segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Encontro Marcado – Fernando Sabino

Editora: Record
ISBN: 978-85-0191-200-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 304
Sinopse: Um jovem escritor, Eduardo Marciano, está em procura de si mesmo e da verdadeira razão de sua vida. Quase absorvido por uma brilhante boêmia intelectual, seu drama interior evolui subterraneamente, expondo os equívocos fundamentais que vinham frustrando sua existência e sufocando sua vocação. Ele vê seu matrimônio quebrar-se quando já não pode abdicar; por força de sua própria experiência, o suicídio deixa de ser uma solução. Nessa paisagem atormentada, ele deve renunciar a si mesmo, para comparecer ao encontro com uma antiga verdade.


“Floripes era a ama. Dava banho em Eduardo, vestia-lhe o uniforme do Grupo. Um dia Eduardo gritou-lhe de dentro da banheira:
– Floripes! Tem um osso no meu pipiu!
Desse dia em diante a preta decidiu que ele já podia tomar banho sozinho. Quase sete anos.
– Não quero. Quero você.”


“NA NATUREZA nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.
– Um corpo mergulhado num líquido recebe um impulso de baixo para cima igual ao peso do volume do líquido deslocado.
– Não é fluido, não?
– Não: é líquido. Líquido e fluido é a mesma coisa.
– Olha o bobo. Líquido e fluido a mesma coisa?
Discutiam:
– Manteiga é sólido, líquido ou gasoso?
– Então me diga quem foi Laplace.
– Laplace foi o da banheira.
– Da banheira foi Arquimedes, seu.
– E o da maçã?
– Da maçã foi Newton.
– Então quem foi Laplace? Diga você.
– Foi o da gota de azeite.
Hemisférios de Magdeburgo, dois cavalos puxando não conseguiam separar. Conjuga o verbo pelocupar no condicional. Ilhas do Japão: Sakalina, Yeso, Nipon, Sikok, Kiusiu, Fujika e Mozaka. Fujika Mozaka era a japonesinha da turma B, jogava vôlei, não era ilha do Japão. Anos mais tarde seria assassinada pelo marido em Lafaiete: Mauro e Eduardo, já homens, veriam o retrato no jornal, se lembrariam. Agora ainda são meninos, estão voltando do Ginásio.
– Mauro, nós somos sábios pra burro. Se Platão ressuscitasse, sabia muito menos coisas que a gente, havia de ficar besta.
– Ele não sabia que a terra é redonda, uai.
Provas da redondeza da terra: um navio se afastando pelo mar, o mastro sumia por último. Tomemos por exemplo uma laranja. O Golfo de Biscaia onde fica? La maison du voisin est vaste et commode. Sujeito, predicado e complemento, H2O. Leônidas nas Termópilas, melhor! combateremos à sombra. Que é anacoluto? É a soma do quadrado dos catetos. Qui quae quod, o sertanejo é antes de tudo um forte. Mauro, heróico, trepado no muro do pátio:
– “Aí vem o general Valdez bloquear a cidade de Leide! Aí vem a guerra mais desumana, mais carniceira e mais daninha de que há memória nos séculos dos séculos!”.”


“Mas Hugo acabava confessando, deprimido:
– Também não vejo solução: nos lugares mais puros, numa casa de família, na igreja, tenho os pensamentos mais safados. Ainda ontem, na missa, me surpreendi olhando as pernas de um menino. Numa casa de mulheres me sinto puro, tocado pela Graça. E passo a catequizar as putas, falando de Deus, na salvação eterna.”


“Mauro tinha mania de inventar provérbios:
– Quem de si faz alarde, cedo o rabo lhe arde.”


“Casando ou deixando de casar, a gente se arrepende sempre.”


“Mas ele se sentia fora de seu mundo, esquecido de tudo, pacificado, feliz. O regresso, o apartamento alugado, a mobília comprada, a vida em comum afinal feita realidade. Tudo acontecia numa sequência rápida, sem trégua, mal ele tinha tempo de acomodar-se a uma transformação em sua vida, e logo vinha outra, ainda maior. Que viria agora? – ele se interrogava, sem saber o que fazer de si, pela primeira vez sozinho, quando ela enfim, alegando cansaço, recolhera-se mais cedo. Sentia vagamente que se tornara instrumento de desígnios outros, poderosos, desconhecidos – já não era dono de si mesmo. Você não soube escolher – lhe dissera Toledo: foi escolhido. Escolhido por quem? Para quê? Desígnios de Deus? Lembrava-se do diretor do ginásio, séculos atrás: você acredita em Deus? já nem sabia em que acreditava, não tinha tempo para pensar. Você vive muito depressa – o pai tinha razão, era isso, depressa demais. Essa ganância de viver. Gostaria de ser um homem sereno, comedido, um escritor como Machado de Assis. Era preciso ir devagar – saber envelhecer. O fruto que apanhava ainda verde, deixava apodrecer na mão. Casado. A vida o afastava de sua origem, de seus amigos. Já nem sempre estaria presente na lembrança deles, o tempo o empurrava com força demais e isso era terrível. Mal podia sentir o gosto das novas experiências, já não eram novas, ficavam logo para trás, o passado, ele que não tinha presente, não tinha nada, não fizera nada – por que não podia parar um pouco, descansar, não dar mais um passo? Queria adquirir seus hábitos também, certa maneira de ser, ele que era moço. Sozinho. Muito precoce, aprendeu a ler sozinho, fazia o que queria, bastava arranhar o rosto. Antonieta sua mulher, dia e noite, enfim conquistada: nada mais a fazer? Sozinho, o tempo passando, ignorava tudo que ficara para trás: Mauro fizera um poema e ele não sabia, Hugo lhe mandara um telegrama, apenas um telegrama lhe mandara Hugo. Assim, eles iam mudando: nada de intimidades. Uma suave cortesia. Uma distinta amizade. Amabilidades de parte a parte. E falsidade, hipocrisia, conveniência. Pois não, também acho, com prazer. Com quem puxar angústia agora? Nascemos para morrer – nada pior do que não ter nascido. A vida tem dessas contradições, dizia o pai. Onde as verdades eternas? O tempo levava tudo, ele não tinha onde se ancorar. Oh, o Toledo era um tratado de psicologia. Tudo isso é natural, diria ele, natural, viver é assim mesmo. O tempo acontece, o que tinha de ser já foi, agora a nostalgia de já ter sido em experiência, etcetera, etcetera. Conheceria novas pessoas, pensaria outras coisas, ouviria em silêncio prudente e compassivo opiniões alheias que um dia já foram suas. E está certo! Não se pode fazer das dúvidas de outrora o pão nosso de cada dia: não posso responsabilizar ninguém pelo destino a que me dei. Sozinho: sozinho no mundo com uma mulher. O que significa isso? Significa que terei de amá-la, zelar por ela, sustentá-la, cumprir os chamados deveres de estado. Pois então o que é que estou fazendo aqui, sozinho? Não sou um homem? um marido, não sou? Há uma fresta em minha alma por onde a substância do que sou está sempre se escapando mas não vejo onde nem por quê. Depressa, não há tempo a perder. Também tenho o meu preço mas ninguém conseguirá me comprar, todo o dinheiro do mundo não basta, hei de escapar como água entre os dedos da Coisa que me aprisionar entre os dedos – hei de fluir como um rio, dia e noite, nem que tenha de dormir de pé porque esta é a cama estreita que conduz ao reino dos céus. Não adianta pensar, a mão de Deus é pesada mas me protege a cabeça, tudo que faço nasce feito, sozinho, não adianta chorar, meu Deus, nem tenho motivos para isso, muito pelo contrário, é preciso reagir, a literatura não adianta, e os livros na estante e o cinzeiro cheio de cinza e a luz da cozinha acesa, poderia fazer um café, Antonieta dormindo e o botão do pijama, meu Deus, livrai-me do pijama, quero ser reto, quero ser puro, quero servir, pois vai trabalhar, moço, deixa de vaidade, tu és muito pretensioso, uma missão a cumprir, ora vejam, perdulário que tu és, a vida é breve, não incomoda os que trabalham, os trabalhos do homem são penosos, estou casado, estou cansado, estou abatido, em verdade estou destroçado, andei depressa demais, agora chega, basta, para, pronto! acabou. Assim. Fique quieto. Que nenhum som te denuncie. Calma. Não olhe. Não mexa. Não queira. Não estou dormindo, estou vigilante, hay que vigilar las tinieblas, capisca? ai, Minas Gerais, já ter saído de lá, tuas sombras, teus noturnos, teus bêbados pelas ruas, Eduardo Marciano, minha mágoa, minha pena, minha pluma, merecias morrer afogado, o barco te leva para longe, a praia está perdida, mas voltarás nem que tenhas de andar sobre as águas...
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”


