Editora: Conrad
ISBN: 978-85-7616-430-2
Tradução: Cris Siqueira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 158
Sinopse: O livro
é resultado de uma longa viagem que o autor fez ao Oriente Médio. Durante dois
meses, Sacco coletou histórias nas ruas, nos hospitais, nas escolas e nas casas
dos refugiados. Presenciou violentos confrontos dos soldados com a população e
entrevistou vítimas de tortura. Conversou com militantes, com outros já
conformados com a situação, com velhos e crianças. Ainda que Sacco não disfarce
sua simpatia pela causa palestina, o livro está bem longe de poder ser
considerado propaganda. Tem muito humor, auto-ironia e nuances para isso. Um
livro fundamental, que transcende o mundo das histórias em quadrinhos e deve
ser lido por todos os interessados em bom jornalismo.
Vencedor do Prêmio HQMix de Melhor Graphic Novel
Estrangeira de 2000 e do American Books Award de 1996.
Inclui prefácio de José Arbex.
“Se já não é possível, no mundo contemporâneo,
separar “notícia” da “imagem da notícia”, isso coloca uma outra indagação, de certa
forma angustiante: as imagens que vemos do mundo não são neutras, não são “objetivas”,
embora construam a ilusão de o serem, com muito mais competência que o texto. Raramente
paramos para pensar que aquilo que vemos na televisão ou impresso nas páginas dos
jornais não é “o” mundo, mas “um” mundo, entre muitos outros mundos possíveis. (...)
Vemos, logo sabemos – é isso que nos diz a nossa
tradição cultural, e é isso que os grandes oligopólios da mídia utilizam para, diariamente,
através dos telejornais, construir o seu mundo como se fosse “o” mundo, o único
possível, o único existente. A cobertura da Guerra do Golfo (janeiro/fevereiro de
1991) foi exemplar a esse respeito. Quem “viu” a Guerra do Golfo pela televisão,
a partir das imagens transmitidas pela CNN, constatou que não houve derramamento
de sangue. Foi uma guerra “limpa”, “cirúrgica”. Durante quarenta dias e quarenta
noites, os Estados Unidos lançaram 88,5 mil toneladas de bomba sobre Bagdá, a capital
do Iraque, onde viviam 4,8 milhões de habitantes, sem matar absolutamente ninguém!
Vimos, diante de nossos olhos, um milagre da tecnologia. Hoje se sabe que pelo menos
100 mil pessoas morreram em Bagdá, incluindo crianças, mulheres e velhos.
O incrível não é que tanta gente tenha morrido.
Ao contrário, isso é o esperado. O incrível é que bilhões de telespectadores, em
todo o mundo, tenham acreditado que a guerra foi “limpa”. O então presidente dos
Estados Unidos, George Bush, terminou a guerra contando com o apoio de 90% da opinião
pública de seu país, que, alegremente, exorcizou o “fantasma do Vietnã”. E se tanta
gente, no mundo inteiro, acreditou em algo tão absurdo, é porque todos foram vítimas
(e, de certa forma, cúmplices) de uma sofisticada “engenharia do consenso” arquitetada
pelas grandes corporações da mídia, em comum acordo com o Departamento de Estado
dos Estados Unidos. A “engenharia do consenso” não é algo “novo”. Ela vem sendo
insistentemente desmascarada e denunciada por Noam Chomsky, para quem a mídia, hoje,
é o principal inimigo da democracia.” (Jose Arbex)
“De 1987 até 1988, o primeiro ano da Intifada,
quando 400 palestinos foram mortos e 20 mil feridos, o ministro de defesa de Israel
Yitzhak Rabin ordenou ataques a protestos com “força, poder e surras” e o primeiro-ministro
Yitzhak Shamir ordenou que fosse imposto o “medo da morte nos árabes da área”.”
“– Hoje temos apenas quatro homens feridos a bala
internados aqui.
“No pico da violência”, prossegue a enfermeira,
“o hospital tinha vinte casos de cada vez: casos de tiroteio de Jenin, Tulkarem
e até de Ramallah espalhavam-se pela área das mulheres e até na seção de maternidade...”
“Naqueles dias, quando os shebab – os jovens
– ouviam o som de ambulância, logo vinham das escolas ou universidades para doar
sangue”, conta-me uma atendente...
Agora os hospitais têm um refrigerador especial
para plasma, diz ela... mantém por um ano... eles têm um bom estoque...
– Mas, como em todas as guerras, sangue fresco
é melhor.
E o que é essa cicatriz no pescoço dela? Ah, um
tiro no pescoço que ela levou na universidade de Bir Zeit enquanto protestava contra
um assassinato na Universidade de Belém... três operações delicadas...
