Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-443-0320-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 276
Sinopse: Como a filosofia se posiciona em relação à
literatura? Como essas duas áreas do conhecimento dialogaram em momentos
importantes ao longo da história das ideias? Utilizando essas perguntas como
fio condutor, a presente obra investiga as relações possíveis entre a filosofia
e a literatura. Para isso, o autor apresenta, ao longo de cinco capítulos,
recortes históricos e contribuições de filósofos e literatos.
“A prosa está para
a poesia como a caminhada está para a dança.” (Paul Valéry)
“A filosofia
promove um tipo de reflexão, ou melhor, propõe uma investigação e chega a seus
resultados por via estritamente racional. Estamos falando de conhecimentos
certos e universais, alcançados com base em elementos lógicos que se juntam,
legitimando alguma conclusão. No entanto, é preciso lembrar de que a filosofia
e a poesia se unem em um aspecto importante, pois ambas representam uma forma
de discurso que podemos chamar de não vulgar. Vale a pena
ressaltar que vulgar, aqui, nada tem a ver com xingamentos ou conduta
questionável. Expliquemos o ponto. Tanto o filósofo quanto o poeta se separam
da linguagem cotidiana ou vulgar para desbravar outro reino de possibilidades:
o das essências e o da verdade. As conversações cotidianas em forma de prosa —
a mesma que o comerciante estabelece com seu comprador, que o político usa
durante seus afazeres rotineiros ou que o soldado tem com seus companheiros
militares — são exemplos de discursos vulgares: A Filosofia irá diferenciar-se
da palavra dos guerreiros e dos políticos porque possui uma pretensão
específica, herdada dos poetas [...] não deseja apenas argumentar e persuadir,
mas pretende proferir a verdade como aquilo que é o mesmo para todos (Chaui, Introdução
à história da filosofia, 2002, p. 44).
O discurso vulgar
não se preocupa com o significado último dos termos, sua origem primeira ou a
essência das coisas. Imaginemos que alguém pergunte o preço de algum produto
vendido pelo hipotético comerciante. Ele não irá questionar o cliente sobre a
essência dos números: Eles são entidades existentes por si mesmas ou
construções mentais? Um oficial do exército, por sua vez, não entrará em
pormenores sobre a essência da virtude caso tenha de punir um soldado por não
ter atendido a uma ordem direta proferida por ele. Nenhum deles, nessas
circunstâncias, se preocupará com a formação da vida e do mundo. Essas questões
que buscam pela essência ultrapassam o terreno da conversação vulgar, mas estão
no cerne da preocupação da poesia mitológica e da filosofia.”
“Para que haja
entendimento, é preciso purificar os conceitos, é preciso que saibamos o
significado do que dizemos.
Esse é um
exercício essencialmente filosófico; de fato, quando pensamos cuidadosamente
sobre o assunto, existe a possibilidade de percebermos algo inquietante: que
não sabemos de modo preciso o que significam muitas coisas sobre as quais
falamos. É o que os diálogos aporéticos
colocam em evidência de maneira exemplar. Aporia significa sem saída, algo que
termina em impasse. Um diálogo que tenha essa característica é aquele cujo fim
não acompanha uma resposta objetiva para a questão investigada. E nem sempre a
filosofia chega a respostas inquestionáveis; sua afinidade está mais ligada a
um modo rigoroso de questionar.”
