Editora: Visão
Tradução: Anna Maria Capovilla e José Ítalo Stelle
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 522
Sinopse: Ver Parte
I
“A coerção ocorre quando um indivíduo é
obrigado a colocar suas ações a serviço da vontade de outro, não para alcançar
seus próprios objetivos mas para buscar os da pessoa a quem serve. Não que o
coagido não tenha nenhuma escolha; se fosse assim, não poderíamos falar em
“ação” de sua parte. Se alguém, pela força física, conduz minha mão a assinar meu
nome ou força meu dedo a pressionar o gatilho de uma arma, não sou eu que estou
agindo. Tal violência, que faz de meu corpo o instrumento físico de outra
pessoa, evidentemente é tão execrável quanto a coerção propriamente dita e deve
ser impedida pelas mesmas razões. A coerção, todavia, implica ainda a
existência de uma escolha de minha parte, embora minha mente se tenha
transformado em mero instrumento da ação de outrem, pois as alternativas de que
disponho foram tão manipuladas, que a conduta que o coator quer que eu adote se
torna para mim a menos dolorosa.204 Apesar de coagido, sou ainda eu
que decido qual o mal menor, dadas as circunstâncias. (...)
A coerção implica não só a ameaça de infligir
um mal como, também, a intenção de provocar com isso certa conduta.
Embora o coagido ainda possa escolher, as
alternativas são-lhe impostas pelo coator de modo que ele escolha o que este
pretende. Ele não é totalmente privado do uso de suas faculdades mentais, mas é
privado da possibilidade de utilizar seus conhecimentos para alcançar seus
próprios objetivos. O uso eficaz da inteligência e dos conhecimentos de um
indivíduo na busca de seus próprios fins exige que ele tenha a possibilidade de
prever certas condições de seu ambiente e de se ater a um plano de ação. A
maioria dos objetivos humanos só pode ser alcançada por uma cadeia de ações
interligadas, estabelecidas como um todo coerente e baseadas no pressuposto de
que os fatos serão aquilo que se espera que sejam. Somente conseguimos realizar
algo porque, e na medida em que, podemos prever os eventos ou pelo menos
conhecemos as probabilidades. E, embora as circunstâncias físicas sejam muitas
vezes imprevisíveis, elas não frustrarão intencionalmente nossos objetivos.
Mas, na medida em que os fatos que determinam nossos planos estejam sob
controle total de outrem, nossas ações estarão, igualmente, controladas.
A coerção, portanto, é indesejável porque
impede o ser humano de utilizar plenamente seus poderes mentais e,
consequentemente, de prestar a maior contribuição possível à comunidade. Embora
o coagido ainda procure obter o melhor para si em dado momento, o único plano
ao qual suas ações obedecem é o determinado pelo coator.”
204: Cf. F. H. Knight, “Conflict of Values: Freedom and Justice”, em Goals of Economic Life, ed. A. Dudley Ward (Nova Iorque, 1953), página 208: “A coerção é a
manipulação ‘arbitrária’ exercida por uma pessoa em relação às condições ou às
alternativas de escolha de outra pessoa – e deveríamos, normalmente, chamá-la
interferência ‘injustificada’”. Ver também R. M. Mclver, Society: A Textbook of Sociology (Nova Iorque, 1937), página 342.
“A moralidade da ação praticada dentro da
esfera privada de um indivíduo não pode constituir objeto de controle
coercitivo do Estado. Talvez uma das mais importantes características que
distinguem uma sociedade livre de uma não livre seja o fato de que, em questões
de conduta que não afetam diretamente a esfera protegida do indivíduo, as
normas realmente observadas pela maioria dos indivíduos são de caráter
voluntário e não impostas pela coerção. A recente observação do que ocorre em
regimes totalitários demonstra a importância do princípio que diz: “nunca [devemos]
identificar a causa dos valores morais com a causa do Estado”.224 De
fato, é provável que muito mais dano e sofrimento tenham sido causados por
indivíduos que se propuseram utilizar a coerção para erradicar um mal moral do
que por outros que tencionavam realmente fazer o mal.”
224: A frase foi atribuída a Ignazio Silone.
(...)
“Ordem não é uma pressão exercida sobre a
sociedade de fora para dentro, mas um equilíbrio gerado em seu interior.” (J.