Mas, enfim, ela conta, que depois de confrontos,
os soldados muitas vezes seguem as ambulâncias e entram no pronto-socorro para interrogar
o ferido...
Os soldados fazem o que querem, diz ela, entram
nas salas de cirurgia sem máscaras, interrogam visitantes, já gritaram com pessoas
que estavam doando sangue, já bateram no diretor do hospital. Outros funcionários
contam de soldados que pararam ambulâncias, e outros que tiraram pacientes da sala
de cirurgia.”
“Estamos em Balata, o maior campo de refugiados
da Cisjordânia, ao lado de Nablus. Alguns palestinos estavam entre os 750 mil que
fugiram do que agora é Israel, em 1948...
Eu preciso falar sobre 1948? Não é nenhum segredo
como os sionistas usaram boatos, ameaças e massacres para expulsar os árabes e criar
uma nova distribuição populacional que garantisse a natureza judia de Israel.
Naturalmente, é mais confortável considerar os
refugiados uma consequência lamentável da guerra, mas livrar-se dos palestinos tem
sido a ideia desde que Theodor Herzl formulou o sionismo moderno no fim do século
XIX. “Teremos que encaminhar a população pobre (sic) para o outro lado da fronteira”,
escreveu ele, “gerando empregos para ela nos países vizinhos e negando emprego no
nosso próprio país”.
Afinal, argumentavam alguns sionistas, os palestinos
eram menos apegados a sua terra natal ancestral do que judeus que não viviam lá
há séculos. De acordo com David Ben-Gurion, o primeiro-ministro pioneiro de Israel,
um palestino “sente-se à vontade do mesmo modo na Jordânia, no Líbano e mais numa
porção de lugares”. Com a iminência da guerra, Ben-Gurion não tinha ilusões quanto
a “encaminhar” ou induzir os palestinos a irem embora. “Em cada ataque”, escreveu
ele, “uma ofensiva considerável deve ser conduzida, resultando na destruição de
lares e na expulsão da população”. Quando conseguiram isso, disse a um assessor,
“os árabes palestinos só têm uma coisa a fazer agora – fugir”.
Mas, mesmo que 1948 não seja um segredo, é assunto
encerrado, ignorado completamente pela primeira-ministra Golda Meir: “Não é como
se houvesse um povo palestino que se considerasse um povo palestino e que nós chegamos,
expulsamos e tomamos seu país. Eles não existiam”.
Mas eles existiam sim, e existem
ainda, aqui estão eles... e seus filhos, e os filhos dos seus filhos... e eles ainda
são refugiados... fracos, pode ser, de acordo com o ponto de vista da imprensa,
mas ainda refugiados... o que eu acho que quer dizer que estão esperando para voltar...
Mas voltar para o quê? Perto de 400 vilarejos
palestinos foram destruídos pelos israelenses durante e depois da guerra de 48...
palestinos que fugiram foram declarados “ausentes”... suas casas e suas terras declaradas
“abandonadas” e “não-cultivadas” e foram expropriadas para assentamentos de judeus.”
“Pergunto aos palestinos com quem converso onde
trabalham. “Israel! Israel!”, diz a maioria. Os empregos estão em Israel, dizem,
não na Cisjordânia. Israel dá as cartas na economia e faz regras em seu próprio
favor, como aconteceu quando o ministro da Defesa Rabin disse em 1985: “Nenhuma
permissão será dada para o desenvolvimento de agricultura ou indústria (nos territórios
ocupados) que possa competir com o Estado de Israel”.”
“– Eram nove da noite. Estávamos em casa. Ouvimos
um trator... Alguns colonos tinham vindo demolir canos de esgoto no vilarejo...
Houve um confronto... Meu irmão saiu com meu primo pela porta dos fundos até este
pequeno telhado para ver o que estava acontecendo... Não para juntar-se aos
rebeldes... Um colono atirou neles daquela estrada ali embaixo. Nosso primo morreu
imediatamente. Meu irmão levou um tiro na barriga e conseguiu entrar em casa...
Os soldados decretaram um toque de recolher e nós não podíamos sair para levá-lo
ao hospital... Ele estava com sua mãe e seu pai. Sangrou até morrer em três horas.
Ele tinha 21 anos. Meu primo tinha 17.
– E o colono que fez isso?
– Foi liberado no mesmo dia em que foi levado
à justiça.
– Enquanto seu julgamento não acaba, o colono
não precisa se preocupar com as punições da justiça israelense. De dezembro de 1987
a outubro de 1991, colonos mataram 42 palestinos, e nesse tempo apenas 3 julgamentos
foram concluídos. A pior sentença? Três anos.