“Seu erro fundamental é lembrar em vez de recordar. Há uma diferença entre lembrar e recordar; recordar é reviver, lembrar é apenas saber. O que é recordado fica, o que é lembrado é também esquecido.”


“Não sei quem, acho que foi Guardini – aquele livro que eu estava lendo, sabe? – que disse: “o homem que quer justiça tem de colocar-se em nível superior ao da simples justiça”. Pois bem: isso serve para tudo.”


“Começar o ano? Lembranças indistintas afloravam em confusão na sua cabeça, uma festa na casa de Vítor se misturando àquela em que estava agora, uma igreja iluminada, a primeira missa do ano, há quantos séculos? Oh, como ele então era inocente! Deus rejeita os inocentes: não servem para nada. É preciso se perder primeiro, para depois se salvar. Antes, resistir bastante, para que a queda seja completa. Escarrapachar-se no chão, quebrar a cabeça. Pôs-se a rir: este era o privilégio do homem. Um direito, o direito de escolher.”


“Frei Domingos a princípio não entendeu bem:
– Se ela lhe pediu que não voltasse lá e você mesmo acha que não deve voltar...
– Não é isso – insistia ele: – É que eu senti desejo por ela e não podia, não tinha esse direito.
– Por causa de o seu falecido marido ser seu amigo?
– Não sei. Por causa dele, talvez. Por causa dela, das crianças.
O monge o olhou, inquiridor:
– Olha, Eduardo, vou lhe perguntar uma coisa...
– Não me pergunte se acredito em Deus que é uma pergunta meio irritante.
– E no demônio, você acredita?
– O demônio eu sei que existe.
Frei Domingos riu, depois continuou:
– Mas não era isso que eu ia perguntar. E pergunto porque é preciso para que eu possa entender: se você... vivendo sozinho... bem, como é que tem se arranjado nesse setor.
– Não vai querer que me confesse, vai? – brincou ele.
– Seria bom – respondeu o padre, sério.
– De vez em quando levo alguma mulher lá em casa, mas nem sempre, em geral depois tenho nojo.
– Eu calculava.
– Um dia levei uma moça que mora perto de minha casa. Quando ela era mais nova vivia me provocando, eu resistia por causa de minha mulher. Mas agora me disse que foi enganada pelo namorado – a história de sempre. Com ela não tive nojo. Foi uma espécie de triunfo...
– Triunfo do demônio – acrescentou o padre.
– Mas isso não chega a constituir problema para mim. Para dizer a verdade, eu não me importaria de ser casto, se fosse possível.
O monge tornou a sorrir, e ficou silencioso.
– Tudo isso não tem nada a ver com o que senti por Maria Elisa. Foi diferente. Eu tive desejo mesmo, de todo o coração. Não sentiria nojo depois. Senti nojo antes, nojo de mim mesmo, tive uma espécie de remorso antecipado pelo que poderia vir a acontecer. Não é possível, Frei Domingos, é sórdido demais. Se eu continuar assim, eu estou perdido.
O monge tocou-lhe o ombro, se despedindo:
– Pelo contrário – falou com firmeza: – Se você continuar assim, você está salvo.”

domingo, 23 de janeiro de 2011

Inés da minha alma – Isabel Allende

Editora: Bertrand Brasil
ISBN: 978-85-286-1284-4
Tradução: Ernani Ssó
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Inés da Minha Alma, de Isabel Allende, é um romance épico no qual o alento do amor concede uma trégua à rudeza, à violência e à crueldade de um momento histórico inesquecível. Inés Suárez (1507-1580) é uma jovem e humilde costureira que embarca da Europa ao Novo Mundo em busca de seu marido, que desapareceu junto de seus sonhos de glória do outro lado do Atlântico, e acaba se tornando um dos principais nomes da conquista do Chile. Através da pena da mais famosa escritora latino-americana da atualidade, se confirma que a realidade pode ser tão surpreendente quanto a melhor ficção – e igualmente cativante.



“No fim, apenas se tem o que se deu, como dizia Rodrigo, o mais generoso dos homens”.


“Juan tinha conseguido me contagiar com seus sonhos, apesar de que nunca tive a sorte de ver de perto nenhum aventureiro que voltasse rico das Índias; pelo contrário, voltavam miseráveis, doentes e loucos.”


“O lema da família era: “A morte, menos temida, dá mais vida”.”


“Tinham vinte anos quando partiram para combater em Flandres e depois nas campanhas da Itália, onde aprenderam que na guerra a crueldade é uma virtude e, como a morte é uma companheira constante, mais vale a pena ter a alma preparada.”


“– O Diabo bota na gente muitos apetites, e dos mais variados, mas Deus nos dá clareza moral para controlá-los. Isso nos diferencia dos animais.
– Você foi soldado por muitos anos, Pedro, e ainda acha que nos diferenciamos dos animais... – Zombou Aguirre.”


“Existe coisa mais pretensiosa que uma autobiografia?”


“Glória, sempre glória, esse foi o único norte de seu destino. Ninguém amou Pedro mais do que eu, ninguém o conheceu mais do que eu, por isso posso falar de suas virtudes, tal como mais adiante deverei me referir a seus defeitos, que não eram leves. É verdade que me traiu e foi covarde comigo, mas até os homens mais íntegros e valentes costumam falhar com as mulheres. E, posso afirmar, Pedro de Valdivia foi um dos homens mais íntegros e valentes dos que vieram para o Novo Mundo.”