Ortega y Gasset – Mirabeau o elpolítico
)
“A importância de um sistema no qual toda
ação coercitiva do governo se restringe à aplicação de normas gerais abstratas
é frequentemente citada nas palavras de um dos grandes historiadores do
direito: “A evolução das sociedades progressistas tem sido, até o momento, a
evolução de uma sociedade de ‘status’
para uma sociedade de contrato'”.235 A concepção de status, a posição predeterminada que
cada indivíduo ocupa na sociedade, corresponde, de fato, a um estado no qual as
normas não são totalmente gerais, mas distinguem grupos ou indivíduos
particulares, conferindo-lhes direitos e deveres específicos. A ênfase dada a
contrato em contraposição a status é,
entretanto, de certa forma enganadora, na medida em que distingue apenas um,
embora o mais importante, dos instrumentos que a lei oferece ao indivíduo para
que este possa determinar sua posição. O que realmente se contrapõe ao império
do status é o império das leis gerais
e aplicáveis igualmente a todos, ou, como poderíamos dizer, a supremacia das leges, no sentido original da palavra
latina correspondente a leis - ou seja, em contraposição a privi-leges.
A exigência de que as normas da verdadeira
lei sejam gerais não significa que, em certas ocasiões, normas especiais não se
apliquem a diferentes classes de indivíduos, quando se referem a certas
propriedades que somente alguns possuem. Podem existir leis que se aplicam
somente a mulheres, cegos ou mesmo pessoas acima de determinada idade (em
muitos desses casos sequer é necessário indicar a classe de indivíduos aos
quais a lei se aplica: somente uma mulher, por exemplo, pode ser estuprada ou
engravidar). Essas distinções não serão arbitrárias, nem sujeitarão um grupo à
vontade de outros, se forem reconhecidas como justificadas tanto pelos
indivíduos pertencentes ao grupo quanto por aqueles que não pertencem a ele.
Isto não significa que deva existir unanimidade quanto à conveniência da
distinção, mas apenas que as opiniões individuais não dependerão do fato de o
indivíduo pertencer ou não ao grupo. Na medida em que, por exemplo, a distinção
é apoiada pela maioria dentro e fora do grupo, quase certamente ela servirá aos
objetivos de ambas. Quando, porém, a distinção é apoiada somente por aqueles
que fazem parte do grupo, trata-se evidentemente de privilégio; ao passo que,
se for apoiada só por aqueles que estão fora do grupo, tratar-se-á de
discriminação *. Aquilo que é privilégio para alguns sempre será, obviamente,
discriminação para os outros.
235: Sir Henry Maine, Ancient Law
(Londres, 1861), página 151. Cf. R. H. Graveson, “The Movement from Status to
Contract”, Modern Law Review, Vol. IV (1940-41).
* N. T.: No sentido de ação discriminatória
positiva.
“A finalidade da lei não é abolir ou
restringir, mas preservar e ampliar a liberdade. Porque onde não há lei não há
liberdade, como se vê nas sociedades em que existem seres humanos capazes de
fazer leis. Pois liberdade significa estar livre de coerção e da violência dos
outros, o que não pode ocorrer onde não há lei; e não significa, como dizem
alguns, liberdade de cada um fazer o que lhe apraz (pois quem poderia ser livre
se estivesse sujeito aos humores de algum outro?), mas liberdade de dispor a
seu bel-prazer de sua pessoa, suas ações, bens e todas as suas propriedades com
a limitação apenas das leis às quais está sujeito. Significa, portanto, não ser
o escravo da vontade arbitrária de outro, mas seguir livremente sua própria.”
(John Locke – Second Treatrise, Sec. 57, página 29)
“Os homens que se pautaram pelos ideais da
Revolução Francesa não conseguiram aprender os princípios tradicionais da
liberdade venerados na Inglaterra, como claramente mostra um dos primeiros
apóstolos da Revolução naquele país, o Dr. Richard Price. Já em 1778, ele
argumentava que “a liberdade é definida de forma demasiado imperfeita quando se
diz que ela é ‘o governo de leis e
não o governo de homens'. Se as leis
são feitas por um homem ou por uma facção dentro de um Estado e não pelo
consenso comum, esse governo não é diferente da escravidão”.348”
348: Richard Price, Two Tracts on
Civil Liberty, etc, (Londres, 1778), página 7.
