Editora: Francis
ISBN: 978-85-8936-268-9
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Publicado
originalmente em 1945, este livro é um relato das viagens de Henry Miller pelos
Estados Unidos. Miller fez essas viagens entre 1940 e 1945, depois de uma longa
estada na Europa. O autor comenta o cenário do país, bem como o ânimo e o
temperamento das pessoas, e destaca, entre outras coisas, o contraste entre os
ideais dos fundadores da nação com o amor contemporâneo dos americanos em
ganhar dinheiro.
“Os maiores homens do mundo morreram
desconhecidos. Os budas e cristos que conhecemos não passam de heróis de
segunda linha em comparação com os maiores nomes de que o mundo nada sabe.
Centenas desses heróis desconhecidos viveram em todos os países, trabalhando em
silêncio. Em silêncio viveram e em silêncio morreram; e a seu tempo seus
pensamentos encontraram expressão em budas ou cristos; e estes últimos é que
ficaram conhecidos para nós. Os homens mais elevados não procuram construir um
nome nem buscam fama por seu conhecimento. Deixam suas ideias para o mundo; não
reclamam nada para si próprios e não estabelecem escolas nem sistemas em seus
nomes.” (Swami Vivekananda)
“A
América não é lugar para artistas: ser artista é ser um leproso moral, um
desajustado econômico, uma obrigação social. Um porco alimentado a milho tem
vida melhor que um escritor criativo, um pintor ou um músico.”
“Estamos acostumados a pensar em nós mesmos
(estadunidenses) como um povo emancipado. Dizemos que somos democráticos, amantes
da liberdade, livres de preconceitos e ódio. Aqui é o cadinho, o sítio do
grande experimento humano. Belas palavras, cheias de sentimento nobre e
idealista. Na verdade, somos uma turba vulgar e opressiva cujas paixões são
facilmente mobilizadas por demagogos, jornalistas, charlatães religiosos,
agitadores e que tais. Chamar isto aqui de sociedade de povos livres é uma
blasfêmia. O que temos a oferecer ao mundo além da superabundante pilhagem que
com total indiferença arrancamos da terra sob a maníaca ilusão de que essa
atividade insana representa progresso e iluminação? A terra da oportunidade
transformou-se em terra do suor e do esforço sem sentido. O objeto de nosso
empenho há muito foi esquecido.”
“Os trabalhadores do mundo podem um
dia, se pararem de dar ouvidos a seus fanáticos líderes, organizar uma
irmandade humana. Mas os homens não podem ser irmãos sem primeiro se tornar
pares, isto é, iguais em um sentido nobre. O que impede os homens de se unir
como irmãos é sua própria e abjeta inadequação. Escravos não podem se unir;
covardes não podem se unir; ignorantes não podem se unir. Só obedecendo aos
nossos mais elevados impulsos podemos nos unir. O impulso de se superar tem de
ser instintivo, não teórico, nem meramente acreditado. A menos que nos esforcemos
para entender as verdades que estão em nós, continuaremos
sempre fracassando.”
“Mas não, no mundo industrial tudo é sujo,
degradado, aviltado. A coisa chegou a tal ponto que, quando se vê a bandeira
ousada e orgulhosamente exposta, sente-se o cheiro de rato em algum lugar. A
bandeira tornou-se o manto que esconde a iniquidade. Temos sempre duas
bandeiras americanas: uma para os ricos e outra para os pobres. Quando os ricos
a desfraldam quer dizer que as coisas estão sob controle; quando os pobres a
desfraldam significa perigo, revolução, anarquia. Em menos de duzentos anos, a
terra da liberdade, a pátria dos homens livres, refúgio dos oprimidos, alterou
de tal forma o sentido das Listras e Estrelas que, hoje, quando um homem ou uma
mulher consegue escapar dos horrores da (2ª guerra na) Europa, quando
finalmente se vê diante do balcão debaixo de nosso glorioso emblema nacional, a
primeira pergunta que se faz para ele é: “Quanto dinheiro você tem?”. Se
você não tem dinheiro, mas apenas amor pela liberdade, apenas uma prece por
misericórdia nos lábios, é excluído, devolvido para o matadouro, segregado como
um leproso. É nessa amarga caricatura que os descendentes de nossos patriarcas
amantes da liberdade transformam nosso emblema nacional.
