domingo, 29 de dezembro de 2013

Pesadelo Refrigerado – Henry Miller

Editora: Francis
ISBN: 978-85-8936-268-9
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Publicado originalmente em 1945, este livro é um relato das viagens de Henry Miller pelos Estados Unidos. Miller fez essas viagens entre 1940 e 1945, depois de uma longa estada na Europa. O autor comenta o cenário do país, bem como o ânimo e o temperamento das pessoas, e destaca, entre outras coisas, o contraste entre os ideais dos fundadores da nação com o amor contemporâneo dos americanos em ganhar dinheiro.



“Os maiores homens do mundo morreram desconhecidos. Os budas e cristos que conhecemos não passam de heróis de segunda linha em comparação com os maiores nomes de que o mundo nada sabe. Centenas desses heróis desconhecidos viveram em todos os países, trabalhando em silêncio. Em silêncio viveram e em silêncio morreram; e a seu tempo seus pensamentos encontraram expressão em budas ou cristos; e estes últimos é que ficaram conhecidos para nós. Os homens mais elevados não procuram construir um nome nem buscam fama por seu conhecimento. Deixam suas ideias para o mundo; não reclamam nada para si próprios e não estabelecem escolas nem sistemas em seus nomes.” (Swami Vivekananda)



 “A América não é lugar para artistas: ser artista é ser um leproso moral, um desajustado econômico, uma obrigação social. Um porco alimentado a milho tem vida melhor que um escritor criativo, um pintor ou um músico.”


“Estamos acostumados a pensar em nós mesmos (estadunidenses) como um povo emancipado. Dizemos que somos democráticos, amantes da liberdade, livres de preconceitos e ódio. Aqui é o cadinho, o sítio do grande experimento humano. Belas palavras, cheias de sentimento nobre e idealista. Na verdade, somos uma turba vulgar e opressiva cujas paixões são facilmente mobilizadas por demagogos, jornalistas, charlatães religiosos, agitadores e que tais. Chamar isto aqui de sociedade de povos livres é uma blasfêmia. O que temos a oferecer ao mundo além da superabundante pilhagem que com total indiferença arrancamos da terra sob a maníaca ilusão de que essa atividade insana representa progresso e iluminação? A terra da oportunidade transformou-se em terra do suor e do esforço sem sentido. O objeto de nosso empenho há muito foi esquecido.”


“Os trabalhadores do mundo podem um dia, se pararem de dar ouvidos a seus fanáticos líderes, organizar uma irmandade humana. Mas os homens não podem ser irmãos sem primeiro se tornar pares, isto é, iguais em um sentido nobre. O que impede os homens de se unir como irmãos é sua própria e abjeta inadequação. Escravos não podem se unir; covardes não podem se unir; ignorantes não podem se unir. Só obedecendo aos nossos mais elevados impulsos podemos nos unir. O impulso de se superar tem de ser instintivo, não teórico, nem meramente acreditado. A menos que nos esforcemos para entender as verdades que estão em nós, continuaremos sempre fracassando.”


