Editora: Companhia de bolso
ISBN: 978-85-3591-337-8
Tradução: Elena Grechi e Jussara de F. M. Ribeiro
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 448
Sinopse: Ver Parte
I
“As janelas dão para o Danúbio, abrem-se
sobre o grande rio e sobre as colinas que o dominam, uma paisagem marcada pelos
bosques e pelas cúpulas em formas de cebola das igrejas; no inverno, com o céu
frio e as manchas de neve, as amáveis curvas das colinas e do rio parecem
perder corpo e peso, tornam-se linhas leves de um desenho, uma elegante
melancolia heráldica. Linz, a capital da Áustria Superior, era a cidade que
Hitler amava mais que qualquer outra e queria transformar na mais monumental
metrópole danubiana. Speer, o arquiteto do Terceiro Reich, descreveu aqueles
projetos de edifícios gigantescos e faraônicos nunca realizados, nos quais
Hitler, como escreveu Canetti, revelava sua febril necessidade de superar as
dimensões já alcançadas anteriormente por outros artífices, sua obsessão
agonística de bater todos os recordes.
Nos sonhos do Führer, a ciclópica Linz que
ele queria edificar deveria ter sido o refúgio da sua velhice, o lugar para
onde ele sonhava retirar-se, depois de ter consolidado definitivamente o Reich
milenar e tê-lo confiado a algum digno sucessor. Como muitos tiranos
desapiedados, ele também, assassino de milhões e aspirante exterminador de
povos inteiros, era um sentimental, que se comovia pensando em si mesmo e se
embalava em fantasias idílicas. Em Linz, confiava de vez em quando a seus
íntimos, teria vivido afastado do poder, quando muito disposto, como um
benévolo avô, a dar conselhos aos herdeiros que viessem visitá-lo; mas talvez,
dizia – coqueteando com a hipótese da própria destronação, bem decidido a não
permiti-la nunca – ninguém viesse visitá-lo.
Em Linz, onde havia passado anos serenos, o
déspota sanguinário fantasiava reencontrar uma espécie de infância, uma estação
livre de projetos e de metas. Provavelmente pensava com nostalgia naquele
futuro vazio, no qual gozaria a segurança de quem já viveu, já combateu pelo
domínio do mundo e já venceu, já realizou os próprios sonhos, que ninguém
poderá mais frustrar. Quando imaginava aquele futuro, sentia-se talvez
atormentado pela ansiosa angústia de alcançar logo seus objetivos e roído pelo
temor de não conseguir alcançá-los. Desejava que o tempo passasse depressa para
ter logo a certeza de ter vencido; desejava, em outras palavras, a morte, e em
Linz planejava viver numa agradável segurança semelhante à morte, ao abrigo das
surpresas e dos embates da vida.”
“Diz um manifesto na porta da catedral de
Linz: só quando podes novamente rir perdoaste verdadeiramente. Não arrastes
nada contigo!”
“Em 1908 Francisco Ferdinando, arquiduque da
Áustria-Este e herdeiro do trono do Império austro-húngaro havia definido a
coroa dos Habsburgo como uma coroa de espinhos. Essa frase sobressai numa sala
do museu que lembra o arquiduque no castelo de Artstetten, a mais ou menos
oitenta quilômetros de Viena, não longe do Danúbio, onde ele está sepultado com
a esposa tão amada, Sophie. Os tiros de revólver de Sarajevo impediram
Francisco Ferdinando de colocar aquela coroa na cabeça, mas também se tivesse
se tornado imperador e se tivesse reinado por muito tempo como Francisco José,
ele não teria sido sepultado na Cripta dos Capuchinhos, como os seus
antepassados: queria repousar junto à esposa e esta, Sophie Chotek von Chotkowa
und Wognin, era somente condessa, pertencente a uma das mais antigas famílias tcheca,
e como tal não tinha direito de ser acolhida na cripta imperial dos Habsburgo,
assim como sua linhagem demasiado modesta a impedia, depois do matrimônio com o
herdeiro do trono, de morar na Hofburg e de ter acesso às carruagens ou aos
camarotes imperiais.