“Os homens, na busca de objetivos imediatos,
estão mais ou menos inclinados, ou mesmo obrigados, pelas limitações de seu
intelecto, a violar normas de conduta, que não obstante gostariam de ver
observadas por todos. Dada a capacidade limitada de nossa inteligência, nossos
objetivos imediatos sempre parecerão muito importantes e tenderemos a
sacrificar a eles vantagens futuras. Tanto na conduta social como na
individual, podemos, portanto, alcançar certo grau de racionalidade ou
coerência ao tomar determinadas decisões somente se obedecermos a princípios
gerais, independentemente de necessidades momentâneas. Assim como qualquer outra
atividade humana, a legislação não poderá prescindir da orientação oferecida
por certos princípios se pretender levar em conta as consequências globais.”
“Como as forças que regem a mente do
indivíduo, as que contribuem para o estabelecimento da ordem social operam em
diversos níveis; e as próprias constituições baseiam-se em um consenso básico
(ou o pressupõem) em torno de princípios mais fundamentais, que podem não haver
sido nunca expressados explicitamente e no entanto precedem e tornam possível
este consenso e as leis fundamentais escritas. Não devemos crer que, pelo fato
de termos aprendido a fazer leis, todas as leis devam ser produto deliberado de
algum organismo. O que ocorre, ao contrário, é que um grupo de indivíduos pode
formar uma sociedade capaz de elaborar leis, porque seus membros já
compartilham de princípios comuns que possibilitam o debate e a persuasão, aos
quais as normas expressas devem adaptar-se para que possam ser aceitas como
legítimas.369
Segue-se que nenhum indivíduo ou grupo de
indivíduos tem completa liberdade de impor aos demais toda lei que lhe convier.
O princípio contrário, sobre o qual assenta o conceito da soberania de Hobbes,370
bem como o positivismo legal que dele deriva, decorre de um falso racionalismo
que concebe uma razão autônoma e autodeterminante e despreza o fato de que todo
pensamento racional se move dentro de um arcabouço de princípios e instituições
não racionais. Constitucionalismo significa que todo poder se fundamenta no
pressuposto de que será exercido de acordo com princípios aceitos por todos e
de que as pessoas às quais esses poderes são conferidos são escolhidas por se
acreditar que provavelmente farão o que é justo, e não porque tudo que elas
fizerem será necessariamente justo. Em última instância, o constitucionalismo
repousa no pressuposto de. que o poder não é um fato físico, mas um clima de
opinião que faz com que as pessoas obedeçam.371”
369: Sobre a concepção de legitimidade, cf.
G. Ferrero, The Principies of Power
(Londres, 1942).
370: Isto não se aplica ao conceito original
de soberania, tal como foi introduzido por Jean Bodin. Cf. C. H. Mcllwain, Constitutionalism and the Changing World, Cap. II.
371: Como salientaram D. Hume e um vasto
número de teóricos até o completo desenvolvimento da ideia em F. Wieser, Das Gesetz der Macht (Viena, 1926).
“Como pode haver limites definidos ao poder
supremo, se ele visa a uma felicidade geral indefinida, sempre sujeita à sua
interpretação? Deverão os príncipes ser considerados os pais do povo, mesmo que
seja grande o risco de se tornarem também seus déspotas?”
(G. H.von Berg, Handbuch des
teutschen Policeyrechtes – Hannover, 1799-1804), II, p. 3.)
“O que não se admite não é a empresa estatal
em si, mas o monopólio estatal.”
“É pura ilusão pensar que, quando certas
necessidades do cidadão são controladas exclusivamente por uma única máquina
burocrática, a fiscalização democrática dessa máquina possa então salvaguardar
eficazmente a liberdade do cidadão.”
“Na verdade, longe de constituir uma
calamidade pública, seria extremamente desejável que os trabalhadores não
achassem necessário formar sindicatos.”
“É bastante questionável a existência de um
sistema único de seguro estatal; e parece ser extremamente desaconselhável um serviço
médico gratuito para todos. (...)