“Com sua habitual tenacidade e otimismo, que nunca esmoreciam, o governador Pedro de Valdivia obrigava as pessoas, esgotadas e doentes, a lavrar a terra, fazer tijolos, construir o muro fortificado e o fosso em torno da cidade, treinar para a guerra e mil outras ocupações, porque afirmava, o ócio desmoraliza mais que a fome. Era certo. Ninguém teria sobrevivido ao desalento se tivesse tido tempo de pensar em sua sorte, mas faltava tempo, já que se trabalhava desde o amanhecer até bem tarde da noite. E se sobravam algumas horas, rezávamos, que isso nunca é demais.”


“Na tradição Mapuche, o noivo rouba a moça que deseja, com a ajuda de seus irmãos e amigos, segundo Felipe me contou. Às vezes o grupo de rapazes entra com violência na casa da menina, amarra os pais e a leva esperneando, mas depois se dá um jeito na ofensa, desde que a noiva esteja de acordo, quando o pretendente paga a soma correspondente em animais e outros bens a seus futuros sogros. Assim formalizam a união. O homem pode ter várias esposas, mas deve dar as mesmas coisas para cada uma e tratá-las do mesmo modo. Com frequência se casa com duas ou mais irmãs, para não separá-las. O clérigo González de Marmolejo, que costumava assistir minhas lições de mapudungu, explicou a Felipe que esta lascívia desenfreada era prova evidente da presença do demônio entre os mapuche, que sem a água sagrada do batismo terminariam se assando nas brasas do inferno. O rapaz lhe perguntou se o demônio também estava entre os espanhois, que tomavam uma dezena de índias sem retribuir os pais com lhanas e guanacos, como se deve, e além disso batiam nelas, não davam tratamento igual a todas e as trocavam por outras quando lhes dava na telha. Talvez espanhois e mapuche acabassem se encontrando no inferno, onde continuariam se matando uns aos outros por toda a eternidade, sugeriu. Eu tive de sair da sala depressa, aos tropeções, para não rir nas veneráveis barba do clérigo.”


“Não tratei de escrever até que Rodrigo de Quiroga morreu e a tristeza acabou com minha vontade de fazer outras coisas que antes me pareciam urgentes. Sem ele, minhas noites transcorrem quase inteiras em branco, e a insônia é muito conveniente para a escrita. Pergunto-me onde está meu marido, se por acaso me espera em alguma parte ou se está aqui mesmo, nesta casa, espiando das sombras, cuidando de mim com discrição, como sempre fez em vida. Como será morrer? Que há do outro lado? É só noite e silêncio? Ocorre-me que morrer é partir como uma flecha na escuridão para o firmamento, um espaço infinito, onde deverei buscar meus seres amados um por um.”


“Ao se ver perdido, Valdivia quis negociar sua liberdade com o inimigo, prometendo que abandonaria as cidades fundadas no sul, que os espanhóis se iriam da Araucanía para sempre e que além disso lhes daria ovelhas e outros bens. O yanacona teve de traduzir, mas antes que conseguisse terminar os índios caíram sobre ele e o mataram. Haviam aprendido a desprezar as promessas dos huincas. Ao padre, que tinha feito uma cruz com dois paus e pretendia dar a extrema-unção ao yanacona, como antes a tinha dado ao governador, destroçaram o crânio com uma clava. E então começou o martírio de Pedro de Valdivia, o inimigo mais odiado, a encarnação de todos os abusos e crueldades infligidas ao povo mapuche. Não haviam esquecido os milhares de mortos, os homens queimados, as mulheres violadas, as crianças arrebentadas, as centenas de mãos que o rio levou, os pés e narizes decepados, os chicotes, as correntes e os cachorros.
Obrigaram o prisioneiro a presenciar o suplício dos yanaconas sobreviventes de Tucapel e a profanação dos cadáveres espanhóis. Arrastaram-no pelos cabelos, nu, até uma aldeia onde Lautaro aguardava. No trajeto, as pedras e os galhos afiados da mata lhe rasgaram a pele, e quando o depositaram aos pés do ñidoltoqui era um farrapo coberto de barro e sangue. Lautaro ordenou que lhe dessem de beber, para que despertasse do desmaio, e o ataram a um poste. Como zombaria simbólica, quebrou em duas a espada de toledana, inseparável companheira de Pedro de Valdivia, e a enfiou na terra, aos pés do prisioneiro. Quando este se repôs o suficiente para abrir os olhos e se dar conta de onde estava, se viu frente a frente com seu antigo criado.
– Felipe! – exclamou, esperançoso, porque pelo menos era uma cara conhecida e poderia falar em castelhano.
Lautaro cravou os olhos nele, com infinito desprezo.
– Não me reconhece, Felipe? Sou o Papai – insistiu o prisioneiro.
A uma ordem do ñidoltoqui os mapuche, excitados, desfilaram diante de Pedro de Valdivia com afiadas conchas de amêijoa, tirando-lhe pedaços do corpo. Fizeram um fogo e com as mesmas conchas lhe arrancaram os músculos dos braços e das pernas, assaram-nos e os comeram diante dele. Esta orgia macabra durou três noites e dois dias, sem que a mãe Morte socorresse o infeliz cativo. Por fim Lautaro, ao ver, no amanhecer do terceiro dia, que Valdivia morria, lhe derramou ouro derretido na boca, para que se fartasse do metal de que tanto gostava e que tanto sofrimento causava aos índios nas minas.
Ai que dor, que dor! Estas lembranças são uma lança cravada aqui, no meio do peito. Que horas são, filha? Por que a luz se foi? As horas retrocederam, deve ser madrugada de novo. Acho que será manhã para sempre...
Os restos de Pedro de Valdivia nunca foram encontrados. Dizem que os mapuche devoraram seu corpo num rito improvisado, que fizeram flautas com seus ossos e que seu crânio serve até hoje como recipiente para o mudday dos toquis. Filha, você me pergunta por que me agarro à terrível versão da criada de Cecília, em vez da outra, mais misericordiosa, de que Valdivia foi executado com uma paulada na cabeça, como escreveu o poeta e como era o costume entre os índios do sul. Eu lhe direi. Durante esses três dias aziagos de dezembro de 1553, estive doente. Foi como se minha alma soubesse o que minha mente ainda ignorava. Imagens horrendas passavam diante de meus olhos, como num pesadelo de que não conseguia acordar. Eu parecia ver dentro de minha casa os cestos cheios de mão e narizes amputados, em meu pátio os índios carregados de correntes e aqueles que foram empalados; o ar cheirava a carne humana chamuscada e a brisa da noite me trazia os estalos de chicotes. Esta conquista custou imensos padecimentos... Ninguém pode perdoar tanta crueldade, e menos os mapuche, que jamais esquecem as ofensas, como também não esquecem os favores recebidos. Atormentavam-me as lembranças, estava como que possuída por um demônio. Você sabe, Isabel, que fora alguns sobressaltos do coração, sempre fui saudável, com a graça de Deus, de modo que não tenho outra explicação para a doença que me acometeu naqueles dias. Enquanto Pedro suportava seu horrendo fim, à distância minha alma o acompanhava e chorava por ele e por todas as vítimas desses anos. Caí prostrada, com vômitos tão intensos e febres tão ardentes, que temeram por minha vida. Em meu delírio ouvia com clareza os gritos de Pedro de Valdivia e sua voz despedindo-se de mim pela última vez: “Adeus, Inés da minha alma...”.”