“Mas não, no mundo industrial tudo é sujo, degradado, aviltado. A coisa chegou a tal ponto que, quando se vê a bandeira ousada e orgulhosamente exposta, sente-se o cheiro de rato em algum lugar. A bandeira tornou-se o manto que esconde a iniquidade. Temos sempre duas bandeiras americanas: uma para os ricos e outra para os pobres. Quando os ricos a desfraldam quer dizer que as coisas estão sob controle; quando os pobres a desfraldam significa perigo, revolução, anarquia. Em menos de duzentos anos, a terra da liberdade, a pátria dos homens livres, refúgio dos oprimidos, alterou de tal forma o sentido das Listras e Estrelas que, hoje, quando um homem ou uma mulher consegue escapar dos horrores da (2ª guerra na) Europa, quando finalmente se vê diante do balcão debaixo de nosso glorioso emblema nacional, a primeira pergunta que se faz para ele é: “Quanto dinheiro você tem?”. Se você não tem dinheiro, mas apenas amor pela liberdade, apenas uma prece por misericórdia nos lábios, é excluído, devolvido para o matadouro, segregado como um leproso. É nessa amarga caricatura que os descendentes de nossos patriarcas amantes da liberdade transformam nosso emblema nacional.
Tudo é caricatural aqui. Pego um avião para ir ver meu pai em seu leito de morte e lá em cima, nas nuvens, em meio a uma furiosa tempestade, escuto dois homens atrás de mim discutindo como fechar um grande negócio, um grande negócio de caixas de papelão, nada mais, nada menos. A aeromoça, que foi treinada para se portar como mãe, enfermeira, amante, cozinheira, serva, nunca desarrumada, nunca com os cachos do cabelo despenteados, nunca com um sinal de fadiga ou decepção ou tristeza ou solidão, a aeromoça pousa a mão branca como lírio na testa de um dos vendedores da caixa de papelão e, com voz de anjo da guarda, diz: “Está cansado hoje? com dor de cabeça? Gostaria de uma aspirina?”
Estamos acima das nuvens e ela desempenha sua performance como uma foca amestrada. Quando o avião dá um tranco de repente, ela cai e revela um tentador par de coxas. Os dois vendedores falam de botões agora, onde comprar barato, como vender caro. Outro homem, um banqueiro cansado, lê notícias da guerra. Há uma grande greve acontecendo em algum lugar – várias greves, na verdade. Vamos construir uma frota de navios mercantes com a ajuda da Inglaterra – em dezembro que vem. A tempestade ruge. A moça cai de novo – está cheia de marcas roxas. Mas levanta-se sorrindo, servindo café e chicletes, pousando a mão branca como lírio na testa de alguém, perguntando se está tristinho, cansadinho talvez. Pergunto se ela gosta de seu trabalho. Como resposta, diz: “Melhor que ser enfermeira formada”. Os vendedores estão avaliando seus pontos; falam dela como se fosse um bem público. Eles compram e vendem, compram e vendem. Para isso precisam dos melhores quartos nos melhores hotéis, dos aviões mais rápidos e velozes, dos casacos mais grossos e quentes, das bolsas maiores e mais gordas. Precisamos de suas caixas de papelão, de seus botões, de suas peles sintéticas, de seus produtos de borracha, de suas meias, seus isto e aquilo de plástico. Precisamos do banqueiro, de seu gênio em pegar nosso dinheiro e enriquecer com ele. Do homem dos seguros, de suas apólices, de sua conversa sobre segurança, de dividendos – precisamos dele também. Precisamos mesmo? Não acredito que precisemos de nenhum desses abutres. Não vejo por que precisamos de nenhuma dessas cidades, dessas bocas do inferno em que estive. Não acho que precisemos de uma frota para dois oceanos também. Estava em Detroit algumas noites atrás. Vi a Linha Mannerheim no cinema. Vi como os russos a pulverizaram. Aprendi a lição. Você aprendeu? Diga-me: o que o homem é capaz de construir para se proteger que outros homens não possam destruir? O que estamos tentando defender? Só aquilo que é velho, inútil, morto, indefensável. Toda defesa é uma provocação ao ataque. Por que não se render? Por que não entregar – entregar tudo? É tão prático, tão absolutamente eficiente e desconcertante. Aqui estamos, somos o povo dos Estados Unidos: o maior povo da terra, pensamos. Temos tudo – tudo o que é preciso para deixar as pessoas felizes. Temos terra, água, céu e tudo o que vem com isso. Podíamos nos tornar o grande exemplo rutilante para o mundo; podíamos irradiar paz, alegria, poder, benevolência. Mas existem fantasmas por toda parte, fantasmas que parece que não conseguimos apanhar. Não estamos felizes, nem contentes, nem radiantes, nem destemidos.”


“Almas não crescem em fábricas. Almas são mortas em fábricas – até mesmo as mesquinhas.”


(...) “O sentimento inicial de atração e admiração pelo formidável poder da jovem república havia desaparecido. Vivekananda quase de imediato se sentiu vítima da brutalidade, da desumanidade, da pequenez de espírito, do estreito fanatismo, da monumental ignorância, da esmagadora incompreensão, tão franco e seguro de si quanto todos os que pensavam, que acreditavam, que viam a vida de um jeito diferente da nação protótipo da espécie humana... Então ele não teve mais paciência. Não fez nada. Ele estigmatizou os vícios e crimes da civilização ocidental com suas características de violência, pilhagem e destruição.
Uma vez, quando tinha de falar em Boston sobre uma bela questão religiosa que lhe era particularmente querida (Ramakrishna), sentiu tal repulsa ao ver a plateia, a multidão artificial e cruel de homens de negócios e do mundo, que se recusou a entregar a eles a chave de seu santuário e, mudando de assunto bruscamente, investiu furiosamente contra a civilização representada por aqueles lobos e raposas. O escândalo foi terrível. Centenas de pessoas saíram da sala ruidosamente e a imprensa se enfureceu. Ele foi especialmente amargo contra a falsa cristandade e a hipocrisia religiosa: ‘com toda a sua empáfia e orgulho, onde a cristandade foi bem-sucedida sem a espada? A sua é uma religião pregada em nome da luxúria. É tudo hipocrisia o que tenho ouvido neste país. Toda essa prosperidade, tudo isso de Cristo! Os que apelam para Cristo não se importam com nada além de acumular riquezas! Cristo não encontraria entre vocês nem uma pedra onde repousar a cabeça’...”