Agora jazem ambos na cripta da igreja de
Artstetten, próxima do castelo, em dois sarcófagos brancos e extremamente
simples. De “Franciscus Ferdinandus, Archidux Austriae-Este”, a lápide não
recorda nem a qualificação do herdeiro do trono nem outros títulos ou pompas;
sua existência é resumida, em latim, em três eventos essenciais, acompanhados
das respectivas datas: Natus, Uxorem duxit, obiit. Também a história de Sophie está ritmada e condensada nestes
três momentos. Nascer, casar, morrer: nesta épica lacônica se resume a essência
de uma vida, a do arquiduque e a de cada um de nós; qualquer outro atributo,
ainda que altissonante, parece secundário e não merece ser lembrado nem gravado
no mármore. Naquele túmulo não repousa somente um acidental príncipe herdeiro,
mas alguém que é muito mais, um personagem mais universal, um homem que
partilhou o comum destino de todos.
O matrimônio com Sophie, a reprovada mésalliance com uma mulher que era
apenas condessa, não o tinha somente obrigado a renunciar à sucessão ao trono
para seus filhos mas lhe havia feito sofrer acres humilhações, uma acirrada
hostilidade da camarilha da corte que teria meio de encontrar satisfação também
depois do Sarajevo, por ocasião dos seus funerais. Francisco Ferdinando não
havia renunciado ao trono por amor, como um filisteu romântico, porque sua vida
achava significado na dedicação à superior responsabilidade do Império e só
obedecendo a esta vocação podia ser uma vida plena, digna daquele amor em que
encontrava coroamento, mas não tinha aceito tampouco a renúncia ao amor pelo
trono, igualmente filisteia.
Todos foram contrários àquele matrimônio,
inclusive seu irmão, o arquiduque Otto, que gostava de aparecer nu no hotel
Sacher, vestindo apenas cinturão e sabre, ou irromper a cavalo nos cortejos
fúnebres judeus e mandar espancar seus críticos pelos próprios seguidores. Como
bom desordeiro desabusado, o arquiduque Otto sabia ser gregariamente submisso
às convenções da hierarquia; o rancor da aristocracia da corte em relação a
Francisco Ferdinando revela a vulgaridade de todo grupo social que se considera
uma elite e acredita poder excluir os
outros, enquanto é ele que se fecha fora do mundo, como o bêbado da piada, que
gira sobre si mesmo em um pequeníssimo canteiro redondo, persuadido de que
aquele canteiro é o mundo e que do outro lado do murinho começa a prisão na
qual estão confinados todos os outros.”
“Viajando de barco sobre o Danúbio, o
funcionário do registro Kyselak se queixa da trivialidade dos passageiros,
ajudantes, domésticas, vendedores ambulantes, barqueiros. Ele revela a
vulgaridade daqueles turistas que desejariam lugares imaculados e acreditam que
só os outros os maculam. Kyselak se considera o único com sentimentos nobres,
capaz de apreciar o autêntico. Os outros são “semi-homens”, massa estúpida e
bruta, da qual ele nem suspeita fazer parte.
Kyselak é um daqueles desprezadores de
massas, numerosos ainda hoje, que, apinhados junto ao outro no ônibus lotado ou
na autoestrada congestionada, consideram-se, cada um, moradores de sublimes
solidões ou de salões refinados e desprezam, cada um, o vizinho, sem saber que
estão sendo pagos com a mesma moeda, ou então lhe piscam o olho, para fazê-lo
entender que, naquele tropel, somente eles dois são almas eleitas e
espirituosas, obrigadas a compartilhar o espaço com o rebanho. Essa suficiência
do chefe de repartição, que proclama “O senhor não sabe quem sou eu”, é o
oposto daquela altivez que existe em Dom Quixote quando ele, atirado para fora
da sela, murmura “Sei quem sou” e que nunca vai acompanhado pelo fácil e
indiferenciado desprezo pelo próximo.
