se elementos de afinidade.
A valorização das relações pessoais no Brasil tem raízes históricas, sendo um dos únicos modos de navegação social possíveis na sociedade colonial. Aqui, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, a mobilidade foi atrelada não à igualdade de condições, mas às relações da pessoa com aqueles mais bem posicionados social e economicamente. Não é por acaso que, em nosso país, o compadrio se tornou uma instituição poderosa e que, por muito tempo, ser apadrinhado por um político ou coronel era um dos poucos caminhos para a ascensão social.
O compadrio consistia em um parentesco espiritual, com base no qual o padrinho do indivíduo assume uma responsabilidade moral pelo afilhado — uma espécie de paternidade. No Nordeste, por exemplo, os coronéis, donos de engenho, fazendeiros, eram muito requisitados para serem padrinhos de seus empregados. Ter essas pessoas como compadres possibilitava constituir laços sociais com alguém em posição privilegiada. E, para o padrinho, qual era a vantagem? A lealdade adquirida em troca, garantindo, assim, seu prestígio e poder na região. Ocorre que o compadrio, ao mesmo tempo que era hierárquico, era personalizado e implicava relações de amizade e confiança. Embora as distinções sociais entre os compadres fossem mantidas, elas eram sustentadas pela cordialidade.
Agora, é possível entender melhor por que, ao tratarmos do racismo no Brasil, afirmamos que ele também era hierárquico, de tal forma que até a classificação racial das pessoas podia variar segundo vários critérios, entre os quais sua rede de relações sociais ou situação econômica. O próprio mito da democracia racial implica hierarquia, pois, segundo a lógica moderna, igualitária, o único modo de atribuir a igualdade de condições é reconhecer a diferença entre elas.”
*: Para Dumont (2008), a ideologia é um conjunto de ideias e valores.


“O Brasil, como vimos, transita entre o individualismo moderno e os princípios tradicionais da hierarquia, característica que influencia diretamente o modo como concebemos e vivemos a cidadania. Nos últimos anos, com a introdução de políticas mais inclusivas, como as ações afirmativas, temos observado um esboço de sociedade mais igualitária, mas há ainda um longo percurso até alcançarmos uma cidadania mais inclusiva. A noção de igualdade entre indivíduos como princípio da cidadania não pode existir em países onde ainda há distinções e privilégios conforme o grau de instrução e a classe social da pessoa. Como certa vez afirmou DaMatta (O que faz o Brasil, Brasil?, 1984), estipulamos todas as classificações possíveis para estabelecer distinções entre as pessoas: vestimenta; condição econômica; cor da pele; família a que pertencem. Enfim, trata-se de um sistema em que cada integrante sabe o lugar que ocupa.
Marisa Peirano (A teoria vivida e outros casos de antropologia, 2006) revelou como, em duas situações diferentes, a noção de cidadania esteve ligada à posse de determinados documentos oficiais: a carteira de trabalho e o título de eleitor. A vinculação desses documentos a uma ideia de cidadania no Brasil faz distinções entre as relações sociais estabelecidas nos meios urbano e rural.
Segundo essa antropóloga, na década de 1930, a carteira de trabalho se tornou um documento que atribuía ao indivíduo o status de cidadão. Para isso, era necessário que a profissão exercida estivesse na lista das atividades regulamentadas pelo Estado. Já os trabalhadores urbanos e rurais desprovidos do registro em carteira não eram percebidos como cidadãos plenos. A correlação entre profissão e cidadania foi tão saliente que, por algum tempo, as associações profissionais podiam fazer a expedição do documento de identidade. No entanto, essa característica indica que
A carteira profissional, privilégio de uma parcela especifica da população, traz em si uma concepção de cidadania que mostra a face da distinção e a marca de status. Os cidadãos da nação, assim definidos, constituem uma minoria privilegiada. A nação existe como categoria ideológica, sendo composta de indivíduos hierarquizados que se diferenciam pela profissão e pelo lugar que ocupam na sociedade. (Peirano, 2006, p. 125)
Essa noção de cidadania desigual teve múltiplas implicações. O acesso ao sistema de saúde, por exemplo, esteve diretamente relacionado ao registro em carteira. Antes da criação do Sistema Único de Saúde (SUS) os serviços de saúde ligados ao Ministério da Saúde cobriam praticamente campanhas de vacinação e atendimento em poucos casos de doença, quando se tratava de indigentes.
Em 1974, o governo militar criou o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), destinado apenas àquelas pessoas que contribuíam com a Previdência Social, ou seja, que tinham carteira de trabalho assinada. Talvez por essa razão, várias categorias de profissionais não eram contempladas com o atendimento dos serviços públicos de saúde. A universalização da saúde brasileira foi possível apenas com a homologação da Constituição Federal de 1988 — o SUS foi criado apenas no início dos anos 1990.”