A ideia de um serviço médico gratuito costuma
basear-se em duas premissas fundamentalmente errôneas. Primeiro, o pressuposto
de que os problemas de saúde são em geral objetivamente verificáveis e de
natureza tal que podem e devem ser totalmente atendidos em todos os casos, não
importando considerações de ordem econômica; segundo, que tal atendimento é
economicamente viável porque um bom serviço médico normalmente resulta numa
restauração da eficiência econômica ou da capacidade de trabalho, compensando
assim seus próprios custos. Ambos os pressupostos interpretam erradamente a
natureza desse problema na maioria das decisões concernentes à preservação da
saúde e da vida. Não existe um padrão objetivo para se julgar em que medida um
caso determinado exige cuidados médicos; por outro lado, com o avanço da
medicina, torna-se cada vez mais claro que não há limite para a quantia que se
poderia investir a fim de tomar todas as medidas objetivamente possíveis. Além
disso, tampouco é verdade que, em nossa avaliação individual, tudo que ainda
possa ser feito para garantir a saúde e a vida tenha absoluta prioridade sobre
outras necessidades. Como em todas as outras decisões nas quais temos de levar
em conta não certezas, mas probabilidades e eventualidades, constantemente
corremos riscos e tomamos nossas resoluções com base em argumentos de ordem
econômica no que diz respeito à validade de determinada medida, ou seja,
pesando os riscos em relação a outras necessidades. Nem o mais rico dos homens
recorreria normalmente a todos os meios que a medicina põe à sua disposição
para preservar sua saúde, talvez porque outras preocupações disputam seu tempo
e energia. Alguém terá sempre de decidir sobre a necessidade de um maior
esforço e um emprego adicional de recursos. A verdadeira questão é se o
indivíduo poderá decidir, obtendo, com um maior sacrifício, atendimento médico
adicional, ou se essa decisão será tomada, em seu lugar, por outra pessoa.
Embora não nos agrade a necessidade de pesar valores imateriais, como saúde e
vida, em relação a vantagens materiais, e desejássemos que tal escolha fosse
desnecessária, todos temos, entretanto, de fazê-la por força de fatos que não
podemos alterar. (...)
Pode parecer cruel, mas provavelmente é do interesse
de todos que, num sistema gratuito, os que gozam de plena capacidade de
trabalho sejam frequentemente curados com mais rapidez de uma enfermidade
temporária e não grave, em detrimento dos idosos e dos que sofrem de doenças
sem cura.”
“Há outro problema que assumiu sérias
proporções em alguns países europeus e do qual não nos devemos esquecer: o
número excessivo de intelectuais em relação ao número de empregos. Poucas
ameaças à estabilidade política são tão graves quanto a existência de uma intelectualidade
proletarizada que não encontra meios de utilizar seu conhecimento.
O problema geral com que nos defrontamos em
relação à educação superior é, portanto, o seguinte: certos jovens devem ser
selecionados, segundo algum critério, numa idade em que não se pode saber ao
certo quem tirará maior proveito, para receber uma educação que lhes permitirá
obter renda maior que os outros; e, para justificar o investimento, eles devem
ser selecionados de forma que, em geral, façam jus a uma renda maior. Finalmente,
temos de aceitar o fato de que, como normalmente outras pessoas precisarão
pagar pela educação, os que dela se beneficiam estarão usufruindo de uma
vantagem “imerecida”.”
“Por mais louváveis que sejam os motivos das
pessoas que desejam, por amor à justiça, que todos comecem a partir do mesmo
patamar, esse ideal é literalmente impossível de se atingir. Além disso, pensar
que ele foi realizado, mesmo parcialmente, só pode tomar a situação pior para
os menos dotados. Embora seja plenamente justificável a eliminação de todos os
obstáculos artificiais que as instituições existentes podem colocar no caminho
de algumas pessoas, não é possível nem desejável compelir todos a começar no
mesmo patamar, pois isto só pode ocorrer se privarmos algumas pessoas das possibilidades
que não podem ser proporcionadas a todos. Embora queiramos que as oportunidades
de todos sejam as maiores possíveis, certamente reduziríamos as da maioria se
impedíssemos que elas fossem maiores que as dos menos dotados. Afirmar que
todos os que vivem na mesma época em determinado país devem começar a partir do
mesmo ponto é tão incompatível com uma civilização em desenvolvimento quanto
afirmar que este tipo de igualdade deve ser garantido a pessoas que vivem em
épocas e lugares diferentes.”