Por outro lado, palestinos mataram 17 colonos
durante o mesmo período de tempo. Seis dos nove suspeitos capturados nesses incidentes
receberam prisões perpétuas. Outro recebeu 20 anos. Seis lares foram demolidos.
(os últimos dois suspeitos ainda estavam sendo julgados.)”
“Falei com vários internos da Ansar III, mas as
recordações a seguir foram tiradas de entrevistas com três homens com histórias
típicas...
Os três são profissionais de meia-idade, todos
presos em detenção administrativa...
Detenção administrativa é um aprisionamento de
seis meses imposto sem julgamento.
Pode ser renovado por mais seis meses... e então
mais seis meses... e aí de novo... de novo...
Eu poderia contar-lhe quais foram os crimes desses
homens, mas nenhum deles foi acusado de crime algum...
Que assim seja...
– Você cai na armadilha de tentar adivinhar o
que fez de errado.
– Nossa história começa com a prisão de Yusef,
em março de 1988. Ele está chegando à cadeia de Dhahriya, ao sul de Hebron na Cisjordânia,
que também foi o ponto de partida de Iyyad...
– Foi durante o período de punho de ferro, durante
a política de ‘ossos quebrados’. Éramos vendados e algemados e eles nos batiam no
ônibus. Quando saíamos, tínhamos um corredor polonês de soldados. Dois prisioneiros
tiveram os braços quebrados. Então eles mandavam que fizéssemos sons de animais
e imitássemos barulho de trem. Eles nos batiam até que concordássemos em fazê-lo.
Alguns soldados, incluindo mulheres, faziam churrasco perto dali.
– Os primeiros dois dias em Dhahriya passei ao
ar livre... então fiquei 11 dias numa cela. Éramos 36. O barril que servia de banheiro
estava cheio. Reclamamos para os soldados, mas era noite e estava chovendo, então
eles não esvaziaram o barril. Um prisioneiro gordo tinha que ir ao banheiro. Ele
subiu no barril, mas perdeu o equilíbrio e caiu tudo no chão.
– A cela estava cheia de merda. Nós gritávamos.
Carregávamos nossos sapatos nas mãos com as meias dentro. Os soldados vieram depois
de meia hora e deram-nos sabonetes e água para nos lavarmos, mas o cheiro durou
cinco dias.
– Passei 18 dias em Dhahriya antes de receber
ordem de prisão administrativa por seis meses. Fui colocado num quarto de quatro
por seis metros com umas quarenta pessoas. Em dez dias eles só nos deixaram sair
duas vezes, por quinze minutos cada vez.
– Fui levado a uma tenda por dois ou três dias,
o que era bem melhor, mas logo fomos transferidos para outra cela, que foi uma espécie
de inferno para mim. Fiquei nessa cela por uma semana. Tinha três por quatro metros
com 21 pessoas. A porta de metal refletia o sol a partir do meio-dia. A ventilação
era péssima. Só um buraco do tamanho de uma moeda na porta para injetar gás caso
houvesse uma revolta.
– Para ventilar, duas pessoas pegavam um cobertor
e balançavam para cima e para baixo. Fazíamos isso em turnos de dez minutos.
– Eu não dormia mais do que duas ou três horas
por noite, no máximo. Ficava sentado na lata de lixo com meu nariz enfiado no buraco
até cair no sono de exaustão.
Os primeiros prisioneiros transferidos para Ansar
III não sabiam para onde estavam sendo levados. Yusef estava entre eles...
– Eles nos tiraram de nossas celas e nos colocaram
em cinco ônibus. Éramos mais de 100. Estávamos com medo. Alguns estavam chorando
nos ônibus. Pensávamos que estávamos sendo deportados para a Jordânia ou para o
Líbano.
– Depois de quase quatro horas, tiraram-nos do
ônibus e percebemos que estávamos em frente a umas tendas. Não sabíamos nada sobre
o lugar ou porquê estávamos ali.
– Um soldado duro disse-me que era uma nova prisão.
– Ordenaram que tirássemos nossas roupas e colocássemos
uniformes azul-marinho. Na primeira noite, cada um de nós ganhou um pedaço de pão,
cinco azeitonas e uma colher de geleia.
– Eles também nos deram cobertores e colchões
finos. Fazia muito frio nas tendas. Eu não conseguia dormir.
“Sentimo-nos como animais”, contou Yusef, e adicionou
dois itens específicos à lista de privações que eu já havia coletado de outros ex-prisioneiros:
as extremas temperaturas do deserto, os insetos, um fornecimento de água tão insuficiente
que tinha que ser usado quase que exclusivamente para beber, uma dieta pobre e inadequada,
sem trocas de roupas, pouco cuidado médico... em outras palavras, material suficiente
para outra serie em quadrinhos...”
*: Romance gráfico.
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