“As relações pessoais na política não são malvistas pelos trabalhadores do interior. Trocar o voto por pequenos favores políticos (ou econômicos) faz a pessoa sentir que tem aliados em esferas às quais normalmente não tem acesso. A lógica local não vê isso como “venda de votos”, mas como ajuda mútua. O político ou comerciante tem acesso a determinados espaços aos quais o habitante local não tem, atuando, assim, como um mediador entre a pessoa e o Estado. Segundo Marisa Peirano (2006, p. 127), essa lógica só pode funcionar em um modelo de “política vinculado a relações personalizadas e hierárquicas que muito se distanciam do ideal universalista”. Trata-se de um modelo de política pelo qual os indivíduos não se percebem como iguais.”


“Tão importantes quanto a coexistência de duas ideologias distintas, ou formas de navegação social, são as analogias que DaMatta fez ao relacionar determinadas festas à realidade brasileira. As festas são importantes pois consistem em um período que escapam ao cotidiano e, por isso, têm a função de reforçar determinados valores. (...)
Podemos afirmar que os estudiosos dividiram os ritos em rituais de coesão social e rituais de rebelião (ou da desordem). Enquanto os primeiros consistem em reforçar para a sociedade valores e normas já existentes, os segundos invertem ou desconstroem a ordem social, ao menos durante o ritual. Os ritos cívicos e o carnaval operam nesses polos opostos, mas, ao mesmo tempo, se complementam para atribuir determinados sentidos à experiência do brasileiro: “cada um desses lados permite esquecer o outro, como as duas faces de uma mesma moeda. E, no entanto, os dois fazem parte e constituem expressões ou reflexões de uma mesma totalidade, uma mesma coisa” (DaMatta, 1984, p. 42, grifo nosso).
Dentre as festas da ordem, a mais conhecida é a parada militar. Na organização espacial da festa, é possível observar uma separação entre a população, o desfile e as autoridades (às últimas é destinado um lugar de destaque). O rito é apresentado ao mesmo tempo ao povo e às autoridades, mas encerra significados diferentes: quanto ao povo, a parada militar tem a função de mostrar a força do Estado, ao qual a população deve estar submetida; já sua apresentação às autoridades demonstra o reconhecimento em relação ao poder estabelecido. Por essas razões, as paradas militares no Brasil têm a função de reforçar as distinções hierárquicas estabelecidas no país.
Essa realidade é muito diferente do que ocorre nas paradas cívicas, por exemplo, nos Estados Unidos, em que o exército não desfila equipado com armas no intuito de enfatizar a força do Estado. Lá, a população é parte do evento e está integrada ao desfile propriamente dito, bem como na condição de quem dele participa efetivamente como espectador.
O carnaval vive situação oposta ao que acontece com os desfiles militares no Brasil. Nessa festividade, durante quatro dias, toda ordem estabelecida se dissolve. Se existe alguma hierarquia, durante o carnaval, ela está às avessas. Quando se trata da avenida por onde desfilam carros alegóricos e pessoas, o espetáculo gira em torno daqueles que, no dia a dia, são hierarquicamente inferiores: pobres, negros, empregadas domésticas, categorias sociais que se apresentam em maior número no carnaval. (...)
Durante os quatro dias de carnaval, talvez exista uma democracia “à brasileira”, pois é durante essa festividade que as redes de relações deixam de ser imperativas para a navegação social da pessoa. Tampouco tem expressão a figura opressora das autoridades que sempre “colocam o pobre no seu devido lugar”. Em outras palavras, ao longo do carnaval, toda e qualquer hierarquia sai de cena.”


