quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Os Fundamentos da Liberdade (Parte I) – Friedrich A. Hayek

Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Este livro é uma daquelas obras notáveis que se pode ler começando da primeira página ou que pode ser compulsada como se faz com um bom dicionário ou com a própria Bíblia, abrindo-se para lê-la em qualquer parte. O título do original em inglês, The Constitution of Liberty, poderia ser literalmente traduzido para o português como A Constituição da Liberdade ou então como Os Fundamentos da Liberdade.



“As obras de Hayek, principalmente as que se referem à filosofia política, constituem essencialmente um só bloco de grande coerência conceitual. Elas apresentam, de forma honesta, bem temperada, penetrante e abrangente, quatro propostas básicas.
Em primeiro lugar, que as instituições que constituem a base da sociedade brotam da ação humana, mas não dos planos ou da ação deliberada dos homens; e portanto as tentativas de planejamento ou ‘organização’ da sociedade são fatais para seu sucesso.
Em segundo lugar, que numa sociedade livre a lei é fundamentalmente natural, não é fabricada; de modo que, normalmente, ela não constitui a projeção da simples vontade dos governantes, sejam eles reis ou maiorias democráticas. A lei é uma norma geral de conduta, igual para todos e aplicável a número desconhecido de casos futuros, abstraídos, portanto, de quaisquer circunstâncias específicas de tempo e de lugar e referindo-se apenas a condições que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo.
Em terceiro lugar, que o Estado de Direito não somente constitui o primeiro e mais importante princípio da sociedade livre, mas também depende das duas condições acima citadas. O Estado de Direito é não só um ‘estado de legalidade’, mas, muito mais que isso, pressupõe o princípio da liberdade individual e exige que a lei possua esses atributos de norma geral, igual para todos, abstrata e prospectiva.
Em quarto lugar, que o Estado de Direito exige que os homens sejam tratados com igualdade, mas o Estado de Direito, além de não exigir que os homens sejam igualados, também será minado por qualquer tentativa neste sentido.”
(Henry Maksoud)


“Mais do que outros especialistas, o economista sabe que a mente humana não consegue apreender todo o conhecimento que orienta as ações da sociedade e está consciente, portanto, da consequente necessidade de um mecanismo impessoal, independente de julgamentos humanos individuais, que coordene os esforços de cada um.”


“É certo que ser livre pode significar liberdade de morrer de fome, de cometer erros que redundarão em perdas ou, ainda, de correr riscos mortais. No sentido em que empregamos a palavra, o mendigo sem vintém que leva uma vida precária, baseada na constante improvisação, é, realmente, mais livre que o conscrito com toda sua segurança e relativo conforto.”


“Poder-se-ia dizer que a civilização começa quando o indivíduo, na busca de seus objetivos, utiliza um volume de conhecimentos muito maior do que o adquirido por ele próprio, podendo transcender os limites de sua ignorância recorrendo a um conhecimento que não possui.”


“O funcionamento do processo exige que cada indivíduo possa agir conforme seu conhecimento pessoal, sempre inimitável, pelo menos no que se refere a certas circunstâncias específicas, e que seja capaz de utilizar suas aptidões e oportunidades, dentro dos limites que conhece e visando a seus próprios objetivos individuais.”


“O homem aprende pela frustração de suas esperanças. É óbvio que não devemos aumentar a imprevisibilidade dos acontecimentos com a criação de tolas instituições humanas. Na medida do possível, deveríamos eleger como objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de aumentar as possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo, deveríamos proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não conhecemos aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e utilizassem este conhecimento em suas ações.
É graças aos esforços harmônicos de muitas pessoas que se pode utilizar uma quantidade de conhecimento maior do que aquela que um indivíduo isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é que se tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada poderia prever. É justamente porque liberdade significa renúncia ao controle direto dos esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso de um volume muito maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais sábio governante poderia abranger.”


“A liberdade utilizada apenas por um homem entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais benéfica para a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós poderíamos desfrutar.”


“É absurda a ideia de que nosso conhecimento nos permite deduzir leis necessárias de evolução às quais deveríamos obedecer. A razão humana não pode predizer nem moldar seu próprio futuro. Suas conquistas consistem em descobrir seus erros.”