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Erec e Enide, de Manuel Vázquez Montalbán

Editora: Alfaguara

ISBN: 978-85-7302-815-7

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 256

Sinopse: Segundo a lenda medieval, Erec, o mais moço dos cavaleiros da Távola-Redonda, teria abandonando seus companheiros de armas para viver com sua amada Enide como marido e mulher. Em Erec e Enide, Manuel Vázquez Montalbán faz uma releitura contemporânea do tema desta lenda medieval e apresenta uma reflexão sobre o sentido da vida, do amor e do casamento nos dias de hoje.

Numa narrativa em que entrelaça várias histórias de amor e adultério, Montalbán utiliza a lenda como contraponto das felicidades possíveis do ser humano. O livro conta a história do professor Julio Matasanz, especialista em literatura medieval que viaja para a Galícia para receber uma homenagem num congresso. Lá, ele reencontra sua amante, Myrna. O evento transcorre na ilha de San Simón – forte de cavaleiros templários, cárcere de republicanos durante e depois da Guerra Civil Espanhola, e hoje um centro cultural.

A última aula de Julio versa sobre Erec e Enide, primeiro romance do ciclo do rei Artur, motivo para que o professor faça uma emocionante reflexão sobre o sentido último da vida – o amor e a morte. Ao mesmo tempo, Pedro (afilhado de Julio) e sua companheira Myriam, destemidos voluntários de uma ONG, estão vivendo na América Central, desafiando paramilitares e caciques locais para permanecerem juntos. Enquanto isso, sua nem sempre fiel esposa Madrona, membro da alta burguesia barcelonesa, prepara o Natal com a esperança de reunir toda a família e superar conflitos, na esperança de que a festa dê sentido à sua vida e ao nome da sua residência: A alegria da corte.

 

“A cultura patrimonial e a linguagem de divulgação são os álibis da nossa hegemonia, considerando que o dinossauro morreu porque era um dinossauro e as formigas nos sobreviverão, mas escravas de uma lógica cavernícola que as impedirá de lutar contra os ácaros e contra as mulheres. Vão ganhar os ácaros. Sinto muito pela formiga e pelas mulheres, mas as duas alternativas avançam prepotentes numa ausência de vontade de poder, as formigas, ou numa denúncia da masculina vontade de poder, as mulheres. Sarcástica mentira, principalmente para o velho catedrático que testemunhou cinquenta anos de ascensão de suas colegas femininas, com uma capacidade de dentadas e rasteiras perfeitamente masculina, quando não usaram os peitos ou as bocetas, de que também carecem quase todos os homens. Sinto muito, sou misógino. Mas as mulheres não vão conseguir derrotar os ácaros. Os ácaros suportam até a bomba de nêutrons e não precisam se fantasiar de outra coisa para permanecer no ar ou nos nossos pulmões. Estão em toda parte. São Deus. Repetem o poder do invisível para criar ou desfazer o visível.”

 

 

“Mas certas doses de irracionalidade nos ajudam a continuar sendo racionais no fundamental.”

 

 

“Custo a admitir que penso em Julio porque estou mal, e se ao menos bastasse voltar para casa e recuperá-lo, sentiria alguma segurança de ânimo e não me forçaria a ir fazer as compras para compensar uma angústia tão incômoda que nem sequer se concretizava, uma sutil angústia feita de pressentimentos, de intuição feminina como eu mesma diria anos atrás, quando ainda acreditava na intuição feminina, antes de suspeitar que não passava de uma questão de desconfiança incontrolável na alma de todos os escravos.”

 

 

“– Mas que horror de homem! – me escapou, e os olhos claros da mulher loura me censuraram antes de seus lábios explicarem.

– Perdeu as estribeiras. Ele não é assim. Ultimamente as coisas não andam bem para o seu lado e está com uma paranoia gravíssima. Alguém disse que o pior que pode acontecer com um paranoico é ser perseguido de verdade. De qualquer modo, o problema é meu e muito obrigada.

– Você é enfermeira?

– Como percebeu?

– Pelas meias brancas.

– Tenho o título e faço algumas substituições, como agora. É duro lutar por uma vaga. São milhares de candidatos para cada emprego e isso numa sociedade com expectativa de vida de mais de setenta anos.

– Acha que é expectativa demais?

– Depende da vida que você levar.

A conversa era entre eles dois e eu estava alucinada porque tinha acabado de descobrir que Pedro era um homem que podia sentir-se atraído por uma garota loura, de olhos claros e lábios rosados. Ela tinha projetos. Inscrever-se nos Médicos Sem Fronteiras e tentar melhorar o nível de vida dos condenados da Terra, expressão que repetiu três vezes. Gostava dela. Era bonita e me emocionou. Os condenados da Terra! Havia superado a comoção do desagradável encontro e, estimulada por nossas perguntas, Myriam disse coisas brilhantes e muito instigantes. Por exemplo, que sua liberdade sem a dos outros não era liberdade e que isso deveria se estender à satisfação das necessidades, até mesmo dos prazeres.

– Isso é muito bonito. Muito cristão – exclamei entusiasmada.

– Procuro praticar o que digo sem necessidade de ser cristã. O cristianismo é um mero hábito cultural.”

 

 

“– Todos nós pensamos de duas maneiras diferentes, Marta. Primeiro pensamos para cumprir o protocolo e dizer bom-dia ou me dá esse vestido ou o que vamos fazer neste verão. E depois pensamos de verdade que os nossos pensamentos habituais falsificam o que sentimos ou o que deveríamos sentir com sinceridade. Pedro e a mulher dele viram o outro lado dessa trama de pequenas misérias, disso que chamamos de viver corretamente. Quase tudo aquilo em que acreditamos ou fingimos acreditar, e não me refiro ao aspecto religioso, é uma merda.”

 

 

“– Você deve estar imensamente feliz.

– Por quê?

– A homenagem. Na certa vai receber até um telegrama do rei. Você é muito narciso e essas coisas o engrandecem, você gosta.

– Em termos de narcisismo não tenho nada a ensinar a uma mulher.

– Errado. Em nós é uma obrigação imposta pelo papel de chamariz. Em vocês muda muito a segunda pessoa. Você, por exemplo, é narcisista porque só tem a si mesmo. Desconfia afetivamente de todos os que estão à sua volta.”