“Há um lugar no planeta, no extremo ocidente, onde vive um povo muito interessante, e que há cerca de uns seiscentos anos atrás se achava inteiramente desprovido de cultura. Ele havia perdido toda a sua sabedoria ancestral ao cabo de inumeráveis invasões de bárbaros, de sucessivas catástrofes, pestes, secas, guerras, o diabo. A partir de certo momento, porém, esse povo começou a se reiventar, criando uma cultura artificial: começaram a imitar uma arquitetura de que só conheciam ruínas ou em velhos escritos, faziam traduções vernáculas de textos em línguas mortas a partir de traduções em outras línguas, tiravam conclusões delirantes, inventavam tradições esotéricas perdidas... Como se sabe, esse processo, que se passou na Europa ali mais ou menos entre os séculos XIV a XVI, ganhou o nome de Renascimento. O Ocidente moderno principia ali. O que é o Renascimento? Os europeus – mistura étnica confusa de germânicos e celtas, de itálicos e eslavos, que falam línguas híbridas [...] Refiguram o mundo grego, que não era o mundo grego (ou greco-romano) histórico, mas uma “Antiguidade clássica” feita – como sempre – de fantasias e projeções do presente. Erguem templos, casas, palácios imitativos, escrevem uma literatura que se refere privilegiadamente a esse mundo, uma poesia imitando a poesia grega, esculturas que imitam as esculturas gregas. [...] E Sahlins conclui: pois é, quando se trata dos europeus, chamamos esse processo de Renascimento. Quando se trata dos outros, chamamos de invenção da tradição. Alguns povos têm toda a sorte do mundo.”
(Sahlins, citado por Viveiros de Castro, No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é, 2006, p. 18-19)


“Acreditamos que a antropologia nada mais é do que uma ferramenta para pensar a existência a partir de outra perspectiva, isto é, não mais de forma etnocêntrica, julgando experiências e ideias que diferem das nossas, mas procurando compreendê-las em seus próprios termos.”

Capitalismo e Liberdade – Milton Friedman

Editora: Ltc

ISBN: 978-85-2162-652-7

Tradução: Afonso Celso da Cunha Serra

Opinião: ★☆☆☆☆

Páginas: 236

Sinopse: Como declarou Thomas Jefferson, “o progresso está à mão se conseguirmos nos livrar do governo que desperdiça o esforço das pessoas com a desculpa de querer protegê-las”. Mas a lição principal do livro vem da própria experiência de Friedman, de defender esses ideais quando a maioria das pessoas acreditava no Estado grande. Por isso o livro lhe ensinará muito, não só sobre pensamento e política econômica, mas também sobre a importância de lutar por suas ideias, mesmo quando elas não são populares.



“Há uma frase muito citada do discurso de posse do Presidente Kennedy: “Não pergunte o que sua pátria pode fazer por você – pergunte o que você pode fazer por sua pátria”. Constitui uma clara indicação da atitude dos tempos que correm, que a controvérsia sobre esta frase se tenha focalizado sobre sua origem, e não sobre seu conteúdo. Nenhuma das duas metades da declaração expressa uma relação entre cidadãos e seu governo que seja digna dos ideais de homens livres numa sociedade livre. A frase paternalista “o que sua pátria pode fazer por você” implica que o governo é o protetor, e o cidadão, o tutelado - uma visão que contraria a crença do homem livre em sua própria responsabilidade com relação a seu próprio destino. A frase organicista “o que você pode fazer por sua pátria” implica que o governo é o senhor ou a deidade, e o cidadão, o servo ou o adorador. Para o homem livre, a pátria é o conjunto de indivíduos que a compõem, e não algo acima e além deles. O indivíduo tem orgulho de sua herança comum e mantém lealdade a uma tradição comum. Mas considera o governo como um meio, um instrumento – nem um distribuidor de favores e doações nem um senhor ou um deus para ser cegamente servido e idolatrado. Não reconhece qualquer objetivo nacional senão o conjunto de objetivos a que os cidadãos servem separadamente. Não reconhece nenhum propósito nacional a não ser o conjunto de propósitos pelos quais os cidadãos lutam separadamente.

O homem livre não perguntará o que sua pátria pode fazer por ele ou o que pode ele fazer por sua pátria. Perguntará de preferência: “o que eu e meus compatriotas podemos fazer por meio do governo” para ajudar cada um de nós a tomar suas responsabilidades, a alcançar nossos propósitos e objetivos diversos e, acima de tudo, a proteger nossa liberdade? E acrescentará outra pergunta a esta: “o que devemos fazer para impedir que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein e venha a destruir justamente a liberdade para cuja proteção nós o estabelecemos?” A liberdade é uma planta rara e delicada. Nossas próprias observações indicam, e a história confirma, que a grande ameaça à liberdade está constituída pela concentração do poder. O governo é necessário para preservar nossa liberdade, é um instrumento por meio do qual podemos exercer nossa liberdade; entretanto, pelo fato de concentrar poder em mãos políticas, ele é também uma ameaça à liberdade. Mesmo se os homens que controlam esse poder estejam, inicialmente, repletos de boa vontade e mesmo que não venham a ser corrompidos pelo poder, este formará e atrairá homens de tipos diferentes.