Tudo é caricatural aqui. Pego um avião para
ir ver meu pai em seu leito de morte e lá em cima, nas nuvens, em meio a uma
furiosa tempestade, escuto dois homens atrás de mim discutindo como fechar um
grande negócio, um grande negócio de caixas de papelão, nada mais, nada menos.
A aeromoça, que foi treinada para se portar como mãe, enfermeira, amante,
cozinheira, serva, nunca desarrumada, nunca com os cachos do cabelo
despenteados, nunca com um sinal de fadiga ou decepção ou tristeza ou solidão,
a aeromoça pousa a mão branca como lírio na testa de um dos vendedores da caixa
de papelão e, com voz de anjo da guarda, diz: “Está cansado hoje? com dor de
cabeça? Gostaria de uma aspirina?”
Estamos acima das nuvens e ela desempenha sua
performance como uma foca amestrada. Quando o avião dá um tranco de repente,
ela cai e revela um tentador par de coxas. Os dois vendedores falam de botões
agora, onde comprar barato, como vender caro. Outro homem, um banqueiro
cansado, lê notícias da guerra. Há uma grande greve acontecendo em algum lugar
– várias greves, na verdade. Vamos construir uma frota de navios mercantes com
a ajuda da Inglaterra – em dezembro que vem. A tempestade ruge. A
moça cai de novo – está cheia de marcas roxas. Mas levanta-se sorrindo,
servindo café e chicletes, pousando a mão branca como lírio na testa de alguém,
perguntando se está tristinho, cansadinho talvez. Pergunto se ela gosta de seu
trabalho. Como resposta, diz: “Melhor que ser enfermeira formada”. Os
vendedores estão avaliando seus pontos; falam dela como se fosse um bem
público. Eles compram e vendem, compram e vendem. Para isso precisam dos
melhores quartos nos melhores hotéis, dos aviões mais rápidos e velozes, dos
casacos mais grossos e quentes, das bolsas maiores e mais gordas. Precisamos de
suas caixas de papelão, de seus botões, de suas peles sintéticas, de seus
produtos de borracha, de suas meias, seus isto e aquilo de plástico. Precisamos
do banqueiro, de seu gênio em pegar nosso dinheiro e enriquecer com ele. Do
homem dos seguros, de suas apólices, de sua conversa sobre segurança, de
dividendos – precisamos dele também. Precisamos mesmo? Não acredito
que precisemos de nenhum desses abutres. Não vejo por que precisamos de nenhuma
dessas cidades, dessas bocas do inferno em que estive. Não acho que precisemos
de uma frota para dois oceanos também. Estava em Detroit algumas noites atrás.
Vi a Linha Mannerheim no cinema. Vi como os russos a pulverizaram. Aprendi a
lição. Você aprendeu? Diga-me: o que o homem é capaz de construir para se proteger
que outros homens não possam destruir? O que estamos tentando defender? Só
aquilo que é velho, inútil, morto, indefensável. Toda defesa é uma provocação
ao ataque. Por que não se render? Por que não entregar – entregar tudo? É tão
prático, tão absolutamente eficiente e desconcertante. Aqui estamos, somos o
povo dos Estados Unidos: o maior povo da terra, pensamos. Temos tudo – tudo o
que é preciso para deixar as pessoas felizes. Temos terra, água, céu e tudo o
que vem com isso. Podíamos nos tornar o grande exemplo rutilante para o mundo;
podíamos irradiar paz, alegria, poder, benevolência. Mas existem fantasmas por
toda parte, fantasmas que parece que não conseguimos apanhar. Não estamos
felizes, nem contentes, nem radiantes, nem destemidos.”