“Tudo que torna um indivíduo diferente do
outro, em função de dons naturais ou de oportunidades, cria vantagens
“injustas”. Mas, como a principal contribuição de qualquer indivíduo consiste
em fazer o melhor uso dos acidentes com os quais se depara, o sucesso, em
grande parte, será uma questão de sorte.”
“Direi agora o que considero a objeção
decisiva ao verdadeiro conservadorismo: por sua própria natureza, o
conservadorismo não pode oferecer uma alternativa ao caminho que estamos
seguindo. Por resistir às tendências atuais poderá frear desdobramentos
indesejáveis, mas, como não indica outro caminho, não pode impedir sua
evolução. Por esta razão, o destino do conservadorismo tem sido invariavelmente
deixar-se arrastar por um caminho que não escolheu. A luta pela supremacia
entre conservadores e progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos
acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja necessário “frear o curso do
progresso”, pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a puxar o freio. Antes
de mais nada, os liberais devem perguntar não a que velocidade estamos
avançando, nem até onde iremos, mas para onde iremos.”
“Com isso, chegamos ao primeiro ponto no qual
as atitudes liberais e conservadoras diferem radicalmente. Como muitas vezes os
escritores conservadores reconheceram, uma das principais características da
atitude conservadora é o medo da mudança, uma desconfiança tímida em relação ao
novo enquanto tal,813 ao passo que a posição liberal se baseia na
coragem e na confiança, na disposição de permitir que as transformações sigam
seu curso, mesmo quando não podemos prever aonde nos levarão. Não haveria por
que contestar os conservadores se eles simplesmente não gostassem de mudanças
muito rápidas nas instituições e na política de governo; de fato, neste caso,
justifica-se o cuidado e o lento progresso. Mas os conservadores tendem a
utilizar os poderes do governo para impedir as mudanças ou limitar seu âmbito
àquilo que agrada às mentes mais tímidas. Ao contemplar o futuro, carecem de fé
nas forças espontâneas de ajustamento, que levam os liberais a aceitar mudanças
sem apreensão, mesmo sem saber como as adaptações necessárias se efetivarão.
Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo
econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os
necessários ajustamentos às novas condições, embora ninguém possa prever como
farão isso no caso particular. Talvez não exista um fator que contribui mais
para as pessoas frequentemente se mostrarem relutantes em deixar que o mercado
funcione do que sua incapacidade de conceber como, sem controle deliberado,
pode surgir o equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, entre as
importações e as exportações, e assim por diante. O conservador só se sente
seguro e satisfeito quando tem a garantia de que alguma sabedoria superior
observa e supervisiona as mudanças, somente quando sabe que há uma autoridade
encarregada de verificar que elas se deem dentro da “ordem”.
Esse temor em confiar em forças sociais
incontroladas está intimamente ligado a duas outras características do
conservadorismo: sua paixão pela autoridade e sua falta de compreensão das
forças econômicas. Como não confia nem em teorias abstratas nem em princípios
gerais, não compreende as forças espontâneas nas quais se baseia uma política
de liberdade nem dispõe de bases para formular princípios de política de
governo. Para os conservadores, a ordem aparece como o resultado da atenção
contínua da autoridade, à qual, para tanto, se deve permitir tomar qualquer medida
necessária em circunstâncias específicas, sem que precise ater-se a uma norma
rígida. A aceitação de princípios pressupõe uma compreensão das forças gerais
que coordenam as ações humanas na sociedade; porém, é exatamente de tal teoria
da sociedade e em especial da teoria do mecanismo econômico que o
conservadorismo evidentemente carece. O conservadorismo foi completamente
incapaz de elaborar um conceito geral sobre a maneira pela qual a ordem social
consegue sustentar-se, e seus modernos defensores, ao tentar construir uma base
teórica, quase sempre acabaram apelando quase exclusivamente para autores que
se consideravam liberais.”
813: Ver Lord Hugh Cecil, Conservatism (“Home University Library”
[Londres, 1912]), página 9: “O conservadorismo natural... é uma atitude
contrária à mudança, que decorre em parte de certa desconfiança em relação ao
desconhecido”.