Como nós podemos beneficiar das vantagens de ter um governo e, ao mesmo tempo, evitar a ameaça à liberdade? Dois grandes princípios apresentados em nossa Constituição nos dão a resposta que foi capaz de preservar nossa liberdade até agora – embora tenham sido violados, repetidamente na prática, enquanto proclamados como preceitos.

Primeiro, o objetivo do governo deve ser limitado. Sua principal função deve ser a de proteger nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas; preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados competitivos. Além desta função principal, o governo pode, algumas vezes, nos levar a fazer em conjunto o que seria mais difícil ou dispendioso fazer separadamente. Entretanto, qualquer ação do governo nesse sentido representa um perigo. Nós não devemos nem podemos evitar usar o governo nesse sentido. Mas é preciso que exista uma boa e clara quantidade de vantagens, antes que o façamos. E contando principalmente com a cooperação voluntária e a empresa privada, tanto nas atividades econômicas quanto em outras, que podemos constituir o setor privado em limite para o poder do governo e uma proteção efetiva à nossa liberdade de palavra, de religião e de pensamento.

O segundo grande princípio reza que o poder do governo deve ser distribuído. Se o governo deve exercer poder, é melhor que seja no condado do que no estado; e melhor no estado do que em Washington. Se eu não gostar do que a minha comunidade faz em termos de organização escolar ou habitacional, posso mudar para outra e, embora muito poucos possam tomar esta iniciativa, a possibilidade como tal já constitui um controle. Se não gostar do que faz o meu estado, posso mudar-me para outro. Se não gostar do que Washington impõe, tenho muito poucas alternativas neste mundo de nações ciumentas.

A grande dificuldade de evitar o fortalecimento do Governo Federal é, sem dúvida alguma, a atração da centralização para muitos de seus proponentes. Isto lhes permitirá, acham eles, legislar de modo mais efetivo determinados programas que – é assim que imaginam – são do interesse do público, quer se trate de transferência da renda do rico para o pobre ou de objetivos privados para os governamentais. Eles têm razão num sentido. Mas a moeda tem duas faces. O poder para fazer coisas certas é também poder para fazer coisas erradas; os que controlam o poder hoje podem não ser os mesmos de amanhã; e, ainda mais importante, o que um indivíduo considera bom pode ser considerado mau por outro. A grande tragédia do entusiasmo pela centralização, bem como do entusiasmo pela expansão dos objetivos do governo em geral, é que envolve homens de boa vontade que serão os primeiros a sofrer suas consequências negativas.

A preservação da liberdade é a principal razão para a limitação e descentralização do poder do governo.”

 

 

“O cidadão dos Estados Unidos que é obrigado por lei a reservar cerca de dez por cento de sua renda à compra de um determinado contrato de aposentadoria, administrado pelo governo, está sendo privado de uma parte correspondente de sua liberdade pessoal. (...) É verdade que o número de cidadãos que consideram o seguro compulsório para a velhice como um ataque à sua liberdade pessoal deve ser pequeno, mas quem acredita em liberdade não se perde nesse tipo de contas.”

 

 

“O papel do mercado, como já ficou dito, é permitir unanimidade sem conformidade e ser um sistema de efetiva representação proporcional. De outro lado, o aspecto característico da ação através de canais explicitamente políticos é o de tender a exigir ou reforçar uma conformidade substancial. A questão típica deve ser decidida por meio de um “sim” ou um “não”; no máximo pode ser fornecida a oportunidade para um número bem limitado de alternativas. Mesmo o uso da representação proporcional, em sua forma explicitamente política, não é esta conclusão. O número de grupos separados que podem de fato se representados é enormemente limitado em comparação com a representação proporcional do mercado. Mais importante ainda, o fato de o produto ter que ser em geral uma lei aplicável a todos os grupos, em vez de ato legislativos separados para cada “parte” representada, significa que a representação proporcional em sua versão política não só impede unanimidade sem conformidade como também tende à fragmentação e à ineficiência.

Por isso mesmo, destrói qualquer consenso sobre o qual a unanimidade com conformidade poderia basear-se.”

 

 

“A unanimidade é, evidentemente, um ideal. Na prática, não nos podemos permitir nem o tempo, nem o esforço necessário a obter a unanimidade completa a respeito de cada questão. Devemos forçosamente aceitar um pouco menos. Somos, portanto, levados a aceitar a regra da maioria numa forma ou noutra como um expediente.”

 

 

“Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedades; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico; julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos; promova a competição; forneça uma estrutura monetária; envolva-se em atividades para evitar monopólio técnico e evite os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança; um tal governo teria, evidentemente, importantes funções a desempenhar. Um liberal consistente não é um anarquista.”