“Das convenções e costumes inerentes às relações humanas, as normas morais são as mais importantes, mas não representam absolutamente os únicos elementos significativos. Conseguimos comunicar-nos e relacionar-nos uns com os outros, somos capazes de executar nossos planos com êxito, porque, quase sempre, os membros de nossa civilização se atêm a padrões inconscientes de conduta e mostram em suas ações uma regularidade que não é resultado de ordens ou coerção – frequentemente, nem mesmo de observância consciente a normas conhecidas – mas de hábitos e tradições firmemente arraigados. A observância geral de tais convenções é condição necessária para a ordem do mundo em que vivemos, para que possamos encontrar nosso caminho, embora não nos demos conta de sua importância e talvez nem estejamos conscientes de sua existência. Em alguns casos, seria necessário, para o bom funcionamento da sociedade, garantir uma uniformidade semelhante por meio da coerção, sempre que tais convenções e regras não fossem obedecidas com a frequência adequada. Às vezes, a coerção pode, então, ser evitada apenas porque existe um alto grau de conformidade voluntária, o que significa que a conformidade voluntária pode ser uma condição para que a liberdade possa produzir resultados benéficos.”


“Uma sociedade que não reconhece a cada indivíduo valores próprios pelos quais ele tem o direito de se pautar não terá nenhum respeito pela dignidade do indivíduo e realmente não sabe o que é liberdade. Mas também não é menos verdade que em uma sociedade livre um indivíduo será respeitado de acordo com o uso que ele fizer de sua liberdade. O apreço moral não teria sentido se não houvesse liberdade: “Se cada ação, boa ou má, de um homem maduro, dependesse da permissão, da prescrição e da coerção, o que seria a virtude senão uma palavra, que elogio caberia à boa ação, que honra haveria em ser sensato, justo, ou continente?”146 Liberdade é uma oportunidade de fazer o bem, mas isso só ocorre quando também é uma oportunidade de fazer o mal. Uma sociedade livre se tornará viável somente se os indivíduos se deixarem, de alguma maneira, pautar por valores comuns. É, talvez, por isso que os filósofos definiram algumas vezes a liberdade como ação em conformidade com normas morais. Mas essa definição de liberdade é a negação daquela liberdade de que estamos tratando. A liberdade de ação que é condição do mérito moral inclui a liberdade de errar: elogiamos ou criticamos o indivíduo somente quando ele tem a possibilidade de escolher, quando ele cumpre as normas por ser exortado e não compelido a fazê-lo.”
146: John Milton, Areopagitica (Edições “Everyman” [Londres, 1927]), página 18. O conceito pelo qual o mérito moral depende da liberdade já foi assinalado por alguns filósofos escolásticos e posteriormente, de modo especial, pela literatura “clássica” alemã (ver por ex. F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man [New Haven: Yale University Press, 1954], página 74: “Para ser capaz de ação, o homem deve ser antes livre”).


“A igualdade estabelecida pelas normas legais e de conduta gerais é, todavia, a única forma de igualdade que conduz à liberdade e a única que podemos obter sem destruir a liberdade. A liberdade não só não tem relação alguma com qualquer outro tipo de igualdade como também tende, em muitos casos, a produzir desigualdade. Isto constitui a consequência necessária e, em parte, a justificativa da liberdade individual; se os efeitos da liberdade individual não demonstrassem que certos modos de vida levam a resultados melhores do que outros, provavelmente seria impossível justificá-la.”


“Não é correto afirmar, no sentido factual, que “todos os homens nascem iguais”. Podemos continuar usando esta frase consagrada para exprimir o ideal de que, de um ponto de vista legal e moral, todos os homens deveriam ser tratados com igualdade. Mas, para compreender o que esse ideal pode ou deve significar, devemos primeiramente libertar-nos da crença em qualquer igualdade factual. (...)
A função da família, que consiste em transmitir modelos e tradições, está estreitamente vinculada à possibilidade de transmitir bens materiais. E é difícil entender como a limitação do progresso material a uma única geração poderia servir aos verdadeiros interesses da sociedade.”


“Seria irracional negar que uma sociedade poderá criar uma elite melhor se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar.”