 

 

“Ela segura minha mão e a beija com suficiente, calculada leveza para que eu prossiga o caminho que me devolve à cama. Minhas costas estão doloridas e se acolhem à piedade de um colchão maravilhoso, como só costas veteranas e agredidas podem qualificá-lo, como só uma nuca cansada de sustentar a cabeça tão cheia de lembranças e presságios pode agradecer ao travesseiro, uma pátria. Luto contra a imperiosidade do sono para que Myrna não se sinta expulsa, mas talvez deseje que ela vá embora e me deixe reencontrar-me na solidão, como um ator fazendo exercícios espirituais antes de mostrar a cara no palco e antes de recompor o postal suvenir hectachrom na qual Myrna e eu nos encontramos ou nos despedimos, sem mudar o gesto num caso ou no outro, porque somos comediantes bem treinados. Já lemos tanto!”

 

 

“Porque penso que se cada qual é dono de suas próprias catástrofes, as catástrofes deixam de ser catástrofes.”

 

 

“– Vocês são católicos? – perguntou Diderot.

– Não.

– Eu também não. Mas precisamos dizer algumas coisas pelos nossos companheiros (jesuítas assassinados).

Levou Diderot a mão ao peito e olhou para um céu quase encoberto pelas copas das árvores mais altas.

– Senhor Deus dos nossos companheiros Iriondo e Blázquez, acolhe-os num dos melhores lugares destinados aos teus santos e teus mártires, porque eles não só deram provas de que acreditavam em Ti, mas sobretudo de que acreditavam em todos nós.”

 

 

“– A senhora vê? Somos umas formigas e tudo o que podemos almejar é a piedade da sola do pé dos deuses, para que adiem o nosso pisoteamento o máximo possível. Chore. Chore. Desespere-se. Mas a senhora é uma mulher bonita, muito bonita, e seu próprio corpo, como as gardênias, em contato com o meio vai encontrar motivos para sobreviver.”

 

 

“Vou ao lavatório para recuperar minha entidade, não diante do espelho e sim sentado na tampa do vaso, protegido neste pequeno âmbito onde tento juntar tudo o que aconteceu e está acontecendo, desejando que termine logo e um tapete mágico me leve a La Alegria de La Corte, onde estão à minha espera 15 dias de nada e quase ninguém. Madrona também, de quem não sei por que sinto saudades, vontade de partilhar por alguns dias aquela vida em que nunca acontece nada, irmãs e sobrinhos, amizades inócuas, a academia, dentro desse olimpo em que vivem os ricos pertencentes a pelo menos três gerações de ricos. Madrona não só é rica, mas também boa, boa pessoa, talvez por ser rica e não ter precisado ser má pessoa. Nunca lhe aconteceu nada.”

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

As flores do mal - Charles Baudelaire

Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-2091-853-1
Tradução: Ivan Junqueira
Apresentação: Marcelo Jacques
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 656
Sinopse: “Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio”, escreveu Charles Baudelaire sobre este livro numa carta.
Considerada o marco da poesia moderna, As flores do mal reúne de modo exemplar uma série de motivos obra do poeta: a queda; a expulsão do paraíso; o amor; a morte; o tempo; o exílio e o tédio.



Um fantasma

I – As trevas

Nos porões de tristeza impenetrável
Onde o Destino um dia me esqueceu;
Onde jamais um róseo raio ardeu,
Só com a noite, hospedeira intratável,

Sou qual pintor que um deus, por diversão,
Na treva faz mover os seus pincéis,
Ou o cozinheiro de apetites cruéis
Que assa e devora o próprio coração.

Súbito brilha e faz ali presente
Fantasma esplêndido e de graça extrema
Em oriental postura evanescente.

Ao atingir a perfeição suprema,
Nele percebo a bela visitante:
Ei-la! Negra e contudo fulgurante.



Reversibilidade

Ó anjo de alegria, já viste a desgraça,
Os soluços, o tédio, o remorso, as vergonhas,
E o difuso terror dessas noites medonhas
Que o peito oprimem como um papel que se amassa?
Ó anjo de alegria, já viste a desgraça?

Ó anjo de bondade, já viste o rancor,
As mãos em gesto aflito e as lágrimas de fel,
Quando brande a Vingança o seu apelo cruel
E de nossas virtudes torna-se o senhor?
Ó anjo de bondade, já viste o rancor?

Ó anjo de saúde, já viste os Delírios,
Que, ao longo das paredes do asilo alvadio,
Como exilados vão em seu passo tardio,
Movendo os lábios e buscando a luz dos círios?
Ó anjo de saúde, já viste os Delírios?

Ó anjo de beleza, as rugas já não viste,
Não viste o medo da velhice e este suplício
De ler o esfíngico pavor do sacrifício
No olhar que outrora nos saciou a gula triste?
Ó anjo de beleza, as rugas já não viste?

Ó anjo de ventura e júbilo e clarões,
Davi da morte se teria levantado
Sob os eflúvios de teu corpo enfeitiçado;
Mas a ti só imploro as tuas orações,
Ó anjo de ventura e júbilo e clarões!



O veneno

Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio
   Com seu luxo prodigioso,
E engendra mais de um pórtico miraculoso
   No ouro de um vapor purpúreo,
Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.

O ópio dilata o que contornos não tem mais,
   Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
   E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter lhe é dado.

Mas nada disso vale o veneno que escorre
   De teu verde olhar perverso,
Laguna onde minha alma se mira ao inverso...
   E meu sonho logo acorre
Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.

Nada disso se iguala ao prodígio sombrio
   Da tua saliva forte,
Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
   E, carreando o desvario,
Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!



O Irreparável

I

Como abafar este Remorso interminável,
   Que vive, se enrosca e se agita,
E se nutre de nós como um verme insaciável,
   Qual do carvalho o parasita?
Como abafar este Remorso inexorável?

Em que filtro, em que vinho, em que amarga tisana
   Afogar tal praga inimiga,
Gulosa e predatória como uma mundana,
   Paciente como uma formiga?
Em que filtro? – em que vinho? – em que amarga tisana?

Ah, dize, ó feiticeira! dize, se és capaz,
   A esta alma que o tormento assola,
Como a de quem, em meio aos que agonizam, jaz
   E o casco do cavalo esfola,
Ó bela feiticeira! Ah, dize, se és capaz,

Ao moribundo a quem o lobo já fareja
   E a gula do corvo amortalha,
A este soldado que, batido, ainda peleja
   Por uma tumba e uma medalha;
O moribundo a quem o lobo já fareja!

Como clarear um céu ao sol indiferente,
   Rasga-lhe as trevas em cortejo,
Mais densas do que o breu, sem aurora e sem poente,
   Sem astro ou fúnebre lampejo?
Como clarear um céu ao sol indiferente?

A esperança que luz nos vidros da Estalagem
   Desfez-se em meio ao torvelinho!
Sem raios nem luar, onde achar-se hospedagem
   Aos mártires de um mau caminho?
Satã tudo extinguiu nos vidros da Estalagem!

Amável feiticeira, adoras os danados?
   Conhece o que nunca é salvo?
Conheces do Remorso os dardos aguçados?
   Que o coração nos fazem de alvo?
Amável feiticeira, adora os danados?

O Irreparável rói com a presa maldita
   Nossa lama, indigno monumento,
E muita vez ataca, assim como a térmita,
   O prédio por seu fundamento.
O irreparável rói com a presa maldita;


II

– Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal
   Que inflamava a orquestra sonora,
Uma fada acender no horizonte infernal
   Uma miraculosa aurora;
Por vezes vi, ao fundo de um teatro banal,

Um Ser feito somente de ouro, gaze e luz
   Vencer a Satã, que imenso era;
Porém meu coração, que êxtase algum seduz,
   É como um teatro onde se espera,
Em vão e para sempre, o Ser de asas de luz!



Spleen (LXXVI)

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
– Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher* desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
– Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas aos raios do sol a se pôr.

François Boucher (1703-1770): pintor e gravador francês. Autor de cenas pastoris, religiosas, mitológicas e alegóricas, cujas cores desmaiadas lembram pastéis. (N.T.)



Spleen (LXXVII)

Sou como o rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.
O sábio que ouro lhe fabrica desconhece
Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,
E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,
De que se lembram na velhice os soberanos,
Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,
Em vez de sangue flui a verde água do Letes*.

Letes: Em gr. Léthe, um dos rios do inferno. Sua água fazia esquecer o passado àqueles que dela bebessem.


Spleen (LXXVIII)

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com vez recalcitrante.

– Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Enterra-me no crânio uma bandeira preta.


“– Já não viste que o esquife onde dorme uma velha
É quase tão pequeno quanto o de um infante?”



O crepúsculo vespertino

Eis a noite sutil, amiga do assassino;
Ela vem como um cúmplice, a passo lupino;
Qual grande alcova o céu se fecha lentamente,
E em besta fera torna-se o homem impaciente.
Ó noite, amável noite, almejada por quem
Cujas mãos, sem mentir, podem dizer: Amém,
Galgamos nosso pão! – É a noite que alivia
As almas que uma dor selvagem suplicia,
O sábio cuja fronte pesa sem proveito,
E o recurso operário que regressa ao leito.
Entretanto, demônios insepultos no ócio
Acordam do estupor, como homens de negócio,
E estremecem a voar o postigo e a janela.
Através dos clarões que o vendaval flagela
O Meretrício brilha ao longo das calçadas;
Qual formigueiro ele franqueia mil entradas;
Por toda parte engendra uma invisível trilha,
Assim como inimigo apronta uma armadilha;
Pela cidade imunda e hostil se movimenta
Como um verme que ao Homem furta o que o sustenta.
Ouvem-se aqui e ali as cozinhas a chiar,
Os teatros a ganir, as orquestras a ecoar;
Sobre as roletas em que o jogo encena farsas,
Curvam-se escroques e rameiras, seus comparsas,
E os ladrões, que perdão ou trégua alguma têm
Começam cedo a trabalhar, eles também,
Forçando docemente o trinco e a fechadura
Para que a vida não lhes seja assim tão dura.

Recolhe-te, minha alma, neste grave instante,
E tapa teus ouvidos a este som uivante.
É o momento em que as dores dos doentes culminam!
A Noite escura os estrangula; eles terminam
Seus destinos no horror de um abismo comum;
Seus suspiros inundam o hospital; mais de um
Não mais virá buscar a sopa perfumada,
Junto ao fogão, à tarde, ao pé da bem-amada.

E entre eles muitos há que nunca conheceram
A doçura do lar e que jamais viveram!



O crepúsculo matinal

Cantava a diana pelos pátios das casernas,
E o vento da manhã soprava nas lanternas.

Era a hora em que o tropel dos sonhos malfazejos
Retorce entre os lençóis impúberes desejos;
Em que, como olho que palpita e olha de esguelha,
A luz deixa no espaço uma nódoa vermelha;
Em que o espírito, ao peso da matéria bruta,
Imita o afã da lâmpada e do dia em luta.
Qual uma face cujo pranto a brisa enxuga,
O ar incorpora as pulsações da noite em fuga,
Cansa o homem de escrever e a mulher já não ama.
Nas casas via-se a primeira e tíbia chama.
As prostitutas, sob as pálpebras sem viço,
Boca aberta, dormiam seu sono maciço;
As mendigas, os seios magros e doentios,
Sopravam os tições e os hirtos dedos frios.
Era a hora em que, ao fundo de um mísero quarto,
Mais padece a mulher entre as dores do parto;
Como um soluço à tona de sanguínea espuma,
A voz do galo ao longe espedaçava a bruma;
Um mar de névoas engolfava os edifícios,
E os moribundos, esquecidos nos hospícios,
Entre estertores desiguais se contorciam.
Exaustos, os rufiões enfim se recolhiam.

Em traje verde e róseo, a enregelada aurora
Fluía devagar pelo ermo Sena afora,
E Paris, os sombrios olhos entreabrindo,
Rumo ao trabalho, velho obreiro, ia seguindo.



Alegoria

É uma bela mulher, de aparência altaneira,
Que deixa mergulhar no vinho a cabeleira.
As tenazes do amor, os venenos da intriga,
Nada a epiderme de granito lhe fustiga.
Da Morte ela se ri e escarnece da Orgia,
Espectros cuja mão, que ceifa e suplicia,
Respeitaram, contudo, em seus jogos de horror,
Neste corpo elegante o rústico esplendor.
Caminha como deusa e dorme qual sultana,
E mantém no prazer uma fé maometana,
Braços em cruz, inflando os seios soberanos,
Com seu olhar convoca a raça dos humanos.
Ela sabe, ela crê, em seu ventre infecundo,
E no entanto essencial ao avanço do mundo,
Que a beleza do corpo é sempre um dom sublime
Que perdoa a sorrir qualquer infâmia ou crime.
O Inferno desconhece e o Purgatório ignora,
E quando a negra Noite anunciar sua hora,
Da Morte ela há de olhar o rosto apodrecido
– Sem remorso ou rancor, como um recém-nascido.



A viagem

I

Para a criança, que adora olhar mapas e telas,
O universo se iguala ao seu vasto apetite.
Ah, como é grande o mundo à tíbia luz das velas!
E na saudade quão pequeno é o seu limite!

Partimos de manhã, a alma em chamas pressagas,
O coração cheio de fel e de acres mágoas;
Seguíamos assim, sempre ao sabor das vagas,
O infinito a embalar no finito das águas;

Uns, gratos por fugir a uma infâmia qualquer;
Outros, ao pânico dos lares, e alguns mais,
Astrólogos fitando o olhar de uma mulher,
Circe* tirânica entre bálsamos fatais.


Para que em bestas não se tornem, se inebriam
À luz que arde no céu em ásperos lampejos;
O gelo que os ulcera, os sóis que os supliciam,
Apagam pouco a pouco a cicatriz dos beijos.

Mas viajantes de fato apenas são aqueles
Que partem por partir; o coração flutuante,
Jamais hão de aceitar ser outros senão eles
E, sem saber por quê, ordenam sempre: Adiante!

Os que ao prazer dão a fugaz forma das nuvens
E sonham, como sonha o canhão um recruta,
Volúpias sem limite, ignotas e volúveis,
Cujo nome jamais o ouvido humano escuta!

Circe: em Gr. Kírke, feiticeira que transformou em porcos os companheiros de Ulisses quando este aportou à sua ilha, a fim de que o herói permanecesse por mais tempo ao seu lado. Assim nos relata Homero na Odisseia, canto X (N.T.)


II

Imitando, que horror, a carrapeta e a bola
Em sua valsa, mesmo em sonhos, a nefasta
Curiosidade sempre nos aflige e rola
Tal como um Anjo cruel que o próprio sol vergasta.

Fortuna singular cujo alvo não se alcança
E que, além não estando, onde está não importa!
Em que o homem, que jamais renuncia à esperança,
Repouso implora como um louco em cada porta!

Nossa alma é uma trirreme em busca dessa Içaria*;
Sobre a ponte uma voz no ar ecoa: “Abre os olhos!”
E na gávea outra vez se alteia solitária:
“Ventura... glória... amor!” Mas há somente escolhos!

Cada ilhota que avista esse homem da vigia
É um paraíso, uma promessa do Destino;
E o devaneio, que ora ostenta a sua orgia,
Um só recife encontra à luz do ar matutino.

Amoroso infeliz de ermas regiões quiméricas!
Preciso é submetê-lo e ao mar lançá-lo após,
Esse ébrio marinheiro, esse inventor de Américas
Cuja miragem torna o abismo mais atroz?

Tal como o velho vagabundo, os pés na lama,
Nariz para o ar, édens de luz, eis que imagina;
Uma Cápua* vislumbra o seu olhar em chama
Toda vez que a candeia um casebre ilumina.

Içaria: Em gr., Ikaría, ilha grega do mar Egeu. Baudelaire alude aqui à Voyage em Icarie (1842), romance fantasioso em que Étienne Cabet, teórico do comunismo, expõe um sistema de felicidade imaginária. (N.T.)
Cápua: Cidade da Itália, ant. Casilimun. Sua fundação remonta aos etruscos. Uniu-se a Roma no séc. IV a.C. e foi tomada por Aníbal em 215 a.C., tendo seus soldados passado ali o inverno. A expressão ‘as delícias de Cápua’, faz alusão a esse inverno, durante o qual o exército se debilitou, em lugar de consolidar a vitória. (N.T.)


III

Viajantes sem temor, quantas nobres histórias
Lemos em vosso olhar profundo como os lastros!
Mostrai em vosso escrínio essas ricas memórias,
Joias mais raras do que a etérea luz dos astros.

Queremos navegar sem bússola e sem vela!
Fazei, para que o tédio o ser não nos afronte,
Passar em nossos corações, qual numa tela,
Vossas lembranças com seus quadros de horizonte.

E que vistes? Dizei.


IV

“Vimos estrelas e ondas,
E enfim vimos também alvíssimas areias;
E, apesar do naufrágio em borrascas hediondas,
O tédio, como aqui, nos cinge em suas teias.

A glória ébria do sol por sobre um mar violeta,
As cidades em glória ante o sol a se pôr,
Nos acendiam na alma uma vontade inquieta
De mergulhar num céu de aliciante esplendor.

As maiores regiões, a mais pujante aldeia,
Não continham jamais os encantos secretos
Dessas que o acaso com as nuvens delineia.
E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!

– Ao desejo o prazer alguma força acresce.
Desejo, árvore à qual o gozo é adubo certo,
E enquanto a casca engrossa e aos poucos enrijece,
Teus ramos querem ver o sol ainda mais perto!

Crescerás sempre, ó tronco imenso e mais vivaz
Que o cipreste? – Com zelo arrancamos, porém,
Alguns botões que ao vosso álbum ávido apraz,
Irmãos que achais ser belo o que de longe vem!

Celebramos até uns ídolos com trompa;
Tronos que a luz das joias deixa constelados,
Palácios de cristal cuja ofuscante pompa
Seria um pesadelo aos vossos potentados;

Ritos que aos olhos mais parecem uma orgia;
Mulheres cujos dentes e unhas são rubis,
E hábeis jograis que uma serpente acaricia.”


V

E após, e após enfim?


VI

“O cérebro pueris!

E para não fugir à coisa capital,
Vimos em toda parte, e sem o haver buscado,
Desde cima até embaixo da escada fatal,
A encenação tediosa do imortal pecado:

A mulher, serva infame, estúpida e orgulhosa,
Adorando-se a sério e amando-se em sossego;
O homem, tirano, a alma feroz e voluptuosa,
Da escrava o escravo e de um esgoto o imundo rego;

O algoz que se diverte, o mártir que padece;
A festa que perfuma o sangue e que o tempera;
O vinho do poder que ao déspota enraivece,
E o povo em êxtase ante o látego que o espera;

Diversas religiões em tudo iguais à nossa,
Todas galgando o céu; a vocação divina,
Como um donzel que em meio às plumas se alvoroça,
Em busca da volúpia entre os pregos e a crina;

A Humanidade, ébria da própria fantasia,
E hoje tão louca quanto o foi no tempo antigo,
Clamando a Deus em sua ríspida agonia:
Ó mestre, ó semelhante a mim, eu te maldigo!

E os menos tolos, mas amantes da Demência,
Fugindo ao que o Destino uniu, rebanho inglório,
E no ópio adormecendo os restos da consciência!
– Tal é do mundo inteiro o eterno relatório!"


VII

Saber amargo, o que se tira de uma viagem!
Monótono e pequeno, o mundo, sem remédio,
Hoje, ontem, amanhã, nos faz ver nossa imagem,
Um oásis de horror num deserto de tédio!

Urge partir? ficar? Pois fica, se te apraz;
Ou parte, se é preciso. Um corre, o outro se esconde
Para enganar o Tempo, o inimigo tenaz
E funesto! Há quem corra alheio ao quando e ao onde,

Como o Judeu errante e os fiéis de Nazaré,
Aos quais nada valeu, nem barco nem vagão,
Para fugir ao gladiador; e há quem até
Saiba matá-lo sem deixar o seu torrão.

Quando ele nos pisar o dorso que se inclina,
Poderemos enfim gritar bem alto: “Avante!”
Assim como íamos outrora para a China,
Os cabelos ao vento e os olhos sempre adiante,

Navegaremos sobre a espuma tenebrosa,
Jovens viajantes ébrios de ânsia e de prazer.
Escutai essa voz, taciturna e graciosa,
Que canta: “Por aqui, vós que quereis comer

O Lótus perfumado! Eis que a vindima
Dos frutos pelos quais vossa alma anda sedenta;
Não viestes pois vos embriagar ao doce clima
Dessa tarde que flui infinda e sonolenta?”

A uma voz familiar se adivinha a visão;
Os Pílades* ao longe acolhem-nos agora.
“Vai refrescar-te em tua Electra*, coração!”
Diz essa cujos pés beijávamos outrora.

Pílades: herói mitológico da Fócida, primo e amigo inseparável de Orestes. (N.T.)
Electra: Filha de Agamêmnon, e de Cliemnestra, irmã de Orestes e de Ifigênia. Ajudou Orestes a vingar o assassínio do pai e casou-se com Pílades, filho do rei da Fócida. A lenda de Electra exerceu imenso fascínio sobre diversos dramaturgos antigos e modernos, tendo nela se inspirado, além de numerosos autores da Renascença e do Barroco, Ésquilo (Coéforas), Sófocles (Electra, c.425 a.C.), Eurípedes (Electra 413 a.C.), Hugo Von Hofsmannshtal (Elektra, 1904-1906, que serviu de base a uma ópera de Richard Strauss). Eugene O’Neil (Mourning becomes Electra, 1931) e Jean Giraudoux (iEléctre, 1937). É nessa lenda que se apoia também a doutrina psicanalítica segundo a qual a trama neurótica de determinados conflitos femininos remonta à fixação libidinosa da menina em relação ao pai. (N.T.)


VIII

Ó Morte, velho capitão, é tempo! Às velas!
Este país enfara, ó Morte! Para frente!
Se o mar e o céu recobre o luto das procelas,
Em nossos corações brilha uma chama ardente!

Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
Queremos, tal o cérebro nos arde em fogo,
Ir ao fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa?
Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!



Mulheres malditas

Delfina e Hipólita

À tíbia luz das lamparinas voluptuosas,
Sobre sensuais coxins impregnados de essência,
Sonhava Hipólita* as carícias poderosas
Que lhe erguiam o véu da púbere inocência.

Ela buscava, o olhar na tempestade posto,
De sua ingenuidade o céu distante agora,
Como um viajante para trás volve o seu rosto
Em busca da manhã que já se foi embora.

Os olhos já sem viço, o preguiçoso pranto,
O ar exausto, o estupor, a lúbrica moleza.
Os braços sem ação, como armas vãs a um canto,
Tudo afinal lhe ungia a tímida beleza.

Posta a seus pés, serena e cheia de alegria,
Delfina* lhe lançava à carne olhos ardentes,
Como o animal feroz que a vítima vigia,
Após havê-la antes marcado com seus dentes.

Bela e viril de joelhos ante a frágil bela,
Soberba, ela sorvia com volúpia intensa
O vinho da vitória e, acercando-se dela,
Punha-se à espera de uma doce recompensa.

No pasmo olhar da presa ela buscava aflita
Ouvir o canto que o prazer sem voz entoa,
E essa sublime gratidão que arde infinita
E, qual suspiro, sob as pálpebras escoa.

– “Hipólita, amor meu, que me dizes então?
Compreendes quão pueril é oferecer agora
Em holocausto as tuas rosas em botão
A um sopro que as pudesse espedaçar lá fora?

Meus beijos são sutis como asas erradias
Que afagam pela tarde os lagos transparentes,
Mas os de teu amante hão de escavar estrias
Como as carroças e os arados inclementes;

Sobre ti passarão qual sobre alguém pisasse
Uma junta de bois os cascos sem piedade...
Hipólita, meu bem! volve pois tua face,
Tu, coração, que és o meu todo e és a metade,

Volve teus olhos cheios de astros como os céus!
Dá-me esse olhar que é como um bálsamo bem-vindo;
Do prazer mais sombrio eu erguerei os véus
E hei de fazer-te adormecer num sonho infindo!”

Mas Hipólita então a fronte levantando:
– “Não sou ingrata e do que fiz não me arrependo,
Minha Delfina, eu sofro e à dor vou definhando,
Como após um festim crepuscular e horrendo.

Sinto pesarem sobre mim graves terrores
E negros batalhões de fantasmas dispersos,
Que querem conduzir-me a fluidos corredores
Num sanguíneo horizonte em toda parte imersos.

Teremos cometido algum pecado extremo?
Explica, se és capaz, o medo que me acua:
Se me dizes: Meu anjo! eu de alto a baixo tremo
E sinto a minha boca ir em busca da tua.

Não me olhes mais assim, ó tu, meu pensamento!
Tu que eu adoro e que és enfim minha eleição,
Mesmo que fosse um fantoche fraudulento
E a própria origem dessa estranha perdição!”

Delfina, a sacudir nervosa a crina ondeante,
E como a tripudiar sobre um tripé superno,
O olhar fatal, gritou, despótica e arrogante:
– “E quem diante do amor ousa falar do inferno?

Maldito para sempre o sonhador inútil
Que por primeiro quis, em sua insanidade,
Entretanto um problema insolúvel e fútil,
As delícias do amor juntar à honestidade!

O que deseja unir, em místico projeto,
O dia com a noite, o frio como a flama,
Jamais aquecerá seu trôpego esqueleto
Àquele rubro sol que amor também se chama!

Vai, se queres, de um noivo estúpido à procura;
Abre teu peito em flor a seus beijos em fúria;
E como quem o horror ao remorso mistura,
No seio hás de exibir-me o estigma da luxúria...

Aqui somente a uma mestre é lícito servir-se!”
Mas Hipólita, em meio a uma enorme aflição,
De súbito gritou: – “Sinto em meu ser abrir-se
Um abismo, e este abismo é enfim meu coração!

Ardente qual vulcão, mais fundo que a tormenta,
Nada este monstro aplacará dentro de mim
E nunca há de saciar a Eumênide* sedenta
Que a queimará, archote em punho, até o fim.

Que os véus de nossa alcova ocultem-nos do mundo,
E que o cansaço dê repouso a tais agruras!
Quero extinguir-me no teu vórtice profundo
E no teu seio achar à paz das sepulturas!”

– Descei, descei, ó tristes vítimas sublimes,
Descei por onde o fogo arde em clarões eternos!
Mergulhai neste abismo em que todos os crimes,
Tangidos por um vento oriundo dos infernos,

Fervilham de mistura aos ásperos trovões.
Sombras dementes, ide ao fim de vosso vício;
Não podereis o ódio expulsar dos corações,
E é do prazer que há de surgir vosso suplício.

Jamais um raio há de clarear vossas cavernas;
Pelas fendas da pedra os miasmas delirantes
Infiltram-se a brilhar, assim como lanternas,
E os corpos vos penetram de odores nauseantes.

O acre prazer que vos alegra a erma existência
A sede vos aumenta e a vossa pele engelha;
E ao vento furibundo da concupiscência
Vossa carne se esgarça qual bandeira velha.

Longe dos vivos, erradias, condenadas,
Correi rumo ao deserto e ali uivai a sós;
Cumpri vosso destino, almas desordenadas,
E fugi do infinito que trazeis em vós!

Hipólita: Rainha das amazonas, filha de Ares. Hércules venceu as amazonas e capturou ou matou a rainha para roubar-lhe o cinto miraculoso. (N.T.)
Delfina: na antiguidade grega, uma das pítias, sacerdotisas encarregadas de pronunciar oráculos em nome de Apolo, em Delfos. Sentadas numa trípode, entre emanações sulfurosas no interior da caverna sagrada, as pítias eram tomadas de ‘delírio divino’, articulando palavras incoerentes que os sacerdotes interpretavam como a resposta de deus. (N.T.)
Eumênide: Na mitologia grega, cada uma das três Fúrias. (O mesmo nome é dado por antífrase, sobretudo na Ática, as Erínias.) Em sentido figurado, equivale ao remorso, ao rebate de consciência.