 

 

“Ser a favor de taxas de câmbio flutuantes não significa ser a favor de taxas de câmbio instáveis. Quando apoiamos um sistema de preço livre, não significa que somos a favor de um sistema em que os preços flutuam violentamente para cima e para baixo. O que desejamos é um sistema em que os preços sejam livres para flutuar – mas no qual as forças que os determinam sejam suficientemente estáveis de modo que os preços mudem dentro de limites moderados. O mesmo se aplica num sistema de taxas cambiais flutuantes. O objetivo último é um mundo em que as taxas cambiais, embora livres para variar, sejam de fato altamente estáveis porque políticas econômicas e condições básicas são estáveis. A instabilidade das taxas de câmbio é um sintoma da instabilidade da estrutura econômica subjacente. A eliminação de tais sintomas pelo congelamento administrativo das taxas cambiais não corrige nenhuma das dificuldades subjacentes e só torna o ajustamento a elas ainda mais penoso.”

 

 

“Instituições governamentais desempenham papel menos amplo no ensino superior nos Estados Unidos do que nos níveis primário e secundário. Contudo, sua importância cresceu muito, sobretudo até a década de 1920, e hoje elas têm a responsabilidade de metade dos estudantes que frequentam a universidade. Uma das principais razões de seu crescimento reside na sua conveniência – a maioria dos colleges e universidades estatais e municipais cobram anuidades bem menores do que as instituições privadas. Como consequência, as universidades privadas vêm enfrentando problemas financeiros sérios e têm protestado, muito justamente, contra a competição “desonesta”. Elas tentam manter a independência com relação ao governo e, ao mesmo tempo, levadas por problemas financeiros, têm que pedir ajuda ao governo.

A análise já apresentada sugere as linhas mestras ao longo das quais poder-se-ia tentar uma solução. O investimento público no ensino superior pode ser justificado como meio de treinar os jovens para a cidadania e a liderança – embora faça questão de acrescentar que a grande porção de investimento que está sendo atualmente aplicada no treinamento estritamente vocacional não pode ser justificada dessa forma e nem mesmo, como veremos, por nenhuma outra. Restringir a subvenção à instrução obtida numa instituição administrada pelo Estado não pode ser justificado sob nenhum ponto de vista. Qualquer subvenção deve ser passada aos indivíduos, para ser utilizada em instituições de sua própria escolha, com a única condição de que sejam do tipo e natureza convenientes. As escolas governamentais que continuarem em funcionamento deveriam cobrar anuidades que cobrissem os custos educacionais, competindo, assim, em nível de igualdade com as escolas não subvencionais pelo governo.”

 

 

Legislação sobre discriminação nos empregos

Comissões que estudam as práticas discriminatórias na contratação de serviços por motivos de raça, cor ou religião foram criadas em numerosos estados com a tarefa de evitar a “discriminação”. A existência dessas comissões constitui clara interferência na liberdade individual de estabelecer contratos de trabalho com quem quer que seja. Com isso, cada contrato está sendo submetido à aprovação ou desaprovação do Estado. Portanto, trata-se de interferência direta na liberdade, do tipo contra o qual objetaríamos em muitos outros contextos. Além disso, como acontece quase sempre com outras interferências na liberdade, os indivíduos submetidos à lei não são em geral aqueles cujas ações os proponentes da lei desejam controlar.

Considerem, por exemplo, a situação de uma loja situada num bairro habitado por pessoas que têm forte aversão a serem servidas por negros. Suponhamos que uma destas lojas tenha vaga para um empregado, e o primeiro candidato a se apresentar seja negro e preencha todas as exigências estabelecidas pelo empregador. Suponhamos ainda que, como consequência da lei em questão, a loja seja obrigada a contratá-lo. O efeito de tal ação será a redução do movimento de negócios e a imposição de prejuízo ao proprietário. Se a preferência do bairro é realmente firme, poderá levar ao fechamento da loja. Quando o proprietário de uma loja contrata empregados brancos em vez de negros, no caso de não existir uma lei a respeito, ele pode não estar manifestando preferência ou preconceito ou gosto próprios. Pode estar simplesmente transmitindo os gostos da comunidade a que serve. Está na realidade oferecendo aos consumidores os serviços que estes desejam consumir. Entretanto, ele fica prejudicado – e pode ser mesmo o único prejudicado – por uma lei que o proíbe de desenvolver essa atividade, isto é, que o proíba de satisfazer os gostos da comunidade contratando um empregado branco em vez de negro. (...)