“Nós queremos
chamar atenção para a passagem em que Aristóteles compara a poesia* e a
história, presente no Capítulo IX da Poética
(2011). Ele fala dos objetivos de cada um desses discursos e segue dizendo que
não é trabalho do poeta narrar retrospectivamente algo que já aconteceu, porém representar
o que poderia acontecer, ou seja, o que é possível, verossímil e também
necessário — características que aproximam o poeta do fazer filosófico. Como já
adiantamos, não é simplesmente pela estrutura do texto que o historiador e o
poeta se diferenciam, ou seja, pelo modo como o discurso se apresenta: em prosa
ou em verso. Poderíamos, vale repetir, colocar a obra de Heródoto em versos que
isso não faria dele um poeta. Mas no que, então, o poeta e o historiador se
diferem exatamente? Vejamos o que esse longo e famoso trecho do livro diz:
Do que foi dito, também fica evidente que não
é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim daquilo que
poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou da necessidade. O
historiador e o poeta não se diferenciam pelo fato de um usar a prosa e o
outro, versos. A obra de Heródoto poderia ser versificada, o que não seria
menos obra de história, estando a métrica presente ou não. A diferença está no
fato de o primeiro relatar o que aconteceu realmente, enquanto o segundo, que
poderia ter acontecido. Consequentemente, a poesia é mais filosófica e mais
séria do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal ao que a
história se restringe ao particular. (Aristóteles, 2011, p. 55)
Descrita como
sendo mais elevada e mais filosófica do que a história, a poesia ganha um
estatuto, como estamos vendo, diferente daquele que encontramos no Livro X da
obra A República. Para Aristóteles, o poeta não nos ilumina sobre o
passado como o historiador faz muito bem, dizendo como as coisas aconteceram em
um momento por vezes remoto. O poeta nos ensina sobre nós mesmos, como
indivíduos humanos; ele não fala do ocorrido, mas sobre como as coisas poderiam
acontecer, Diferença fundamental. Os personagens da tragédia, desse modo, devem
ser encarados como emblemáticos, no sentido em que são arquétipos ou tipos
humanos e por isso guardam em si a mesma universalidade que o discurso
filosófico. Isso não quer dizer que este discurso seja idêntico ao poético. Longe
disso. Nesse ponto, estamos mais uma vez de acordo com Marilena Chaui, quando
diz que A poesia, ao contrário da Filosofia, não é um conhecimento teórico da
natureza humana, mas imita ações e sentimentos, feitos e virtudes, situações e
vícios dos seres humanos (Chaui, 2002, p. 483). A poesia não trabalha com
conceitos nem tem afinidades com cosmologias; ela é imitativa, porém, é um tipo
de imitação cuja pretensão de universalidade a aproxima da atividade
filosófica. Guardada a diferença entre filosofia e poesia, importa insistir
sobre o seguinte ponto: a poesia tem, sim, uma pretensão que a aproxima da
atividade filosófica – atingir o universal, o que a diferencia do trabalho do
historiador. Universal aqui é entendido como manifestação de tipos
humanos ou, se preferirmos, uma categoria universal do humano. Uma tragédia
como Édipo rei (Sófocles, 2015) por exemplo, ainda que fale
do indivíduo Édipo e dele narre as aventuras, trata de algo mais amplo do que a
individualidade do personagem, ou seja, do destino humano.
O personagem
aparece na poesia como trampolim para que a narração tenha uma forma específica
e atinja o público em suas emoções, porém, esse mesmo personagem é o mote para
que o universal se manifeste. O historiador, por seu lado, fala simplesmente de
indivíduos, isto é, fica restrito ao âmbito particular. Ele nos fala de Alcibíades,
Péricles ou Demóstenes, mas somente com base em seus feitos, índole e
relevância de cada um deles para a história. Já o poeta usa um homem específico
para tratar de algo mais amplo e filosófico. Eis a diferença central entre
poesia e história.”
*: Quando nos
referimos à poesia na Grécia arcaica isso não quer dizer que falamos de uma
atividade poética que se assemelhe àquela que vemos nos dias de hoje. Perceba,
por exemplo, que enquanto arte imitativa, a pintura, a música e o teatro também
serão considerados por Aristóteles como poesia (poiesis). O teatro usará
gestos, a música utilizará o ritmo, a dança tanto o ritmo quanto o gesto e a
escultura, por fim, as formas e as cores: tudo isso será tido por poesia.
“O romance tem uma
linguagem e uma verdade que lhes são específicas; ele fala algo que só pode ser
transmitido pelas especificidades que lhes são únicas: nunca deixarei de
repetir que a única razão de ser do romance é dizer aquilo que apenas o romance
pode dizer (Kundera, A arte do romance, 2009, p. 40). Estamos falando de
um discurso que se filia à imaginação, se insere na existência ficcional de um
personagem ou, de acordo com Milan Kundera, exercita um tipo de meditação que é
de caráter hipotético, imaginativo:
Existe uma diferença fundamental entre a
maneira de pensar de um filósofo e a de um romancista. Fala-se frequentemente
da Filosofa de Tchekhov, de Kafka, de Musil etc. Mas experimente extrair uma
Filosofia coerente de seus escritos! Mesmo quando exprimem diretamente suas
ideias em seus livros, essas são mais exercícios de reflexões, jogos de
paradoxos, improvisações que a afirmação de um pensamento. (Kundera, 2009, p. 77)
Essa parece ser a
mesma oposição explicitada por Paul Valéry (Variedades, 1999), ainda que
ele não seja adepto dela. Pensamento abstrato de um lado e, no outro polo, o
pensamento lírico. O romance, segundo Kundera, não seria lugar para
disseminação de ideias filosóficas nem para a defesa de teses teóricas que se
pretendam universais. Agora temos argumentos suficientes para dizer que o
romanesco enfrenta o mundo como uma ambiguidade, como um modo de explicitar a
vivência de um personagem em toda sua contradição: essa é sua especificidade.