“Almas não crescem em fábricas. Almas são
mortas em fábricas – até mesmo as mesquinhas.”
(...) “O sentimento inicial de atração e
admiração pelo formidável poder da jovem república havia desaparecido.
Vivekananda quase de imediato se sentiu vítima da brutalidade, da desumanidade,
da pequenez de espírito, do estreito fanatismo, da monumental ignorância, da
esmagadora incompreensão, tão franco e seguro de si quanto todos os que
pensavam, que acreditavam, que viam a vida de um jeito diferente da nação
protótipo da espécie humana... Então ele não teve mais paciência. Não fez nada.
Ele estigmatizou os vícios e crimes da civilização ocidental com suas
características de violência, pilhagem e destruição.
Uma vez, quando tinha de falar em Boston
sobre uma bela questão religiosa que lhe era particularmente querida
(Ramakrishna), sentiu tal repulsa ao ver a plateia, a multidão artificial e
cruel de homens de negócios e do mundo, que se recusou a entregar a eles a
chave de seu santuário e, mudando de assunto bruscamente, investiu furiosamente
contra a civilização representada por aqueles lobos e raposas. O escândalo foi
terrível. Centenas de pessoas saíram da sala ruidosamente e a imprensa se
enfureceu. Ele foi especialmente amargo contra a falsa cristandade e a
hipocrisia religiosa: ‘com toda a sua empáfia e orgulho, onde a cristandade foi
bem-sucedida sem a espada? A sua é uma religião pregada em nome da luxúria. É
tudo hipocrisia o que tenho ouvido neste país. Toda essa prosperidade, tudo
isso de Cristo! Os que apelam para Cristo não se importam com nada além de
acumular riquezas! Cristo não encontraria entre vocês nem uma pedra onde
repousar a cabeça’...”
“O parque americano é um vácuo circunscrito
cheio de parvos catalépticos. Assim como a arquitetura do lar americano, não
existe nem um grama de personalidade no parque. Ele é, como o chamam
corretamente, “apenas um pouco de espaço para respirar”, um oásis em meio ao
fedor de asfalto, aos vapores químicos e à gasolina velha.
Fede a tuberculose, halitose, veias
varicosas, paranoia, falsidade, onanismo e ocultismo. Todos os desajustados,
todos os inadequados, os acabados e os frustrados da América parecem acabar
ali. É o pântano emocional que se tem de atravessar a vau para chegar aos
Everglades. Quinze anos atrás, quando me sentei nesse parque pela primeira vez,
atribuí meus sentimentos e impressões ao fato de estar deprimido e acabado, com
fome e sem um lugar para dormir. Ao retornar ali, fiquei ainda mais deprimido.
Nada havia mudado. Os bancos estavam sujos como antes com os detritos da
humanidade – não do tipo deprimido de Londres ou de Nova York, não do tipo
pitoresco que pontilha os quais de Paris, mas aquela variedade
americana balofa e suja que sai da respeitável classe média: claros
globos de catarro, por assim dizer. Do tipo que tenta elevar a mente mesmo
quando não resta mente nenhuma. Os detritos e refugos que boiam na água do
esgoto para dentro e para fora das Igrejas de Ciência Cristã, dos tabernáculos
rosa-cruzes, dos salões de astrologia, das clínicas gratuitas, das reuniões
evangélicas, dos birôs de caridade, das agências de empregos, das pensões
baratas e por aí vai. Do tipo que pode estar lendo o Bhagavad Gita com
a barriga vazia ou fazendo flexões de braço no armário de roupas. O tipo
americano por excelência, sempre pronto a acreditar no que está escrito nos
jornais, sempre à espera do Messias. Nem um pingo de dignidade lhe resta. O
verme branco se retorcendo no torno da respeitabilidade! (...)