Se lançarmos um amplo olhar sobre a História e observarmos o tipo de coisas que a maioria é capaz de fazer, quando casos individuais são julgados na base de seus méritos próprios em vez de como parte de um princípio geral, teremos poucas dúvidas sobre a total inconveniência da aceitação de uma ação do governo nesta área, mesmo do ponto de vista dos que apoiam no momento tal intervenção. Se, no momento, os que apoiam a legislação em exame estão em posição de impor seus pontos de vista, isto se deve a determinada situação constitucional e federal em que uma maioria regional numa parte do país está em posição de impor suas opiniões a uma maioria de outra parte do país.

Em termos gerais, qualquer minoria que dependa da ação específica de uma maioria para defender seus interesses está adotando atitude extremamente míope. A aceitação de certo número de leis aplicadas a certas espécies de casos pode evitar que maiorias específicas explorem minorias específicas. Na ausência de tais leis, as maiorias com certeza usarão seu poder para impor suas preferências ou, melhor, seus preconceitos – e não para proteger as minorias contra os preconceitos das maiorias.”

 

 

“Fiz certa vez uma estimativa grosseira de que, devido à existência dos sindicatos, cerca de 10 a 15 por cento da população de trabalhadores obtiveram aumentos de 10 a 15 Por cento em seus salários. Isso significa que aproximadamente 85 ou 90 por cento da população de trabalhadores tiveram seu nível de salários reduzidos mais ou menos 4 por cento. Desde que fiz tal estimativa, estudos mais detalhados já foram feitos por outros autores. Tenho a impressão de que os resultados apresentados foram mais ou menos da mesma magnitude.

Se um sindicato eleva os salários de determinada profissão ou indústria, torna o volume de empregos disponíveis nessa profissão ou indústria menor do que seria em outras circunstâncias, do mesmo modo que qualquer aumento de preços baixa o volume de compras. O resultado será um número maior de pessoas procurando emprego em outras áreas, o que baixa os salários nas áreas mais procuradas. Como os sindicatos têm mais poder com relação aos grupos que receberiam de qualquer forma salários altos, seus efeitos têm sido o de levar trabalhadores que recebem bons salários a receber salários ainda melhores – às custas dos trabalhadores de salários mais baixos. Os sindicatos, portanto, não só prejudicaram o público em geral e os trabalhadores como um todo por distorcerem a utilização de trabalho, mas também tornaram os salários da classe trabalhadora mais desiguais por reduzirem as oportunidades disponíveis aos trabalhadores menos categorizados.”

 

 

“Os impostos sobre pessoas jurídicas deveriam ser abolidos. Quer isso seja feito ou não, as empresas deveriam ser obrigadas a atribuir a cada acionista individual o lucro que não é distribuído como dividendo. Assim, quando a empresa enviasse um cheque de dividendos, deveria também enviar uma declaração mais ou menos deste tipo: “Além deste dividendo – de centavos por ação, sua empresa também ganhou – centavos por ação que foi reinvestido”. O acionista individual deveria então ser solicitado a declarar o lucro atribuído, mas não distribuído, em seu imposto de renda bem como os dividendos. As empresas estariam assim livres para reinvestirem tanto quanto desejassem; mas não teriam outro incentivo para fazê-lo a não ser o incentivo apropriado de poder ganhar mais internamente o que o acionista ganharia externamente. Poucas medidas contribuiriam mais para revigorar o mercado de capitais, para estimular as empresas, e para promover competição efetiva.”

 

 

“Ultimamente, um ponto de vista específico tem obtido cada vez maior aceitação – o de que os altos funcionários das grandes empresas e os líderes trabalhistas têm “uma responsabilidade social” para além dos serviços que devem prestar aos interesses de seus acionistas ou de seus membros. Esse ponto de vista mostra uma concepção fundamentalmente errada do caráter e da natureza de uma economia livre. Em tal economia, há uma e só uma responsabilidade social do capital – usar seus recursos e dedicar-se a atividades destinadas a aumentar seus lucros até onde permaneça dentro das regras do jogo, o que significa participar de uma competição livre e aberta, sem enganos ou fraude. (...)

Há poucas coisas capazes de minar tão profundamente as bases de nossa sociedade livre do que a aceitação por parte dos dirigentes das empresas de uma responsabilidade social que não a de fazer tanto dinheiro quanto possível para seus acionistas. Trata-se de uma doutrina fundamentalmente subversiva. (...)