“O parque americano é um vácuo circunscrito cheio de parvos catalépticos. Assim como a arquitetura do lar americano, não existe nem um grama de personalidade no parque. Ele é, como o chamam corretamente, “apenas um pouco de espaço para respirar”, um oásis em meio ao fedor de asfalto, aos vapores químicos e à gasolina velha.
Fede a tuberculose, halitose, veias varicosas, paranoia, falsidade, onanismo e ocultismo. Todos os desajustados, todos os inadequados, os acabados e os frustrados da América parecem acabar ali. É o pântano emocional que se tem de atravessar a vau para chegar aos Everglades. Quinze anos atrás, quando me sentei nesse parque pela primeira vez, atribuí meus sentimentos e impressões ao fato de estar deprimido e acabado, com fome e sem um lugar para dormir. Ao retornar ali, fiquei ainda mais deprimido. Nada havia mudado. Os bancos estavam sujos como antes com os detritos da humanidade – não do tipo deprimido de Londres ou de Nova York, não do tipo pitoresco que pontilha os quais de Paris, mas aquela variedade americana balofa e suja que sai da respeitável classe média: claros globos de catarro, por assim dizer. Do tipo que tenta elevar a mente mesmo quando não resta mente nenhuma. Os detritos e refugos que boiam na água do esgoto para dentro e para fora das Igrejas de Ciência Cristã, dos tabernáculos rosa-cruzes, dos salões de astrologia, das clínicas gratuitas, das reuniões evangélicas, dos birôs de caridade, das agências de empregos, das pensões baratas e por aí vai. Do tipo que pode estar lendo o Bhagavad Gita com a barriga vazia ou fazendo flexões de braço no armário de roupas. O tipo americano por excelência, sempre pronto a acreditar no que está escrito nos jornais, sempre à espera do Messias. Nem um pingo de dignidade lhe resta. O verme branco se retorcendo no torno da respeitabilidade! (...)
Talvez meus desejos sejam humanos demais, tangíveis demais, imediatos demais. A pessoa tem de ser paciente, tem de ser capaz de esperar não milhares de anos, mas milhões de anos. Tem de ser capaz de sobreviver ao sol e à lua, sobreviver a Deus e à ideia de Deus, sobrepujar o cosmos, superar a molécula, o átomo, o elétron. Tem de se sentar nesses parques como numa privada pública, cumprindo suas funções – como a vaca de costelas na encosta vermelha. Não pense na América enquanto tal, na América per se, na América ad astra: pense nos céus sem atmosfera, nos canais sem água, nos habitantes sem roupas, nas palavras sem ideias, na vida sem morte, em algo que continue infindavelmente e sem nome, sem pé nem cabeça, sem ter sentido, fazendo grande sentido quando você perde a obsessão com tempo e espaço, com destino, causalidade, lógica, entropia, aniquilação, Nirvana e Maya.”


“A prisão, claro, é a escola de crime par excellence. Enquanto não passa por essa escola o sujeito é apenas um amador. Na prisão estabelecem-se laços de amizade, muitas vezes por causa de uma ninharia, de uma palavra gentil, de um olhar, de um osso. Depois, lá fora, no mundo, a pessoa fará qualquer coisa para provar sua lealdade. Mesmo que o sujeito deseje de todo coração se endireitar, quando chega o momento crítico, quando chega o impasse entre acreditar no mundo e acreditar no amigo, a pessoa escolhe este último. Lá se tem um gostinho do mundo; aprende-se que não é possível esperar justiça ou misericórdia. Mas nunca se pode esquecer um ato de generosidade num momento de grande necessidade. Explodir uma prisão? Mas é claro, se isso vai ajudar seu amigo. Mas também pode significar prisão perpétua ou morte na cadeira elétrica! E daí? Um favor merece outro. Você foi humilhado, torturado, reduzido ao nível de fera selvagem. Quem ligou para isso? Ninguém. Ninguém lá de fora, não, nem mesmo o próprio Deus, sabe o que um homem sofre do lado de dentro. Não há linguagem que possa descrever isso. Está além da compreensão humana. É uma coisa tão vasta, tão grande, tão profunda que até os anjos, com todo o seu poder de compreensão e todo o seu poder de locomoção, jamais poderiam explorar a totalidade disso. Não, quando um amigo pede, você tem de atender. Tem de fazer por ele o que nem Deus faria. É a lei. Senão você desmorona, vai latir de noite, feito um cachorro.”