814: Ver a reveladora descrição que o
conservador K. Feilling faz de si mesmo em Sketches
in Nineteenth Century Biography (Londres, 1930), página 174: “A direita,
como um todo, tem horror a ideias, pois não é o homem prático, nas palavras de
Disraeli, ‘aquele que põe em uso os erros de seus predecessores’? Por longos
períodos de sua história, os direitistas indiscriminadamente resistiram a todos
os avanços e, ao reclamar o respeito pelos antepassados, muitas vezes costumam
reduzir a opinião ao preconceito individual do passado. Sua posição se tornará
ainda mais fácil de ser defendida, porém mais complexa, se acrescentarmos que
esta direita domina incessantemente a esquerda; que ela vive da constante
inoculação de ideias liberais e desta forma sofre as consequências de uma
situação de compromisso que nunca chega a ser definida.”
“Em termos gerais, poderíamos afirmar que o
conservador não se opõe à coerção ou ao poder arbitrário, desde que utilizados
para os fins que ele julga válidos. Ele acredita que, se o governo for confiado
a homens probos, não deve ser limitado por normas demasiado rígidas. Como se
trata de indivíduo essencialmente oportunista e desprovido de princípios, ele
espera que os bons e os sábios governem, não meramente pelo exemplo, como todos
queremos, mas por uma autoridade a eles conferida e por eles exercida. Como o
socialista, o conservador preocupa-se menos com o problema de como deveriam ser
limitados os poderes do governo do que com o de quem irá exercê-los; e, como o
socialista, também se acha no direito de impor às outras pessoas os valores nos
quais acredita. Quando digo que o conservador carece de princípios, não quero
com isso afirmar que ele careça de convicção moral. O conservador típico é, de
fato, geralmente um homem de convicções morais muito fortes. O que quero dizer
é que ele não tem princípios políticos que lhe permitam promover, junto com
pessoas cujos valores morais divergem dos seus, uma ordem política na qual
todos possam seguir suas convicções. É o reconhecimento desses princípios que
possibilita a coexistência de diferentes sistemas de valores, a qual, por sua
vez, permite construir uma sociedade pacífica, com um emprego mínimo da força.
Sua aceitação significa que podemos tolerar muitas situações com as quais não
concordamos. Há muitos valores conservadores que me atraem mais do que muitos
valores socialistas, porém a importância que um liberal atribui a objetivos específicos
não lhe serve de justificativa suficiente para obrigar outros a submeter-se a
eles.”
“Para conviver com os outros é preciso muito
mais do que fidelidade aos nossos objetivos concretos. É necessário um
comprometimento intelectual com um tipo de ordem em que, até nas questões que
um indivíduo considera fundamentais, os demais têm o direito de buscar
objetivos diferentes.815 É por esse motivo que para o liberal os
ideais morais, bem como os ideais religiosos, não podem ser objeto de coerção,
enquanto conservadores e socialistas não reconhecem esses limites. Às vezes,
penso que o atributo mais marcante do liberalismo, que o distingue tanto do
conservadorismo quanto do socialismo, é a ideia de que convicções morais quanto
a questões de conduta que não interferem diretamente com a esfera individual
protegida pela lei não justificam a coerção dos demais. Isso também pode
explicar por que parece muito mais fácil para o socialista arrependido
encontrar um novo lar espiritual entre os conservadores do que entre os
liberais. Em última análise, a posição conservadora baseia-se no princípio de
que, em qualquer sociedade, há indivíduos reconhecidamente superiores, cujos
valores, padrões e posições, sua herança espiritual, precisariam ser
protegidos, e que deveriam exercer maior influência nos assuntos públicos do
que os demais. Obviamente, o liberal não nega que existam pessoas superiores;
ele não é um defensor do igualitarismo. O que ele nega é que qualquer um possa
ter a autoridade de decidir quem são essas pessoas superiores. Enquanto os
conservadores tendem a defender uma determinada hierarquia estabelecida e
pretendem que a autoridade proteja o status daqueles que eles prezam, os
liberais acreditam que não haja respeito por valores estabelecidos que justifique
o recurso ao privilégio ou ao monopólio ou a qualquer poder coercitivo do
Estado para proteger estas pessoas das forças da transformação econômica.
Embora o liberal esteja plenamente cônscio do importante papel que as elites
culturais e intelectuais representaram no avanço da civilização, também crê que
essas elites devem dar provas da capacidade de manter sua posição obedecendo às
mesmas normas aplicadas a todos os outros.”