Não temos uma atmosfera propícia para a argumentação inequívoca que esperamos,
como é natural no caso da filosofia, por uma conclusão apoiada em premissas
previamente aceitas.
Kundera, ademais,
é radicalmente contra a literatura como ferramenta política. No seu dicionário
de termos, de fato, podemos ler no verbete ideia: A aversão que experimento por
aqueles que reduzem uma obra a suas ideias. O horror que tenho de ser arrastado
ao que se denomina ‘debates de ideias’. O desespero que me inspira a época
obscurecida pelas ideias, indiferente às obras (Kundera, 2009, p. 123). Note
que a afirmação citada não usa argumentação lógica para defender algum ponto. O
autor recorre repetidamente a sentimentos particulares para expor sua posição:
ele fala em aversão, horror e até mesmo desespero, termos usados para mostrar
como ele percebe a intromissão de teses que podemos chamar de filosóficas em
uma obra romanesca.
O adversário do
autor, por assim dizer, parece ser a perspectiva daquele que percebe na
literatura algum grau de engajamento legítimo que a lançaria para além da arte.
Ainda segundo o dicionário de termos de Kundera, especificamente no verbete misomusa,
lemos que sujeitar a arte à política seria um modo de manifestação de ódio para
com ela; em outras palavras, seria uma forma de reduzi-la. A doutrina da arte
engajada: a arte como meio de uma política. Professores para quem uma obra de
arte não é senão um pretexto para o exercício de um método (psicanalítico,
semiológico, sociológico etc.) (Kundera, 2009, p. 131).
Preservar o
aspecto estético da linguagem romanesca é evitar sujeitá-la à prática política,
é deixá-la aberta para a imaginação e o sonho que, de fato, em muitos casos
pode mesmo preceder e motivar o sentido de uma obra de romance. O leitor não
pode exigir da investigação existencial romanesca quaisquer respostas
argumentadas ou passos lógicos que orientaram de modo rígido a exposição de
alguma tese universal. O caso é outro: É preciso, portanto, ler essa narrativa
(a romanesca) deixando-se transportar pela imaginação. Sobretudo não como um
enigma a decifrar. Foi esforçando-se para decifrá-lo que os kafkólogos mataram
Kafka (Kundera, 2009, p. 124). Esse assassinato simbólico não foi da pessoa,
naturalmente, mas do romancista. Os especialistas dos textos de Kafka
constrangeram sua produção literária e acabaram por reduzi-la a uma mera
exposição de ideias, algo que ela não poderia comportar e, segundo a maneira de
ver de Kundera, essa aproximação com a filosofia significa o aniquilamento do
romance.”
“O filósofo
posiciona-se como um juiz e confere valor, articula conceitualmente a realidade
e tem um olhar sistemático sobre o mundo. O poeta trabalha com o ambíguo, é
criador de fantasias e não se insere em um sistema. Caberia à literatura o
papel do entretenimento estético, sem a sistematicidade exigida em um discurso
lógico universalizante.
Razão de um lado e
imaginação de outro: eis o que separaria inequivocamente esses dois tipos de
discurso. Citando Antoine Compagnon (2012, Literatura para quê? p. 64):
A Literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os
discursos filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às
emoções e à empatia. O esquema a seguir mostra as diferenças estruturais,
segundo a perspectiva disjuntiva, entre esses dois termos.”