“Num sistema livre não é nem conveniente nem praticável que as recompensas materiais correspondam àquilo que os homens entendem por mérito, e que uma sociedade livre se caracteriza pelo fato de que a posição de um indivíduo não deve depender, necessariamente, da opinião que os outros têm sobre o mérito por ele conquistado.”


“Na medida em que pretendemos que os indivíduos orientem suas ações de acordo com seus próprios pontos de vista no que concerne às suas expectativas e oportunidades, os resultados são necessariamente imprevisíveis e a questão da justeza da consequente distribuição da renda deixa de fazer qualquer sentido.168
168: Ver a interessante análise em R. G. Collingwood, “Economics as a Philosophical Science”, Ethics, Vol. XXXVI (1926), que conclui (página 174): “Um preço justo, um salário justo, uma justa taxa de juro são uma contradição em termos. A ideia de que uma pessoa deve receber determinada quantia em troca de seus bens e trabalho é uma questão totalmente desprovida de significado. As únicas questões realmente válidas são o que ela pode obter em troca de seus bens ou trabalho, e se ela deveria realmente vendê-los”.


“O oposto de democracia é governo autoritário; o de liberalismo é totalitarismo. Nenhum dos dois sistemas exclui necessariamente o oposto do outro: a democracia pode exercer poderes totalitários, e um governo autoritário pode agir com base em princípios liberais.*”
*: Cf também H. Kelsen, “Foundations of Democracy”, Ethics, LXVI (1955), 3: “É importante ter em mente que os princípios da democracia e do liberalismo não são idênticos e que há mesmo certo antagonismo entre os dois”.


“Enquanto o liberalismo é uma das doutrinas referentes ao âmbito de ação e à finalidade do governo entre as quais a democracia tem de escolher, a democracia, por ser um método, não diz respeito aos objetivos do governo. Embora a palavra “democrático” seja frequentemente usada, hoje, para definir determinados objetivos no campo da política que são populares, particularmente certos objetivos igualitários, não existe uma relação necessária entre democracia e uma teoria que diga como devem ser usados os poderes da maioria. Para saber o que queremos que os outros aceitem, precisamos de outros critérios, além da opinião corrente da maioria, que constitui um fator irrelevante no processo de formação da opinião.”


“Há pelo menos dois aspectos em que é quase sempre possível ampliar a democracia: a gama de indivíduos com direito ao voto e a gama de questões decididas por processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos pode-se afirmar coerentemente que toda ampliação possível da democracia implica uma conquista, ou que o princípio da democracia exige sua ampliação indefinida.”


“Não se pode dizer que a igualdade perante a lei exige necessariamente que todos os adultos tenham direito de votar; o princípio continuaria vigorando se a mesma norma impessoal fosse aplicada a todos. Se somente as pessoas acima de quarenta anos, ou só os que percebem algum tipo de renda,176 ou só os chefes de família, ou as pessoas com um nível mínimo de escolaridade tivessem direito ao voto, isto não constituiria violação maior do princípio do que as restrições normalmente aceitas.
As pessoas mais sensatas podem também argumentar que seria mais coerente, do ponto de vista do ideal da democracia, se aos funcionários do governo ou a todos os que vivem de subvenções governamentais fosse vedado o voto. Ainda que o sufrágio universal pareça a melhor solução no mundo ocidental, isto não prova que algum princípio básico o imponha. (...)
Estas observações têm por fim exclusivo mostrar como nem o mais dogmático dos democratas pode afirmar que toda e qualquer ampliação da democracia é um bem. Independentemente do peso dos argumentos a favor da democracia, ela não é um valor último, ou absoluto, e deve ser julgada pelo que realizar. Ela constitui provavelmente o melhor método para a consecução de certos fins, mas não é um fim em si mesma. Embora o método democrático de decisão pareça o mais recomendável quando uma ação coletiva é obviamente necessária, a decisão relativa à conveniência ou não de se ampliar o controle coletivo deve ser tomada com base em outros princípios que não os da democracia em si.”
176: É bom lembrar que na mais antiga e mais estável democracia europeia, a Suíça, às mulheres ainda é vedado o voto, aparentemente com a aprovação da maioria delas. Também parece plausível que, em condições primitivas, somente o sufrágio limitado, por exemplo, aos proprietários de terra, permitiria a constituição de um Legislativo suficientemente independente do governo para exercer efetivo controle sobre este.