Talvez meus desejos sejam humanos demais,
tangíveis demais, imediatos demais. A pessoa tem de ser paciente, tem de ser
capaz de esperar não milhares de anos, mas milhões de anos. Tem de ser capaz de
sobreviver ao sol e à lua, sobreviver a Deus e à ideia de Deus, sobrepujar o
cosmos, superar a molécula, o átomo, o elétron. Tem de se sentar nesses parques
como numa privada pública, cumprindo suas funções – como a vaca de costelas na
encosta vermelha. Não pense na América enquanto tal, na América per se,
na América ad astra: pense nos céus sem atmosfera, nos canais sem
água, nos habitantes sem roupas, nas palavras sem ideias, na vida sem morte, em
algo que continue infindavelmente e sem nome, sem pé nem cabeça, sem ter
sentido, fazendo grande sentido quando você perde a obsessão com tempo e
espaço, com destino, causalidade, lógica, entropia, aniquilação, Nirvana e
Maya.”
“A prisão, claro, é a escola de crime par
excellence. Enquanto não passa por essa escola o sujeito é apenas um
amador. Na prisão estabelecem-se laços de amizade, muitas vezes por causa de
uma ninharia, de uma palavra gentil, de um olhar, de um osso. Depois, lá fora,
no mundo, a pessoa fará qualquer coisa para provar sua lealdade. Mesmo que o
sujeito deseje de todo coração se endireitar, quando chega o momento crítico,
quando chega o impasse entre acreditar no mundo e acreditar no amigo, a pessoa
escolhe este último. Lá se tem um gostinho do mundo; aprende-se que não é
possível esperar justiça ou misericórdia. Mas nunca se pode esquecer um ato de
generosidade num momento de grande necessidade. Explodir uma prisão? Mas
é claro, se isso vai ajudar seu amigo. Mas também pode significar
prisão perpétua ou morte na cadeira elétrica! E daí? Um favor merece
outro. Você foi humilhado, torturado, reduzido ao nível de fera selvagem. Quem
ligou para isso? Ninguém. Ninguém lá de fora, não, nem mesmo o próprio Deus,
sabe o que um homem sofre do lado de dentro. Não há linguagem que possa
descrever isso. Está além da compreensão humana. É uma coisa tão vasta, tão
grande, tão profunda que até os anjos, com todo o seu poder de compreensão e
todo o seu poder de locomoção, jamais poderiam explorar a totalidade disso.
Não, quando um amigo pede, você tem de atender. Tem de fazer por ele o que nem
Deus faria. É a lei. Senão você desmorona, vai latir de noite, feito um
cachorro.”
“Acho que não existe na América região como o
Sul para se ter uma boa conversa. Aqui os homens conversam, em vez de discutir
e disputar. Imagino que aqui existam mais personagens excêntricos, bizarros, do
que em qualquer outra parte dos Estados Unidos. O Sul gera caráter, não
intelectualismo estéril. Em certos indivíduos, o fato de estarem isolados do
mundo tende a produzir um florescimento forçado; eles irradiam força e
magnetismo, sua fala é cintilante e estimulante. Têm uma vida sossegada e rica,
toda própria, em harmonia com seu meio ambiente e livre das mesquinhas ambições
e rivalidades do homem do mundo. Geralmente não assentam sem uma batalha, pois
a maior parte deles possui talentos e energias insuspeitadas pelo invasor
curioso. O sulista de verdade, em minha opinião, é mais dotado por natureza,
muito mais aberto, mais dinâmico, mais inventivo e sem dúvida mais cheio de
gosto pela vida do que o homem do Norte ou do Oeste. Quando ele escolhe se
retirar do mundo, não é por derrotismo, mas porque, assim como no caso dos
franceses e chineses, o próprio amor pela vida lhes instila uma sabedoria que
se expressa na renúncia. A adaptação mais difícil que um expatriado tem de
fazer ao voltar para sua terra natal se encontra nesse âmbito de conversação. A
impressão que se tem, de início, é que não há conversa. Nós
não conversamos – nós nos batemos uns aos outros com fatos e teorias recolhidos
em leituras superficiais de jornais, revistas e resenhas. Conversar é algo
pessoal, e, se tem algum valor, esse valor deve ser criativo. Tive de vir ao
Sul para ouvir essa conversa. Tive de conhecer homens cujos nomes são
desconhecidos, homens que vivem em locais inacessíveis, para poder gozar o que
chamo de uma conversa verdadeira.”