A estandardizada altivez para com a massa é
um comportamento tipicamente massificado. Quem fala da estupidez geral deve saber
que não está imune a ela, porque também Homero de vez em quando cochila; deve
assumi-la como risco e destino comum dos homens, cônscio de ser alguma vez mais
inteligente e alguma vez mais bobo que o seu vizinho de casa ou de bonde,
porque o vento sopra onde quer e ninguém nunca pode estar certo de que, naquele
momento ou um segundo depois, o vento do espírito não o abandonará. Os grandes
humoristas, de Cervantes a Sterne ou a Buster Keaton, fazem rir da miséria
humana porque a percebem também e em primeiro lugar em si mesmos, e aquele riso
implacável implica uma amorosa compreensão do destino comum.
A estupidez também é um fato de época, assume
formas e conotações de acordo com a quadra histórica e portanto nos insidia e
afeta a todos, não somente os outros, como acreditava Kyselak. O escritor
desdenhoso que parece escarnecer indiscriminadamente de todos, na realidade não
fere ninguém, porque se dirige a cada leitor fazendo acreditar que o acha o
único inteligente em uma massa de estúpidos, mas se dirige desse modo à massa
de leitores. Em geral a técnica tem sucesso, porque o leitor pode sentir-se
estimulado por essa exceção que o desprezador dos outros faz no seu caso, sem
se aperceber que a mesma exceção ele faz, justamente, para todo mundo. Mas a
verdadeira literatura não é aquela que bajula o leitor, confirmando-o nos seus
preceitos e nas suas seguranças, mas sim aquela que o persegue e o coloca em
dificuldades, que o obriga a refazer as contas com o seu mundo e com as suas
certezas.”
“A grande poesia é frequentemente permeada
por esta consciência da história natural do homem: Lucrécio, Leopardi, os
líricos chineses que inserem o indivíduo e a sua melancolia por um amigo
distante, na milenária história da paisagem onde ele respira, no pano de fundo das
montanhas e do lago. Também as grandes religiões levam em conta a matéria da
qual somos feitos; o que as distingue das falsas e supersticiosas, dizia
Chesterton, é o seu genuíno materialismo.”
“O mal-estar da civilização, magistralmente
evocada por Freud, nasce também de uma incurável contradição. A civilização e a
moral se baseiam sobre uma distinção necessária e dificilmente sustentável, a
distinção entre homens e animais. É impossível viver sem destruir a vida
animal, nem que seja só a de organismos microscópicos que fogem à nossa
percepção, e é impossível reconhecer aos animais direitos universais e
invioláveis, considerar kantianamente cada animal um fim e não um meio; a
fraternidade solidária pode abraçar a humanidade, mas não vai além. Essa impossibilidade
torna inevitável a separação entre mundo humano e mundo natural e obriga a
cultura, que luta contra os sofrimentos infligidos aos homens, a construir o
seu edifício sobre o sofrimento animal, procurando aliviá-lo, mas resignando-se
a não poder eliminá-lo. A irredimível dor dos animais, povo obscuro que
acompanha a nossa existência como uma sombra, joga sobre ela todo o peso do
pecado original.
O naturalista que vive com seus gansos
cinzentos nos pântanos danubianos acha que aquela distinção se funda sobre um
arbitrário antropomorfismo; a etologia lhe ensinou que os animais não têm
somente mecanismos instintivos automáticos, como seria cômodo acreditar, e ele
não é propenso, como Buffon, a perceber uma “distância infinita” entre eles e o
homem, mas antes, como Lineu, a incluir simplesmente este último entre os
mamíferos. Nos ideais cosmopolistas o naturalista tende a ver um “chauvinismo
da humanidade”, um nacionalismo que se estendeu da tribo à nação, a toda a
humanidade, sempre porém excluindo do direito e do respeito quem não faz parte
do grupo.