815 Espero que me desculpem por estar
repetindo aqui as palavras com as quais, em outra situação, defini uma
importante questão: “O principal mérito do individualismo que [Adam Smith] e
seus contemporâneos defenderam é aquele de constituir um sistema no qual os
homens maus podem ocasionar um mínimo de prejuízo. Trata-se de um sistema social
que não depende para seu funcionamento de encontrarmos bons homens para
dirigi-lo, nem de que todos os homens se tomem melhores do que são, mas de um
sistema que utiliza homens em toda a sua variedade e complexidade, algumas
vezes bons e algumas vezes maus, algumas vezes inteligentes e muitas vezes
imbecis” (Individualism and Economic
Order [Londres e Chicago, 1948], página 11).
“Ao contrário do liberalismo e sua convicção
fundamental no poder das ideias, o conservadorismo pauta seu comportamento pelo
conjunto de ideias herdadas em dado momento. E, como realmente não acredita no
poder do debate, seu último recurso é, em geral, alegar uma sabedoria superior,
fundamentada em uma virtude elevada que ele próprio se atribui.
Este contraste se manifesta mais claramente
nas diferentes atitudes de ambas as tradições em relação ao avanço do
conhecimento. Embora o liberal não considere toda mudança um progresso, ele
encara o avanço do conhecimento como uma das metas principais do esforço humano
e confia em que lhe proporcione uma solução gradual para os problemas e
dificuldades que esperamos poder resolver. Sem preferir o novo apenas por ser
novo, o liberal está consciente de que é da essência da realização humana
produzir o novo; e está preparado para conviver com o novo conhecimento, goste
ou não de seus efeitos imediatos.
Pessoalmente, acho que o aspecto mais
reprovável da atitude conservadora é sua tendência a rejeitar novos
conhecimentos, ainda que bem fundamentados, porque desaprova algumas das
consequências que aparentemente decorrem deles – ou, mais francamente, seu
obscurantismo. Não nego que os cientistas, como qualquer pessoa, são dados a
modismos e excentricidades e que devemos ser cautelosos em aceitar as
conclusões às quais os levam suas teorias mais recentes. Mas os motivos de
nossa relutância precisam ser racionais e não devem ser condicionados pela
consternação que sentimos quando as novas teorias abalam nossas mais caras
convicções. Sou pouco paciente com os que se opõem, por exemplo, à teoria da
evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida,
simplesmente por causa de algumas consequências morais que, a princípio,
parecem decorrer dessas teorias, e ainda menos paciente com os que consideram
irreverente e ímpio indagar a respeito de certas questões. Ao recusar-se a
enfrentar os fatos, o conservador contribui para enfraquecer sua própria
posição. Frequentemente, as conclusões que a mentalidade racionalista tira das
novas interpretações científicas de modo algum decorrem delas. Contudo, somente
se tomarmos parte da avaliação das consequências das novas descobertas
saberemos se elas se adaptam ou não à nossa visão de mundo, e, em caso
afirmativo, como se adaptam. Caso se comprove que nossas convicções morais
dependem de pressupostos factuais errados, não seria moral defender tais
convicções recusando-nos a reconhecer os fatos.
Aliada à desconfiança dos conservadores em
relação a tudo que é novo e incomum está sua hostilidade ao internacionalismo e
sua tendência a um nacionalismo exagerado. Isto também contribui para
enfraquecer sua posição na luta das ideias, e não pode alterar o fato de as
concepções que estão modificando nossa civilização não respeitarem fronteiras.
Entretanto, a recusa de estudar novas ideias acaba simplesmente privando o
indivíduo do poder de opor-se efetivamente a elas quando necessário.”
“Num mundo em que a necessidade básica se
tomou, como no início do século XIX, libertar o processo de crescimento
espontâneo dos obstáculos e das dificuldades criados pela insensatez humana, as
esperanças do filósofo político devem concentrar-se na persuasão e na obtenção
do apoio daqueles que por natureza são “progressistas”, aqueles que, embora
atualmente busquem mudanças na direção errada, pelo menos estão dispostos a
examinar criticamente o que existe e a modificá-lo sempre que necessário.”
“A tarefa do filósofo político é influenciar
a opinião pública e não organizar o povo para a ação. E ele terá êxito somente
se não se voltar para aquilo que é politicamente possível agora, mas defender
com firmeza “os princípios gerais duradouros”.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário