Este blog destina-se a dividir com os companheiros de estrada as impressões e alguns belos trechos deste fantástico universo que é a literatura.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
O Encontro Marcado – Fernando Sabino
domingo, 23 de janeiro de 2011
Inés da minha alma – Isabel Allende
sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Erec e Enide, de Manuel Vázquez Montalbán
Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-7302-815-7
Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Segundo a lenda medieval, Erec, o mais moço dos
cavaleiros da Távola-Redonda, teria abandonando seus companheiros de armas para
viver com sua amada Enide como marido e mulher. Em Erec e Enide, Manuel Vázquez
Montalbán faz uma releitura contemporânea do tema desta lenda medieval e apresenta
uma reflexão sobre o sentido da vida, do amor e do casamento nos dias de hoje.
Numa narrativa em que entrelaça
várias histórias de amor e adultério, Montalbán utiliza a lenda como contraponto
das felicidades possíveis do ser humano. O livro conta a história do professor Julio
Matasanz, especialista em literatura medieval que viaja para a Galícia para receber
uma homenagem num congresso. Lá, ele reencontra sua amante, Myrna. O evento transcorre
na ilha de San Simón – forte de cavaleiros templários, cárcere de republicanos durante
e depois da Guerra Civil Espanhola, e hoje um centro cultural.
A última aula de Julio versa sobre
Erec e Enide, primeiro romance do ciclo do rei Artur, motivo para que o professor
faça uma emocionante reflexão sobre o sentido último da vida – o amor e a morte.
Ao mesmo tempo, Pedro (afilhado de Julio) e sua companheira Myriam, destemidos voluntários
de uma ONG, estão vivendo na América Central, desafiando paramilitares e caciques
locais para permanecerem juntos. Enquanto isso, sua nem sempre fiel esposa Madrona,
membro da alta burguesia barcelonesa, prepara o Natal com a esperança de reunir
toda a família e superar conflitos, na esperança de que a festa dê sentido à sua
vida e ao nome da sua residência: A alegria da corte.
“A cultura patrimonial e a linguagem de divulgação
são os álibis da nossa hegemonia, considerando que o dinossauro morreu porque era
um dinossauro e as formigas nos sobreviverão, mas escravas de uma lógica cavernícola
que as impedirá de lutar contra os ácaros e contra as mulheres. Vão ganhar os ácaros.
Sinto muito pela formiga e pelas mulheres, mas as duas alternativas avançam prepotentes
numa ausência de vontade de poder, as formigas, ou numa denúncia da masculina vontade
de poder, as mulheres. Sarcástica mentira, principalmente para o velho catedrático
que testemunhou cinquenta anos de ascensão de suas colegas femininas, com uma capacidade
de dentadas e rasteiras perfeitamente masculina, quando não usaram os peitos ou
as bocetas, de que também carecem quase todos os homens. Sinto muito, sou misógino.
Mas as mulheres não vão conseguir derrotar os ácaros. Os ácaros suportam até a bomba
de nêutrons e não precisam se fantasiar de outra coisa para permanecer no ar ou
nos nossos pulmões. Estão em toda parte. São Deus. Repetem o poder do invisível
para criar ou desfazer o visível.”
“Mas certas doses de irracionalidade nos ajudam
a continuar sendo racionais no fundamental.”
“Custo a admitir que penso em Julio porque estou
mal, e se ao menos bastasse voltar para casa e recuperá-lo, sentiria alguma segurança
de ânimo e não me forçaria a ir fazer as compras para compensar uma angústia tão
incômoda que nem sequer se concretizava, uma sutil angústia feita de pressentimentos,
de intuição feminina como eu mesma diria anos atrás, quando ainda acreditava na
intuição feminina, antes de suspeitar que não passava de uma questão de desconfiança
incontrolável na alma de todos os escravos.”
“– Mas que horror de homem! – me escapou, e os
olhos claros da mulher loura me censuraram antes de seus lábios explicarem.
– Perdeu as estribeiras. Ele não é assim. Ultimamente
as coisas não andam bem para o seu lado e está com uma paranoia gravíssima. Alguém
disse que o pior que pode acontecer com um paranoico é ser perseguido de verdade.
De qualquer modo, o problema é meu e muito obrigada.
– Você é enfermeira?
– Como percebeu?
– Pelas meias brancas.
– Tenho o título e faço algumas substituições,
como agora. É duro lutar por uma vaga. São milhares de candidatos para cada emprego
e isso numa sociedade com expectativa de vida de mais de setenta anos.
– Acha que é expectativa demais?
– Depende da vida que você levar.
A conversa era entre eles dois e eu estava alucinada
porque tinha acabado de descobrir que Pedro era um homem que podia sentir-se atraído
por uma garota loura, de olhos claros e lábios rosados. Ela tinha projetos. Inscrever-se
nos Médicos Sem Fronteiras e tentar melhorar o nível de vida dos condenados da Terra,
expressão que repetiu três vezes. Gostava dela. Era bonita e me emocionou. Os condenados
da Terra! Havia superado a comoção do desagradável encontro e, estimulada por nossas
perguntas, Myriam disse coisas brilhantes e muito instigantes. Por exemplo, que
sua liberdade sem a dos outros não era liberdade e que isso deveria se estender
à satisfação das necessidades, até mesmo dos prazeres.
– Isso é muito bonito. Muito cristão – exclamei
entusiasmada.
– Procuro praticar o que digo sem necessidade
de ser cristã. O cristianismo é um mero hábito cultural.”
“– Todos nós pensamos de duas maneiras diferentes,
Marta. Primeiro pensamos para cumprir o protocolo e dizer bom-dia ou me dá esse
vestido ou o que vamos fazer neste verão. E depois pensamos de verdade que os nossos
pensamentos habituais falsificam o que sentimos ou o que deveríamos sentir com sinceridade.
Pedro e a mulher dele viram o outro lado dessa trama de pequenas misérias, disso
que chamamos de viver corretamente. Quase tudo aquilo em que acreditamos ou fingimos
acreditar, e não me refiro ao aspecto religioso, é uma merda.”
“– Você deve estar imensamente feliz.
– Por quê?
– A homenagem. Na certa vai receber até um telegrama
do rei. Você é muito narciso e essas coisas o engrandecem, você gosta.
– Em termos de narcisismo não tenho nada a ensinar
a uma mulher.
– Errado. Em nós é uma obrigação imposta pelo
papel de chamariz. Em vocês muda muito a segunda pessoa. Você, por exemplo, é narcisista
porque só tem a si mesmo. Desconfia afetivamente de todos os que estão à sua volta.”
“Ela segura minha mão e a beija com suficiente,
calculada leveza para que eu prossiga o caminho que me devolve à cama. Minhas costas
estão doloridas e se acolhem à piedade de um colchão maravilhoso, como só costas
veteranas e agredidas podem qualificá-lo, como só uma nuca cansada de sustentar
a cabeça tão cheia de lembranças e presságios pode agradecer ao travesseiro, uma
pátria. Luto contra a imperiosidade do sono para que Myrna não se sinta expulsa,
mas talvez deseje que ela vá embora e me deixe reencontrar-me na solidão, como um
ator fazendo exercícios espirituais antes de mostrar a cara no palco e antes de
recompor o postal suvenir hectachrom na qual Myrna e eu nos encontramos ou
nos despedimos, sem mudar o gesto num caso ou no outro, porque somos comediantes
bem treinados. Já lemos tanto!”
“Porque penso que se cada qual é dono de suas
próprias catástrofes, as catástrofes deixam de ser catástrofes.”
“– Vocês são católicos? – perguntou Diderot.
– Não.
– Eu também não. Mas precisamos dizer algumas
coisas pelos nossos companheiros (jesuítas assassinados).
Levou Diderot a mão ao peito e olhou para um céu
quase encoberto pelas copas das árvores mais altas.
– Senhor Deus dos nossos companheiros Iriondo
e Blázquez, acolhe-os num dos melhores lugares destinados aos teus santos e teus
mártires, porque eles não só deram provas de que acreditavam em Ti, mas sobretudo
de que acreditavam em todos nós.”
“– A senhora vê? Somos umas formigas e tudo o
que podemos almejar é a piedade da sola do pé dos deuses, para que adiem o nosso
pisoteamento o máximo possível. Chore. Chore. Desespere-se. Mas a senhora é uma
mulher bonita, muito bonita, e seu próprio corpo, como as gardênias, em contato
com o meio vai encontrar motivos para sobreviver.”
“Vou ao lavatório para recuperar minha entidade,
não diante do espelho e sim sentado na tampa do vaso, protegido neste pequeno âmbito
onde tento juntar tudo o que aconteceu e está acontecendo, desejando que termine
logo e um tapete mágico me leve a La Alegria de La Corte, onde estão à minha
espera 15 dias de nada e quase ninguém. Madrona também, de quem não sei por que
sinto saudades, vontade de partilhar por alguns dias aquela vida em que nunca acontece
nada, irmãs e sobrinhos, amizades inócuas, a academia, dentro desse olimpo em que
vivem os ricos pertencentes a pelo menos três gerações de ricos. Madrona não só
é rica, mas também boa, boa pessoa, talvez por ser rica e não ter precisado ser
má pessoa. Nunca lhe aconteceu nada.”
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
As flores do mal - Charles Baudelaire
Nos porões de tristeza impenetrável
Onde o Destino um dia me esqueceu;
Onde jamais um róseo raio ardeu,
Só com a noite, hospedeira intratável,
Sou qual pintor que um deus, por diversão,
Na treva faz mover os seus pincéis,
Ou o cozinheiro de apetites cruéis
Que assa e devora o próprio coração.
Súbito brilha e faz ali presente
Fantasma esplêndido e de graça extrema
Em oriental postura evanescente.
Ao atingir a perfeição suprema,
Nele percebo a bela visitante:
Ei-la! Negra e contudo fulgurante.
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se o senhor?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em seu passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler o esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora nos saciou a gula triste?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste?
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!
Com seu luxo prodigioso,
E engendra mais de um pórtico miraculoso
No ouro de um vapor purpúreo,
Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.
Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter lhe é dado.
De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso...
E meu sonho logo acorre
Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.
Da tua saliva forte,
Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
E, carreando o desvario,
Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!
Que vive, se enrosca e se agita,
E se nutre de nós como um verme insaciável,
Qual do carvalho o parasita?
Como abafar este Remorso inexorável?
Afogar tal praga inimiga,
Gulosa e predatória como uma mundana,
Paciente como uma formiga?
Em que filtro? – em que vinho? – em que amarga tisana?
A esta alma que o tormento assola,
Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz
E o casco do cavalo esfola,
Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,
E a gula do corvo amortalha,
A este soldado que, batido, ainda peleja
Por uma tumba e uma medalha;
O moribundo a quem o lobo já fareja!
Rasga-lhe as trevas em cortejo,
Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,
Sem astro ou fúnebre lampejo?
Como clarear um céu ao sol indiferente?
Desfez-se em meio ao torvelinho!
Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem
Aos mártires de um mau caminho?
Satã tudo extinguiu nos vidros da Estalagem!
Conhece o que nunca é salvo?
Conheces do Remorso os dardos aguçados?
Que o coração nos fazem de alvo?
Amável feiticeira, adora os danados?
Nossa lama, indigno monumento,
E muita vez ataca, assim como a térmita,
O prédio por seu fundamento.
O irreparável rói com a presa maldita;
Que inflamava a orquestra sonora,
Uma fada acender no horizonte infernal
Uma miraculosa aurora;
Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal,
Vencer a Satã, que imenso era;
Porém meu coração, que êxtase algum seduz,
É como um teatro onde se espera,
Em vão e para sempre, o Ser de asas de luz!
Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
– Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher* desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
– Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.
Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes*.
Letes: Em gr. Léthe, um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela bebessem.
Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;
Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;
Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com vez recalcitrante.
– Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.
Ela vem como um cúmplice, a passo lupino;
Qual grande alcova o céu se fecha lentamente,
E em besta fera torna-se o homem impaciente.
Ó noite, amável noite, almejada por quem
Cujas mãos, sem mentir, podem dizer: Amém,
Galgamos nosso pão! – É a noite que alivia
As almas que uma dor selvagem suplicia,
O sábio cuja fronte pesa sem proveito,
E o recurso operário que regressa ao leito.
Entretanto, demônios insepultos no ócio
Acordam do estupor, como homens de negócio,
E estremecem a voar o postigo e a janela.
Através dos clarões que o vendaval flagela
O Meretrício brilha ao longo das calçadas;
Qual formigueiro ele franqueia mil entradas;
Por toda parte engendra uma invisível trilha,
Assim como inimigo apronta uma armadilha;
Pela cidade imunda e hostil se movimenta
Como um verme que ao Homem furta o que o sustenta.
Ouvem-se aqui e ali as cozinhas a chiar,
Os teatros a ganir, as orquestras a ecoar;
Sobre as roletas em que o jogo encena farsas,
Curvam-se escroques e rameiras, seus comparsas,
E os ladrões, que perdão ou trégua alguma têm
Começam cedo a trabalhar, eles também,
Forçando docemente o trinco e a fechadura
Para que a vida não lhes seja assim tão dura.
E tapa teus ouvidos a este som uivante.
É o momento em que as dores dos doentes culminam!
A Noite escura os estrangula; eles terminam
Seus destinos no horror de um abismo comum;
Seus suspiros inundam o hospital; mais de um
Não mais virá buscar a sopa perfumada,
Junto ao fogão, à tarde, ao pé da bem-amada.
A doçura do lar e que jamais viveram!