O democrata é humanista; o naturalista –
mesmo quando está imune às inclinações nazistizantes encontráveis no passado de
Lorenz – dificilmente acredita na “religião da humanidade”, porque descobre
nesta uma – mesmo a que seja mais evoluída – das formas de vida e provavelmente
acha, como aquele personagem de Musil, que se Deus se fez homem, poderia ou
deveria fazer-se também gato ou flor. Observando os ratos e as lontras, o
naturalista pensa que a luta pela vida é inevitável e por outro lado não
acredita que os homens sejam os protagonistas ou o fim do cosmo e que possam,
portanto, subtrair-se ao destino de ferir-se reciprocamente. Ele procura então
poupar o mais possível de crueldades e dores cada ser, humano ou animal, mas
está pronto a justificar a lei que coloca, fatalmente, um grupo contra o outro
– e o grupo, de acordo com a constelação histórica, pode ser a cidade, o
partido, a classe, a tribo, a nação, a raça, o Ocidente ou a Revolução mundial.
No momento da luta não valem princípios gerais, mas vigora o instintivo de
pertença ao grupo, em nome do qual é lícito e obrigatório ferir, pouco importa
se outros homens ou outros animais, porque em ambos os casos se trata de uma
tragédia, mas de uma tragédia necessária.
Nem mesmo as cores destas águas e destas
árvores das “Donauauen” ou os chamados destes pássaros podem induzir a renegar
o chauvinismo da humanidade, sem o qual não se alivia por certo a dor animal,
mas se cai em uma obtusa barbárie e se acrescentam outros dores às inevitáveis.
Mas mesmo quando a trompa de Fidélio
ressoasse, a humanidade liberada devia recordar-se, no último andar do
arranha-céu onde morasse, de todos os humilhados e dolorosos andares inferiores
que sustentam, como escrevia Horkheimer, aquele andar superior. No subsolo mais
baixo, sobre o qual se apoia todo o edifício que lá em cima oferece um conserto
de Mozart ou um quadro de Rembrant, mora o sofrimento do animal, corre o sangue
do matadouro.”
“Talvez só o amor completo e duradouro, ou a
franca sexualidade animal, que se esgota na satisfação imediata, sem iludir nem
iludir-se com algo mais, tenham uma verdade em si, enquanto a variada gama de
gradações intermediárias das relações amorosas, típica invenção humana, é
frequentemente uma série de falsidades e violências embelezadas por um kitsch
sentimental.”
Karl-Marx-Hof
O famoso e imenso conjunto de moradias
operárias construídas pela “Viena Vermelha”, a prefeitura socialista, depois da
Primeira Guerra Mundial, nasceu da vontade de reformar, da fé no progresso, da
intenção de construir uma sociedade diferente, aberta a novas classes e
destinada a ser liderada por elas. É fácil hoje sorrir deste uniforme tom
cinzento. Mas os pátios e os canteiros têm sua melancólica alegria, falam das
brincadeiras de crianças que, antes de morar aqui, moravam em casebres ou
taperas sem nome e do orgulho das famílias que nessas casas, pela primeira vez,
tiveram a possibilidade de viver com dignidade, como seres humanos.
Este monumento do Moderno encarna muitas
ilusões progressistas do período entre guerras, ilusões que se desfizeram, mas
testemunha também a realidade de um grande progresso, que só uma ignorância
presunçosa pode subestimar. Estas casas, em 1934, foram o centro da grande
insurreição operária de Viena, que Dollfuss, o chanceler austrofascista,
reprimiu com violência sangrenta. A direita é patriótica, mas atira com maior
frequência e maior gosto nos seus compatriotas que nos invasores da pátria.
Hoje nos sentimos órfãos daquele moderno e suas
promessas; Viena, nos anos de exílio entre as duas guerras, foi também o teatro
do mundo em cujo palco desabaram, como alegorias barrocas, muitas certezas
ideológicas e grandes esperanças revolucionárias.