“Se a democracia é antes um meio do que um fim, seus limites devem ser determinados à luz do propósito ao qual queremos que ela sirva. Há três argumentos principais pelos quais é possível justificar a democracia, podendo-se considerar cada um deles definitivo. O primeiro é que, quando se faz necessário que prevaleça uma entre várias opiniões discordantes, mesmo que se tenha de recorrer à força, sempre causa menos dano determinar qual das opiniões tem maior apoio pela contagem numérica do que pela luta. A democracia é o único método de mudança pacífica que o homem descobriu até hoje.181
O segundo argumento, historicamente o mais importante, e que, apesar das dúvidas acerca de sua atual validade, ainda tem considerável relevância, é que a democracia representa uma valiosa garantia da liberdade individual. Disse um escritor do século XVII que “o melhor aspecto da democracia é a liberdade e a coragem e a capacidade de iniciativa que a liberdade engendra”. 182 Tal concepção reconhece, é claro, que democracia ainda não é liberdade; apenas afirma que é a forma de governo com maior probabilidade de gerar liberdade do que outras. Pode-se considerar este ponto de vista bastante válido quanto à prevenção da coerção exercida por certos indivíduos sobre outros: não é benéfico para a maioria que alguns indivíduos tenham o poder de coagir arbitrariamente. Entretanto, a proteção do indivíduo contra a ação coletiva da própria maioria é outra questão. Mesmo neste caso, pode-se argumentar que, como na realidade o poder coercitivo sempre será exercido por poucos, é menos provável que se abuse dele se o poder delegado a poucos sempre puder ser revogado por aqueles que a ele têm de se submeter. Mas, embora a probabilidade de a liberdade individual sobreviver seja maior em uma democracia do que em outras formas de governo, não quer dizer que esteja automaticamente assegurada. A liberdade só se transformará em realidade se a maioria decidir torná-la seu objetivo. A liberdade dificilmente sobreviveria se confiássemos na mera existência da democracia para preservá-la. O terceiro argumento fundamenta-se na possibilidade de as instituições democráticas promoverem maior entendimento dos assuntos públicos pela população. Este me parece o mais convincente.”
181 Ver J.F. Stephen, Liberty, Equality, Fraternity (Londres, 1873), página 27: “Concordamos em medir forças contando cabeças, e não quebrando cabeças. (...) Não é o lado mais sábio que vence, e sim aquele que, no momento, mostra a superioridade de sua força (e um de seus elementos é, indubitavelmente, a sabedoria) ao conquistar a maior solidariedade. A minoria não cede porque se convence de que está equivocada, mas porque se convence de que é minoria”. Cf. também L. von Mises, Human Action (New Haven: Yale University Press, 1949), página 150: “Para assegurar a paz interna, o liberalismo visa ao governo democrático. A democracia não é, portanto, uma instituição revolucionária; ao contrário, ela é o único meio de impedir as revoluções e guerras civis. Ela oferece um método de ajustamento pacífico do governo à vontade da maioria”. Ver também K. R. Popper, “Prediction and Prophecy and Their Significance for Social Theory”, Proceedings of the 10th International Congress of Philosophy, I (Amsterdam, 1948), especialmente página 90: “Pessoalmente, chamo ao tipo de governo que pode ser destituído, sem se recorrer à violência, ‘democracia’; ao outro, ‘tirania’ ”.
182: Sir John Culpepper, An Exact Collection of All the Remonstrances, etc. (Londres, 1643), página 266.


“Democracia é, acima de tudo, um processo de formação da opinião. Sua principal vantagem não está no método de seleção dos governantes, mas no fato de que, como a maioria dos habitantes toma parte ativa na formação da opinião, consequentemente aqueles podem ser escolhidos entre grande número de pessoas. É possível admitir que a democracia não confia o poder aos mais sábios e mais bem informados e que as decisões de um governo de elite seriam talvez mais benéficas à comunidade; mas não quer dizer que devemos deixar de preferir a democracia. É em seus aspectos dinâmicos, e não em seus aspectos estáticos, que se revela o valor da democracia. Os benefícios da democracia, assim como os da liberdade, só transparecem a longo prazo, e seus resultados imediatos podem até ser inferiores aos de outras formas de governo.”


“A ideia de que a democracia não proporciona apenas um método para a solução das divergências de opinião quanto à linha de ação a ser adotada, mas também um padrão para definir qual será a opinião adotada, já alcançou repercussões de amplas consequências. Em particular, contribuiu para criar graves equívocos em torno do que é uma verdadeira lei e que leis deveremos adotar. Para que a democracia seja viável, dois pontos são igualmente importantes: que o primeiro conceito possa ser sempre averiguado e que o segundo possa sempre ser questionado. As decisões da maioria mostram o que as pessoas querem em dado momento, mas não o que seria seu interesse querer, se estivessem mais bem informadas; e, a menos que pudessem ser modificadas pela persuasão, não teriam nenhum valor. Democracia pressupõe que qualquer opinião minoritária possa tornar-se majoritária.
Nem seria preciso enfatizar esta ideia, se, às vezes, não se apontasse como dever do democrata, e em especial do intelectual democrático, aceitar os pontos de vista e os valores da maioria. Sem dúvida, convencionou-se que os pontos de vista da maioria devem prevalecer em termos de ação coletiva, mas isto não significa, de modo algum, que não se deva fazer todo o esforço para mudá-los. Pode-se ter profundo respeito por essa convenção e, ao mesmo tempo, muito pouco pela sabedoria da maioria. Nossos conhecimentos e compreensão evoluem justamente porque alguns sempre discordam da opinião da maioria. No processo de formação da opinião, é muito provável que, quando uma opinião qualquer se torna majoritária, já não seja a melhor: alguém já estará um passo adiante da posição que a maioria acabou de alcançar.185 É por não sabermos ainda qual das inúmeras opiniões provará ser a melhor que esperamos até uma delas ganhar consenso suficiente.
A ideia de que as realizações de todos devem guiar-se pela opinião da maioria, ou de que a sociedade é melhor ou pior segundo seu grau de conformidade com os padrões majoritários, é, na verdade, o inverso do princípio que tem regido a evolução da civilização. Adotá-la levaria, provavelmente, à estagnação e até à decadência da civilização. O progresso se dá quando a minoria convence a maioria. Antes de tornar-se comuns à maioria, as novas opiniões surgem necessariamente da minoria, pois não há experiência ao nível da sociedade como um todo que não tenha sido antes a experiência de alguns indivíduos. Tampouco o processo de formação da opinião da maioria, basicamente ou em sua totalidade, resulta de discussão, como a concepção ultraintelectualizada daria a entender. É relativamente válido afirmar que democracia é o governo por meio do debate, mas isso só se aplica ao último estágio do processo pelo qual são testados os méritos de posições e tendências alternativas. Embora essencial, o debate não é o processo principal pelo qual o povo aprende. As opiniões e desejos do povo são formados por indivíduos que agem visando a seus próprios objetivos; e o povo se beneficia do que outros aprenderam mediante a experiência individual. A opinião pública não avançará a não ser que alguns indivíduos tenham um conhecimento maior e melhores condições de convencer os demais. É justamente porque, em geral, desconhecemos quem tem um conhecimento maior, que deixamos a decisão a um processo que não controlamos. No entanto, a maioria acaba sempre se aperfeiçoando graças a uma minoria que se comporta de maneira diferente daquela que a maioria prescreveria.”
185 Hoje, a expressão “liberdade civil” parece ser utilizada principalmente em relação aos exercícios de liberdade individual, que são de importância essencial para o funcionamento da democracia, como a liberdade de expressão, de reunião e de imprensa - e, nos Estados Unidos, em particular com referência às oportunidades garantidas pela Declaração de Direitos. O próprio termo “liberdade política” tem sido usado ocasionalmente para definir, em particular em contraposição à expressão “liberdade interior”, não a liberdade coletiva para a qual o empregaremos, mas a liberdade pessoal. Embora, porém, este uso tenha a sanção de Montesquieu, hoje só pode gerar equívocos.


“Se a política é a arte do possível, a filosofia política é a arte de tornar politicamente possível o aparentemente impossível.”
(H. Schoeck, “What Is Meant by ‘Politically Impossible’?”)