“Na França, os velhos, principalmente os de origem
camponesa, são uma alegria e uma inspiração a se imitar. São como grandes
árvores que nenhuma tempestade consegue derrubar; irradiam paz, serenidade e
sabedoria. Na América, os velhos são, em geral, uma tristeza, principalmente os
bem-sucedidos que prolongam sua existência muito além dos termos naturais por
meio de respiração artificial, por assim dizer. São horríveis exemplos vivos da
arte do embalsamador, cadáveres semoventes manipulados por um séquito de
atendentes muito bem pagos que são uma vergonha para a sua profissão.”
“Estamos quase acordando quando sonhamos que
estamos sonhando.”
“Mas o homem branco americano (sem falar do
indígena, do negro, do mexicano) não tem nem um fantasma de chance. Se ele tem
qualquer talento, está condenado a vê-lo esmagado de uma forma ou de outra. O
estilo americano é seduzir o homem por meio de propina e transformá-lo num
prostituto. Ou então ignorá-lo, deixar que morra de fome até se submeter, e
reduzi-lo a um picareta. Não são os oceanos que nos isolam do mundo – é o jeito
americano de olhar as coisas. Nada se realiza aqui a não ser projetos
utilitários. Pode-se viajar milhares de quilômetros absolutamente sem ter noção
da existência do mundo da arte. Aprende-se a respeito de cerveja, leite condensado,
produtos de borracha, comida enlatada, colchões infláveis etc., mas não se vê
nem se ouve nada a respeito das obras-primas da arte. Para mim, parece nada
menos que um milagre os jovens da América jamais ouvirem nomes como Picasso,
Céline, Giotto ou que tais. Eles têm de lutar como o diabo para ver a obra dos
mestres europeus, e como podem, quando se veem face a face com a obra deles,
saber ou entender o que produziu aquilo? Que relação tem aquilo com eles? Se
for um ser sensível, quando entrar em contato com a obra madura dos europeus,
já estará meio enlouquecido. A maioria dos jovens de talento que encontrei
neste país dá a impressão de ser um tanto demente. Por que não daria? Eles
estão vivendo no meio de gorilas espirituais, vivendo com maníacos por comida e
bebida, comerciantes de sucesso, inovadores de aparelhinhos, mastins da
publicidade. Meu Deus, se eu fosse jovem hoje, se me visse diante de um mundo
como este que criamos, seria capaz de explodir os miolos. Ou talvez, como
Sócrates, eu entrasse no mercado e vertesse ao solo minha semente. Decerto
nunca pensaria em escrever um livro, pintar um quadro ou compor uma peça
musical. Para quem? Quem além de um punhado de almas desesperadas é capaz de
reconhecer uma obra de arte? O que se pode fazer consigo mesmo se a própria
vida é dedicada à beleza? Quem está disposto a encarar a perspectiva de passar
o resto da vida em uma camisa-de-força?”
“Até agora não tivemos censura a música,
embora me lembre de Huneker ter escrito em algum lugar que era surpreendente
não termos censurado certas obras-primas. Quanto a Varèse, honestamente
acredito que, se lhe dessem espaço, ele seria não apenas censurado, mas
apedrejado. Por quê? Pela simples razão de que sua música é diferente.
Esteticamente, somos talvez o povo mais conservador do mundo. Precisamos estar
completamente bêbados para aceitar alguma coisa. Nossa educação é tão absoluta
– e tediosa – que somos incapazes de gostar de alguma coisa nova, alguma coisa
diferente, enquanto não nos explicarem do que se trata. Não confiamos nos cinco
sentidos; dependemos dos nossos críticos e educadores, todos eles fracassos no
reino da criação.