O que então, na época de Hitler e de Stálin,
desabava no coração e no pensamento de muitos, era principalmente a fé no
comunismo. A trânsfuga do Partido, diz-se num romance de Manès Sperber
ambientado também em Viena, é um órfão da totalidade: quando o militante
comunista clandestino, que dedicou sua vida à revolução, e trabalha em países
dominados por ditaduras fascistas, descobre a perversão stalinista da
revolução, passa a se ver numa terra de ninguém, estranho a toda sociedade e
exilado da própria vida.
Aquelas testemunhas e acusadores do “deus que
falhou”, que no período entre guerras percorriam frequentemente as ruas e cafés
de Viena como um território do exílio, viveram a militância revolucionária como
uma visão global do mundo, na qual as escolhas políticas implicavam as
perguntas sobre o fim último das coisas. Aqueles trânsfugas do comunismo
stalinista deixaram uma grande lição, porque do marxismo conservaram a imagem
unitária e clássica do homem, uma fé no universal-humano que um dia foi
expressa, com ingenuidade, nas formas narrativas do passado. Mas aquela sua
humanidade, que das derrotas momentâneas dos próprios sonhos não extrai a
autorização para irresponsáveis licenças intelectuais, é bem diversa do
coquetismo dos órfãos atuais do marxismo que, desiludidos porque este não se
revelou como o “abre-te sésamo da história”, se entregam a estridentes piadas
sobre aquilo que até ontem lhes parecia sagrado e infalível.
A sofrida e seca firmeza dos exilados de
ontem pode ajudar a viver de maneira adequada a condição de hoje. Tornar-se
órfãos das ideologias é tão natural como ficar órfão dos pais; é um momento
doloroso que não implica, contudo, a profanação do pai perdido, porque não
significa afastar-se do seu ensinamento. Uma militância política não é uma
igreja mística em que tudo se equilibra, mas um trabalho cotidiano, que não
redime a terra de uma vez por todas e está sujeito a erros, mas está pronto a
corrigi-los. Também para o marxismo chegou a hora liberal dessa laicidade, que
não admite idólatras nem órfãos do Vietnã, mas forma personalidades maduras,
capazes de enfrentar contínuas desilusões. É chegada a hora em que deixar o
partido comunista não representa mais a perda da totalidade e esta poderia ser
uma razão para não deixá-lo. Mas em sua terra de ninguém aqueles nômades de
ontem enfrentaram o vazio com um senso dos valores sem o qual a laicidade não é
mais libertação do dogma e sim indiferente e passiva sujeição aos mecanismos
sociais. Aqueles nômades eram – como dizia Sperber – extraterritoriais em
relação à história, viviam na recordação do passado e no sonho do futuro e
nunca no presente. Este destino era também um destino austríaco: nos cafés e
nos decadentes hotéis do exílio, acrescentava Sperber, morria mais uma vez, e
definitivamente, a velha Áustria.
Mas essa morte e este exílio eram também
resistência ao extenuado desmantelamento pós-moderno, assim como o Karl-Marx-Hof foi uma resistência aos
canhões de Dollfuss e também à tentação de crer que a própria resistência fosse
insensata. A pobre, cinzenta e maciça modernidade daquele falanstério se impõe
por sua compacidade. Diversa é a atitude de quem, sessenta anos depois, a
redescobre e celebra com gosto retrô, afetadamente progressista, e até tenta,
como aconteceu em Trieste com resultados desastrosos, recompor o falanstério
como modelo de habitação e coabitação. Esse capricho de restaurar formas
desprovidas da necessidade histórica que em seu tempo as tinha produzido é
pós-moderna, é o prazer kitsch do falso e do vistoso, é o gosto da ideologia
esvaziada das ideias; uma cultura sem fundamento, que nada tem em comum com os
robustos e pesados alicerces do Karl-Marx-Hof.