“Para o intelectual, dobrar-se a certas convicções só porque são aceitas pela maioria constitui traição, não apenas à sua missão peculiar, mas também aos valores da própria democracia.*”
*:Cf. a observação de A. Marshall (Memorials of Alfred Marshall, ed. por A.C. Pigou [Londres, 1925], página 89) de que “os estudiosos das ciências sociais devem ter receio do apoio popular: infeliz daquele de quem todos falam bem! Se um jornal pode aumentar as vendas por defender certas opiniões, o estudioso que ambiciona tornar o mundo, em geral, e seu país, em particular, melhor do que seria se ele não tivesse nascido, deve apontar fatalmente as limitações, defeitos e erros destas opiniões: e não deve nunca apoiá-las incondicionalmente, nem mesmo em um debate sobre elas. É quase impossível que um estudioso consiga ser um verdadeiro patriota e, ao mesmo tempo, ser respeitado como tal, em sua própria época”.


“A importância do proprietário individual de considerável soma de recursos não está, entretanto, no simples fato de sua existência ser condição essencial para a preservação da estrutura de iniciativas competitivas. O indivíduo que dispõe de recursos próprios é uma figura ainda mais importante para uma sociedade livre quando não se dedica exclusivamente a utilizar seu capital com a intenção de obter ganhos materiais, mas usa-o em favor de objetivos que não trazem retorno material. (...)
A liderança de indivíduos ou grupos que podem dar respaldo financeiro a suas ideias é particularmente essencial no campo da cultura, das artes, da educação e pesquisa, na preservação das belezas naturais e dos tesouros históricos e, acima de tudo, na divulgação de novas ideias políticas, morais e religiosas. Para que as opiniões da minoria possam tornar-se as opiniões da maioria, é necessário não apenas que os homens já detentores de prestígio junto à maioria possam tomar iniciativas, mas também que os representantes de todas as posições e tendências divergentes tenham condições de apoiar, com seus meios e sua energia, ideais ainda não compartilhados pela maioria.
Se porventura não descobríssemos maneira mais apropriada de apoiar financeiramente tais grupos, seria justificável que escolhêssemos, ao acaso, um entre cem ou mil e lhe oferecêssemos os meios para que pudesse perseguir o objetivo que ele se propusesse. Na medida em que gostos e opiniões em geral fossem representados, e todo tipo de interesse tivesse sua oportunidade, isso valeria a pena, ainda que, dessa pequena parcela da população, apenas um em cem, ou em mil, utilizasse a oportunidade de forma que, futuramente, fosse julgada benéfica. Na seleção permitida pelo processo de herança, que em nossa sociedade produz de fato tal situação, há ao menos a vantagem (mesmo que não levemos em conta a probabilidade da transmissão do talento) de aqueles que receberam essa oportunidade especial terem, geralmente, sido educados para isso, num ambiente em que os benefícios materiais da riqueza são um dado corriqueiro e, por isso, deixaram de constituir a fonte principal de satisfação. Os prazeres menos refinados com que os novos-ricos frequentemente se satisfazem não costumam atrair aqueles que herdaram riqueza. Se é válido afirmar que o processo de ascensão social deveria, em alguns casos, estender-se por várias gerações, e se admitimos que algumas pessoas não deveriam precisar dedicar a maior parte de seu tempo e energia ao seu sustento, mas a um objetivo previamente escolhido, então não podemos negar que a herança é, provavelmente, a melhor forma de seleção que conhecemos.
Entretanto, os ricos só podem desempenhar esta função quando a comunidade não considera a única missão de indivíduos abastados investir e aumentar seu capital, e quando a classe alta não se compõe exclusivamente de homens que se preocupam apenas com o emprego lucrativo de seus recursos. Em outras palavras: é absolutamente necessário tolerar a existência de um grupo de ricos ociosos – ociosos não no sentido de que não fazem nada de útil, mas no sentido de que seus objetivos não são inteiramente pautados pelo interesse de ganho material. Se a maior parte das pessoas precisa trabalhar para ganhar seu pão, disto não decorre ser menos recomendável que algumas não devam ter de fazê-lo, que possam perseguir objetivos não apreciados pelas demais. (...)
O fato de apenas alguns indivíduos terem essa oportunidade não significa que deixe de ser recomendável.197
Por outro lado, também é verdade que, embora os gastos extravagantes de alguns repugnem aos demais, dificilmente podemos ter certeza de que, em determinadas circunstâncias, até a mais absurda experiência de vida não possa produzir resultados benéficos em geral. Não deve surpreender que a vida num novo contexto de possibilidades leve, a princípio, a uma ostentação despropositada. No entanto, não tenho dúvidas – ainda que, ao dizer isso, me esteja expondo a zombarias – de que a própria fruição do ócio exige certo pioneirismo e de que devemos muitas das formas de vida, hoje comuns, a pessoas que dedicaram todo o seu tempo à arte de viver;201 muitos jogos e equipamentos esportivos que se tornaram posteriormente instrumentos de recreação das massas foram inventados por playboys.”
197: (...) Ainda que a “mais generosa das bênçãos terrestres, a independência” (como a chamou Edward Gibbon em sua Autobiography [Edição “World’s Classics”), página 176), seja um “privilégio”, no sentido de que apenas alguns podem possuí-la, não deixa de ser recomendável que outros possam gozá-la. Esperamos apenas que esse dom tão raro não seja distribuído pelo arbítrio humano, mas abençoe, por acidente do destino, alguns indivíduos de sorte.
201: Um estudo da evolução da arquitetura doméstica e dos hábitos cotidianos ingleses levou um famoso arquiteto dinamarquês a afirmar que, “na cultura inglesa, o ócio tem sido a origem de tudo o que é bom” (S.E. Rasmussen, London, the Unique City [Londres e Nova Iorque, 1937], página 294).