“Acho que não existe na América região como o Sul para se ter uma boa conversa. Aqui os homens conversam, em vez de discutir e disputar. Imagino que aqui existam mais personagens excêntricos, bizarros, do que em qualquer outra parte dos Estados Unidos. O Sul gera caráter, não intelectualismo estéril. Em certos indivíduos, o fato de estarem isolados do mundo tende a produzir um florescimento forçado; eles irradiam força e magnetismo, sua fala é cintilante e estimulante. Têm uma vida sossegada e rica, toda própria, em harmonia com seu meio ambiente e livre das mesquinhas ambições e rivalidades do homem do mundo. Geralmente não assentam sem uma batalha, pois a maior parte deles possui talentos e energias insuspeitadas pelo invasor curioso. O sulista de verdade, em minha opinião, é mais dotado por natureza, muito mais aberto, mais dinâmico, mais inventivo e sem dúvida mais cheio de gosto pela vida do que o homem do Norte ou do Oeste. Quando ele escolhe se retirar do mundo, não é por derrotismo, mas porque, assim como no caso dos franceses e chineses, o próprio amor pela vida lhes instila uma sabedoria que se expressa na renúncia. A adaptação mais difícil que um expatriado tem de fazer ao voltar para sua terra natal se encontra nesse âmbito de conversação. A impressão que se tem, de início, é que não há conversa. Nós não conversamos – nós nos batemos uns aos outros com fatos e teorias recolhidos em leituras superficiais de jornais, revistas e resenhas. Conversar é algo pessoal, e, se tem algum valor, esse valor deve ser criativo. Tive de vir ao Sul para ouvir essa conversa. Tive de conhecer homens cujos nomes são desconhecidos, homens que vivem em locais inacessíveis, para poder gozar o que chamo de uma conversa verdadeira.”


“Na França, os velhos, principalmente os de origem camponesa, são uma alegria e uma inspiração a se imitar. São como grandes árvores que nenhuma tempestade consegue derrubar; irradiam paz, serenidade e sabedoria. Na América, os velhos são, em geral, uma tristeza, principalmente os bem-sucedidos que prolongam sua existência muito além dos termos naturais por meio de respiração artificial, por assim dizer. São horríveis exemplos vivos da arte do embalsamador, cadáveres semoventes manipulados por um séquito de atendentes muito bem pagos que são uma vergonha para a sua profissão.”


“Estamos quase acordando quando sonhamos que estamos sonhando.”


“Mas o homem branco americano (sem falar do indígena, do negro, do mexicano) não tem nem um fantasma de chance. Se ele tem qualquer talento, está condenado a vê-lo esmagado de uma forma ou de outra. O estilo americano é seduzir o homem por meio de propina e transformá-lo num prostituto. Ou então ignorá-lo, deixar que morra de fome até se submeter, e reduzi-lo a um picareta. Não são os oceanos que nos isolam do mundo – é o jeito americano de olhar as coisas. Nada se realiza aqui a não ser projetos utilitários. Pode-se viajar milhares de quilômetros absolutamente sem ter noção da existência do mundo da arte. Aprende-se a respeito de cerveja, leite condensado, produtos de borracha, comida enlatada, colchões infláveis etc., mas não se vê nem se ouve nada a respeito das obras-primas da arte. Para mim, parece nada menos que um milagre os jovens da América jamais ouvirem nomes como Picasso, Céline, Giotto ou que tais. Eles têm de lutar como o diabo para ver a obra dos mestres europeus, e como podem, quando se veem face a face com a obra deles, saber ou entender o que produziu aquilo? Que relação tem aquilo com eles? Se for um ser sensível, quando entrar em contato com a obra madura dos europeus, já estará meio enlouquecido. A maioria dos jovens de talento que encontrei neste país dá a impressão de ser um tanto demente. Por que não daria? Eles estão vivendo no meio de gorilas espirituais, vivendo com maníacos por comida e bebida, comerciantes de sucesso, inovadores de aparelhinhos, mastins da publicidade. Meu Deus, se eu fosse jovem hoje, se me visse diante de um mundo como este que criamos, seria capaz de explodir os miolos. Ou talvez, como Sócrates, eu entrasse no mercado e vertesse ao solo minha semente. Decerto nunca pensaria em escrever um livro, pintar um quadro ou compor uma peça musical. Para quem? Quem além de um punhado de almas desesperadas é capaz de reconhecer uma obra de arte? O que se pode fazer consigo mesmo se a própria vida é dedicada à beleza? Quem está disposto a encarar a perspectiva de passar o resto da vida em uma camisa-de-força?”