Quadro 3.1 – Características específicas
segundo a perspectiva disjuntiva |
|
Filosofia |
Literatura |
Universalidade |
Particularidade |
Razão |
Imaginação |
Conceitos |
Figuras de
linguagem |
“3.5 – Caio
Prado Junior e o objeto da filosofia
Caio Prado Junior,
no livro O que é filosofia?, apesar de aceitar a relação entre filosofia
e literatura, separa as duas ciências. A primeira, para ser mais pura, deveria
investigar o que ele chama de objeto último e profundo da especulação
filosófica para o qual converge e onde se concentra a variegada problemática de
que a Filosofia vem através dos séculos e em todos os lugares se ocupando
(Prado Junior, 1991, p. 8). Que objeto é esse com o qual deveria se ocupar a
Filosofia? O conhecimento do conhecimento. Devemos nos explicar melhor. O
objetivo dessa atividade, para o autor, seria uma investigação conceitual,
tendo como enfoque o mesmo objeto das ciências, mas, diferente da física ou da
química, é predominantemente teórico e busca ele mesmo explicitar em sua
completude ideias que orientam nossa experiência e mesmo o fazer científico.
Se o historiador
se interessa por um acontecimento que tomou lugar em certo tempo, o filósofo,
diferentemente, se perguntará sobre o estatuto do tempo. Se o físico e o
químico estudam os componentes da natureza, para Caio Prado Junior, o filósofo
voltará sua atenção para o modo como chegamos ao conhecimento das coisas.
Estamos diante de um olhar que se interessa pelo essencial, o originário. Se o
poeta, enfim, fala do amor tal qual ele entende, talvez até de maneira contraditória,
o filósofo, como estamos vendo, terá preferência pela origem das emoções. Esses
seriam exemplos de questões filosóficas por excelência. Características que
limitam a produção desse ramo do conhecimento a um estudo eminentemente
conceitual epistemológico. Não à toa, ética e filosofia política não são
contempladas suficientemente pelo livro citado.”
“Já para o
filósofo francês Jean-Paul Sartre, a literatura não poderia ficar isolada de
seu contexto sociopolítico. Vejamos brevemente sua posição, pois, ao que
parece, se contrapõe diretamente àquela de Milan Kundera. No ensaio Que é
literatura?, Sartre (2004) estabelece sua posição sobre o tema. (...)
Seria mesmo
difícil, para Sartre, falar em literatura não engajada, isso porque todos
estaríamos, de alguma maneira, comprometidos com a realidade que nos cerca: O
homem é o ser em face de quem nenhum outro ser pode manter a imparcialidade,
nem mesmo Deus. Pois Deus, se existisse; estaria, como bem viram certos
místicos, em situação em relação ao homem (Sartre, 2004, p. 21). Toda pessoa,
portanto, uma vez inserida em certo ambiente sociocultural, se engaja em uma
relação com outras pessoas. O mesmo se passa com a literatura.
A literatura tem
uma função social, e a produção resultante dela pode ser caracterizada como uma
forma de apelo, um comunicado, e justamente por isso é uma forma de
engajamento. O escritor deve confrontar sua própria época colocando-se, dessa
maneira, em relação ao seu tempo. Sem tirar todas as implicações do pensamento
de Sartre, podemos dizer que o escritor, no momento mesmo em que se dispõe a
escrever algo, que se coloca na situação de comunicante, enfim, é revestido de
engajamento político. Mesmo deixar de dizer, nesse quadro, é tomar uma posição
em relação ao mundo: Mas desde já podemos concluir que o escritor decidiu
desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que
estes assumam em face do objeto, assim posto a nu, a sua inteira
responsabilidade (Sartre, 2004, p. 21).
Sartre segue
dizendo, duas páginas adiante da citação anterior, marcando ainda mais sua
posição, que arte pura e arte vazia seriam sinônimas. Ninguém escreve um livro
para não falar de nada. O caso é que não podemos fugir do engajamento com o
mundo; à força ou de bom grado todo escritor está engajado (Sartre, 2004, p.
53). A ele, portanto, cabe o enfrentamento de sua tarefa. O autor não pode
escapar para o reino do lirismo, fingindo que não precisa se comprometer com a
realidade e os outros homens. Em uma sentença lapidar, Sartre afirma como
escritor e para os escritores que Nosso papel está definido: enquanto
negatividade, a Literatura questionará a alienação do trabalho; enquanto
criação e superação, apresentará o homem como ação criadora e o acompanhará em
seus esforços para superar a alienação presente, rumo a uma situação melhor
(Sartre, 2004, p. 173).”
“Quem nunca ouviu
alguém dizer que sobre religião, política e futebol não se discute? Contudo,
essa postura não parece filosófica, pois se esconde sem dar a chance de
conhecer o diferente, sem promover uma autocrítica motivada pelo que é distinto
de nós mesmos.”
“É pelo olhar do
outro que a verdade melhor pode irromper para mim mesmo.”
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