“É realmente trágico que as massas tenham chegado a acreditar que devem seu alto padrão de bem-estar material ao fato de terem eliminado os ricos, e que temam que a preservação ou o reaparecimento de tal classe as privariam de algo que teriam (e a que julgam ter direito) se esta não existisse. Já vimos por que, numa sociedade progressista, não há razões para crer que a riqueza desfrutada por poucos existiria se estes não pudessem dela usufruir. Esta riqueza não é algo que lhes foi tirado, tampouco é algo que lhes era devido e lhes foi negado; ela é o primeiro sinal de um modo de vida inaugurado pela vanguarda. De fato, os que têm o privilégio de apontar novos caminhos que só os filhos, ou netos, de outros poderão palmilhar não são geralmente os indivíduos mais merecedores, mas simplesmente os que a sorte colocou nessa posição invejada. Este fato é, porém, inseparável do processo de evolução, que ultrapassa tudo que qualquer indivíduo ou grupo pode prever. Ao impedir, desde o início, que alguns gozem de certas vantagens, podemos acabar privando delas todos os demais. Se, por inveja, tornamos impossível a existência de certos estilos excepcionais de vida, terminaremos todos condenados ao empobrecimento material e espiritual. Também não podemos eliminar as manifestações desagradáveis do sucesso individual sem destruir, ao mesmo tempo, as forças que tornam possível o progresso. Podemos desprezar a ostentação, o mau gosto e o desperdício de muitos novos-ricos e, no entanto, reconhecer que, se eliminássemos tudo o que nos desagrada, possivelmente estaríamos suprimindo, desta forma, um número muito maior de benefícios que ainda não conseguimos vislumbrar. Um mundo em que a maioria pudesse impedir o surgimento de tudo que ela própria não aprovasse seria um mundo estagnado e, provavelmente, em decadência.”

Um comentário:

Anônimo disse...

Acredito que você interpretou de forma equivocada a parte da ELITE MELHOR que você deu tanta ênfase. A elite a qual ele se refere na passagem citada por você não é um grupo privilegiado, mas sim toda sociedade. É fato que "se a ascensão social não for limitada a uma geração, se os indivíduos não forem obrigados a começar do mesmo patamar e se as crianças não forem privadas da oportunidade de se beneficiar da melhor educação e meios materiais que seus pais lhes possam proporcionar." a sociedade produzirá uma elite(sociedade como um todo) melhor.

Que bom que você adicionou uma nota mostrando que o conceito de meritocracia não é defendido pelos liberais como Hayek. Nesse ponto você está correto, logo sua crítica a meritocracia nada tem a ver com os liberais. É apenas uma forma de desviar a atenção e criticar algo que o autor não defende. Autores como Hayek sempre apresentaram a diferença entre meritocracia e criação de valor, esta segunda que é a defendida pelo autor. Vale ler esse texto sobre o assunto: https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2054.