“Até agora não tivemos censura a música, embora me lembre de Huneker ter escrito em algum lugar que era surpreendente não termos censurado certas obras-primas. Quanto a Varèse, honestamente acredito que, se lhe dessem espaço, ele seria não apenas censurado, mas apedrejado. Por quê? Pela simples razão de que sua música é diferente. Esteticamente, somos talvez o povo mais conservador do mundo. Precisamos estar completamente bêbados para aceitar alguma coisa. Nossa educação é tão absoluta – e tediosa – que somos incapazes de gostar de alguma coisa nova, alguma coisa diferente, enquanto não nos explicarem do que se trata. Não confiamos nos cinco sentidos; dependemos dos nossos críticos e educadores, todos eles fracassos no reino da criação.
Em resumo, o cego conduz o cego. É o jeito democrático. E assim o futuro, que é sempre iminente, acaba absorvido e frustrado, jogado para escanteio, sufocado, mutilado, às vezes aniquilado, criando a ilusão familiar de um mundo einsteiniano que não é nem carne nem peixe, um mundo de curvas finitas que levam ao túmulo ou ao asilo de pobres, ou ao hospício, ou ao campo de concentração, ou às cálidas e protetoras dobras do Partido Democrata-Republicano. E assim surgem loucos que tentam restaurar a lei e a ordem com o machado. Quando milhões de vidas se perderem, quando finalmente chegarmos a elas e as exterminarmos a machadadas, poderemos respirar com um pouco mais de conforto em nossas celas acolchoadas.”


“A música é um belo ópio, se você não a levar muito a sério.”


“Tabus, embora não se admita, são potentes. O que as pessoas temem? Temem o que não entendem. Sob esse aspecto, o homem civilizado não é nada diferente do selvagem. O novo sempre traz consigo a sensação de violação, de sacrilégio. O que está morto é sagrado; o que é novo, isto é, diferente, é mau, perigoso ou subversivo.”


“Desde que resolvi vender o carro, ele tem andado maravilhosamente. A maldita máquina se comporta como uma mulher namoradeira.”


“Na noite anterior, quando dava meu passeio costumeiro pela beira do Canyon, a visão de uma folha de quadrinhos (o que me chamou a atenção foi o Príncipe Valente) caída na beira do abismo despertou em mim curiosas reflexões. O que podia parecer mais inútil, estéril e insignificante do que uma folha de quadrinhos de domingo diante de um espetáculo tão vasto e misterioso quanto o Grand Canyon? Lá estava ela, descuidadamente jogada fora por um leitor indiferente, pronta a ser levada pelo menor vento e extinta. Por trás dessa folha colorida com espalhafato, que exigiu para sua criação as energias de homens incontáveis, variados recursos da natureza, os tênues desejos de crianças superalimentadas, estava toda a história da culminação de nossa sociedade ocidental. Para mim é difícil fazer qualquer distinção de valor entre uma folha de quadrinhos, um navio de guerra, um dínamo, uma estação de radio-transmissão. Estão todos no mesmo plano, são todos manifestações de uma energia inquieta, descontrolada, de impermanência, de morte e dissolução. Olhando o Canyon, os grandes anfiteatros, coliseus, templos que a natureza escavou ao longo de incalculáveis períodos de tempo em diferentes ordens de rochas, perguntei-me por que efetivamente aquela vasta criação não podia ser obra do homem. Por que, na América, as grandes obras de arte são todas obras da natureza? Havia arranha-céus, com certeza, e diques, pontes, estradas de concreto. Todos utilitários. Em nenhum lugar da América havia nada comparável às catedrais da Europa, aos templos da Ásia e do Egito – monumentos duradouros criados pela fé, pelo amor, pela paixão. Nenhuma exaltação, nenhum fervor, nenhum zelo – a não ser para aumentar os negócios, facilitar o transporte, aumentar o domínio da impiedosa exploração. Resultado disso? Um povo em rápida decadência, um terço na pobreza, os mais inteligentes e influentes cometendo suicídio racial, os pobres coitados se tornando mais e mais desregrados, mais e mais criminosos, mais degenerados e degradados sob todos os aspectos. Um punhado de políticos indiferentes, ambiciosos tentando convencer a multidão de que este é o último refúgio da civilização, Deus salve os indicadores!
Os homens do futuro vão olhar as relíquias desta era como nós olhamos os artefatos da Idade da Pedra. Somos dinossauros mentais. Arrastamo-nos com pés pesados, cabeça entorpecida, sem imaginação em meio a milagres aos quais nos tornamos impermeáveis. Todas as nossas invenções e descobertas levam à aniquilação.”

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