Em resumo, o cego conduz o cego. É o jeito
democrático. E assim o futuro, que é sempre iminente, acaba absorvido e
frustrado, jogado para escanteio, sufocado, mutilado, às vezes aniquilado,
criando a ilusão familiar de um mundo einsteiniano que não é nem carne nem
peixe, um mundo de curvas finitas que levam ao túmulo ou ao asilo de pobres, ou
ao hospício, ou ao campo de concentração, ou às cálidas e protetoras dobras do
Partido Democrata-Republicano. E assim surgem loucos que tentam restaurar a lei
e a ordem com o machado. Quando milhões de vidas se perderem, quando finalmente
chegarmos a elas e as exterminarmos a machadadas, poderemos respirar com um
pouco mais de conforto em nossas celas acolchoadas.”
“A música é um belo ópio, se você não a levar
muito a sério.”
“Tabus, embora não se admita, são potentes. O
que as pessoas temem? Temem o que não entendem. Sob esse
aspecto, o homem civilizado não é nada diferente do selvagem. O novo sempre
traz consigo a sensação de violação, de sacrilégio. O que está morto é sagrado;
o que é novo, isto é, diferente, é mau, perigoso ou subversivo.”
“Desde que resolvi vender o carro, ele tem
andado maravilhosamente. A maldita máquina se comporta como uma mulher
namoradeira.”
“Na noite anterior, quando dava meu passeio costumeiro
pela beira do Canyon, a visão de uma folha de quadrinhos (o que me chamou a
atenção foi o Príncipe Valente) caída na beira do abismo despertou em mim
curiosas reflexões. O que podia parecer mais inútil, estéril e insignificante
do que uma folha de quadrinhos de domingo diante de um espetáculo tão vasto e
misterioso quanto o Grand Canyon? Lá estava ela, descuidadamente jogada fora
por um leitor indiferente, pronta a ser levada pelo menor vento e extinta. Por
trás dessa folha colorida com espalhafato, que exigiu para sua criação as
energias de homens incontáveis, variados recursos da natureza, os tênues
desejos de crianças superalimentadas, estava toda a história da culminação de
nossa sociedade ocidental. Para mim é difícil fazer qualquer distinção de valor
entre uma folha de quadrinhos, um navio de guerra, um dínamo, uma estação de
radio-transmissão. Estão todos no mesmo plano, são todos manifestações de uma
energia inquieta, descontrolada, de impermanência, de morte e dissolução.
Olhando o Canyon, os grandes anfiteatros, coliseus, templos que a natureza
escavou ao longo de incalculáveis períodos de tempo em diferentes ordens de
rochas, perguntei-me por que efetivamente aquela vasta criação não podia ser
obra do homem. Por que, na América, as grandes obras de arte são todas obras da
natureza? Havia arranha-céus, com certeza, e diques, pontes, estradas de
concreto. Todos utilitários. Em nenhum lugar da América havia nada comparável
às catedrais da Europa, aos templos da Ásia e do Egito – monumentos duradouros
criados pela fé, pelo amor, pela paixão. Nenhuma exaltação, nenhum fervor,
nenhum zelo – a não ser para aumentar os negócios, facilitar o transporte,
aumentar o domínio da impiedosa exploração. Resultado disso? Um povo em rápida
decadência, um terço na pobreza, os mais inteligentes e influentes cometendo
suicídio racial, os pobres coitados se tornando mais e mais desregrados, mais e
mais criminosos, mais degenerados e degradados sob todos os aspectos. Um
punhado de políticos indiferentes, ambiciosos tentando convencer a multidão de
que este é o último refúgio da civilização, Deus salve os indicadores!
Os homens do futuro vão olhar as relíquias
desta era como nós olhamos os artefatos da Idade da Pedra. Somos dinossauros
mentais. Arrastamo-nos com pés pesados, cabeça entorpecida, sem imaginação em
meio a milagres aos quais nos tornamos impermeáveis. Todas as nossas invenções
e descobertas levam à aniquilação.”
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