“A direção em que a política está se movendo agora – permitindo contribuições das empresas para propósitos de caridade e deduções do imposto de renda – constitui um passo rumo ao estabelecimento de um verdadeiro divórcio entre propriedade e controle, e rumo ao solapamento da natureza e das características básicas de nossa sociedade. Trata-se de um afastamento da sociedade individualista e um avanço para o Estado corporativo.”

 

 

“A derrubada do sistema medieval de guildas foi um primeiro passo indispensável ao surgimento da liberdade no mundo ocidental. Constituiu um sinal do triunfo das ideias liberais, aliás, amplamente reconhecido como tal, o fato de que, em meados do século XIX, na Inglaterra e nos Estados Unidos (e, em menor extensão, no continente europeu), os homens pudessem dedicar-se a qualquer comércio ou ocupação que desejassem, sem a autorização de nenhuma autoridade governamental ou paragovernamental. Em décadas mais recentes, tem ocorrido um retrocesso, uma tendência crescente de restringir determinadas ocupações aos portadores de licença para tanto fornecida pelo Estado.

Tais restrições à liberdade de os indivíduos usarem seus recursos conforme lhes aprouver são importantes por si sós, além de criarem um tipo especial de problemas aos quais podemos aplicar os princípios desenvolvidos nos dois primeiros capítulos.

Examinarei primeiro o problema geral e depois um exemplo particular, o de restrições à prática da medicina. A razão de ter escolhido a medicina reside no fato de ser mais conveniente centralizar a discussão no caso que parece fornecer justificativa maior – não há muito a aprender na derrubada de posições fracas. Imagino que a maioria das pessoas, possivelmente até a maior parte dos liberais, acredita ser necessário restringir a prática da medicina às pessoas que obtiveram para isso a licença do Estado. Concordo com que se considere o caso da medicina crucial – em comparação com qualquer outro. Entretanto, as conclusões a que chegarei são as de que os princípios liberais não justificam a necessidade de uma licença, mesmo para a prática da medicina, e que, em termos concretos, isso constitui um procedimento indesejável.”

 

 

“Declara-se, em geral, ser necessário distinguir entre a desigualdade em termos de dotação pessoal e em termos de propriedade, e entre desigualdades que se originam de riqueza adquirida. A desigualdade resultante de diferenças nas capacidades pessoais ou as originadas da riqueza acumulada pelo indivíduo em questão são consideradas apropriadas ou, pelo menos, não tão impróprias como as diferenças resultantes da riqueza herdada.

Essa distinção é insustentável. Há justificativa ética mais bem fundamentada para os altos retornos obtidos por um indivíduo que herdou de seus pais certo tipo de voz, pela qual há grande demanda, do que para os altos retornos obtidos por um indivíduo que herdou propriedade? (...)

Será que estaríamos dispostos a exigir de nós próprios e de nossos concidadãos a aceitação de uma regra como a seguinte – todas as pessoas cuja renda excedesse à média de todas as demais no mundo deveriam imediatamente dispor do excesso, por meio da distribuição, em partes iguais, por todos os habitantes do mundo? Podemos admirar e elogiar tal comportamento quando adotado por alguns poucos. Mas um procedimento universal tornaria impossível um mundo civilizado. (...)

A maior parte das diferenças de status ou posição ou riqueza raramente pode ser considerada como resultado da sorte. O homem trabalhador e econômico é qualificado de “merecedor”, entretanto ele deve suas qualidades em grande parte aos genes que teve a felicidade (ou infelicidade) de herdar.”

 

 

“É difícil para mim, como liberal, encontrar alguma justificativa para a taxação gradual em termos de pura redistribuição de renda. Parece-me um caso claro de coerção, em que se tira de uns para dar a outros, e assim se entra em conflito frontal com a liberdade individual.

Considerados todos os pontos, a estrutura de imposto de renda pessoal que me parece melhor seria um imposto uniforme sobre a renda acima do nível de isenção, com a renda definida de modo bastante amplo e as deduções permitidas apenas para despesas com a obtenção da renda, despesas essas definidas de modo bem rígido. Como já foi sugerido no capítulo V, eu combinaria esse programa com a abolição do imposto da renda para as empresas e acrescentaria a exigência de que estas atribuíssem sua renda a seus acionistas e de que os acionistas incluíssem, tais importâncias em suas declarações.”

 

 

“Após ter esclarecido as questões acima, estamos agora em condições de encarar o ponto central: a obrigação da compra das anuidades para a proteção à velhice*.