“O escritor não é um pai de famílias mas um
filho, que deve sair de casa e seguir o seu caminho; ele é fiel à sua pequena
pátria oprimida se testemunha a sua verdade, ou seja, se suporta até o fundo a
sua opressão assumindo-a sobre si, e se ao mesmo tempo a transcende, com a dura
distância necessária a toda arte e a toda experiência libertadora.”
“Como bem sabia o Mefistófeles goethiano, a
conversação e a sociabilidade humana são a condição em que cada um encontra
realmente a si mesmo.”
“A vida é um compromisso, declarou uma vez
Kádár enquanto festejavam seu aniversário, e o verdadeiro atalho às vezes pode
ser a via aparentemente mais longa. (...) Justamente aquela economia de guerra
da revolução, na qual Kádár acreditou, foi o ponto fraco do socialismo real.
Quando o poder arca diretamente com todo o peso da sociedade e de seus
problemas, assumindo o ônus de cada detalhe, seu totalitarismo, observa Massimo
Salvadori, se volta contra ele e o corrói por dentro, como acontece a um
organismo que se submete a um esforço desmedido e prolongado. A revolução de
1956 foi também a apoplexia desse poder pletórico, o colapso do esforço
titânico, por parte do Estado-partido, de invadir e supervisionar toda a vida
social. O compromisso de Kádár inverte completamente, com sua fórmula elástica
e elusiva “quem não está contra nós está conosco”, aquele totalitarismo,
deixando espaço para uma variedade de componentes e atitudes não mais duramente
adaptados a um modelo único (“conosco”), mas unicamente limitados por via
negativa, segundo o esquema liberal (basta não estar “contra nós”). O compromisso
e o longo atalho de Kádár são uma estratégia dos Habsburgo; das fendas do
sistema forjado segundo o modelo soviético renasce não só a nostalgia pela
Mitteleuropa, mas também a forma mitteleuropeia, seu estilo ético-político.”
“Endre Ady canta a “tétrica terra magiar”,
declara-se “tristemente magiar”, e proclama que “os Messias magiares são mil
vezes Messias” porque no seu país as lágrimas são mais salgadas e eles morrem
em nada ter redimido.”
Grafites em
Ivanovo
A vinte quilômetros de Ruse, perto de
Ivanovo, rochedos íngremes escondem, no alto, uma igreja rupestre do século
XIV; a gruta contém afrescos com cores giottescas, céus azul-noite e paisagens
da pintura sienense, um Cristo flagelado que olha tranquilo para a frente. Os
afrescos conservados neste ninho de águia, que domina uma encantadora paisagem
de paz selvagem, têm uma beleza admirável; aquelas pinturas saídas da escola
bizantina de Tarnovo, a antiga capital dos czares búlgaros, são a expressão de
uma alta civilização, coagida durante cinco séculos ao silêncio. A ameaçar
aqueles afrescos não se veem mais os turcos, mas, além da umidade, as escritas
e assinaturas grafadas na pedra pelos visitantes. O vandalismo ávido de
imortalidade tem precedentes ilustres, como, por exemplo, lorde Byron, que
deturpa com o próprio nome o templo de Posêidon em Cabo Súnio. O tempo, porém,
nobilita o vandalismo: as escritas com que alguns gregos e armênios, no século
XVIII, avariaram um mágico céu azul são agora objeto de interesse e são
protegidas quase tanto quanto o próprio céu. Se há uma coisa que não posso
suportar, dizia Victor Hugo quando presenciava algo de particularmente estúpido
ou reprovável, é pensar que tudo isso amanhã será história.
O poste da
cegonha
Numa aldeia entre Ivanovo e Ruse uma cegonha
fazia sempre o ninho em cima de um poste de luz, ignorando o perigo e os danos
que podia provocar. A prefeitura, após tentar várias vezes em vão afastá-la,
plantou, por deliberação oficial, outro poste expressamente reservado para a
cegonha, que de fato o elegeu como periódico domicílio. A Bulgária é também
terra deste tipo de gentileza; não somente o famoso vale das rosas, que
distraía Moltke quando saía a visitar fortalezas, mas também a muita atenção
dada aos animais e à sua poesia.