Uma justificação possível para essa obrigatoriedade é de fundo paternalista. As pessoas poderiam, se quisessem, fazer individualmente o que a lei as obriga a fazer como grupo. Mas, individualmente, são imprevidentes e incapazes. “Nós” sabemos melhor do que “elas” o que lhes é conveniente; não podemos persuadir cada uma em separado, mas podemos persuadir 51% ou mais para que obriguem todas a fazer o que é melhor para elas. Esse paternalismo se dirige a pessoas responsáveis e não tem, portanto, nem mesmo a desculpa de estar tratando com crianças ou com insanos.

Essa posição é lógica. Um paternalista convicto que a defende não poder ser dissuadido dela pela demonstração de que comete um erro de lógica. Ele está em posição contrária em termos de princípios: não se trata de um companheiro bem-intencionado que toma um caminho errado. Ele acredita basicamente em ditadura – benevolente e talvez até mesmo majoritária –, mas ditadura do mesmo modo.

Aqueles, dentre nós, que acreditam em liberdade devem crer também na liberdade dos indivíduos de cometer seus próprios erros. Se um homem prefere, conscientemente, viver o dia de hoje, usar seus recursos para se divertir, escolhendo deliberadamente uma velhice de privações, com que direito podemos impedi-lo de agir assim? Podemos argumentar com ele, tentar persuadi-lo de que está errado. Mas podemos usar a coerção para impedi-lo de fazer o que deseja fazer? Não existirá a possibilidade de que esteja ele certo, e nós errados? A humildade é a virtude que distingue o indivíduo que acredita na liberdade; arrogância é a que distingue o paternalista.”

*: Obrigação do pagamento de aposentadoria.

 

 

Liberalismo e igualitarismo

A essência da filosofia liberal é a crença na dignidade do indivíduo, em sua liberdade de usar ao máximo suas capacidades e oportunidades de acordo com suas próprias escolhas, sujeito somente à obrigação de não interferir com a liberdade de outros indivíduos fazerem o mesmo. Este ponto de vista implica a crença da igualdade dos homens num sentido; em sua desigualdade noutro. Todos os homens têm o mesmo direito à liberdade. Este é um direito importante e fundamental precisamente porque os homens são diferentes, pois um indivíduo quererá fazer com sua liberdade coisas diferentes das que são feitas por outros; e tal processo pode contribuir mais do que qualquer outro para a cultura geral da sociedade em que vivem muitos homens.

O liberal fará, portanto, uma distinção clara entre igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, de um lado, e igualdade material ou igualdade de rendas, de outro. Pode considerar conveniente que uma sociedade livre tenda, de fato, para uma igualdade material cada vez maior. Mas considerará esse fato como um produto secundário desejável de uma sociedade livre – mas não como sua justificativa principal. O liberal acolherá, de bom grado, medidas que promovam tanto a liberdade quanto a igualdade como, por exemplo, os meios para eliminar o poder monopolista e desenvolver as operações do mercado. Considerará a caridade privada destinada a ajudar os menos afortunados como um exemplo do uso apropriado da liberdade. E pode aprovar a ação estatal para mitigar a pobreza como um modo mais efetivo pelo qual o grosso da população pode realizar um objetivo comum. Dará sua aprovação, contudo, com certo desgosto, pois estará substituindo a ação voluntária pela ação compulsória.

Aquele que pensa em termos de igualdade acompanhará o liberal em todos estes casos. Mas pretenderá ir mais longe. Defenderá o direito de tirar de alguns para dar a outros, não como um meio efetivo pelo qual “alguns” poderão alcançar seu objetivo próprio, mas na base da necessidade da “justiça”. Neste ponto, a igualdade entra imediatamente em conflito com a liberdade, sendo preciso, pois, escolher. Um indivíduo não pode ser igualitário, neste sentido, e liberal ao mesmo tempo.”

 

 

“Um imposto de renda estabelecido inicialmente na base de taxas baixas e, mais tarde, utilizado como meio de redistribuição da renda em favor das classes mais baixas tornou-se simples fachada, cobrindo brechas e procedimentos especiais que tornam as taxas mais altas praticamente inúteis. Uma taxa uniforme de 23,5% sobre as rendas presentemente consideradas como tributáveis produziria o mesmo volume de arrecadação produzido pelo sistema atual de taxação graduada de 20 a 91%*. Um imposto de renda destinado a reduzir a desigualdade e a promover a difusão da riqueza teve como resultado na prática o reinvestimento dos lucros das grandes companhias, favorecendo assim o crescimento de grandes empresas, inibindo as operações do mercado de capitais e desencorajando a implantação de novas empresas.”

*: Taxa aplicada nos EUA à época.