“Todo grande escritor é enganado pelos
demônios que põe a nu, conhece-os porque os tem em si mesmo, denuncia o poderio
deles enquanto arrisca ser subjugado por eles.”
“Hoje parece haver na Romênia algum sinal
extremamente cauteloso de uma mínima revisão do juízo sobre o Conducator, sobre o duce executado em 1º de junho de 1946. A história de Antonescu é
uma parábola clássica do fascismo e das lacerações no interior da direita
europeia. Antonescu participou ativamente da repressão à revolução comunista
húngara de Béla Kun, ocupando Budapeste, e é uma típica figura da reação;
ditador, alia-se aos nazistas, mas sufoca o fascismo romeno. Naqueles decênios
o fascismo, até certo ponto, é uma força que os outros pensam poder usar; as
potências ocidentais tentam servir-se dele para aniquilar o comunismo e
lançá-lo contra a União Soviética; esta inverte a situação e procura ganhar
tempo e consolidar-se aliando-se a Hitler. Num certo momento o jogo termina, o
fascismo não é mais utilizável para qualquer fim ou qualquer cálculo político;
coloca-se e é colocado contra todos, e seu destino torna-se uma aventura
extrema de delírio, infâmia e desespero.
Alguns tipos de fascismo ou algumas forças de
direita favorecidas pelo fascismo tentam, quando as coisas se precipitam, saltar
do carro, distinguir seu nacionalismo militarista do ultrarradicalismo negro;
Antonescu consegue apenas esboçar um passo para trás.”
“No seu romance O velho e o funcionário Mircea Eliade desceu às adegas da velha
Bucareste, onde seus personagens desaparecem misteriosamente, assim como as
flechas que eles lançam para o alto nunca mais voltam a descer. A polícia
secreta do Estado, no romance, tenta decifrar o significado político dessas
histórias fabulosas de desaparecimentos e magias, perdendo-se todavia nos
meandros da narração mítica; o velho mestre Zaharia Farâma, que conta essas
histórias, sobrevive aos poderosos que o interrogam para extrair dele supostos
segredos de Estado, à temida Ana Pauker que o convoca a prestar contas dessas
fantasias.
Para Mircea Eliade a autêntica e imortal
mitologia popular contrapõe-se a falsa mitologia tecnocrática do poder. Talvez
o grande mitólogo esteja errado, talvez esteja sublimando o passado;
provavelmente todo mito arcaico, que agora nos aparece em sua verdade incorrupta,
foi originariamente truque e poderio tecnocrático, arcano elaborado pelo poder,
o enigma de que se cerca uma polícia secreta. Os séculos varrem as polícias
secretas e seu poderio, de maneira que resta só o conto – mythos – de seu mistério, puro e autêntico como toda fábula que não
persegue fins subalternos, mas pretende só narrar. Quando tiver transcorrido o
tempo necessário, a reemersão e o abismamento provocados pelas obras ordenadas
por Ceausescu se tornarão talvez uma fonte de poesia e de mito como as
devastações antigas.”
“Como quase sempre acontece com o imoralismo
que nasce da revolta ética contra a falsa moral, também Panait Istrati, o
defensor dos fracos e dos oprimidos, acaba por sucumbir a uma sedução ingênua
pela vitalidade, sem perceber que ela decreta imperscrutavelmente a dominação
do mais forte. O sexo polimorfo é exaltado como livre prazer, mas ele se torna
também uma armadilha, que atrai as vítimas para o vórtice da vida e para as
mãos dos perseguidores. Para Panait Istrati, poeta quando escuta o sofrimento e
pedante quando canta a vida sem lei ou o progresso, a existência se assemelha a
um prostíbulo do Oriente, com suas tendas convidativas na entrada e sua
imundície no interior.”